Uma abelha e outros poemas

 

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


Uma abelha
pelo hálito das dunas.

Secreta embarcação

Onde o fogo entrega

a música,

aos favos fulvos
do Verão.

 

DANÇA

Uma folha cresce,
Uma folha cresce, em cadência solta,
em redor do corpo.
Está pronta a morte.
Está pronta.

Anuário de Poesia, 1984 | Ed. Assírio e Alvim


SOBRE O TEU CORPO

sobre o teu corpo            uma pedra d’água
uma pedra em chamas.

Áspera e triunfante
a Terra,

em seio alto

em branco aberto.

 

 

A ÁGUA DESCE O DIA

Água. Límpido navio

que desliza,
liquefaz as margens
Constrói casas. Põe um pássaro
nos rios.

De erva
a
erva, cheira a linho.

Cresce

em minúsculo Verão
no olhar macio

dum Fruto.

A água entra

lentissis-
simamente
pela boca das falésias. Morde a Terra
sabe a sal,

pousa as sílabas nas dunas.

A água desce o dia,
tronco nu,

 

Faz-se jovem.

Anuário de Poesia, 1985 | Ed. Assírio e Alvim


EM SEU BARCO D’OIRO

 

Vê,

como   os frutos

vergam,

pouco

a pouco.       Como   a      água
brilha,
mais

verde     em   cada   folha.
Como
a            terra
beija,

agora cada rio.

Não   é    senão

o   fogo.           A      manhã

desliza
em
seu barco
d’oiro.

 

BOCA NO DESERTO BOCA SOBRE A PÁGINA

 

a pura permanência            a forma acesa
a leveza subtil                    do    tempo      intacto
a imagem           na miragem       junto

à margem

 

a distância        nua
ao objecto côncavo
puro abandono               à respiração
compacta                     à carícia leve

da folhagem                 ombro  a  ombro

é uma clareira acesa             de vida propagada
meus  olhos dizem  nada

 

ou só encontram

Anuário de Poesia, 1986 | Ed. Assírio e Alvim


NAUFRÁGIO ACESO

durante a noite caminho
como um homem
adormecido,

sobre as palavras difíceis da sede

e aqui    chego
mais
tarde,      então sozinho,

magoado        e sem nada
para dizer

talvez espere
um barco
amigo

onde a neve brilha

para arder.      Ou talvez,

a mão
do rio,

para navegar e morrer. 

 

DIREI O QUE SEM MIM DIREI

Oh quando direi as coisas quando sem mim
direi          a claridade da boca?  quando
sem mim direi a       dicção acesa
a nudez da água   na álgebra da vértebra

direi o que sem mim direi    no ângulo

da casa         a aridez da página
ou o repouso da onda da mão liberta
em torno de um brilho ou eco

a boca onde e quando
tocará o vértice da nudez completa?

Anuário de Poesia, 1987 | Ed. Assírio e Alvim


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