Rosebud

 

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


Monólogo

PERSONAGENS

PAIZINHO – Setenta e oito anos.

MÃEZINHA – Setenta e cinco anos

CENÁRIO

Uma cama baixa de casal ao fundo, um espelho pendurado na parede e um frigorífico no lado oposto. Uma mesa com um fogareiro a gás e uma panela em cima, duas cadeiras, uma televisão e um calendário de 2019, pendurado na parede, junto do frigorífico, aberto no mês de fevereiro. Cena a meia-luz, iluminada pelo entardecer. Na cama, um vulto imóvel deitado de costas para a plateia. No chão, ao lado da porta, um rolo tapa portas de pano.


PAIZINHO(Entrando e acendendo a luz.) Outra vez às escuras? (Fecha a porta, coloca, cuidadosamente, o rolo tapa portas vedando a frincha entre o chão e a porta, e vai à cama.) Mãezinha, olha para mim. Não acendeste a luz porquê? (Debruça-se sobre Mãezinha.) Ouve o que te digo, mãezinha. Escureceu, eu não estou, tu acendes a luz, ouviste? (Ajeita o cobertor sobre Mãezinha.) Foste, ao menos, à casa de banho? Não? Queres ir agora? Olha que faz-te mal ficares o dia todo sem ires à casa de banho. Não queres ir agora? Não queres ir agora, não vais, mas ao fim do jantar tens que ir, ouviste? (Tira o sobretudo, dobra-o, coloca-o em cima de uma das cadeiras, e vai ao frigorífico. Abre-o, olha para dentro, fecha-o e olha para a cama.) Não há cenouras, mãezinha. Esqueci-me de as comprar, mas, amanhã, compro-as. Sem falta, está bem? (Senta-se numa das cadeiras, voltado para a cama.) Amanhã, compro-as, não te aflijas. Tu sabes que eu também gosto duma boa sopa de cenouras. Eu sei, eu sei que saí para as comprar, tu viste, mas passei à porta do cinema, e olha, entrei e esqueci-me. Eu sei que devia ter ido primeiro ao supermercado, mas tu sabes como eu sou. Passei à porta do cinema, vi o cartaz, O Mundo a Seus Pés, e, olha, quando dei por ela já tinha o bilhete na mão. Eu sei que não é barato, mas que queres? Eu gos… O quê? (Passa a mão no cachecol.) O cachecol? Esquece o cachecol. O cachecol… (Mostra-o.) Estás a ver? Para este ano ainda dá, e se não der… Mãezinha, olha para mim. Ficaste aborrecida por eu ter ido ao cinema? Não? Então esquece o cachecol. (Passa a mão no cachecol.) Para este ano ainda dá, e se não der, olha, passo sem ele. (Levanta-se, anda em direção, à mesa, para e olha para a cama.) Vou fazer a sopa, está bem? (Vai à mesa, destapa a panela e olha para a cama.) Não almoçaste? Não me digas que passaste o dia todo sem comer. Ó mãezinha, de manhã não quiseste tomar café, eu vi. Ao almoço, almoçavas depois, e eu disse-te, lembras-te? Mãezinha, já que não queres almoçar agora, está bem, eu deixo-te a canja feita. Eu digo-te isto, faço a canja, saio, chego, e… Mãezinha, olha para mim. Então eu deixo tudo pronto, saio, chego, e vejo a panela como a deixei? Isto não se faz, passar o dia todo sem comer… Está certo, comer demais na nossa idade não é bom, mas passar o dia todo sem comer… (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Hoje tu vais jantar, ouviste? Canja não? Está bem, mas comer, tu vais comer. (Anda em direção ao frigorífico, para e olha para a cama.) Dormires sem comer, isso tu não dormes. De maneira nenhuma. (Abre o frigorífico, olha para dentro, fecha-o, vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Há arroz. Arroz não? Está bem, não queres arroz, comemos o resto da canja. Deito-lhe mais uma massinha, mas sem comer é que tu não ficas. (Acende o fogareiro, abre a gaveta da mesa e olha o que há dentro.) Lacinhos ou letrinhas? (Olha para a cama.) Lacinhos ou letrinhas, hein, mãezinha? (Pega num pacote.) Letrinhas. Letrinhas são mais leves, e na nossa idade… (Abre o pacote, põe um punhado dentro da panela, mexe com a colher, guarda o pacote na gaveta e volta a mexer.) Para o que ambos comemos, um punhado chega e sobra. (Mexe durante alguns momentos e olha para a cama.) Sabes que ainda estou a pensar naquele filme? Há anos que não o via, mas deu-me o que pensar. (Continua a mexer.) Tu nunca gostaste de cinema, sempre gostaste mais de passear, mas eu… (Olha para a cama.) Lembras-te