The Intergod

JOÃO PEREIRA DE MATOS


Revista Triplov, Série Gótica, outono de 2017


Ser das moscas. Senhor do doce-pútrido; que um deus também se cumpre – em perverso conluio com o tempo. Hoje, o que sou; então, o que fui.
Diferente? Seguramente. Mas já contendo, em gérmen, o que seria; que um deus se não transforme, que seja sempre em essência; uma sempiterna raiz que se realize, concentrando-se em reforço densificado e, por força, subtil no mais do que já é.
Se, outrora, fui da luz e agora sou dos vermes que isso vos não induza na enganosa esperança de que se operou metamorfose – a luz é só um começo, a original virtude que tenho de abandonar se quiser ser divino: não uma procura, antes a ambiência natural que é própria, que se exige a quem se sabe imune ao tempo. Pois bem, aqui mereceis a descrição, fiel e boa, de um patrono do decomposto, aquele que rege o que é corrupto e que, por isso, sem escrúpulo é laborioso construtor, protector de toda a força, vigilante dos mil reinos dos homens. Assim um apogeu dourado seja prenúncio de irremível queda.
Podereis achar que sou gigante. Desmesurado e sujo como este palácio em que habito, que decaí em destroço e onde convivo com toda a sorte de germes e parasitas. Que pululam e que estão em mim ajuntando, embora ínfimos, o seu volume ao meu e me contam do seu saber antigo; de uma fome e de uma luta; imemoriais, portanto, não fora a sua iminente actualidade. O mesmo necessário esforço, então como ora. Que eles nada criam senão recriam porque a matéria-plasma é a mesma e o seu trabalho um-só: promover a universal dissolução. Renovação venal da vida. Apenas essa é a condição para que existam e eu com eles; eu, com o meu corpo em chaga, os corporizo e represento; na Assembleia quando haja pois, mesmo que não compareça, todos da estirpe divina sabem quem sou e com uma vénia silenciosa de que não prescindo reconhecem o meu domínio. Eles, incorruptíveis, talvez por isso saibam valorizar esta utilidade com a secreta satisfação de, porque alguém a cumpre, terem sido poupados ao meu destino. Porque meu não é um reino de beleza; é, aliás, o seu contrário; a não ser, claro está, que vos deslumbreis com o esplendor da decrepitude.
Emissário da derrota é que não fui. Eu sou a derrota por dentro dela. A íntima falência – conhecida mas jamais reconhecida, a não ser ex post facto e nunca pelo próprio – da potesta de um rei no decurso da sua entronização; mesmo aquela de um grande artista que terminou enfim a obra que justificará a sua vida. Não sabe que ela é pó.
Deus penúltimo.
Não o primeiro que é aquele de um princípio-de-vida, imarcescível.
Não o segundo, privilégio bucólico, daquilo que é igual e cíclico.
Não, sequer, os muitos que poderão reger todo o prosaico intermédio. Esses, Legião. Urgência normativa de superintender o inumerável da complexidade do real: eis porque se multiplicou tal multidão; que esse seja seu signo assim como habitam o sem-número de céus-concêntricos.
Não julgais, porém, que sou o último. Esse é aquele tanatológico e final. Que exija como tributo a renúncia a qualquer esperança é o que decorre da sua pulsão de absoluto; obsessão de calma que congrega a exactidão do extermínio.
Existo, encerrado num dédalo de promessa: na pompa áurea vejo já a ruína; e nela o que virá, renascido.
Não no tempo-cíclico; não em um vislumbre de progresso; outrossim e sempre ainda como sobrevida cuja imagem aproximada é a da infecção ou a de uma praga; pois o irreal e o vago que se exala da mais elementar decomposição é o da permanência e força da matéria enquanto potência-plástica; como afirmando, de modo velado, que tudo é contingente.
– Como chegastes até mim? O Deus-Esquivo. Aquele que oscila entre a letargia de uma idade geológica e a frenética agitação dos insectos. Percorrestes este laborioso conjunto de detritos, de entulho e da miríade que pulsa que é a minha casa e invejo a vossa determinação ou talvez seja uma inesgotável curiosidade e dela tenha nascido a vossa sagaz orientação? Que todo o labirinto contém a virtude de ser a mais exacta metáfora da existência; enquanto perplexidade e errância. Menos este.
– Compreendo. Não poderia, contudo, ser de outro modo. O inconcebível delírio arquitectónico que atravessastes não é mais do que uma estocástica colecção de cacos que resgatei do olvido e onde cresce o minucioso enxame que se espalhará pelo mundo.
