Rezar para quê?

 

Frei BENTO DOMINGUES, O.P.


  1. Faço parte de um grupo, bastante ecuménico que, antes da pandemia, se reunia todos os meses para debater questões levantadas, em cada reunião, pelos membros do grupo. Nem sempre se contava com uma agenda prévia. Esta resultava sobretudo das propostas que surgiam no começo de cada encontro.

Na semana passada voltámos a reunir.  Uma pergunta que ocupou quase toda a reunião foi provocada pela admirável jornada de oração e jejum pela paz na Ucrânia, na Quarta-feira de Cinzas, convocada pelo Papa Francisco.

Será que Deus está à espera das nossas orações para decidir o que deve fazer? Poderão as nossas orações alterar a vontade de Deus? No caso presente, a população ucraniana e russa é formada por povos maioritariamente religiosos e cristãos, embora de diferentes Igrejas. Deus, por quem vai optar? Sendo Deus omnipotente porque não acaba de vez com todas as guerras?

 Estas e outras perguntas do mesmo género manifestam representações de Deus e da oração pouco adequadas e que facilmente resvalam para o absurdo. Fazem de Deus um imperador omnipotente que faz o que quer, quando quer e como quer. Nesta representação, Deus é tudo. Tanto a natureza e as suas leis como o ser humano e a sua liberdade não contam para nada.

 Deus não cabe em nenhum dos nossos conceitos. A nossa linguagem simbólica, sobretudo a musical, pode sugerir o mistério inabarcável do mundo e de Deus. Conhecemos a Deus como desconhecido. É, por isso, que o recurso à teologia negativa ou apofática é fundamental, ao tentar corrigir as nossas maneiras simplistas ou grosseiras de nomear a Deus. A todas as afirmações que formulamos acerca da divindade devemos juntar-lhe sempre uma negação. Para este modo de fazer teologia – que não podemos expor aqui – toda a descrição que a inteligência humana consegue elaborar sobre Deus fica sempre infinitamente aquém daquilo que Deus é. A teologia negativa percebe que todo o esforço da racionalidade em definir Deus e os seus atributos acaba por reduzir Deus à banalidade impossível das nossas concepções humanas. Como escreveu Pascal, é o coração que sente Deus não a razão.

  1. Em Atenas, S. Paulo, formado no monoteísmo bíblico, fervia de indignação ao ver a cidade repleta de ídolos. Mas, quando foi convidado para explicar a sua doutrina, naÁgora, começou, como bom retórico, por tentar dispor favoravelmente o seu auditório: «Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: Ao Deus desconhecido». Isto serviu-lhe para apresentar a mensagem cristã que o movia. Para o conseguir, não exitou em recorrer a um autor pagão da cultura do público que tinha pela frente: Na divindade vivemos, nos movemos e existimos[1].

Espero que os textos que vou seleccionar sejam suficientes para nos mostrar que a oração não se destina a modificar a Deus. Não nos pode amar mais do que nos ama. O seu amor de misericórdia universal é ilimitado. A oração destina-se a modificar a nossa vida, segundo o Espírito de Cristo. É um processo de conversão permanente. Por isso, temos de rezar sempre.

Rezar não é privilégio de nenhum povo nem de nenhuma tradição religiosa, seja do Oriente, seja do Ocidente. Contamos com referências bastante abrangentes sobre a oração dos seres humanos[2]. Aqui, interessa-me sublinhar a originalidade da oração no Novo Testamento, sem nenhuma pretensão de ser exaustivo. Pelo contrário, vou destacar alguns textos que julgo fundamentais.

Começo pelo capítulo 8 da Carta aos Romanos, uma espécie de antologia do espírito cristão. Nele transparece uma confiança inquebrantável em Deus e, ao mesmo tempo, a história conturbada em que nos é dado viver, tão difícil que nem rezar sabemos. Passo a citar alguns versículos desse capítulo, embora seja indispensável meditar todo o capítulo: Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós.

De facto, todos os que se deixam guiar pelo Espírito, esses é que são filhos de Deus. Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! Esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.

É assim que também o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos santos.

Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor que Deus nos tem em Cristo Jesus, Senhor nosso.

  1. No Evangelho de S. Mateus, mostra-se que não basta rezar. Faz advertências essenciais: «Quando orardes, não sejais como os hipócritas, que gostam de rezar de pé nas sinagogas e nos cantos das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te.Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes». Não desencoraja a oração e até apresenta um modelo, o Pai-Nosso, que é uma síntese do Evangelho. Ele próprio recomenda: Pedi e ser-vos-á dado; procurai e encontrareis; batei e hão-de abrir-vos[3].
  2.  
  3. Lucas inventa uma história deliciosa sobre a necessidade de «importunar a Deus», não para obtermos resposta à urgência das nossas necessidades imediatas, mas para acolher o que mais precisamos e ignoramos ou esquecemos: o Espírito de Cristo, o Espírito Santo[4].

Creio que foi Léon Bloy que escreveu: nunca consegui, na oração, obter o que pedi, mas nunca saí da oração como entrei. É precisamente esta mudança, de quem reza, o melhor fruto desta árvore.

Rezamos para quê? Pertence a cada pessoa procurar o seu caminho.


[1] Act 17, 16-34

[2] Oração dos Homens. Uma antologia das tradições espirituais, Apresentação, selecção e tradução de Armando Silva Carvalho e José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, 2006; José Mattoso, Levantar o Céu. Os labirintos da Sabedoria, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2012

[3] Cf. Mt. 6, 5-15; 7, 7; ver também: 18,20; 11, 25-30; 14,23; 26, 26-36-46;

[4] Cf. Lc 11, 1-13; 18,1-14.


Público, 13 Março 2022

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