Ricardo Daunt, trinta anos de literatura

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO DOS SANTOS


ÁLVARO ALVES DE FARIA ENTREVISTA RICARDO DAUNT

 

 1 Meu caro Ricardo Daunt: 30 anos de literatura. O que significa isso para você num país onde a leviandade e a absoluta inversão de valores são as normas vigentes, inclusive na área cultural?

RD: — Quando comecei a escrever, Álvaro, havia uma imprensa nacional interessada em noticiar e discutir literatura, e havia algumas editoras que possuíam massa crítica suficiente para não se contentar com editar o que a silenciosa ignorância geral dava a entender que gostaria de consumir. De lá para cá muita coisa mudou, e para pior: a vida literária e a produção intelectual do Brasil saíram das manchetes e do debate cotidiano para se tornarem marginais. As editoras hoje em dia carecem de coragem para acolher o que ainda não foi canonizado, aquilo a que posso denominar de nova seiva, e que atrevidamente pode alimentar nosso espírito e nossa sensibilidade. E, mesmo na esteira do que é genericamente aceito, comete equívocos inadmissíveis, mesmo para o mais empedernido agente da indústria cultural (e isso acontece justamente porque até mesmo os cânones estão se transformando em páginas delidas da história literária).

Hoje edita-se mais, mas edita-se muita porcaria. Grandes nomes da nossa literatura estão com seus originais na gaveta. Telefone para um jornal de grande circulação, apresente-se como um desses grandes nomes das nossas letras, e do outro lado do fio ouvirá uma voz indiferente, mergulhada no torpor de sua refestelada indigência intelectual. Em grande medida essa condição crescentemente desfavorável deu-me uma força suplementar para persistir em busca da originalidade e da qualidade, quer na esfera da pesquisa de caráter acadêmico, quer como poeta e ficcionista. Entendo que escrever é uma tarefa que não pode ser delegada a outrem, ou recusada; é uma tarefa que nos é imposta pelo destino e dessa tarefa não podemos fugir. Acostumei-me a ser guerrilheiro, já não consigo arrancar as vestes sujas de lama, impregnadas da tintura da relva úmida. 30 anos de literatura é quase tudo o que sou, sem querer ser utópico ou dramático. Freqüentemente me canso, freqüentemente deploro esse estado de coisas, mas deixar de escrever e de editar seria jogar o jogo da bestialidade geral.

 

2 Por que é que você costuma se afastar por tanto tempo da literatura, como tem sido nos últimos anos?

RD: — Afastei-me do mercado editorial, esperando que o setor amadurecesse e corrigisse seus erros estruturais. Procurei poupar energias e canalizá-las para a criação literária. Teria sido ilusório permanecer contemplando um estado de coisas que a todo momento me convocava para deixar de fazer o que sabia fazer. Em um primeiro momento virei as costas para o mercado editorial para evitar o desalento, e para não me corromper. Se corrompesse a literatura que pratico, onde mais encontraria o território da liberdade?

Em um segundo momento voltei novamente minhas vistas para a indústria cultural e busquei entender o que se passava. Investiguei detidamente seus vícios; passei a perscrutar algumas soluções e possiblidades, e acabei dando um novo rumo ao meu projeto pessoal no que diz respeito à edição de meus livros. Entretanto, posso lhe garantir que jamais deixei de escrever nesse período. E sempre com projetos cada vez mais ambiciosos. Como meu livro sobre o Orpheu em 2 volumes, a sair agora; ou como um longo romance que se passa inteiramente na Europa, “Migração dos cisnes”, que consumiu vários anos de trabalho, na verdade quase uma década, com interrupções causadas por outros projetos de feitura menos lenta (estou implicitamente me referindo aos ensaios sobre Eliot e Fernando Pessoa, que a Landy editou em 2004). Esses trabalhos forçaram-me a me ausentar do país por diversas vezes; residi em Portugal em várias oportunidades, e nos Estados Unidos, onde vivi e onde, como professor visitante da Yale University, realizei pesquisas. Minhas constantes ausências do país também colaboraram para que diversos livros meus permanecessem inéditos por mais tempo.

