Por causa do sangue

MARCIA KUPSTAS


Acho que as pessoas simples sempre nos chamaram de bruxas. Em tempos antigos, até posso concordar com essa definição. Mas hoje, em épocas “politicamente corretas”, é preferível nos classificar como gente que “influencia pessoas”. Esse o nosso dom.

Eu descobri o dom há muito tempo: um mês depois de ter feito 12 anos. Como lembro tão bem disso? Os fatos ficaram gravados por grandes coincidências. Marcados a sangue, para ser mais precisa.

Menstruei pela primeira vez naquele mês depois dos 12 anos. Claro que já sabia do assunto, muitas meninas comentavam disso na escola. Mas a surpresa e a sensação real eram muito assustadoras. Estava no banheiro, esfregando o papel higiênico entre as pernas, vendo-o sempre colorido de vermelho, tentando lembrar onde mamãe guardava seus pensos, quando ouvi o grito.

_ Rute!

Rute é meu nome. Mas falado daquela maneira gutural, rouca, parecia um estranho ruído feito por animal agonizante.

O que não deixava de ser verdade: era vovó. Vovó, no seu quarto, a me chamar no exato momento em que tentava controlar meu pânico e arrumar o absorvente para a primeira menstruação.

_ Rute, venha já aqui.

Coloquei um chumaço de algodão dentro da cueca e corri para atendê-la.

Vovó estava sentada na cama, em seu quarto. O que era raro: desde que diagnosticaram o cancro, ela ficava a cada semana mais fraca, mal se mexia entre as cobertas. Naquela manhã, porém, tinha sentado na cama.

_ O que foi, vovó?

Ela me olhou. O estranho olhar de febre, com as pupilas brilhantes. O cabelo ralo, ela estava quase careca depois da quimioterapia. O nariz muito fino, as faces marcadas pela magreza, revelando a caveira por baixo da pele seca. Sim, naquele momento vovó se pareceria muito com uma bruxa, pelo menos como sempre a desenharam nos livros antigos. A única coisa viva e ágil em seu corpo carcomido pelo cancro eram seus olhos. Tão nítidos que lembro deles para sempre. Mesmo nos meus pesadelos, aquele olhar paira por cima de tudo, como se vigiasse todos os acontecimentos de minha vida…

_ O sangue. – ela falou. – Veio-te o sangue.

_ O que a senhora disse, vó?… Como a senhora sabe, o que…

Ela me interrompeu tentando dar um tapa no ar, irritada. Tinha dificuldade em falar, um dos tumores se alojara em sua garganta.

_ Não tenho tempo… a perder com bobagem. Ajuda-me aqui.

Estendeu o braço seco para mim, segurei nela com cuidado. Sua pele quente. Minha avó toda fervia, nas suas muitas febres e dores. Mas, naquela manhã, havia também um outro fogo dentro dela. Uma força que era maior que sua doença.

Com cuidado, eu a ajudei a se erguer. Ela cambaleou um pouco, fomos até o quintal. Pediu que eu pegasse a chave do quartinho de despejo, nos fundos. Seguimos muito devagar para lá. Estávamos sozinhas na casa, naquela manhã. Mamãe e papai no trabalho, meus irmãos mais velhos na escola. Os passos vagarosos de vovó, sua fala em cantilena rouca, não conversava comigo. Talvez apenas lembrasse.

_ O sangue, eu sabia. Pelo menos alguém na família, tinha de acontecer. Tua mãe, pfu, uma calhau. Ela não. Teus irmãos não podem. Em ti, sempre coloquei fé em ti, Rute. Não me decepciones, miúda. Não tenho mais tempo. É pena, não ter tempo. Tu vais ter de aprender sozinha. Mas vais conseguir.

Um arremedo de sorriso, quando me olhou, à porta do quartinho. Procuramos entre ferramentas e velhos potes de compota, logo vovó alcançou um caderno de  capa dura, manchado pelo tempo e com folhas amareladas. Ela me estendeu o caderno como se aquilo fosse seu dom mais precioso. Segurou nas minhas mãos que seguravam o caderno.

_ Leia tudo. Leia com cuidado. Tu tens o dom, Rute.

_ Dom? Do que a senhora está a falar, vovó?

De novo, seu gesto de dar um tapa no vento, o rosto febril e irritado.