do cinema do nosso tempo? Hein, mãezinha? Lembras-te como era o cinema no nosso tempo? Uma vez por semana, aos domingos, e olha que muitos domingos houve que nem ao cinema nós íamos, lembras-te? (Continua a mexer e olha para a cama.) Olha que eu ainda me lembro do que tu dizias. Paizinho, por que havemos de gastar dinheiro, se há tanta coisa bonita lá fora para se ver? (Continua a mexer.) Bons tempos, aqueles. Nós no rio, os pés a chapinhar na água, os peixes a fugir, e nós… Bons tempos, aqueles. Não havia televisão, telefone só no posto dos correios, nós de mãos dadas, um beijo aqui outro ali, licença para namorar… (Para de mexer e olha para a cama.) Lembras-te daquela vez que o teu pai nos apanhou a namorar? Hein, mãezinha, tu lembras-te do que ele me disse? (Ri-se e continua a mexer.) Rapaz, olha que namorar rima com casar, ouviste? Eu nem sabia onde é que me havia de meter. (Para de mexer e olha para a cama.) Mas olha que tu… Parecia que ele nem era o teu pai. Papá, nós não estamos aqui a brincar, nós vamo-nos casar. (Continua a mexer.) Bons tempos, aqueles. Agora… Agora já ninguém namora. Agora é, ó pá, tá-se bem, ninguém anda de mãos dadas, ninguém rouba um beijo a ninguém, ninguém… (Ri-se.) Agora, é cama para que te quero, e pronto, estão casados. (Ri-se e olha para a cama.) A sério, mãezinha, a cama, agora, faz tudo. Faz o namoro, faz o noivado, faz o casamento, faz tudo. Namoro a sério, como era o nosso, foi tempo. Quem hoje anda de mãos dadas e rouba beijos, hein? (Aponta a televisão.) Nem nas telenovelas, mãezinha (Continua a mexer.) Mas gostei daquele filme, isso gostei. Fez-me pensar muito. (Olha para a cama.) Era sobre um tipo que teve tudo na vida, dinheiro, mulheres, tudo. Tudo o que se possa imaginar aquele tipo teve, e sabes que chega à hora da morte, o tipo morre sozinho? Morre sozinho, e a dizer Rosebud, o nome do trenó que ele tinha quando era miúdo e ninguém queria saber dele? (Continua a mexer.) Aquilo deu-me o que pensar. Como é que um homem pode ter tudo na vida e chega à hora da morte e só se lembra do nome trenó que tinha quando era miúdo e ninguém queria saber dele? (Olha para a cama.) Hein, mãezinha? Como é que um tipo que teve tudo na vida… (Continua a mexer) É triste uma pessoa ter tudo na vida e chegar à hora da morte, morrer sozinho e só se lembrar do que tinha quando não tinha nada. (Olha para a cama.) Aquilo deu-me uma tristeza… (Continua a mexer.) Eu pouco tive na vida, mas… (Olha para a cama.) Sabes no que é que pensei? Hein, mãezinha? Pensei se, quando morrer, também só me vou lembrar do meu primeiro carrinho de brinquedo. (Continua a mexer.) Mas como me hei de lembrar, se já nem sequer o nome dele sei? (Olha para a cama.) Sabes que fiquei a pensar nisto a tarde toda? O que hei de eu dizer quando chegar a hora da minha morte, se já nem sequer me lembro do nome daquele meu carrinho, hein, mãezinha? (Continua a mexer.) Que hei de eu dizer, se… (Para de mexer durante alguns momentos e olha para a cama.) Mãezinha, o que tu achas que eu hei de dizer quando chegar a hora da minha morte, hein? Se calhar, nem direi nada, mas que gostava de dizer alguma coisa, isso gostava. (Continua a mexer.) Dizem que houve um tipo que disse, mais luz. Mas que luz, se à hora da morte não se vê nada? Não, patetices, não vou dizer. (Para de mexer durante alguns momentos e olha para a cama.) Sabes o que é que eu vou dizer? Hein? Hein, mãezinha? Sabes o que é que eu vou dizer quando chegar a hora da minha morte? Vou dizer mais valia não ter nascido. A sério, mãezinha. É asneira? Não é asneira, não, mãezinha. Repara. Se uma pessoa não tivesse nascido não tinha de morrer. (Continua a mexer.) E o pior é que ninguém pede para nascer. (Olha para a cama.) Tu sabes por que é que nós nascemos? Hein, mãezinha? Diz-me, tu sabes por que é que nós nascemos? Olha, nós só nascemos porque os nossos pais gostavam de foder. Está bem, está bem, desculpa, eu sei que tu não gostas que eu diga asneiras, mas isto não é asneira. Ninguém faz amor quando fode, mãezinha. Mãezinha, olha para