Entretanto, a despeito de voltar a editar, ainda constato enormes e crescentes estrangulamentos nas vias de distribuição do livro; enorme despreparo dos distribuidores e livreiros. O livro, além de veicular idéias e oferecer um prazer estético, também é um produto. E como tal deve ser tratado sob uma ótica mercadológica, o que, na esmagadora maioria de casos, não acontece na esfera de sua comercialização não Brasil. Isto sem falar na omissão do estado, nas áreas federal, estadual e municipal, onde apaniguados do poder metem o bedelho em assuntos que não entendem e onde sempre os mesmos nomes se refocilam à mesa dos cardeais.

 

Este novo livro de contos, “Poses”…Como ele deve ser analisado dentro de sua obra?

RD: — “Poses”, editado pela Via Lettera, dá fecho a uma tetralogia, denominada “Ciclo Urbano”, que começou com a publicação de “Homem na prateleira”, editado pela Ática em 1979, “Grito empalhado”, que saiu nesse mesmo ano pela Civilização Brasileira e “Endereços úteis”, editado pela Codecri, em 1984. Nesse sentido, “Poses” marca um regresso à ficção curta e sintetiza, penso eu, alguns elementos da minha poética, sobretudo aqueles que são responsáveis pelo eventual caráter inovador do meu trabalho. Ademais, creio que esse livro deixa patente de modo nítido minha maneira de ver o mundo, meu sistema de olhar, como tenho dito freqüentemente -– evidenciando com muita clareza a diversidade de interesses e formas de narrar. Se algum leitor paciente se dispuser a ler esses quatro livros da tetralogia, um após o outro, descobrirá sem dificuldade que o conto é meu primordial laboratório de inventor e um dos repositórios do meu método. O conto ensinou-me a escrever, em suma. E a pensar a coisa literária. “Poses”, por ser o trabalho mais longamente gestado (15 anos, com grandes interrupções), e por fixar os contornos da minha contística de maneira muito evidente, diria que é sem exagero o trabalho mais significativo da tetralogia; aquele que expressa melhor a pluralidade de interesses do autor.

 

Vamos falar dos dois livros seus publicados recentemente: o conjunto de ensaios “T.S.Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven” e o romance “Anacrusa”…

