HOMEROS
Leio em um manual de história das literaturas a notícia biográfica de um autor que se intitulava Homero, e que viveu na região da Beócia por volta do século I da nossa era. Sua Odisséia, redigida em latim, imita passo por passo a do aedo cego. Fiquei surpreso com essa informação e feliz por ter conhecido um autor tão indispensável às letras universais, e senti no meu íntimo que se tratava de obra mais necessária do que a do seu ilustre modelo. Sei que essa afirmação pode parecer contraditória a princípio, mas, analisada friamente, é tão lúcida e clara quanto a luz do sol. Se louvamos o fato, irrisório em si mesmo, de que um dia, em uma parte do mundo, houve um homem, ou a síntese do trabalho de um conjunto de homens, que cantou o retorno de Ulisses a Ítaca, e ficamos admirados imaginando que isso realmente ocorreu há quase três mil anos, por que não admirar ainda mais alguém que, tão crente da veracidade dessa hipótese, se propõem a revivê-la em suas linhas e na sua vida como se fosse dado de uma veracidade inquestionável? Se nós atribuímos valor a Homero pelo simples fato dele ter existido, o que comprova a sua existência senão a existência do seu antípoda, o falso Homero? Sombra cujo movimento dá realidade ao corpo, o falso Homero é o único testemunho do valor de Homero: revivendo através da tradição indiretamente, de maneira pálida e oblíqua, o poeta grego está presente na rotina intelectual dos homens de hoje na mesma proporção em que a cor branca está presente na vermelha sabemos que há um resquício ínfimo daquela nesta, mas a experiência nos desmente a cada momento essa conjectura e estamos prestes a concordar que o vermelho necessita do branco com a mesma intensidade que a constelação precisa de uma única estrela para ser constelação. Ao contrário, quem seria hoje capaz de conferir-lhe, a ele, Homero, esse estado de graça no qual, despertando de um sono difuso de séculos e séculos, revivesse finalmente no espelho côncavo e negativo de uma obra e de uma vida que o absorvesse e, literalmente, o imitasse?
O texto acima é, na verdade, uma adaptação, feita há poucas décadas, de outro, de autor anônimo impugnado pela História e banido dos compêndios literários, de quem não se conhece nem a pátria nem as datas de nascimento e morte, e a quem foi negado o acesso ao mundo dos homens e aos anais. Seu parágrafo original é o seguinte:
Leio em um manual de história das literaturas a notícia biográfica de um tal autor grego chamado Homero, poeta que viveu por volta do século IX antes de Jesus e que, segundo alguns, foi quem recolheu e compôs os cantos do poema intitulado Odisséia, e segundo outros, em palavras que chegam a beirar o devaneio, foi o fundador da literatura ocidental. Não me estendo aqui a demonstrar que a maior parte humanidade está equivocada em sua concepção de tempo, e que a cronologia é uma cegueira e uma imbecilidade dificilmente mensurável em palavras polidas, já que trata as coisas como prenúncios do que se cumprirá depois e não percebe que tais coisas só existem em função do que delas advém, e, pode-se dizer, nascem desse futuro remoto que é, ao fim e ao cabo, sua matriz. Limito-me apenas a dizer que o Homero grego imitou antecipadamente o que fez o Homero romano, cerca de dez séculos depois e em latim. Se a Odisséia é um arquétipo que paira pronto e intacto como Idéia na consciência de Deus, somente a repetição pode afirmá-la como tal, já que, existindo isoladamente, sua realidade seria algo semelhante a um rascunho do vento na areia ou um grão solitário que não compusesse uma praia com outros infinitos grãos. Ou, para dizer em outras palavras, se apenas a repetição de instantes dentro do tempo nos dá a idéia de Tempo, somente a repetição da Odisséia nos dá, enfim, a Odisséia. Quem é então o seu criador? Opto pelo homem que vive por trás da alcunha odiosa de falso Homero que eruditos rançosos e filólogos mesquinhos lhe impingiram. Ele é o maior poeta que já existiu em todos os tempos. Sua vida física está circunscrita ao século I da nossa era e a Beócia é sua região de procedência.
|