São milhares de pequenos textos

 

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares


JOÃO TRIGUEIROS

“São milhares de pequenos textos, agrupados por temas, dos quais o M. Leal ainda me mostrou alguns numa das visitas que fiz a sua casa de Lisboa onde morava com a sua mãe, no Bairro das Colónias, aos Anjos.

Esta sua casa ostentava uma decoração antiga e intimista, onde predominavam as cores das madeiras escuras dos móveis, assim como os tons ocres das paredes, numa profusão de livros e papéis, iluminada por uma luz quase sempre velada: espécie de laboratório onde abrigava a sua timidez de poeta incompreendido e dava azo ao seu génio criativo, pela noite dentro.

Da sua imensa obra, publicou ao todo uma mão cheia de poemas em algumas revistas literárias de circulação restrita e, já quase no fim da vida, alguns livros, em edição de autor.

Este infindável espólio, quase todo inédito, deve ser estudado antes que se perca: coisa que ele não pode fazer por falta de editor e de recursos.

O Manoel detestava visceralmente a política e sempre recusou fazer parte de capelinhas partidárias que o promovessem, ao contrário de muitos autores que pontificam neste país …

Quem sabe se, os milhares de textos que ele nos deixou, dispersos por numerosos cadernos – há semelhança de outros casos do passado – só serão valorizados muitos anos depois da sua morte…

Nestes registos, ia anotando os seus textos poéticos, bem alinhados, numa caligrafia miudinha de maiúsculas, cheia de rasuras e emendas. Para ele, a maioria dos poemas nunca estavam definitivamente acabados. Por vezes, para além das rasuras que lhes ia fazendo ao longo do tempo, elaborava segundas versões.

Usou vários pseudónimos literários, retirados dos nomes dos seus antepassados, facto este que passou desapercebido à maioria dos seus críticos, os quais desconheciam a sua genealogia.”

[…]

“O seu interesse pela poesia era obsessivo, quase doentio; uma permanente batalha sofrida com a palavra, muitas vezes travada à mesa do café. Para a então irreverente juventude de muitos dos seus amigos e colegas de Direito, que estavam interessados em coisas mais efémeras e mundanas, as actividades e conversa literária do M. Leal, eram tediosas … Porém, tinha um pequeno núcleo de pessoas que o estimavam.

Éramos então quase todos estudantes pré-universitários ou universitários em início de curso, fúteis, despreocupados e hedonistas, que esbanjávamos a vida nas tertúlias de café, bares e discotecas de Lisboa; nomeadamente na zona do Areeiro e da Avenida de Roma, que após o 25 de Abril se tornaria num dos centros da movida lisboeta.

Foi por aí que conheci o M. Leal, quando este era aluno da Faculdade de Direito, curso que frequentou até au 5.º ano, mas não concluiu.

Detestava os grandes espaços de convívio então aí existentes, apesar de os frequentar episodicamente – Café Roma e Capri na Av. De Roma; Café Londres, Las Vegas, e Pastelaria Mexicana na Pç. de Londres –, preferindo os locais mais pequenos e reservados para conversar com os amigos, muitas vezes em sussurro e com a voz tremelicada.

Na altura em que o conheci, nos finais da década de 60, além do meu interesse pela Artes Plásticas, eu era um discreto apreciador da poesia, pois ia rabiscando uns versos, pelo que o M. Leal exercia algum fascínio sobre mim.

Basicamente ele era muito educado, discreto, solitário e introvertido, cuja obsessão pela criação poética acabava por dificultar um pouco o seu relacionamento social com as pessoas comuns. Porém, pairava sobre alguns de nós, como uma espécie de ser superior, um pouco invulgar.

Recusava as futilidades mundanas da vida. O seu grande, avassalador, e viceral objectivo, era a poesia. Era um apreciador dos poetas metafísicos e malditos, tendo deixado registado num seu caderno: “Não fiquei nem em Rimbaud nem em Pessoa. Não sei se a minha poesia traz algo. Mas escrevo o que quero.”

Imagino o quanto sofreu, pelo seu génio poético não lhe ter sido reconhecido em vida …”


MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL

série gótica . verão de 2020