mim e diz-me. Se foder fosse fazer amor, quantas putas haveria neste mundo, hein? Está bem, está bem, tu não gostas que eu diga isto, eu não digo. (Ri-se.) Nós sempre fizemos amor quando fodemos. (Olha para dentro da panela, põe a colher em cima da mesa e olha para a cama.) Sabes no que é que eu estou a pensar agora? Estou a pensar na palavra que vou dizer quando chegar a hora da minha morte. (Pega a colher e mexe dentro da panela.) Dizer mais valia não ter nascido, isso não digo. São palavras demais, e se calhar nem tempo teria para as dizer. Rosebud, também não. Rosebud é o nome do trenó daquele tipo, e eu nunca tive um trenó na minha vida. (Olha o teto durante alguns momentos e olha para a cama.) Sabes o que é que eu vou dizer? Hein, mãezinha? Vou dizer ódio. Porquê? Ora, mãezinha, por acaso fui eu que pedi para nascer? Mãezinha, eu só nasci porque os meus pais gostavam de… Está bem, está bem, tu não gostas que eu diga foder, eu não digo, mas olha que é verdade. Eu só nasci porque os meus pais gostavam de foder. (Continua a mexer, voltado para a cama.) Tenho setenta e oito anos, tu tens setenta e cinco, menos três do que eu, e uma coisa é certa. Tu sempre entendeste mais da vida do que eu. Eu sempre fui um labrego, um zé-ninguém. Então não fui? Ó mãezinha, sempre que eu te dei algum presente, e foram tão poucos os presentes que te dei, de quem era a metade do suor que os pagou, hein? Diz-me, de quem era a metade do suor que os pagou? (Continua a mexer.) Eu sei que tu nunca me disseste, paizinho, tu és um labrego, um zé-ninguém, mas, repara, tudo o que eu fiz na vida deu em nada. Fiz um filho, e onde é que ele está? Só nos telefona pelo Natal, se calha de telefonar. (Olha para a cama.) Mãezinha, se eu morresse agora, quem se lembraria de mim, hein? Diz-me, mãezinha. Se eu morresse agora, quem se lembraria de mim, hein? Poucos amigos tive, e o nosso filho… Onde está o nosso filho, que só nos telefona pelo Natal, se calha de telefonar? Diz-me, mãezinha, se eu morresse agora, quem se lembraria de mim, hein? Só tu. (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Não sejas tola. A chorar para quê, se é verdade? Se eu morresse agora quem se lembraria de mim a não seres tu, hein? (Senta-se numa das cadeiras e olha o teto durante alguns momentos.) É por isso que eu gosto da palavra ódio. Ódio diz tudo. Inveja, não. Inveja é uma palavra mesquinha. Amor também não. Amor é uma palavra falsa, mentirosa. Fode-se e diz-se que se faz amor. (Olha para a cama.) Está bem, está bem, desculpa, saiu-me sem querer, mas a verdade é só uma, mãezinha. Eu não passo dum labrego, dum zé-ninguém. Só nunca fui falso, isso não. Nem falso, nem mesquinho. Está bem, está bem, eu sei que tu nunca me disseste que eu era um labrego, um zé-ninguém, mas eu conheço-me, mãezinha, sei muito bem quem eu sou. Se eu fosse como tu, ao chegar a minha hora, fechava os olhos, e pronto, palavras, para quê? Uma pessoa morre, acaba tudo, eu sei, mas eu não sou como tu. O quê? (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Queres-te levantar? Não? (Ajeita o cobertor sobre Mãezinha.) Então descansa, que a sopa já está quase pronta. (Senta-se e olha para a cama.) Mãezinha, lembras-te quando me perguntavas, paizinho, tu sabes o que é a nossa vida? A nossa vida é uma pessoa viver a arrepender-se. Ou do que não fez, e devia ter feito, ou do que fez, e não devia ter feito. Tu estavas certa, mãezinha, a nossa vida é uma pessoa viver a arrepender-se. Eu sempre fui um labrego, um zé-ninguém, ria-me que me fartava quando tu dizias aquilo, e dizia-te, lembras-te? Deixa-te de patetices, mãezinha, cada um é o que é, e cada um tem o direito de ter razão. Mas tu estavas certa, mãezinha. Estavas, sim. Que direito e que razão, paizinho? Neste mundo ninguém é nada ele sozinho. Deixa de ser ingénuo, paizinho, neste mundo ninguém é livre nem verdadeiro. Neste mundo, paizinho, quem manda na liberdade e na verdade são os outros. Deixa de ser ingénuo, paizinho. Tu és tola, mãezinha. Lembras-te que eu te dizia, tu és tola mãezinha, eu faço o que eu