Preciso de outro cérebro


VI ENCONTRO TRIPLOV NA QUINTA DO FRADE
Casa das Monjas Dominicanas . Lumiar . Lisboa . 14 de Julho de 2018 


ELISA SCARPA
Preciso de outro cérebro


Hoje é dia 10

está aqui a  comentadora

a jovem loira, de seios nus.

O dia 10 resvala para o dia 11.

Olha para a câmara

implica o espectador com o seu olhar

e o dia 11 resvala para o dia 12.

Está vestida,

afinal não está nua,

e talvez não seja loira!

Hoje é dia 10

não olha para a câmara

olha para o homem

atrás da câmara.

O dia 10 resvala para o dia 11.

Comenta os

que se manifestam na rua.

Hoje é dia 11.

Os que acompanham a loira

estão vestidos de

fato e camisa.

Hoje é dia 12

Passa um empregado com cervejas,

afinal não é um empregado!

O dia 11 resvala para o dia 12.

Não, afinal,

não estão num café,

estão num estúdio.

Consideram

que os que se manifestam

não têm nada para fazer.

O dia 12

faz marcha atrás para o dia 11.

Ou então querem defender o Seu.

O Seu… não acabam as frases,

ficam em aberto.

Hoje é dia 11

O seu… ?

O cidadão deve conseguir viver

com aquilo que lhe dão.

E o benemérito,

se não dá mais,

Estado ou não,

é porque não pode!

E o dia 11 resvala para o dia 12,

que vai resvalar para o  13.

Os manifestantes devem

manifestar-se em local

previamente aprazado,

para que as forças da ordem

possam intervir…

O dia 13 faz marcha atrás

para o dia 9.

Hoje é dia 9

– Estás irado? Controla-te

Não grites, podes prejudicar os que

habitam por perto

e estão a trabalhar.

Hoje é dia 10.

O de fato azul endireita-se

bebe um gole de água

esclarece

que os que se manifestam

não devem correr.

O dia 11 faz marcha atrás

para o dia 10.

Não devem insultar

porque podem despoletar

alguma acção violenta.

Hoje é dia 8

_ Estás a dizer, que não deves bater, mesmo que te batam?

_ Sim, claro, não sabes

se estás perante

um polícia à paisana,

um agitador,

ou mesmo

um fotógrado desejoso

de tirar uma fotografia

“escandalosa”.

 

Depois de ouvir os comentários

estrangulo-me

com o cabo de alimentação do computador.

 

O que estava previsto no dia 9,

chegado ao dia 12,

vai resvalar para o 13.

Preciso de outro cérebro.

No dia 12 caguei um chapéu

não sei se o hei-de

usar na cabeça, ou no cu.

No dia 13 escrevo um poema,

Não sei se o hei-de publicar

ou limpar-lhe o cu.

Dá-me a tua opinião

Em cu@poema.pt

 

Preciso de um outro cérebro

um outro começo.

 

As notícias alinhadas

em fila indiana,

de mãos dadas

como se fossem crianças

a ir para o jardim escola.

Estou bastante em desacordo

com muita coisa,

não o manifesto.

Preciso de um cérebro

ultravidente

que tenha sensores, de luz,

de cheiro, de movimento

e que se saiba

despir de si

para julgar.

É sábado

não consigo ver

as perpendiculares da

luz

no desenho da rua.

_ Não admira, são cinco da manhã!

O 47-LZ-67 passa para cima,

do outro lado passa

o 58-Jk-80, o 90-MN-11,

o 12-BO-22

o 23-AO-32,

as matrículas passam

apenas, e sempre

passam

cansam

transportadas

em veículos.

Tão ordinárias

como os dentes alinhados

num boca.

Leio-as,

não as julgo.

Elas passam e eu leio-as.

O vidro nas janelas é duplo,

não ouço o barulho

dos carros.

Tenho uma ânsia

de similitude com o inaudível.

São as primeiras matrículas

do dia.

São cinco da manhã

repetitivas como as nuvens

enérgicas como um não,

que se escamoteia,

porque já se disse

Muitas vezes: Não, não, não,

não, não, não,

Não!

As matrículas são o quê nos carros?

_ Um número que ligado a outro,

serve para cobrar multas.

Hoje, aliás, tenho que ir pagar uma.