_ Tens de aprender a usar o dom. Vás devagar. Não forces o uso. Tu irás perceber, com o tempo. Ele funciona mais nos homens que nas mulheres. E não em todos. Há pessoas em que o dom não funciona, não tente forçar isso, nunca. Minha avó chamava essas pessoas de “Inquisidores”. Nunca facilite com um Inquisidor. Eles são nossos inimigos. Enquanto tiveres o sangue, Rute, terás o dom. É assim mesmo que a coisa funciona.

Que coisa? Do que minha avó falava, afinal? O seu olhar me assustava, quis perguntar mais, porém ela cambaleou e pediu que eu a levasse de volta para o quarto. Pouco mais falamos, naquela manhã. Li sim o caderno, nos dias seguintes, muito espantada e com medo. Descobria sobre uma raça especial de mulheres (sempre mulheres; quem escreveu o caderno não sabia explicar por que os homens eram excluídos daqueles poderes). Descobria que bastava a nossa vontade, para conseguir influenciar as pessoas. Nada de palavras mágicas ou caldeirões ferventes, a coisa funciona com a vontade. O sorriso. O olhar. Nada cruel ou perigoso, para nós ou para as pessoas a quem desejávamos influenciar. (Pelo menos, durante o… “feitiço”, vamos chamar assim. E claro que tudo dependia daquilo que forçávamos o enfeitiçado a fazer).

Alguns dias depois de ter lido o caderno, tentei conversar mais com vovó. Uma das advertências me pareceu muito estranha. Falava sobre “castigo final”. Se entrássemos em confronto com um Inquisidor e forçássemos muito nossos dons, se fôssemos além dos nosso limites… aconteceria a “revelação dos últimos instantes”. E os dons se perderiam, para sempre.

_ O que é isso, vovó? Como acontece isso…?

Fraca, ela só gesticulou. Pediu que me aproximasse da cama, murmurou com seu hálito de morte em meus ouvidos:

_ Nunca chegue perto… nunca tente com um Inquisidor. Nunca. Aí Rute será feliz.

Duas semanas depois, vovó morreu. Sem me ver estrear os dons, o que foi uma pena: a minha primeira vez aconteceu no mês seguinte, quando de novo me vieram as regras.

Foi com um professor da escola. Lembro que era aula de Matemática, matéria em que sempre fui muito ruim. Era um homem sério e nervoso, engraçado que seu nome me escapa, tantos anos depois… meu primeiro “enfeitiçado”. Ele estava sentado em sua mesa, rapidamente a corrigir provas e a chamar os alunos para entregá-las. Um massacre, poucos tiravam mais do que 4. Eu sentava sozinha no fundo da classe. Roía as unhas. Tinha ido mal na prova, sabia disso. Olhava fixamente para o mestre, distraído na sua tarefa de correção, ora chamando um, ora outro aluno… era a minha vez. Ele pegou no papel, levantou-o. Olhava para os números. Eu mentalizava fortemente em sua direção, tentava lhe passar boas lembranças, ideias positivas… o professor sorriu. Pegou a caneta, começou sua tarefa de corrigir.

_ Rute? – chamou.

Fui devagar até sua mesa. Minhas mãos tremiam. O homem fez o gesto inédito. Sorriu para mim. Estendeu-me a prova…

_ Parabéns, Rute. A melhor até agora. Tirou 9.

Peguei a prova, não acreditava! Uma amiguinha tentou vê-la por cima do meu ombro, não deixei. Não mostrei a prova para ninguém: aquele monte de borrões e erros mereceria quando muito nota 3. Pelos meus dons, fiz o professor enxergar naquilo o resultado de uma prova excepcional, todas as questões praticamente corretas como as de seu livro.

Daquele dia em diante, nunca mais tive problemas com notas de escola.

Como também não tive problemas em muitas coisas, em minha vida… até agora. Trinta anos depois da minha primeira menstruação e da descoberta dos dons.

Preciso contar um pouco sobre como foi a minha vida, nesse tempo todo. Até para declarar o ato que pretendo cometer, hoje à noite. Não estou a me justificar. Não quero piedade ou compreensão. Quando muito, se alguém descobrir esse texto, espero que sinta respeito por mim. Por tudo que fiz e pelo que pretendo ainda fazer.