RD: — Os autores mencionados no título dos ensaios nasceram na mesma época, no mesmo ano, 1888, mas em países distintos, o primeiro americano do norte, o segundo português. Ambos vivenciaram, não obstante, a cultura inglesa tradicional; o primeiro por opção, o segundo porque viveu em sua idade escolar em Durban, na África do Sul, país que era uma colónia do Reino Unido. A escolha do objeto de trabalho e a opção por esses nomes derivaram da incontestável evidência de que Pessoa e Eliot são os dois grandes representantes da cultura inglesa e portuguesa, respectivamente, no século XX, quando se trata de poesia. Ambicionei oferecer ao leitor a partir de seus textos e posturas estéticas alguns dos mais relevantes temas acerca da poesia no século XX. Admira-me que até hoje ninguém tenha tido a idéia de c0olocar Eliot e Pessoa lado a lado. Continuando, esses dois poetas estudaram pela mesma cartilha inglesa. Leram Ben Jonson, John Dryden, Samuel Jonhson, os grandes críticos entre a Renascença e o Barroco. Ambos foram seduzidos pela poesia maneirista inglesa e sobretudo por uma sua vertente, denominada por Dryden, em um ensaio sobre a sátira, de poesia metafísica, termo utilizado também por Johnson. Ambos, ainda, estudaram os sermões de Donne, e leram seus poemas; detiveram-se em Crashaw, Marvell, Cowley, Townshend e Benlowes. A partir dessa formação adotaram rumos distintos, mas não inteiramente diversos. Da experiência adolescente com a poesia metafísica, partiram para a leitura de outros poetas, também metafísicos, como Baudelaire, Laforgue. Eliot se declara um poeta da família de metafísicos não porque imite os pares de Donne, mas porque entende que sua poesia assinala um novo estágio evolutivo da poesia metafísica, marcando seu renascimento, só que em novos moldes. A cada regresso, a poesia metafísica oferece ao mundo aquilo que Eliot chamou de uma crescente desintegração intelectual, uma maior dissociação da sensibilidade, e uma mais evidente deterioração do ouvido (esse percurso coincide com a poesia, lato sensu) – tudo isto dando conta de um fato primordial, entre muitos: a verdade é uma mercadoria em crise, como é, cada vez mais, o sentido da existência. E a poesia exprime de maneira aguda essa cruel constatação. Pessoa escamoteou tanto quanto foi possível a fortissima influência da tradição metafísica em sua obra mais original, aquela ligada ao movimento do Orpheu, mas o leitor verá, lendo este livro, que o biombo de aço foi arrancado. Não é curiosa a teia da tradição? Aliás, é desse embate com a tradição que nasce a poesia de hoje, como a de sempre. Acho que a leitura desses ensaios e o exame de temas como originalidade e individualidade artística, além da questão dos ciclos metafísicos, devem possibilitar ao leitor talvez uma maior compreensão da poesia em geral e, em particular, fornecer subsídios para um maior entendimento das poéticas contemporâneas. Agaro falo de “Anacrusa”. Este é um romance que brota de outro. “Manuário de Vidal” foi seu antepassado imediato. Ambos filiam-se às grandes correntes neo-existencialistas. Um e outro buscam capturar o espaço intermediário da fabricação de uma narrativa; o espaço entre a concepção imaginativa do projeto ficcional e o texto final (em cujo estágio o leitor normalmente irá encontrar um enredo estruturado, fixado, com personagens delineadas com meridiana clareza – ou nem tanto). No âmbito desse pequeno território, a que me refiro, pululam hipóteses, contradições, esboços dispersos, e, ao lado disso, a força germinativa da poesia, exercitando sua energia e buscando domar a prosa romanesca. O que surge disso tudo é uma narrativa que explora meandros da realidade (porque explora meandros da arte de narrar) raramente visitados, colocando o leitor em uma situação de linguagem inesperada; poética, por certo, mas ao mesmo tempo prosaica, uma vez que descortina novos sentidos e possibilidades para o material narrado, conferindo-lhes novo tratamento, em que avultam questões de ordem existencial (daí denominá-lo neo-existencial), com todas as injunções contemporâneas pertinentes à temática existencial. Tal como a realidade, sempre fustigante, sempre cambiante, a linhagem romanesca desses dois livros, que surge, repito, com “Manuário de Vidal” e se completa com “Anacrusa”, não se deixa apreender placidamente. O enredo é dúbio, talvez insubstancial, mas o ato de narrar presentifica-se de maneira insistente, envolvente, eu diria, através de uma dinâmica textual que é um convite para que o leitor abandone a algaravia do cotidano e procure ouvir a grande orquestração de silêncios e sons cheios de significação que é a vida. Os ouvidos rapidamente se acostumam a essa música. Bastam os primeiros acordes. É como, de fato, ouvir uma música pela primeira vez, começa-se sempre pelo princípio, escuta-se o primeiro acorde, o segundo, até subitamente se ouvir o primeiro compasso. É a anacrusa…, o momento musical que antecede o primeiro compasso; é aquele instante de transe especial, que também é narrativa, mas parece ser anterior a ela.

 

Ricardo Daunt: Você tem três novos livros a sair ainda este ano: “Obra Poética de Cesário Verde”, “Cesário Verde: um poeta no meio-fio do Paraíso” e “Audácia do tédio. Panorama estético do Orpheu em Portugal”, este em dois volumes. São quase 1.500 páginas. O que você pode falar sobre isso?

