Sobre o cânone

 

TRIBUTO A ANNABELA RITA


Annabela Rita. Luz & Sombras do Cânone Literário, Lisboa, Esfera do Caos Editores, 324 pp., Prefácios de Fernando Cristóvão e  Daniela Marchescchi, 2014.


SOBRE O CÂNONE
Por Miguel Real


– Contextualização

Os livros de Annabela Rita, professora da Faculdade de Letras de Lisboa, membro da direcção do CLEPUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto Fernando Pessoa, habituaram-nos a uma singular prática de crítica literária, sem paralelo em Portugal.

Seja em função da análise de um livro, de um autor ou de uma obra, seja de uma constelação de autores característicos de um período literário, sempre Annabela Rita procede segundo uma análise poliédrica, utilizando como instrumento heurístico a metáfora do “itinerário”, da “cartografia” e do “retrato”, evocando, por via deste, as técnicas da fotografia e da filmagem, como o “zoom”, o “enfoque”, a “grande angular”, a “grande objectiva”, o jogo de “luz e sombras”, a relação entre “paisagem [fundo] e figuras [destaque] ”.

Metodologia não-literária aplicada à literatura, ela surte um efeito inusitado, seja organizada em itinerários (Itinerário, 2009), com os seus “instrumentos de orientação”, os seus “lugares e padrões”, como todo o itinerário deve ter, seja ao modo da cartografia literária “de uma geografia incerta” (Cartografias Literárias, 2010), seja evidenciando o que o espelho não mostra (No Fundo dos Espelhos. Em Visita, 2007), seja dando a ver emergências não sociais, mas estéticas (Emergências Estéticas, 2006), seja concentrando-se em Focais Literárias (2012), seja integrando e relevando simultaneamente o fundo e a forma (Paisagens & Figuras, 2011) seja, finalmente, inventariando/fabulando/retratando autores (Retratos Provisórios, 2006).

De todos os seus livros – todos inovadores, focando aspectos essenciais da arte da literatura -, o mais sólido, síntese da sua metodologia singular e síntese da sua reflexão sobre os grandes temas da literatura mundial e portuguesa, é, sem dúvida o ora publicado este ano: Luz & Sombras do Cânone Literário (Esfera do Caos, 2014). Não por acaso, este é, entre todos os seus livros, o que mais abunda de citações e de referências, bem como de notas de rodapé.

Não penetraremos no seu conteúdo se não o integrarmos no actual movimento pós-moderno de reflexão sobre a teoria e a história da literatura, que obriga a uma revisão crítica sobre as categorias e os parâmetros por que foram historicamente lidos e operacionalizados os diversos períodos e correntes da literatura. Dito de outro modo, actualizando o passado mas não se desembaraçando deste como uma inutilidade ultrapassada, Annabela Rita pratica com singularidade a arte da crítica literária através de um relativismo crítico de posição que, por via do enquadramento do “retrato” e conceitos operativos afins, ensina a manejar o “ponto de vista” leibniziano e o perspectivismo nitzscheniano.

Assim, o “ponto de vista” perspectivístico evidencia-se como um autêntico operador conceptual pelo qual se activa a abordagem de um autor, de uma obra ou de um período literário, ou, como é o caso do livro citado, um conceito estético. Conforme o ângulo de visão, assim sai o retrato. Conforme a perspectiva, assim se levanta a imagem do autor, da obra ou do período literário. Conforme o “ponto de vista” assim se fundamenta uma perspectiva coerente e coesa.

Atitude humilde no campo da crítica literária, a autora reenvia a teoria da literatura para o campo ético-filosófico do relativismo crítico, considerando não existir nenhum ponto central focal, perfeito e absoluto, a partir do qual se ergueria uma dogmática estético-literária. Por isso, os títulos dos seus livros compõem-se de termos específicos do léxico pós-moderno, como “itinerário”, “cartografia”, “retratos provisórios”, “espelho”, mas também “paisagens e figuras”, “focais literárias”…, isto é, termos que, se, por um lado, não reivindicam uma sabedoria clássica imperativa, absolutista, harmonizam, por outro, a arte e a literatura com as correntes mentais dominantes em cada época, fazendo-a comungar da vida e da história, e, por outro lado ainda, concede-lhe o fundo de liberdade e de contingência que a legitima enquanto obra humana. O conceito de “cânone” sofre assim os efeitos deste “desvio” teórico, actualizando-o à luz do pensamento pós-moderno. Trata-se de um conceito de “cânone” que sofre os efeitos da liberdade e da contingência, transmutando-se de estável em instável e de absoluto e dogmático em imperfeito e relativista, sempre em processo de construção e revisão.

 

Luz e Sombras do Cânone Literário

Processo sem fim na criação e na crítica, a literatura constituir-se-ia, assim, como uma tessitura ordenada (cf. “Literatura”, pp. 27 – 29) pela qual a linguagem natural se transfigura em linguagem estética e na qual todos os “pontos de vista” ou perspectivas se legitimam a si próprios segundo uma coerência estrutural original a partir de um enfoque autoral primitivo. Diálogo contínuo de si consigo própria, a literatura torna-se, deste modo, a “grande mãe” estética que, como filhos culturais, acolhe todos os processos autorais, os mais diversos, com estilos antagónicos e até contraditórios.