Confesso que minha vida foi boa. Tranqüila com o uso moderado dos dons. Mamãe nada sabia a respeito deles e um dia, em que tentei falar sobre isso, fui recebida com frieza. Quase temor. Não, percebi muito cedo que a vida de uma bruxa é solitária em seus segredos. Eu me bastava e só. Mas de certa forma, era bom ser sozinha. Aos 18 anos saí de casa, sem profissão ou dinheiro, coisas que não constituíram problemas para minha independência: na cidade grande, o homem da imobiliária me ajeitou um contrato de aluguer para um excelente apartamento, praticamente de graça. E um gentil cavalheiro que encontrei numa loja abriu seu caixa e me passou a féria do dia, sempre a sorrir e a me achar a mulher mais linda que já havia conhecido em toda sua vida…

Fazer essas coisas era muito fácil. Bastava querer. Descobri depois que o feitiço era permanente e benfazejo: dias depois, se procurasse pelo mesmo homem, ele não só continuava acreditando que agira muito certo em me dar dinheiro, ajuda ou presente como se sentia feliz por tê-lo feito. Era um prazer, o que eu lhes dava.

Não precisava trabalhar, mas consegui um agradável serviço de corretora de seguros. Era uma maneira de ter documentos legais, comissão farta que me pagava um bom apartamento, carro, viagens. Isto, antes de casar. O que aconteceu há oito anos.

Os dons também funcionavam nas artes do amor. Fisicamente, sou uma mulher feia. Muito baixinha, os ombros curvos, olhos arregalados demais. Mas nunca me viram assim. Pelo menos, aqueles homens a quem desejava impressionar. Eles me viam maravilhosa, deusa do cinema. E se apaixonavam por mim, claro! Era fácil atrair e seduzir. Mais difícil era me livrar daqueles por quem já não sentia atração. Fazer o feitiço às avessas podia ser mais trabalhoso, mas conseguia também ser eficaz no seu uso. Acabava sugerindo que meu ex-apaixonado se interessasse por outra, e com um pouco de insistência ele acabava por sair da minha vida.

Foi assim com muitos homens e com meu marido também. Alfredo era um homem bonito, seis anos mais velho que eu, empresário, solteiro, dono de indústria. Muita gente em sua família estranhou nosso casamento, principalmente as mulheres. Com elas, o dom é bem mais difícil de funcionar. Eu, feiosa e sem nome, conquistando um partidão como ele… fomos felizes. Alfredo sempre fez tudo o que sua esposa queria.

Não desejei ter filhos. Nossa vida era um suceder de festas, viagens, muito tempo ocioso para passear e curtir a nossa linda casa.

E esse conto de fadas, em parte tão maravilhosamente conquistado por mim, durou até o ano passado.

De novo, coincidências. De novo, o sangue…

Senti maior dificuldade em impressionar o gerente de um banco, quando Alfredo precisou fazer um empréstimo e pediu que eu o representasse. O homem não era um Inquisidor (sempre que lidei com esses raros homens, sentia o imediato bloqueio de sua mente; a sensação era quase de dor, se eu tentasse influenciá-lo). Era um gerente comum, mas levei mais de hora para que finalmente ele assinasse o empréstimo. Saí da agência com a cabeça dolorida, o corpo mole, um cansaço extraordinário. O que estava a acontecer?

Marquei uma consulta médica, fiz os exames que o meu clínico habitual solicitou. Surpresa: menopausa. Precoce, aos 44 anos. Mas definitivamente constatada. Poderia estender com hormônios e remédios a minha vida fértil em uns poucos anos, talvez. Depois, menopausa…

Sabia o que isso significava para os meus poderes. Vovó havia previsto; o caderno me explicava o declínio. Era inexorável. Era o destino. Uma bruxa não poderia lutar contra isso. Eu que me consolasse com o que já havia amealhado, de bens e amizades, e aceitasse a aposentadoria.

Como entrei em pânico! Como fiquei desesperada com a ideia! Marquei outra consulta, dessa vez com o maior especialista na área da ginecologia. Dr. Rogério. E foi assim que eu o encontrei. Por acaso. Por causa do sangue.