RD: — A “Obra poética de Cesário Verde (1855-86). Organização, apresentação, tábua cronológica e cartas escolhidas por Ricardo Daunt” é uma compilação de toda a obra do Autor português, e busca traçar um panorama dos fatos mais conhecidos de sua vida. Traz algumas cartas que jamais foram impressas em outra antologia cesarina. Meu interesse pelo poeta foi despertado em meus tempos de pós-graduando. Acabei escolhendo Cesário Verde para tema de minha tese de doutoramento na USP. Aliás o outro livro que você aponta é uma revisão da tese, defendida em 1992. Esses dois trabalhos em certo sentido são um tributo e um acerto de contas com Cesário, cujo legado poético me propiciou grande fruição e prazer, que não se esgotaram depois da defesa de tese. Por último, o trabalho sobre o modernismo português, “Audácia do Tédio […]” é um estudo literário e histórico acerca do movimento pluridisciplinar e pluriprogramático do Orpheu; seus precedentes, gênese, fundamentos e herança, abordando e interpretando a produção literária e artística no âmbito da geração e influência órfica, com ênfase nas congeminações literárias, plásticas e programáticas. Analisa detidamente a diversidade da produção órfica, definindo o sistema de programas de arte do movimento do Orpheu, seu corpus, participantes e seguidores em Portugal — bem como sua relação com a arte moderna européia e suas raízes (que remontam ao século XIII). O segundo volume da mesma obra traz o corpus do Orpheu, exceto a produção plástica, que comparece no primeiro. Esse corpus é definido não apenas como o conjunto de obras editadas nos dois números da revista que tem o nome do movimento, mas alarga-se para abarcar o conjunto de obras que entendo como órficas e que vieram a lume a partir de 1912, com o surgimento do primeiro ismo do movimento, e que foram estampadas após 1915, caso do Portugal Futurista, que acolheu a herança órfica antes do surgimento do Presencismo.

“Audácia do tédio […]”sai em junho; em julho, a “Obra poética de Cesário Verde […]”. No final de ano lanço “Cesário Verde: um poeta no meio-fio do paraíso”, todas essas obras serão editadas pela Landy. Aliás, como a Landy está planejando uma coleção infantil, provavelmente, também neste ano, no segundo semestre, irá ao prelo um livro meu para crianças. A data, contudo, ainda não está definida.

 

6 Você escreve ficção, ensaio, estudo literário, trabalho acadêmico… Como é isso ?

RD: — Como você sabe, tive formação acadêmica: doutorado, dois pós-doutorados, etc. Defendi tese, dei aulas em pós-graduação e antes disso escrevi artigos e produzi resenhas para os principais jornais do país, por vários anos. Mas comecei escrevendo versos e contos. O criador nasceu antes do crítico.

Hoje, sinto que a atividade crítica complementa a atividade criativa, ambas entreolham-se em constante vigilância. Sinto que contemplo meu trabalho de poeta e ficcionista com mais vigor à medida que alimento com humildade e perseverança o crítico que tenho dentro de mim. Mas igualmente me sinto mais próximo do objeto que critico (e adoto posturas mais respeitosas e cautelosas) já que tenho intimidade com o fazer literário enquanto fabricação. Agrada-me muito saltar de um galho para outro, ora praticando o ensaio, a reflexão crítica, ora criando. Se você reparar bem verá que tenho sido alternadamente ensaísta e criador (stricto sensu) há muito tempo. E é bom que se diga que a fluência do meu ensaísmo e sua maneira direta e sem rebarbas devem muito ao ficcionista. Como é fazer tudo isso? É um desafio e um prazer dos quais não abro mão. Aliás, grandes nomes da literatura mundial foram criadores e críticos, simultaneamente, caso de Eliot, Valéry, Poe e Henri James. Talvez não seja por acaso que lograram realizar uma literatura que ainda serve de bússola para a produção de hoje. Não será uma lição a ser seguida?

 

7 Você também escreve poesia. Como está sua produção nessa área ?

RD: — Bem, meu caro poeta Álvaro Alves de Faria, talvez em função da forte presença da poesia em diversos momentos da minha prosa, sobretudo naquela que o leitor encontrará nos romances “Manuário de Vidal” e “Anacrusa”, o fato é que tenho escrito pouca poesia, ao contrário de você. Tenho um livro inédito, chamado “Corpo”, que já se encontra na trigésima versão, e outro em preparo: “Poesia sem pátria e sem verdade”. Este último gostaria de terminar ainda este ano. O primeiro é muito diverso do segundo. “Corpo” é a sensibilidade poética acomodada sobre a cabeça de uma alfinete; coisa concisa, com minúsculas peças de relojoaria. “Poesia sem pátria […]” homenageia o andarilho que tenho dentro de mim, e deixa emergir versos em outras línguas, com as quais convivo em espírito e que aportam outras vivências. A voz poética desse último é mundana, disponível, por vezes prosaica. Um e outro se complementam.