quero e em mim ninguém manda a não seres tu? Tu ficavas fula, mas estavas certa. (Ri-se.) Mas eu gostava de te ver fula, ai gostava. Tu atiravas-te a mim, e a cama só não estilhaçava porque a madeira era boa e os parafusos aguentavam, lembras-te? (Levanta-se, olha para dentro da panela e põe a tampa.) Foi numa altura dessas que fizemos o nosso filho, e fizemo-lo por acaso. Mãezinha, mentir para quê? Não adianta. Nós só fizemos o nosso filho porque gostávamos de foder. Está bem, está bem, eu sei que só digo asneiras, mas isto não é asneira, é a mais pura das verdades. Mãezinha, nós só fizemos o nosso filho porque sempre gostamos de foder. (Olha para a cama.) Mas tu estavas certa, mãezinha, neste mundo ninguém é nada ele sozinho. Eu sei que se chegar lá fora agora e disser que já é noite, e todos disserem que ainda é dia, quem tem mais peso? Eu sozinho, ou os outros, todos juntos? Tu sempre estiveste certa, mãezinha, quem manda na liberdade e na verdade são os outros. (Senta-se e olha para a cama.) De há uns tempos para cá, eu tenho pensado muito. Tu nunca me disseste que eu era um labrego, um zé-ninguém, mas pensas que eu não sei que se não fosses tu, eu nunca teria vivido a vida que vivi? Ó mãezinha, tu pensas que eu não sei que passaste a vida toda a empurrar-me, senão nem sequer um passo eu tinha dado? Se não fosses tu, tu sabes que eu nem sequer teria feito o pouco que fiz? (Levanta-se.) Sabes por que é que eu digo isto agora? Porque tu sempre soubeste quem eu era. (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Mãezinha, tu nunca me chamaste labrego, zé-ninguém, mas, repara, tu sempre soubeste que eu sempre tive medo de estar só. (Afaga a cabeça de Mãezinha.) Não soubeste, mãezinha? (Ajeita o cobertor sobre Mãezinha.) Soubeste, sim, eu sei que sempre soubeste. Nunca mo disseste, mas nunca foi preciso mo dizeres. Tu sempre entendeste muito mais da vida do que eu, mãezinha. Sempre foste à frente, sempre te atiraste. Eu? A única coisa que eu fiz na vida foi ter medo. Eu sempre tive medo, mãezinha. Nunca to contei, mas eu sempre tive medo. É verdade, mãezinha, eu sempre tive medo de estar só. (Dá alguns passos, encosta-se à parede, olha a cama durante algum tempo, dá mais alguns passos, para e senta-se a olhar para a cama.) Eu sempre tive esse medo, mãezinha, e tu sempre o soubeste. Nunca mo disseste, mas eu sei que sempre o soubeste. Não? Não adianta, mãezinha, mentir agora, para quê? O que tu nunca soubeste foi por que é que eu sempre esse tive medo. Não, não, mãezinha, mentir agora para quê? Está certo, eu nunca te menti, tu já me disseste isso mil vezes, e é verdade. Eu nunca te menti. Mas desse medo, mãezinha, se eu nunca te menti, foi porque nunca te falei dele. Mãezinha, diz-me. Alguma vez eu te disse que tinha medo de estar só? Nunca. Nunca to disse, mas enganei-te. Enganei-te, sim. É verdade, mãezinha, eu sempre tive medo de estar só. Eu sempre tive esse medo, mãezinha. (Levanta-se num gesto brusco.) Sabes que até de casar contigo eu tive medo? (Fica em pé alguns momentos a olhar a cama e, depois, senta-se.) É verdade, mãezinha, até de casar contigo eu tive medo. E sabes porquê? Não queres saber? Não queres saber, mas eu digo-te. Não queres escutar? Não adianta, eu digo-te de qualquer maneira. Tu sabes por que é que até medo eu tive de casar contigo? Porque eu tinha pavor de ficar só se tu morresses. Não, mãezinha, não adianta, comecei, vou acabar. Carrego isto comigo há mais de cinquenta anos, e… Mãezinha, ouve-me. Carrego isto comigo há mais de cinquenta anos, e agora quero que tu saibas, não porque já não o soubesses, mas porque fui eu que te contei. (Levanta-se, dá alguns passos, vai à cama, ajeita o cobertor sobre Mãezinha e encosta-se na mesa a olhar a cama.) Quando eu tinha dez anos, mãezinha… Quando eu tinha dez anos, eu tinha pavor de dormir sozinho. Para adormecer, sabes o que é que eu fazia? Hein, mãezinha? Sabes o que é que eu fazia para poder adormecer? Dormia de luz acesa. É verdade, mãezinha, só deixei de dormir de luz acesa quando nos casamos. Nunca contei