Rogério era um homem bonito. Como muitos que já havia encontrado e seduzido em minha vida. Alto e forte, cabelos levemente grisalhos nas têmporas, olhos azuis. Só que havia mais: era um Inquisidor. Dos mais fortes que já havia encontrado…

Ele me recebeu com seu melhor sorriso – e eu nada havia feito para conseguir isso! Era seu jeito profissional. Olhou meus exames, disse que entendia minha resistência em encarar a menopausa, mas afinal de contas, “era o que acabaria acontecendo. Era o destino”.

Como essas palavras pareceram cruéis, vindas do Inimigo. Seu bloqueio era tão forte que mesmo sem tentar nada já sentia a cabeça latejar. Eu o via, tão belo e tão imune a meus dons, que comecei quase a odiá-lo, naquela primeira consulta em seu consultório. Num certo momento, ele parou de falar e ficou me olhando. Sorria. Divertia-se comigo, essa a verdade. Não resisti: mentalizei com força, para que ele pegasse a caneta. “Quebre a caneta”, ordenei.

Rogério acabou sim, por pegar a canta. Rodou-a nos dedos. E depois, vagarosamente, mordiscou a ponta em seu seus dentes brancos, enquanto lia meus exames de novo. E me encarou:

_ A senhora está bem? Está um pouco pálida…

Eu me consumia em impulsos e forçava meus dons no seu limite, enquanto ele apenas me dizia isso! E sorria…

Como posso dizer que me apaixonei por ele? Como posso explicar a mim mesma, depois de uma vida de riqueza e sem sobressaltos, que aos 44 anos pela primeira vez na vida ia me apaixonar, e justo por um Inquisidor?

Maior do que os dons e os feitiços, acredito nisso, está o amor. Nada podia fazer: eu, Rute, uma bruxa como tantas outras, estava apaixonada.

Claro que marquei novas consultas; investiguei facilmente o porteiro da clínica para saber seus horários e onde ele morava. Consegui em pouco tempo seu roteiro e rotina: saía do prédio às 7h15, levava a filha para a escola, clinicava das 8 ao meio-dia em um hospital renomado, almoçava costumeiramente com uns amigos médicos ali mesmo, depois à tarde atendia em seu consultório… nos fins-de-semana, ia para a praia com a esposa ou ao clube, jogar tênis.

Não foi difícil convencer Alfredo para nos associarmos ao mesmo clube ou comprarmos um apartamento na mesma praia. Isso não era problema para mim – ainda. Como também não foi difícil fazer amizade com a esposa dele, Clarice. Além de bruxa, sou uma pessoa simpática, temos o mesmo nível social, a sua esposa bonita e alta era muito gentil comigo. O problema não era esse. Era a profunda indiferença de Rogério que me machucava. O seu modo desligado de falar comigo. A sua simpatia hipócrita, o jeito com que ele me tratava – como se eu fosse qualquer uma, fosse uma mulherzinha feiosa e quarentona, que estava em crise porque a fertilidade estava a acabar.

Era isso que eu acabaria sendo, logo mais. Apenas uma mulher comum. E nunca poderia atrair um homem bonito e sedutor como Rogério, nunca.

Fiz novos exames, tomei mais hormônios. Tentava garantir a fertilidade e os dons. Se não podia seduzi-lo com magia, não seria possível apelar para os recursos das outras mulheres? Fui aos melhores esteticistas, entrei em academia de ginástica, fiz aplicações de colágeno no rosto, comprei os melhores cremes… para quê?

Poderia perder aqui e ali umas gordurinhas ou alisar alguma ruga, mas não poderia crescer. Nem modificar tão amplamente meu rosto comum, os olhos arregalados e feios. Só conquistaria Rogério se usasse meus dons, foi a conclusão a que cheguei, cinco meses de dedicação na academia e várias sessões de massagem depois.

Usar os dons. Teria de usá-los num Inquisidor e sabia bem dos riscos a correr.