 

8 Existe crítica literária no Brasil ?

RD: — Em certo e restrito sentido existe sim. Ela está aquartelada na universidade, trocando figurinhas e engessada nas teorias de moda passageira. Nesse mundo à parte escrevem apressadamente, para contabilizar trabalhos e satisfazer as estatísticas universitárias. Como sempre, o Brasil adota o que há de pior da universidade americana, e descarta o que seria de grande valia, como bibliotecas bem organizadas e informatizadas, boas condições de trabalho, etc. Fora desse reduto universitário há muito pouco. Nenhum caderno literário de grande circulação, nenhuma revista de expressão nacional. O pouco que existe abre espaço para o resenhador, mas não concede o suficiente para reflexões mais bem fundamentadas. Os veículos caçam patrocínio. Os patrocinadores impõem pautas. Em meio a tudo isso, assinam matérias jornalistas de plantão com formação insuficiente. Querem logo mostrar serviço; criam caricatos exemplares de recensão literária em que pervagam uma acidez e uma sem-cerimônia com o trabalho alheio que chega a embrulhar o estômago. Não há mais evidente sinal de decadência do que esse quadro que acabo de esboçar em toscas pinceladas, Álvaro. Nomes experientes do jornalismo literário foram obrigados a depor sua pena, por falta de espaço. Cadernos literários foram extintos. Livro é uma ignomínia, um crime. Não se pode pronunciar seu nome na grande imprensa. Na era da internet caótica e de um sistema de ensino que premia o professor mais leniente e o aluno mais relapso, aprovando-o compulsoriamente para o ano seguinte, como acontece em São Paulo, o que você queria que acontecesse? O pensamento é um gordo aposentado, roído de doenças, atirado a um canto. Há honrosas exceções, mas as exceções confirmam a regra, não é assim?

 

Para concluir, Ricardo Daunt: O que não dá mais para aguentar na literatura brasileira ?

RD:– A vaidade é uma coisa escabrosa. Como é possível pensar com profundidade quando o efeito parece ser mais importante que o conteúdo? Os escritores brasileiros debandaram de seus postos. Assistem hipnotizados a tudo o que está aí, com ares de altiva senhora ultrajada.
No duro período da ditadura, participei com grande empenho de acaloradas reuniões no Sindicato de Escritores do Rio de Janeiro. Os temas do momento eram discutidos e tomávamos uma posição conjunta, enviando representantes para participarem de encontros ou simplesmente para comparecerem em eventos em que se debatia o processo de redemocratização do país, àquela época ainda nascente. O Sindicato contribuiu modestamente, mas contribuiu para ajudar a redesenhar a estrutura política do país. Éramos uma força coletiva, para além de nossos talentos pessoais, para além de nossas preferências estéticas. Tentei em São Paulo, muitas décadas passadas, reunir uma equipe permanente de trabalho entre os escritores locais; uma equipe sem líderes, chefes, tesoureiros. Apenas um conjunto de mulheres e homens que tencionavam se manifestar e tomar partido quando o momento exigisse, lançando mão de nossos contatos na grande e pequena imprensa. Esse projeto não foi para frente. A vaidade foi mais forte. Foi um duro golpe. Acho que foi nesse momento que o escritor começou a perder espaço nos meios de comunicação. A jovem, desvairada e ignorante imprensa brasileira jogou a última pá de cal, mas o defunto já estava enterrado. Devo entretanto sempre advertir que há casos muito honrosos, há exceções. Mas é inegável que essa tem sido a tônica geral. Por quanto tempo ainda o escritor brasileiro irá continuar contemplando embevecido seu próprio umbigo?


RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020