isto a ninguém, contei-o agora a ti, mas já to devia ter contado há muito. Conhecemo-nos há mais de sessenta anos, e… Não, mãezinha, não adianta, comecei, vou acabar. Desculpa, mas comecei, vou acabar. Desde que nos casamos que eu não tenho medo de adormecer, mas sempre senti culpa. De quê? Ora, mãezinha, de nunca to ter dito. (Olha para dentro da panela, põe a tampa e senta-se a olhar o teto.) Nunca te disse, mas sempre soube que tu sabias. Eu sei, mãezinha, eu sei que tu nunca mo disseste, mas eu sempre soube que tu sabias. (Olha para a cama.) É verdade, mãezinha, eu sempre soube que tu sabias. E também sempre soube por que é que tu nunca mo disseste. Queres saber por que é que eu sempre soube que tu nunca mo disseste? Porque nós passamos a vida a fazer de conta. É verdade, mãezinha, nós passamos a vida a fazer de conta. Tu a fazeres de conta que não sabias, e eu a fazer de conta que não sabia que tu sabias. Não queres ouvir? Não adianta, mãezinha, comecei, vou acabar. Conhecemo-nos há quantos anos? Há quantos anos nós nos conhecemos, hein, mãezinha? Conhecemo-nos há mais de sessenta, e vamos continuar a fazer de conta? Não, mãezinha, chega uma altura que mais vale rasgar tudo do que remendar seja o que for. Eu sei que é uma patetice alguém chegar aos setenta e oito anos e dizer a quem viveu com ele mais de cinquenta, quando eu tinha dez anos eu tinha medo de adormecer porque tinha pavor de dormir sozinho. Eu sempre fui um merdas, mãezinha, e tu sempre soubeste disso, mãezinha. (Levanta-se, vai à cama e afaga a cabeça de Mãezinha.) Lembras-te de eu te dizer, já não lembro se li ou se foi alguém que mo disse, o inferno são os outros, e tu dizeres-me, paizinho, tu sabes quanto custa alguém dizer que não tem fome quando está de barriga cheia? Não custa nada, paizinho, nadinha. O inferno não são os outros, paizinho, o inferno somos nós. Nós é que somos o nosso inferno. Se o inferno fossem os outros, paizinho, a nossa vida seria um paraíso. Deixa de ser ingénuo, paizinho, o inferno não são os outros, somos nós. Nós é que somos o nosso inferno. Tu estavas certa, mãezinha, o inferno somos nós. Nós é que fazemos o nosso inferno. (Olha para dentro da panela, põe a tampa, senta-se e olha para a cama.) Tu sempre encaraste a vida como deve ser encarada, mãezinha. Paizinho, a vida é uma guerra, e não há guerra sem batalhas. Mas as batalhas são batalhas, e a guerra é a guerra. As batalhas, umas, ganhamo-las, outras, perdemo-las. Mas a guerra… A guerra da vida, paizinho, essa, ninguém a ganha, só a morte. Nunca te esqueças disso, paizinho, a guerra da vida só a morte é capaz de a ganhar. (Levanta-se, olha para dentro da panela, põe a tampa, senta-se e olha para a cama.) Sabes que dia é hoje mãezinha? (Aponta o calendário na parede.) Hoje é domingo, 3 de fevereiro. Assim que me pus a pé, eu disse-te, lembras-te? Mãezinha, hoje é domingo, e o que é que tu disseste, hein, mãezinha? Nada. E não disseste nada porque pensaste que eu te ia perguntar, mãezinha, sabes há quantos anos nós não vamos à missa e pedimos perdão a Deus? Eu conheço-te, mãezinha. Só que eu não te ia perguntar isso, porque se te perguntasse, tenho a certeza que tu me dirias o que sempre me disseste, paizinho, eu não tenho que pedir perdão a Deus. Se algum perdão eu tenho que pedir, é do mal que te fiz, sempre a obrigar-te a nunca desistires. A Deus…Olha, paizinho, se foi Deus que fez este mundo, fê-lo muito mal feito. De redondo, este mundo não tem nada. Este mundo só tem dois lados, paizinho, duas mós. A mó de cima e a mó de baixo. Quem é rico fica na mó de cima, a moer, quem é pobre fica na mó de baixo, a ser moído. Tu dizes que eu nunca tive medo. Engano teu, paizinho, eu sempre tive medo. E queres saber do que sempre tive medo? Eu sempre tive medo de ter medo, paizinho. Diz-me, mãezinha, era ou não era isto que tu me ias responder, hein? Só que eu não te ia perguntar sabes há quantos anos nós não vamos à missa e pedimos perdão a Deus? O que eu te ia perguntar era se tu querias ir comigo comprar as cenouras, mas tu não me quiseste