Sonho e Pesadelo em Forma de Vapor

GLEDSON SOUSA


 

Que a literatura exerça um grande poder sobre nossa sensibilidade isso é um fato mais que reconhecido, é algo que já faz parte, de uma ou outra maneira, do senso comum. As redes sociais estão recheadas de citações baratas de como tal livro ‘mudou minha vida’, e ainda que tais citações sejam genéricas e anódinas como quase tudo nas redes sociais, elas não perdem seu valor de verdade, que é de revelar o impacto da obra escrita sobre a psique individual e coletiva.

Isso tudo à maneira de preâmbulo para relatar as estranhas experiências (usando o título de outro livro, do Cláudio Willer) que uma leitura recente provocou nesse leitor-autor, ao ponto do incômodo de ter de relatar o percurso da leitura e os acontecimentos que se originaram com o livro Vapor Barato, de Wilson Alves-Bezerra (Iluminuras, 2018).

Tudo começou com um convite do Cláudio Willer, que dispensa apresentações. No meio da semana, Willer me dissera:

– Quero que você conheça alguém. Sábado terá o lançamento do novo livro do Wilson Alves-Bezerra e queria que você fosse comigo para conhecê-lo.

Sábado, 24 de novembro de 2018: cheguei atrasado ao lançamento, porque por alguma razão, confundira os horários – Willer avisara que começaria às 16 horas e minha mente interpretou que seria às 18. Quando cheguei, consegui comprar o livro, fui apresentado ao Wilson, trocamos impressões, telefones, etc. Saí da Casa das Rosas, andamos ainda pela Paulista, Willer foi para outros destinos e eu e minha filha fomos para casa. E logo comecei a ler.

O livro, escrito na forma de longas sessões de análise do personagem principal (sem nome) com seu analista (também sem nome), trata das angústias desse personagem frente ao Brasil que se desenhou nos últimos anos, e que culminou na eleição do senhor presidente Bolsonaro (cujo governo nem começou e já está envolvido em denúncias de corrupção).

Passei a madrugada lendo. O livro facilitava a tarefa. Pouco mais de cem páginas, mas denso como uma espada afiada, quanto mais lia sentia crescer minha angústia ao vê-la retratada fora de mim, ao mesmo tempo em que à angústia se misturava uma sensação de alívio, por ver que partilhava um sentimento comum e que se outros milhares sofriam do mesmo sentimento, talvez algo pudesse se originar a partir dali.

Na voz do analisando, ouvi queixas que poderiam ser minhas, a sensação de sufocamento frente a um país em que cresceu o discurso do ódio, o apelo à força bruta, a justificação para toda desigualdade e dominação, tudo isso travestido como apelo à verdade, contra a corrupção e a decadência dos costumes.

Não se tratava somente de queixas e lamúrias, mas de como nossa subjetividade está marcada pela política, pelo ambiente social, de como estamos entranhados ao mundo, mesmo quando lutamos contra ele. Nem era somente uma questão de acharmos uma voz em meio ao deserto, mas que o deserto fosse assumido com plenitude, de que ambos, leitor e escritor, estivéssemos imersos no mesmo pesadelo em meio a fuzis, ameaças e a retórica pobre, defasada, da nossa direita canhestra e poderosa.

Num primeiro momento, fiz um poema, também chamado Vapor Barato, onde reuni, de forma imaginária, todos nós que lutamos contra a ordem, pelo sonho, pelas liberdades, pela beleza, porque a reação ao livro se manifestou primeiro na forma de um desabafo poético. E aí sim era dizer: puxa vida, ele (o Wilson) está falando por nós, está dizendo aquilo que não conseguimos verbalizar, tão denso se tornou o ambiente político, tão contaminadas se tornaram todas as discussões.

E se, no dizer da personagem, o único ambiente livre que nos resta é o consultório do analista, ao externar o consultório à disposição de todos nós, Vapor Barato dizia por nós o que ficara entre quatro paredes.

Muito a dizer e muito a pensar. O livro desmascara essa ficção de nação, como diz o personagem, e esse desmascarar, esse por a nu o rei, sempre deitado em berço esplêndido, não deixa de ser um espetáculo doloroso. Nunca, talvez, estivemos num transe histórico tão difícil quanto agora, mas se a verdade possui algum valor, e acredito que ela possua, só podemos crescer como país reconhecendo nossa face violenta, desigual, misógina, repressora, não para enaltecê-la, mas sim para procurar formas de superá-la.

