Refinadas narrativas 

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO DOS SANTOS


Refinadas Narrativas 
Por  Beth Brait 

(Narrativas literárias, resenha de Beth Brait,  publicada no Jornal da Tarde, em 27 de outubro de 1984, p. 6 – Biblioteca). O quarto volume da narrativa, Poses, ao qual faz menção a autora, à época de publicação de sua resenha, lembrando que o livro estava em “preparação”, chegou às mãos do leitor através do lançamento da Via Lettera, em 2005.)


Endereços Úteis (Codecri, 1984), coletânea de reinadas narrativas, é o terceiro volume de uma tetralogia que Ricardo Daunt Neto, o autor, intitulou Ciclo Urbano. O primeiro livro, Homem na Prateleira, foi publicado, em 1979, pela Ática, constituindo o número 39 da coleção “Autores Brasileiros”. O segundo, Grito Empalhado, apareceu no mesmo ano editado pela Civilização Brasileira. E o quarto já tem nome – Poses – Mas ainda está em preparação. Entretanto, para curtir Endereços Úteis não é preciso ter lido os outro volumes da tetralogia ou estar em contato com a produção desse escritor que desde 1975 vem marcando sua presença através de diferentes gêneros: Juan, coletânea de contos (1975), Manuário de Vidal, romance (1981), A Muralha da China, romance escrito em parceria com outro bom escritor, Álvaro Cardoso Gomes (1982), Lauro/Laura, Auto de Separação, teatro em parceria com Julieta de Godoy Ladeira (1982).

Endereços Úteis tem dicção própria, forte, motivadora. As 19 narrativas aí reunidas têm em comum a capacidade de atrair o leitor, seduzindo-o por meio de um trabalho de linguagem que vai além dos limites do previsto, do previsível, e instaura um texto depurado e despudorado em termos de experimentação. A temática urbana, sugerida pelo próprio nome da tetralogia, que poderia dar a ideia de mais uma coletânea de historinhas realistas que repisam sem originalidade os desvãos da metrópole, ganha uma dimensão inusitada a cada conto. Os espaços, São Paulo, Rio, Paris, Nova York, Quito ou uma cidade imaginária, abrigam personagens e situações que fogem ao clichê, à padronização, para ganharem na ambiguidade da construção, a amplitude de uma realidade palpável, surpreendente, fora dos limites tacanhos da generalização.

Um operário com o filho em um edifício em construção ou um executivo que voa para Nova York para rever um caso de 15 anos atrás são motivos que poderia redundar em melodramas exauridos até mesmo pelos surrados meios de comunicação de massa. Contudo, cada uma dessas personagens e a cada um desses dramas são tratados com a delicadeza de um profundo conhecedor do efeito de narrar. Cada frase, cada linha, cada descrição funciona de modo a permitir a visualização do espaço interior e exterior às personagens, criando um clima que às vezes se aproxima das grandes pinturas, dos grandes filmes ou de um hermético hai-kai. Até mesmo a história de um casal brasileiro exilado em Paris atinge um alto grau de originalidade, apesar de tão explorado pela literatura brasileira da década de 70 e começo de 80.

E qual é o segredo de Ricardo Daunt nesse livro? Qual a receita para prender o leitor horas a fio numa poltrona, com um prazer renovado a cada conto? A princípio, a leitura parece cativar pelas histórias de diferentes brasileiros flagrados em seu cotidiano, em seus sonhos, em seus pesadelos, em suas aventuras ao mesmo tempo particulares e universais.

Afinal não dá para negar que Endereços Úteis é desses livros que não se pode parar no meio, que se chegar ao fim da história. Mas depois dos primeiros contos, mesmo quando o enredo se torna rarefeito, se auto destrói, o leitor persegue avidamente as narrativas dominadas inteiramente pelos artifícios de um autor que, dominando os recursos literários, explora inúmeros recursos narrativos sem cair na monotonia de um padrão e sem parecer um aluno aplicado de semiótica.

A diversidade dos endereços, que pode ser traduzida pela multiplicidade de espaços, pela individualidade das personagens e de suas relações com o outro pelos diversos recursos formais que dimensionam os motivos, os temas e os assuntos, constitui o conjunto dos fatores que confere a essa obra o tom de brasilidade que extrapola os limites do quintal da província. É sem dúvida uma obra profundamente brasileira, de temática reconhecidamente urbana, que  suporta até mesmo uma análise sociológica localizada ou um rastreamento ideológico profundo. Mas seu interesse maior, sua qualidade literária, recai na feitura capaz de abrigar um conteúdo denso, dificilmente reduzível a esquemas simplificadores.

Quem está acostumado, por ofício ou profissão de fé, a acompanhar a ficção brasileira contemporânea, repleta de mesmices, redundâncias e exercícios individuais fadados ao esquecimento imediato, certamente terá surpresas com esse livro de Ricardo Daunt Neto. Ele reúne algumas qualidades que ainda podem ser critério para a avaliação e a fruição de um texto literário: imaginação e originalidade, fundadas no exercício consciente e prazeroso da linguagem. Tudo isso sem nenhum resquício de amadorismo.


RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020