ouvir, e eu tive que ir sozinho. Fui sozinho, e, olha, fiz o que fiz. Fui ao cinema e esqueci-me de as comprar. (Levanta-se, olha para dentro da panela, põe a tampa e olha para a cama.) Mãezinha, tu entendes muito mais da vida do que eu, mas desta vez enganaste-te. Enganaste-te, sim. Enganaste-te no perdão. Repara, mãezinha, se algum de nós tem que pedir perdão, quem tem que pedir perdão sou eu. Se não fosses tu, o que seria de mim? Tu tens medo de ter medo e eu tenho medo de ficar só. Qual de nós tem mais medo, hein, mãezinha? Tu, a ter medo de ter medo, ou eu, que sempre tive medo? Diz-me, mãezinha. Quem tem mais medo, hein? (Vai à cama, ajeita o cobertor e afaga a cabeça de Mãezinha.) Perdoa-me, mãezinha, eu sei que só digo disparates. (Aponta o espelho na parede.) Estás a ver aquele espelho? Queres saber o que eu devia fazer agora? Ir lá, olhar a minha cara e dizer, tu não vales nada, tu só dizes disparates. Isto é o que eu devia fazer agora, mãezinha. Olhar a minha cara naquele espelho e dizer, tu não vales nada, tu só dizes disparates. Mas de que vale saber o que devia fazer, se não sou capaz de o fazer? Se eu fosse capaz de fazer alguma coisa, não o dizia, fazia-o. Está bem, está bem, se tu não queres que eu diga isto, eu não digo, mas eu conheço-me, mãezinha. Nunca reparaste que, se calhar, foram as palavras que eu mais disse na vida? Se calhar, faço isto, se calhar, faço aquilo, se calhar, faço aqueloutro… Tudo se calhar. Se alguma coisa calhou na minha vida, mãezinha, foi por acaso. Fiz um filho por acaso, e até ao cinema, hoje, fui por acaso. Tudo que fiz foi por acaso. (Senta-se, voltado para a cama.) É verdade, mãezinha, tudo que eu fiz foi por acaso. Lembras-te daquela vez que o teu pai nos apanhou a namorar? Lembras-te do que ele me disse? Rapaz, namorar rima com casar, ouviste? E tu disseste-lhe o quê? Lembras-te do que lhe disseste, mãezinha? Eu lembro. Papá, disseste-lhe tu, nós não estamos aqui a brincar, nós vamo-nos casar. Olha, mãezinha, se tu não tivesses dito ao teu pai, papá, nós não estamos aqui a brincar, nós vamo-nos casar, eu não tinha casado contigo. Porquê? Ora, mãezinha, lembras-te do que eu te perguntei? E ele vai deixar? E tu respondeste-me o quê? Lembras-te do que tu me respondeste, mãezinha? Claro que ele vai deixar, quem vai casar contigo sou eu, não é ele. É, mãezinha, tudo o que eu fiz foi por acaso. Repara. Hoje, se tu tivesses ido comigo comprar as cenouras, pensas que eu teria parado à porta do cinema? Só parei lá por acaso, mãezinha. (Levanta-se e olha para dentro da panela. Põe a tampa, vai à cama e ajeita o cobertor sobre Mãezinha.) Mãezinha, não fiques assim, eu sei que a vida é feita de batalhas. Umas, ganhamo-las, outras perdemo-las, mas não é isso que me dá raiva. O que me dá raiva é dizerem-me que eu devo amar o meu próximo como a mim mesmo, e o meu próximo nem sequer saber que eu existo. Está bem, está bem, eu sei que há próximos e próximos. Mas será que aquele tipo do filme teria um próximo, ou o único próximo que ele teve foi o trenó Rosebud, hein? Mãezinha, eu sei que na vida há coisas boas, e também sei que nós fizemos algumas coisas boas. (Acende um cigarro, dá algumas passas a olhar o teto, e olha para a cama.) Não penses que eu não sei, eu sei, mãezinha. Mas olha que também fizemos muitas parvoíces. Tivemos um filho, trabalhamos como mouros, nunca roubamos nada a ninguém, e o que é que nos sobrou? Hein, mãezinha? O que é que nos sobrou? Ficamos velhos, ficamos sós, e o nosso filho só nos telefona pelo Natal, quando calha de telefonar. Será que valeu a pena, mãezinha? Por isso é que eu te disse há pouco que mais valia não termos nascido, mãezinha. (Dá uma passa no cigarro.) Mãezinha, se escrevessem a minha biografia, podiam escrevê-la toda com dez palavras. Nasceu sem pedir, viveu sem saber e morreu sem querer. (Dá outra passa e abana a cabeça.) É triste, muito triste uma pessoa viver setenta e oito anos e nem sequer se lembrar do nome do seu primeiro carrinho de brinquedo. (Olha para a cama.) Eu sei que tu te lembras do nome