Num ensaio genial publicado no início do século XX, A Negação, Freud já percebera como que a negação, nas sessões de análise, trazia à tona justamente o que se queria esconder, sendo a negação uma espécie de afirmação envergonhada, escondida, inconsciente de si. Diz Freud:

A negação é um modo de tomar conhecimento do reprimido; na verdade já um levantamento da repressão, mas naturalmente não a aceitação do reprimido. Aqui se pode ver como a função intelectual se dissocia do processo afetivo.

Parece que nas palavras de Freud ecoa boa parte da nossa história: quando negamos intelectualmente o racismo (penso nas conversas sobre democracia racial) estávamos já a dizer, de alguma maneira, somos racistas; quando pensamos em nós como gentis e cordiais, estávamos a dizer como somos violentos, e assim por diante. O que negávamos era nossa mais profunda realidade, aquilo que afetivamente não tínhamos a coragem de admitir, e ainda assim, essa afirmação só se deu pela via negativa, que a perspectiva freudiana nos ajuda a compreender.

Quando o livro começa, a personagem pensa em sair do país, e ao longo do livro se decide a ficar, pois se reconhece ligado ao seu lugar de origem e resolve enfrentar o que aqui vier. Isso não acontece de maneira pacífica, mas entre pesadelos, crises de ansiedade, estresse.

Enquanto eu lia, fui contaminado, no bom sentido, pelas mesmas perguntas, porque o livro ecoava o que estava em mim. Numa certa altura, o personagem tem uma visão/pesadelo com uma entidade demoníaca a controlar o país, Xalupa Dreckmann, que fiquei pensando tratar-se de algum anagrama.

Procurei uma máquina de anagramas e coloquei o nome Xalupa Dreckmann a ver se encontrava algo, mas não descobri nada; de imediato (continuo tentando). Fiquei a imaginar que por trás daquele nome, que o autor confessou-me não ser um anagrama, escondia-se uma verdade terrível, que a alta sensibilidade do autor captara sem imaginar exatamente o quê, e desdobrei-me em exercícios anagramáticos, qual Saussure ao ler poetas latinos, sem que chegasse a algum resultado, a não ser dormir com o livro nas mãos pensando naquele nome infame e ter um pesadelo, onde uma criatura nefasta, demoníaca, me aprisionava e tentava me matar e ela tinha a ver com todo o mal engendrado nos últimos tempos. Acordei suado, me sentindo sufocado. Achei melhor afastar o livro de mim naquela noite.

É estranho relatar isso. Livros sempre me impactam, seja de maneira mais reflexiva, racional, ou pela via onírica, emocional. Consigo visualizar o impacto que me causou obras como Campo Geral (do Corpo de Baile, de Guimarães Rosa), Nadja e o Arcano 17, de Breton, ou mesmo Crime e Castigo, de Dostoievski. Mas aqui era algo muito mais pessoal. Nas longas digressões do personagem, naquelas sessões lacano-socráticas estava em jogo muito mais, estava em jogo um inconsciente histórico, estava em jogo nossas almas num presente imediato de dores e angústias, estava em jogo o que fazer, o que somos, o que seremos, o que fizemos de nós.

Sonho e pesadelo em forma de vapor. Lembrei-me e fui atrás de ouvir novamente a bela canção de Jards Macalé e Waly Salomão, na inesquecível interpretação de Gal Costa, no show Fatal: com minhas calças vermelhas / meu casaco de general, cheio de anéis… Vapor barato falava da fuga de outro horizonte opressor, aquele dos tempos da ditadura, dos chamados anos de chumbo, de outros ares irrespiráveis, densos, doentios, tal como agora. É uma amarga e difícil ironia da história que estejamos novamente em meio a esse círculo vicioso, de uma sociedade que sempre dá inúmeros passos atrás para permanecer onde está, onde as elites desejam, e onde uma classe média, sempre assustada, sempre correndo em busca de ídolos, prefere estar ao lado do discurso da ordem, no lugar da diversidade, ao lado da força, no lugar da criatividade, ao lado da desigualdade, no lugar da partilha.

Ao longo da leitura, que foi quase exegética, fiz marcações diversas, ao sabor da minha subjetividade. Destaco alguns trechos do livro que me marcaram:

Faz uns dias parece que eu acordei em outro país (p. 8)

Eu não tenho mais bandeira. Cada dia que passa eu tenho mais vergonha da bandeira que eu tinha (p.9).