– Os vastos saguões na penumbra que o acolhem são como eu: exalam essa peculiar e única e sempre cambiante mistura dos eflúvios da morte animados por um sobre-excesso de vida.
– Que quereis de mim que sou deletério e não final? Só sei solver a diversidade do mundo mas perante o ricto da caveira estou em contemplação e desistência, fascinando-me com a beleza do que é escombro.
– Ah, quereis a imortalidade, o seu segredo e sua cifra? Pois. Disso não sei. Bem entendido que eu próprio persisto, serei como sou para lá do tempo. No mais, atenho-me como maleita crónica daquele que não pereça conquanto definhe até à exaustão. Cinjo-me, humílimo, aos estritos limites de uma temporalidade peculiar mas comum. Essa está em todo o lado e contudo é estranha porque, não sendo exactamente circular opera tal-qual a sala-de-espelhos que reflecte e distorce, parodiando a azáfama dos homens, multiplicando-a no quase nada da larva, ampliando-a à escala planetária, quando não desenhando um drama cósmico, sem heróis nem moral, desdenhando os próprios deuses.
– Sim, um humor surreal que só os mais subtis entenderão é tudo o que tenho para vos ensinar. Por impulso? A ironia. Que é um biombo de enganosas expectativas, pois que esconde sempre um aspecto daquela verdade provisória porque velada e que, opaca, obstruí um sentido sequente mais profundo; só em potência porque igualmente falso. Um drama nunca estático, antes, iminentemente dinâmico, onde cada pormenor fascina quanto condenado ao absurdo.
– Aliás, não sentis um sabor adocicado na boca?
– Já adivinhastes, pari a Musa histórica – dulcíssima progenitura.
– Que importa sintas a nostalgia do que nunca vivestes? O sentimento é tudo – se a melancolia é matriz do cosmo.
– Sim, mas muito mais do que uma teologia da saudade, a ruína em carne-viva; urdida como grandeza do que decai pois na cinza há pura-potência.
– E se o motor-imoto for, afinal, um princípio parasitário? Esse mesmo que anima a mais desprezível criatura que, enquanto rói o cadáver, lhe dá o sonho agora e já de um novo auge. Tedium vitae assim o lamento dos amantes que assistem, inertes, ao dealbar do dia.
– Sicofantas e mais servos da derrocada? Não necessito. Está já a meu comando essa miríade de seres irrisórios que no entre-mundo entre a vida e a morte exercem o perfeito trabalho de vida e de morte; o limiar é que é decisivo, e vos não quero arregimentar nem preciso: sois a um passo demasiado complexos e a outro demasiado poucos para fazer qualquer diferença nesta vasta tecitura que, constante, desfia. Ainda assim é simpática a vossa preocupação. Até eu gosto de ser adorado. É essa a fraqueza divina…
– Se dissésseis que sou um deus-da-dejecção estaríeis certos e, como vistes, sou senhor de esplendorosa desdita. Mas o que não sou é uma divindade-do-evento. É coisa minha o vazio, a mágoa e talvez o remorso; porquanto se a mágoa brota do irrealizado e o remorso do acto transgressivo ou cruel, o vazio aboca tudo: o que quiseras fazer mas não tiveste coragem, o que não querendo ainda assim se fez história; a noção que um e outro são vãos; como um animal devorador que nem deixe os ossos.
– Só dessa ausência do que outrora também foi corpo se ergue um reino-de-sombra, simulacra vertidas de um desespero sereno onde a luz não logra penetrar e onde se traçam, de breu, todas aquelas figuras da imaginação (por isso tem, minha morada, tanta alcova-escura).
– Podereis achar poético o modo como me digo. Garanto-vos que não é minha intenção. É por tanto ter perdido, por ficar sempre aquém do que foi belo e puro que me tornei cru e rude que é o modo mais delicado de ser exacto; peso cada palavra na sua polissemia porque só na ambiguidade posso elaborar um discurso; o rigor também degenera e se esta discussão se tornar incompreensível basta-me reelaborar a conversa com noveis ou velhas palavras, então renascidas com o seu fulgor equívoco.
– Tergiverso, tendes razão, mas só sei estar em fluxo…
– Sempre me fascinaram as humanas gentes. É vosso o sonho da eternidade.