da tua primeira boneca, mãezinha. Vi-te a chorar quando a queimaste mais o meu carrinho, quando eu o quis dar ao nosso filho, e ele me disse, ó pai, para que é que eu quero uma porcaria dessas, hã? Só se for para a pôr no lixo. Eu quero é um automóvel. É, mãezinha, tu queimaste a tua boneca só para que a nossa filha não te dissesse o mesmo que o nosso filho me disse a mim. A nossa filha nunca nasceu, mas eu vi-te a chorar quando queimaste a tua boneca. É melhor assim, paizinho, são trapos velhos. Eu sei que eram trapos velhos, mãezinha, mas aquela boneca foi o teu primeiro brinquedo, e o meu carrinho também foi o meu primeiro brinquedo. (Dá uma passa profunda e bate a cinza no cinzeiro.) Sabes o que eu me pergunto agora, mãezinha? Pergunto-me o mesmo que perguntei quando o nosso filho me disse, ó pai, para que eu quero uma porcaria dessas, hã? Só se for para a pôr no lixo. Eu quero é um automóvel. (Olha para a cama.) Teríamos nós criado o nosso filho como ele devia ser criado, mãezinha? Quando ele nos disse que de maneira nenhuma queria ter uma vida igual à nossa e saiu da nossa casa, lembras-te do que tu disseste naquela altura? Eu lembro, mãezinha. Deixa, paizinho, nós fizemos o que os nossos pais nos ensinaram, mas o mundo mudou, e eu disse-te, lembras-te do que eu te disse? Hein, mãezinha? Lembras-te do que eu te disse? Eu disse-te, mãezinha, o mundo mudou porque as pessoas o deixaram mudar, e o que foi que tu disseste? Lembras-te do que tu disseste, mãezinha? Paizinho, não foram as pessoas que deixaram o mundo mudar, foram as pessoas que o mudaram. Só que nós nunca mudamos nada, mãezinha. Lembras-te que  eu te disse só que nós nunca mudamos nada, mãezinha, e tu me disseste, é verdade, paizinho, nós nunca mudamos nada, mas devíamos ter mudado. (Dá uma passa no cigarro.) Tu estavas certa, mãezinha, nós também devíamos ter mudado, e não mudamos. Se tivéssemos deitado fora os nossos brinquedos, em vez de os guardar para dar aos nossos filhos, o nosso filho nunca me teria dito, ó pai, para que eu quero uma porcaria dessas, hã? Só se for para a pôr no lixo. Eu quero é um automóvel. (Dá uma passa profunda, apaga o cigarro no cinzeiro e olha para a cama.) Tu sabes porque é que eu não roubo, mãezinha? Não roubo porque nunca tive amigos ricos. Galinhas… Galinhas, se eu as roubar, vou preso. Agora, se eu roubasse milhões… Se eu roubasse milhões, até o meu filho me pediria de joelhos para voltar para casa. Ninguém pensa nela, mas neste mundo só existe uma verdade. À porta do cemitério todas as caveiras são iguais. Eu sei que se toda a gente dissesse a verdade a toda a gente, não sobrava ninguém para a contar, matavam-se todos uns aos outros. E a nossa vida é igual, mãezinha, é tudo um faz de conta, já to disse. Toda a gente mata, toda a gente mente, toda a gente rouba, toda a gente diz mal de toda a gente, toda a gente diz que é feliz, toda a gente diz tudo, mas a verdade ninguém a diz. Tu sabes que é verdade, mãezinha, a verdade ninguém a diz, e se alguém a diz, ainda passa é por mentiroso. Está bem, está bem, eu não falo mais nisto. Mas, olha, se eu não falar nisto, de alguma coisa temos que falar. Se eu não falar nisto, nós vamos fazer o quê? Hein, mãezinha? Ficamos aqui a olhar um para o outro, um com medo que o outro não goste do que o outro vai dizer? Há quantos anos nós nos conhecemos, hein, mãezinha? Faz as contas e verás, eu tenho setenta e oito anos, tu tens setenta e cinco, há mais de sessenta que nos conhecemos, e o que foi que tu sempre me disseste? Lembras-te do que sempre me disseste, mãezinha? Nunca me mintas, paizinho, nunca me mintas que eu também nunca te hei de mentir. E juramos nunca mentir um ao outro. Foi ou não foi, hein, mãezinha? Nunca me mintas que eu também nunca te hei de mentir. Cumprimos o juramento, mãezinha? Por palavras, sei que o cumprimos. Mas, repara, mãezinha. Se nunca mentimos um ao outro, a quem é que andamos a mentir há mais de sessenta anos, hein? Olha, mãezinha, se nós nunca mentimos um ao outro, então muito mentimos a nós