Tal como para Leibniz não existia a mónada das mónadas, não existe para Annabela Rita uma leitura única e exclusiva de um texto ou conceito literário. Porém, no jogo estético das inspirações e influências literárias e nas ponderações sociais podem existir – e existem, de facto – interpretações ou “pontos de vista” dominantes, que, por sua vez, devido ao peso das instituições universitárias e dos media, criam o “retrato” central da história da literatura de cada época, bem como os autores consagrados (“canónicos”) ou malditos de cada nação ou civilização segundo um processo temporal e cultural de incessante revisitação.

Importa realçar o “&”no título do livro ora publicado de Annabela Rita, aliás, já presente em Paisagens & Figuras, publicado há 3 anos, evidenciando a constante de inter e multidisciplinaridade presente na sua obra. Com efeito, proveniente da linguagem comercial, o “&” significa a impossibilidade de se fazer luz sobre um tema da literatura no qual não se crie igualmente uma sombra. Luz e sombra tornam-se, assim, necessariamente, “sócios” ou caminheiros de um mesmo itinerário ou cartografia, e não apenas acompanhantes ocasionais: a luz gera a sombra e a forma e o volume desta dependem do foco e da intensidade da primeira, isto é, de novo, segundo uma linguagem figurativa, nos encontramos no terreno do perspectivismo pós-moderno de que os livros de Annabela Rita têm sido, em Portugal, mais do que meros teorizadores, exemplo de uma prática efectiva constante no campo da literatura.

Neste sentido, “cânone ocidental”, desenhado por Harold Bloom, ou “cânone europeu” (pp. 42 ss.), ou, até, “cânone nacional” (pp. 58 ss), sendo processos essenciais para cristalizar o desenvolvimento e o resultado de uma evolução histórico-cultural de cunho identitário, sobrevalorizado a partir do enfoque concedido pela qualificação do cânone, não escondem porém as suas volumosas e sólidas sombras.

Com efeito, o processo de canonificação literária encontra-se, como referimos, em constante revisão, mudando de ponto de vista central valorizador de período histórico para período histórico e, por vezes, em tempos socialmente acelerados, de geração para geração. Neste sentido,  ainda que se pretenda estável, quiçá imutável, a elaboração de um quadro de obras e autores, ela torna-se, por natureza própria, matéria a mais instável e efémera possível, quando não palco de aceradas divergências.

Se, à imitação do cânone bíblico, se pretendia uma estrutura literária essencial e permanente, que se evidenciasse como o rosto estético e espiritual e uma nação, de um continente, de uma civilização, o intento, de tão instável e polémico, por mais que tentado, saiu sempre gorado, e mal o cânone é estabelecido logo é contestado por outros protagonistas.

Assim, Annabela Rita, não negando a utilidade do cânone para efeitos de transmissão social de valores literários às novas gerações, e dentro do cânone a selecção de autores e obras consideradas essenciais (cf. “Zoom interessante: O Leopardo…”, pp. 49 ss.), questiona neste seu livro maior, doravante considerado de referência na história da crítica literária em Portugal, a existência de um cânone literário fixo e cristalizado, atribuindo a este uma permanente instabilidade. Mas uma instabilidade positiva, que mais gera polémica que consenso, que mais gera controvérsia que assentimento.

Contesta, assim, a autora a visão tradicionalista, conservadora ou clássica de cânone, evidenciando ser esta não só historicamente impraticável no campo da teoria quanto em si contraditória, já que sempre se manifesta impossível a estabilização conceptual do cânone.

É neste sentido que Annabela Rita propõe uma revisão da teoria do cânone no subcapítulo “Transversalidade e Abrangência” (pp. 74 – 81), evidenciando como prova o case study português (pp. 83 – 94), com directas aplicações ao “cânone autoral” (pp. 94 – 96).

No capítulo “Transversalidade e Abrangência”, numa das mais impressivas frases sobre o cânone, evidenciando o pensamento da autora, destaca Annabela Rita que a “dimensão de consonância e confluência (sem necessária ausência de dissonâncias, ou mesmo quando elas dominam) [do cânone] torna o signo estético eminentemente tabular (Kristeva), denso, polifónico, pregnante, canonicamente inscrito no discurso artístico em que emerge e no puzzle dos outros que nele ressoa. Também por isso, a Literatura é a Antropologia das Antropologias (Fernando Cristóvão), o que arrasta outra consequência: só uma perspectiva comparatista interartes e com uma visão hermeneuticamente cultural [o cânone] pode corresponder a essa complexidade e ambicionar à sua leitura e ponderação. Em rigor, creio possível encarar do mesmo modo cada objecto artístico: como cristalização de um imaginário difuso comunitário de uma época, expressão de um aqui-agora na leitura dos que o habitaram, aqui e agora inscritos num continuum feito de relação entre passado e futuro” (p. 75).

Miguel Real,

Quinta de Santo Expedito, Colares/Sintra,

15 de Outubro de 2014.


Revista Triplov . Série Viridae
Julho de 2022
Tributo a Annabela Rita