– Cuidais que com vosso labor o universo se apiede de conspirar contra a incessante construção ou vos permita manter a doce ilusão de que vos pertence o tempo; oh, já quis entre vós viver e entre a turba; ao compasso de incontáveis biografias fingindo não ver o verme-interno que rói cada entranha, que perde cada vida; que faz colapsar cada inesperada ou quase certa expectativa.
– Sim e de igual modo no outro extremo – o daqueles que mandam ou julgam mandar – não sabendo ou querendo ignorar que ainda é mais débil a organização justa e perfeita que por seu desejo e querença lhes haverá de sobreviver; também aí o mesmo diapasão; nascendo com o fulgor do que é novo, o apogeu é já derrota; o malogro é essencial virtude; um vírus que coloniza um ideário tornando-o, intimamente, malsão.
– E eu por minha natural regência não só não pude desconhecer os sinais inequívocos de quanta perversão, da carne ou das coisas do espírito, como me parece que, por inerência desta função ainda que só observando, agi por contágio, acelerando a dissolução.
– Encontrei, é certo, homens probos, almas gentis que queriam o bem e souberam resistir às múltiplas tentações; mas eram, à sua maneira, loucos e logo exterminados ou ignorados e esquecidos.
– Se tive de me afastar porque precipito esse natural e destruidor momento não me retirei sem ofertar, ensinando, o meu curioso dom.
– Pois bem: sou o Barroco; portanto, porfio no excesso; naquele impulso vital que, imoderado, intoxica. Quando, cancerígena, há a proliferação do adorno, sorrio.
– Quando vos não chega a sã conjugação de forças e o equilíbrio parece pouco e pobre e triste e quando há que ajuntar sempre algo mais e se sufoca de contenção libertar-vos-ei para um sentido ébrio, onde o que se equivale e anula explode em determinações outras, insuspeitas, plenas mas que pela pura acumulação e acrescento fazem desabar o conjunto que, livre de quaisquer restrições, implode de tanto ser.
Tudo é insignificante porque, de temporário, é frustre e essa é a fonte – para sempre manante – de quanta infinda tristeza. É vê-los lutar – e vós também – contra a corrupção que é íntima, radicada mesmo na própria natureza das coisas. Insignificante parece minha acção: fundada na desagregação, trabalho muitíssimo; com a dedicação que é de meu mester; como formigueiro opero, roendo & corroendo; solvente e preciso; confundindo a afanosa verve dos homens enfabulando-lhes o paraíso; e esse lugar não há, nem houve ou haverá, nem na terra, nem no céu, nem por força da História pois o meu delicado labor é perverter o forte império; promotor da tirania sou na alma o que sabeis faço ao corpo e essa, a alma, é a seu modo um corpo, subtilíssima disposição das partes entre a razão e a demência. Eis, de novo, o alcance da melancolia que trago ao mundo: o querer estancar a metamorfose naquele instante nimbado pelo excesso da memória, hipertélica destemperança de todos os impossíveis; ser, na certeza do que não foi e, por isso, vivendo agora o que não será é que o fluido tempo se estanca; ou, quando a mente concebe a foz de múltiplos rios, confluentes, e os gela com o poder da visão extática e, pela mescla exacta da grandeza e da miséria, antevê o ruinoso futuro – mas este, não se iludam, existe já; que pode o tempo quando assim se dilata o momento? Então também me retraio; sei que tal eternidade é breve: ofertada por Cronos, meu irmão, pela mais elementar justiça de que se não prive a consciência dos homens – e as gentes serão iguais aos deuses mas decaídas – de uma imanente distensão. Ouvindo um eco do que não perece logo se verão, de novo, imersos nessas torrentes quotidianas, lavados da nostalgia do fim ainda que inscientes disso. Ai, porém, dos que se instalam na suave lassidão suspensa. Na contemplação de tanta eternidade e tédio a vida passou rapidíssima…
Presido a quê? Quais são os meus domínios? Se se te lasca um dente, se se funde uma lâmpada logo apareço. Sei esperar: a boca cariada, as paredes que se esboroam. Sei esperar: até à arqueológica emergência de um vestígio.


João Pereira de Matos (Lisboa, 1973). Publicou A Machina Circunspecular, Fumar Mata (ilustração), Requiem par’Imortais, Ônfalo, Ciência Vaga, Cancioneiro d’Érebo, Scherzi, Visões do Vazio em um Livro Autógrafo e Ossa et Cineres, todos pela Editora Apenas Livros. Colaborou em vários números das revistas Seara Nova, Big Ode, Callema, Minguante, Piolho, Nova Águia, Côdeas e na Revista Cultura.