mesmos, mãezinha. (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Não mentimos? Ai mentimos, mentimos. Eu menti a mim mesmo a vida toda. Repara. Se eu não tivesse mentido, há quanto tempo já te teria contado do meu medo? E tu também mentiste a ti mesma, mãezinha. Mentiste, sim. Se não tivesses mentido, há quanto tempo já me tinhas dito, eu sei que tu sempre tiveste medo, paizinho? (Vai à mesa, para e olha para a cama.) Mãezinha, nós nunca mentimos um ao outro, eu sei-o. Tu nunca me mentiste e eu também nunca te menti. Juramos nunca mentir um ao outro, e cumprimos o nosso juramento. Mas, repara, mãezinha. Mesmo sem mentirmos um ao outro, nós passamos a vida a mentir. Nunca mentimos um ao outro, mas quanto mentimos a nós mesmos? Quantas mentiras nós dissemos a nós mesmos, hein, mãezinha? (Tira a tampa da panela, olha para dentro, pega numa colher, prova, desliga o gás do fogareiro e vai à cama.) Levanta-te, que eu vou pôr a mesa. (Começa a arrumar a mesa e olha para a cama.) Cada um é igual a si próprio. Lembras-te quantas vezes me disseste isto, mãezinha? Cada um é igual a si próprio, paizinho. Paizinho, cada um é igual a si próprio, paizinho. Quantas e quantas vezes nós falamos disto, hein, mãezinha? Sempre que alguma coisa acontecia e tu achavas que era sim e eu achava que era não, ou tu achavas que era não e eu achava que era sim, tu dizias-me o quê? Hein, mãezinha? Tu dizias-me o quê, hein? Paizinho, paizinho, cada um é igual a si próprio, paizinho. Se todas as pessoas fossem iguais, Deus teria que criar outro Adão e outra Eva. (Continua a arrumar a mesa e olha para a cama.). Tu sabes por que é que eu me lembrei agora disto? Lembrei-me agora disto porque, se há pouco falamos do muito que devemos ter mentido a nós mesmos nestes sessenta anos que nos conhecemos, e se sempre dividimos tudo o que tivemos, a saúde, a doença, os bons e os maus dias, tudo, uma coisa houve que nós nunca dividimos. É verdade, mãezinha, uma coisa houve que nós nunca dividimos. Nós sempre dividimos tudo o que tivemos, mas uma coisa houve que nós nunca dividimos. Nós nunca dividimos os nossos pensamentos, mãezinha. Podemos ter dividido alguns. Mas todos… Todos, nunca dividimos. A maior parte daquilo que pensamos, nós nunca o dissemos um ao outro. Não dissemos, mãezinha, se o tivéssemos dito… (Vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Mãezinha, olha para mim. Se nós tivéssemos dito um ao outro tudo o que pensamos, tu pensas que só hoje eu te teria contado do meu medo? (Vai à mesa, para e olha para a cama.) É verdade, mãezinha. Se nós tivéssemos dito um ao outro tudo o que pensamos, há muito eu já te teria contado, e tu também já me terias dito que sempre soubeste do meu medo. (Vai cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Não terias? Olha para mim, mãezinha. A chorar agora? A chorar agora para quê? Agora… (Afaga a cabeça de Mãezinha.) Queres que te diga o que estou a pensar? Não queres? Olha, eu sempre te quis mais do que a tudo na vida, mas tenho que to dizer. (Acende um cigarro e dá uma passa.) Sabes por que é que tenho que to dizer, mãezinha? (Dá uma passa profunda e sopra o fumo com força.) Tenho que to dizer porque é verdade. (Dá outra passa, olha para a mesa posta durante algum tempo, vai à cama e debruça-se sobre Mãezinha.) Tu sempre estiveste certa, mãezinha. Aquele tipo do filme teve tudo na vida, dinheiro, mulheres, tudo, mas, no fim, morreu sozinho e até o trenó lhe queimaram na fornalha. (Dá outra passa, esmaga o cigarro no cinzeiro, vai ao fogareiro, tira panela, coloca-a em cima da mesa e abre o gás.) Tu sempre estiveste certa, mãezinha. Casamos, vivemos mais de cinquenta anos juntos, e tu sempre estiveste certa. (Olha para a cama.) Sempre estiveste certa, mãezinha. Guardar o meu carrinho e a tua boneca para quê, se o nosso filho só queria um automóvel e a nossa filha nunca nasceu?

 

Deita-se junto de Mãezinha, abraça-a e cobre os dois com o cobertor, enquanto a luz apaga em resistência.


Cunha de Leiradella

E-mail: leiradella@sapo.pt


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021