Mas a história não se repete. A história se degenera. Não há novidade não há melhora. Só um arremedo pior, mais cínico, transmitido em full HD. Higiênico como tudo hoje em dia (p. 12).

(…)É a hipótese de uma fala que me desaliene. (…)Ter uma fala hoje significa já ter perdido tudo, menos a capacidade de dizer. Algo pode advir daí (p. 27).

O que vou propor é ridículo, mas se fosse possível, preferia que você curasse o país, não a mim (p. 36)

Não tenho falado de outra coisa. O impulso por fugir não é senão a sensação de que o xerife vai chegar e dizer que a cidade ficou pequena demais para nós dois… (p. 66. Anotei ao lado: olhos e línguas arrancados foi essa a frase que surgiu em mim, quando li esse trecho em meio a uma ensonação no meio do ônibus…)

Minha cabeça será cortada (p.68)

A metáfora é um bando de homens velhos e brochas buscando potência nas armas (p.79)

O presidente é um covarde que sempre acreditou na ilusão do poder. O que ele não sabe é que os chacais ainda vão poder alcançá-lo (p. 83)

O que me adoece é a anormalidade no que vejo e a normalidade no que dá o corpo à sociedade (p.89)

Eu, que nunca tive religião ou partido, agora corro o risco, ainda por cima, de perder até a possibilidade de ter um país para votar. Eu vou morrer em pé, meu caro alienista, odiado por todos, os da direita e os da avessa, desviando de milico e de adesista, de terrorista e de evangélico, de corrupto e de leniente. Para mim já deu!(p. 95)

Sabe o que me assusta? Sabe? É que Hermes Trimegisto, o Hermes, o Três vezes Cristo, o três vezes grande, ele já disse que o que está em cima equivale – mas não equaciona – ao que está embaixo, e que isso não é bom, não, isso pode ser a ruína(p. 99 – nunca pensei nessa possibilidade quanto à Tábua de Esmeralda, o texto atribuído à Hermes ao qual a personagem se refere. Uma analogia do desespero?).

(…)Sou um homem contemporâneo , de vigor físico, ideias, personagem do meu tempo, e que se descobre num beco, e que não consegue se mover dentro do próprio país. Sem direito sequer a se aposentar, sem previdência, sem o desejo de levar adiante a ficção de nação em que se move. Sou um homem amargo doutor(p. 134).

São achados, na peculiar leitura deste leitor-escriba e muito mais se pode extrair de páginas tão ricas.

Numa das cartas de Walter Benjamin a Gershon Scholem, datada de 11 de janeiro de 1940, ou seja, poucos meses antes de sua morte, ele dizia:

Toda e qualquer linha que possamos publicar hoje – por mais incerto que seja o futuro ao qual as transmitimos, é uma vitória conquistada contra os poderes das trevas.

Tornar nossas essas palavras, mais que uma licença poética, é reafirmar o poder da escrita, o qual devemos aos bons livros, às grandes obras. Cabe a elas marcar o presente e transcendê-lo, com sua chama amarga e esperançosa. Quis nossa época que fôssemos partícipes desse presente onde um vapor barato se espalha pelo ar, e expondo nossas feridas quais flores invertidas, nos diz: ainda há esperanças.

Sei que fui por demais pessoal nesse texto, mas não havia maneiras de não sê-lo, se quisesse realmente transmitir a impressão deixada pelo livro. Vapor Barato ainda está ao lado da cama, no criado mudo, mas não durmo mais pensando em Xalupa Dreckmann, mas sim que a qualquer hora um velho navio nos levará para algum lugar onde o sol nunca se põe.


Bibliografia:

ALVES-BEZERRA, Wilson. Vapor Barato. São Paulo: Iluminuras, 2018.

BENJAMIN, Walter. SCHOLEM, Gershon. Correspondência. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1993.

FREUD, Sigmund. A Negação. São Paulo: Cosac Naif, 2014.


  VAPOR BARATO

Wilson Alves-Bezerra

DADOS TÉCNICOS:
13,5×20,5cm | 140 páginas 
ISBN: 978-85-7321-596-0

Editora Iluminuras,  dezembro de 2018


REVISTA TRIPLOV . SÉRIE GÓTICA . PRIMAVERA 2019