O LEITOR INEXISTENTE

Devo confessar que sinto certa dificuldade de relatar minha experiência literária, diria até certo constrangimento, dada a especificidade com que encarei o assunto, e os resultados e conclusões que atingi, com certeza estranhos para a maioria das pessoas. Também é difícil usar uma linguagem tão simples para descrevê-la, quando o que vi foi, ao fim e ao cabo, um abismo. Mas sejamos breves e diretos.

Certo dia, sozinho em casa, comecei a rabiscar algumas coisas. O tema era a relação amorosa de um casal que, abduzido por uma paixão avassaladora, se isola do mundo por vontade própria e passam ambos a viver um para o outro. A união se desgasta, o amor vira hábito. Incapazes de aceitar a condição, passam a sustentá-la artificialmente, e preservar, por motivos que não conhecemos, o sentimento que não mais existe, à custa de sadismo e piedade. Enquanto escrevia essas linhas, meu raciocínio foi induzido a algumas considerações de caráter literário, emergentes daquela estória. Pensei que a escrita, como aquele casamento, é subterfúgio para manter viva a arte da literatura; que num mundo sem Deus, ela funciona como um ritual, privado e secreto, onde tentamos dar sentido à falta de sentido de todas as coisas, e imolamos a nós mesmos nesse altar que é a folha de papel em branco à nossa frente, fazendo dela a única realidade possível, e de nós anátemas de um outro deus, cético e bruto que, ao invés de trazer a existência em seu bojo, a exclui e expulsa de si, deixando-nos apenas o Vazio, indício de Sua ausência, avesso e negativo de Sua benevolência. Depois pensei que as palavras, grafadas uma a uma, não têm consistência, e só existem e apenas existem no momento de sua leitura; que a palavra casa é um enunciado da linguagem, e não tem valor fora dela, e a literatura, enfim, depende mais da interpretação que da criação. O mundo é um grande livro de escrita cifrada, e cada um de nós um leitor potencial de sua mensagem. Há mais leitores que escritores – por isso aqueles prescindem destes, não o contrário.

Diante desse vazio, aquele enredo tomou importância nula. Os fatos não dizem nada, e em nada interessam. O que vale é a comunicação de essências abstratas, como diz Leopold Bloom na cena da biblioteca de Dublin, e estas, por sua vez, tem pouco, quase nada a ver com os fenômenos sensíveis. Surgiu então a dúvida: e se acaso ninguém lesse essas páginas? Poucos escritores atentaram para esse fato. No entanto, a sua confirmação reduziria a pó todas as frases que escrevi até agora, e nos levaria a deduzir, com justiça, que elas na verdade nunca foram escritas. A arte, sendo comunicação de essências imateriais, exige um interlocutor, sem o qual ela se reduz a um amontoado de letras impressas em papel velho. Foi a partir desse dia que criei para mim um Leitor que não existe, misto de personagem e ser humano, que me olha e guia o meu pensamento por cada linha que ele siga.

Pus-me então a escrever tendo em vista esse Leitor, introduzindo na obra as suas possíveis interpretações, de modo que elas importassem mais que a minha vontade de expressão. A atitude é visivelmente suicida, na medida em que não era mais eu quem escrevia, mas esse conceito absoluto. Não era o autor, mas o instrumento. E pude então compreender o versículo bíblico que diz: és pó e ao pó retornarás. Vieira, no Sermão de Quarta-Feira de Cinzas, apoiado no Livro Doze das Confissões de Santo Agostinho, o explica dizendo que o que é só o é como misto simultâneo do que foi e do que há de ser. Viemos do nada, vamos para o nada. Portanto, já somos nada, e a vida é uma ilusão, o intervalo entre duas formas distintas de não-ser: aqui pó levantado, além pó caído. Só nisso diferem os mortos dos vivos. Apliquei o silogismo a mim mesmo: a escrita vem do nada – folha em branco – e vai para o nada: texto não lido. Aqui pó escrito, além pó não lido: se ambos pó, então já pó desde agora. E para sempre.

Minha arte se transformou numa barafunda, num amálgama de linhas e formas aritméticas, não obstante imperceptíveis aos olhos. Não conseguia mais narrar um único fato sequer, não conseguia nem criar sentenças legíveis, de tal modo a escrita se enovelava em si mesma e renunciava às coisas mundanas. O Leitor, verdade puramente intelectual, assim o queria, e me senti como Dante nas últimas abóbadas celestes, quando as palavras lhe faltaram, tamanha a pujança da emanação da luz divina. Comecei a perceber que a literatura não me interessava mais. Primeiro porque chegou um momento em que ela era interpretação de si: como uma cobra que mordesse o próprio, ou o Narciso de Caravaggio debuxado sobre o oco de sua imagem, o autor cedeu ao leitor, o artista ao crítico. Nem sei se era língua humana a que usava, e minha obra se transformou numa alegoria do Nada, um épico do fracasso. Sem assunto, tema, modo, forma, expressão: cheguei a um limite intransponível, onde o próximo passo seria o vento, o silêncio ou a telepatia.

Mas ocorreu um fato que me fez ponderar todos aqueles anos de trabalho. Chegando em casa, passei pela sacada onde se situa um espelho enorme que reproduz todos os seus utensílios, e senti uma sensação indescritível, um misto de nojo e estupefação. Pode-se pensar o que quiser; não sou louco, nem tenho a intenção de me mistificar. Mas durante quase meia hora andei por todos os cantos do cômodo, me debati, rolei, fui à sua superfície fria e irracional. Nada. Não sei se por uma bruxaria de algum ser oculto que reduzisse minha vida ao ritmo e à galhofa de uma pena que corre os destinos humanos em seu curso, ou por um desígnio de algum demônio que ria de mim, minha imagem não se refletia. Custou alguns dias para que eu percebesse a razão daquele fato. De tal forma a ficção tomou corpo em minha vida, e a expressão se rendeu à análise meticulosa, com uma finalidade quase ascética, que eu perdera a realidade, transformara-me numa conjunção de forças invisíveis, nada mais.

Como se pode intuir, abdiquei da literatura. E esse texto? Achará ouvido de gente? A simples possibilidade de uma resposta negativa apaga-o de minha vista, como num passe de mágica. E eu, sem dizer palavra alguma, tranco a chaves os papéis em branco na gaveta da escrivaninha e saio pela porta dos fundos.






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