Ultrapassei os 50 km/hora

dentro da localidade.

Possuo a diletante tristeza

Dos que só escutam, e pagam!

 

Quando os carros chocam a 120 km/hora

não há belo para dolcificar.

Quando choco, todas as matrículas

se enrolam no cérebro

e quando saem,

tropeçam nas frágeis carcaças

amarrotam-se no chão.

 

_ Preciso de uma cérebro novo,

Não há ninguém que comente

Esta minha necessidade?!

Um cérebro novo, que veja para

além dos veículos,

e não queira ser sorte ou azar.

Descontrolo-me, odorífera,

arremedo as travagens

dos veículos na estrada,

troco as partes das matrículas,

desuno-as e uno-as

em afã obsessivo,

não consigo ligar o computador

é da bateria, do carregador, da rede?

_ De há semanas a esta parte

é este filme!

Só tem dois anos,

será que tenho que comprar outro?

 

O meu computador é solteiro,

não come, não caga,

anda ao mesmo ritmo que eu

porque sou eu que o transporto.

Não pousa nas flores,

sabe

o que é uma andorinha,

e uma

borboleta

e tal como eu não sabe voar,

nem pousar sobre flores.

Mas cumpre o calendário,

e não tem que suportar

o cheiro a mijo das ruas,

fingir que são bons

os bolos de naftalina

e  os néctares de frutas

que sabem a gasolina

queimada.

 

Os carros afundam-se

e desaparecem

no alcatrão.

Consegui ligar o computador,

a rede já está acessível.

Ontem engoli duas entradas USB

um cabo audio,

duas bananas de aparelhagem,

e o abecedário completo

do teclado de telemóvel.

Hoje é dia 10

procuro, ao acordar

o meu fio umbilical eléctrico.

O dia 10 resvala para o dia 11

são seis da manhã

e o 11 resvalou para o 12.

Concebo um outro cérebro.

Recebi um presente,

Deram-me uma memória externa

com 5000 gigas,

presente que noutra língua é veneno

e o beijo bom, noutra língua

é semelhante, mas não é bem assim!

O burro e a manteiga

assemelham-se,

e nesta língua

associá-los não faz sentido.

Sentido? Uma coisa que se sente,

Ou uma coisa que se percebe?

 

Preciso de outro cérebro.

A disposição é muda

e o Mood

é uma mistura de mel

e bosques

o cérebro lá longe

em Constantinopla.

Não ! Constantinopla,  já

não é longe!

Outro longe se perpetua

na rede

admiro esta orgia de notícias,

por cada má notícia que leio

perco uma célula

e peço às nuvens e ao sol

que chovam e queimem

por mim!

 

Não acerto no preenchimento

do calendário

e fui eu que o determinei.

Os espíritos e os espelhos são iguais.

A canon é uma

máquina fotográfica

e um modelo

abro alas

entre as matrículas

e os computadores

abro alas

para a melancolia

que está longe e perto

e o mar à tona

no fundo do oceano.

Recebi esta memória

com 5000 gigas.

Recebi este presente.

Ouço. Leio.

Estarei a ouvir?

É a língua

Esta inapta pátria

Que jaz finda!?

_ Não, não leio por hábito,

a tradução da ira

não me traz virtude!

Confusa e surda, narro e juro,

Ouço e leio

Leio aos

sóbrios, aos espertos, aos discretos,

aos justos, aos injuntos na sapiência.

 

Este perpétuo sei da memória

esta célere beleza das sentenças

estas frases

coladas

uma a uma

constituem a próspera loucura

de uma cela.

_ Quem patrocina estes loucos?

Estes loucos aflitos?

Lobrigo e animo os que perdem

A robustez da linguagem.

Julgo ver, ler

vero e falso

no vulgo linguajar

exactidões

que são exactas segundos apenas.

Oníricos que se revelam reais

águias que são presas…

não tardo a imigrar, para o desejo

profundo de querer outro cérebro.

Só a só

encontro as frases

e num sub-rústico pudor

córo

_ Frase nossa, externa vida

fala programada furor intenso,

tenebrosa mórbida razão

demónio tércio

 

entregas-me

a esta

triste

e

mordaz

carnificina.

_ aqui, nestas notícias nenhum homem

pode ser coerente!


REVISTA TRIPLOV DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS
série gótica. outono . 2018