Proust: em busca dos signos de amores perdidos

 

TRIBUTO A ANA HADDAD


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência  (Instituição-sede da última proposta de pesquisa) . Brasil


Marcel Proust  é amplamente conhecido em muitas áreas do conhecimento. Citado como um verdadeiro paradigma no que diz respeito ao tempo. A famosa madeleine que, segundo os especialistas em literatura, desencadeia a memória involuntária. Mas na real: quem leu ou lê Proust naquilo que, de acordo com Deleuze, o escritor possui de essencial? A famosa obra do autor Em busca do tempo perdido não é somente a busca de memórias. Não. De acordo com a belíssima leitura de Deleuze e  Beckett existem na obra de Proust outros pontos, mesmo mais subjacentes, que deveriam ser pensados e interpretados. Nas palavras de Deleuze: “Em que consiste a unidade de A recherche du temps perdu? Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tampouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial  da Recherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um outro lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço da recordação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão “busca da verdade”. (…) É certo que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda” [1].

Sob a leitura de Deleuze o que devemos, inclusive, perceber em Proust seria um esforço aliado a exercício de pensamento. Porque, entre outros motivos,  a obra do escritor francês está em  busca da verdade. A verdade do amor. Lembremos que a obra de Proust atravessa amores. Os signos do amor. A busca do amor. Mas ao mesmo tempo nos mostra as insuficiências irrespondíveis do quanto o amor plenamente correspondido é quase uma ilusão. Proust nos pergunta, muitas vezes, durante sua narrativa: como é possível amar sabendo que sofremos tanto? E como podemos amar novamente mesmo sabendo da impossibilidade de uma correspondência absoluta?  Entretanto, as personagens de Proust são, na verdade, vítimas do tempo. Em que medida? Ora! Quando amamos um ser, uma onda marinha incontrolável, “afoga” tudo ao nosso redor. Vemos somente aquele ser. Somente aquele. Tudo ao nosso redor é subtraído. Em tal círculo de signos rodopiantes e oscilantes o ser amado é o protagonista absoluto. Mas o queremos por inteiro. Desde o momento de seu nascimento. Cercá-lo a cada milésimo de segundo.  Mas isso é uma impossibilidade temporal. De mãos dadas com o amor…o ciúme sorri, como um deus enamorado de sua própria grandiosidade, e articula. Sutil. Mas não ingênuo ou inocente. Não. O ciúme é poderoso. Porque ao lado dos mais finos tecidos da imaginação e da fantasia. Aliado, inclusive, dos tentáculos poderosos da posse cuja soberania é exercida sob  fragilidades (quem  as desconhece? ) as  quais  somos, inelutavelmente,  sujeitos.

Ao percorremos, não sem tropeços, as páginas de Proust apreendemos, entre tantas coisas que poderiam ser mencionadas, que um de nossos maiores desejos é a plausibilidade da compreensão de quem nos rodeia.  No fundo todos nós desejamos ser amados simplesmente porque amamos. Mas o amor para Proust, de acordo com Beckett, é motivo de tristeza para o homem. Ouçamos Proust: “Eu já não amava Albertine. Quando muito em certos dias, fazendo um desses tempos em que, modificando e despertando nossa sensibilidade, nos pomos em relação com a realidade, eu sentia uma tristeza cruel ao pensar nela. Sofria por um amor inexistente. Da mesma forma os amputados, diante de certas mudanças de tempo, sentem a dor na perna que já não possuem. O desaparecimento de minha dor, e de tudo o que ela acarretava, deixava-me diminuído como frequentemente a cura de uma doença que ocupava um grande lugar em nossa vida. Sem dúvida, porque as lembranças não permanecem sempre verdadeiras, é que o amor não é eterno e porque a vida é feita da perpétua renovação das células” [2].  Atravessando, mesmo de forma dolorida, os conceitos (de fato) proustianos, temos acesso a incríveis verdades cuja diretriz, sem dúvida, é a soberania do tempo. Não como simples recordações ou recuperações de tempos e espaços perdidos. Não. Proust analisa questões existenciais que estão muito além de um alcance mais superficial. Em relação ao amor, e não somente, a grande reflexão, talvez, seja: por mais que queiramos nos desvencilhar do passado, mesmo considerando que em relação a ele já não somos mais os mesmos, ele nos persegue. Mesmo um amor que tenha sido liquidado. Porque estamos sós. Sempre. Uma possível resposta vem de Beckett: “Estamos sós. Incapazes de compreender e incapazes de  sermos compreendidos” [3]. Como tantos pensadores e poetas lúcidos já observaram: como sair de nós mesmos? Como enxergar o outro sem que estejamos refletindo a nós mesmos? Como? O que podemos e devemos esperar da vida?

Somente a arte, de acordo com Proust, Deleuze e Beckett poderão, algumas vezes, promover uma real intersubjetividade. Somente os signos artísticos, reafirmará Deleuze, porque imateriais (espirituais) podem atenuar a nossa incrível solidão. Ouçamos, uma vez mais,  Beckett: “(…) o único desenvolvimento espiritual possível é no sentido da profundidade. A tendência artística não é uma expansão, mas uma contração. E arte é a apoteose da solidão” [4]. Somente os signos artísticos, por sua própria natureza, eternizam o amor. Mesmo que estejamos mergulhados na mais completa solidão.


[1] Gilles Deleuze. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 3.

[2] Marcel Proust. Em busca do tempo perdido. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 466.

[3] Samuel Beckett. Proust. Tradução de Arthur Rosenblat Nestrovski. Porto Alegre: L&PM Editores Ltda, 1986. p. 53.

[4] Idem, p. 54.


Série Viridae . Ana Maria Haddad Baptista.

Maio 2022 . 

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