Não foi de propósito, isso posso afirmar. Eu não matei Alfredo de propósito. Quero deixar isso bem claro, nesse texto, se alguém chegar a ler essas folhas. Como falei antes: nada de piedade; sequer compreensão. Nunca havia feito maldades antes com meus dons e também jamais faria isso, justo com o homem que me deu tanto, por oito anos. Mas me descuidei dele. Não podia fingir que eu o amava, nesses meses em que passei todo o tempo mentalizando e desejando Rogério. E meu marido percebia isso. Tentava se aproximar de mim, queria fazer sexo comigo, mas o que sentia por ele? Nada! Sua insistência me aborrecia. Sua gentileza me dava nojo. Foi isso que pensei, coisas tolas, coisas de mulher entediada. Não o obriguei a levantar da cama, tão madrugada. (Até porque nessa hora eu dormia). Não o fiz caminhar pela praia, solitário, vendo o nascer do sol. Nem o convenci a entrar no mar agitado daquela hora, nadar para o horizonte. E deixar-se afogar.

Só soubemos do afogamento oito horas depois. Quando eu e a família de Rogério já havíamos telefonado para todos os  amigos de Alfredo e procurado em todos os lugares da praia. O corpo foi encontrado na praia seguinte, nada de que pudéssemos fazer senão providenciar o enterro.

Se eu sofri, com a morte de Alfredo? Um pouco. Tenho de ser sincera: só um pouco.

Na verdade, ficar sozinha era melhor. Poderia realmente me concentrar na desejada sedução de Rogério.

Antes de usar o feitiço maior, reli o apodrecido caderno de vovó. Sempre o guardei comigo: está no mesmo cofre onde pretendo guardar essas página, quando acabar de escrever. O texto em português antigo é claro: “revelação dos últimos instantes”. Nunca forçar os dons com um Inquisidor. Nunca.

Foi na semana passada. No dia em que menstruei (mesmo que a base de remédios, agora), marquei a consulta extra com Rogério. Apareci na hora marcada, melhor vestido, maquiagem completa, sapatos altíssimos.

_ Tu estás gira, Rute.

Pensei por um instante se os feitiços anteriores estavam  a funcionar… nada. Era gentileza profissional. Só isso.

_ Como estás? Depois que o Alfredo se foi, consegues lidar com a fábrica?

_ Vendi tudo. Não quero perder tempo com negócios.

_ Que pena… era bom teres uma ocupação. Passar o tempo, quero dizer. Depois do luto, muitas mulheres ficam abaladas, entendes?

Claro que entendia, Rogério, claro que sim! Mas tinha o que fazer. Sabia o que pretendia fazer. Teu sorriso bonito, tuas mãos de dedos fortes, ah, como olhava para aquelas mãos e desejava que elas tocassem meu corpo. Que aqueles dedos grossos deslizassem por minha pele, trazendo-me tanto prazer, eu o queria. Demais.

_ Por que vieste, Rute? Não é só uma consulta, é?

Claro que não. Para o feitiço funcionar em um Inquisidor, precisava da cooperação de Rogério.

_ Rogério, tens de me fazer um favor.

_ Claro, Rute.

_ Podes achar estranho, mas vais logo entender. Vais, sim.

Ele sorria. Atrás da mesa do consultório, ao lado da foto da sua linda esposa, meu querido sorria. Confiante talvez em sua capacidade de bloquear a mente, como os Inquisidores sabem fazer.

Falei com muita calma, com muita sedução.

_ Tu vais fechar os olhos. Vais fechar os olhos e pensar… pensar numa mulher muito bonita.

Ele fez um gesto engraçado, erguendo as sobrancelhas. Olhou rapidamente para a foto de Clarice. Eu virei a foto para baixo.

_ Não a tua esposa. Clarice é gira, sim, mas é comum. Eu quero que tu penses numa mulher muito, muito especial. Quem sabe, alguma atriz de cinema… uma modelo de revista, uma mulher ideal. Alguém que tu acredites assim que… por quem pudesses te apaixonar perdidamente. Alguém assim. Consegues?

Outra vez o gesto de erguer sobrancelha. Dessa vez não sorria.

_ Para que isso, Rute?

_ Tu disseste que me farias um favor.

Afinal, Rogério concordou. Fechou os olhos.

_ Estás a pensar nela, Rogério? Com muita intensidade?

_ Sim.

_ Apenas penses nesta mulher, Rogério. Apenas penses nela, está bem?

Ele concordou com o rosto.

Não se pode explicar, para quem não é bruxa, como fazemos isso, como mentalizamos, como desejamos que as pessoas se influenciem. Não se pode fazer isso com um Inquisidor, mas eu o fiz. Eu entrei nos seus pensamentos com a mulher especial, eu o fiz vê-la em mim, desejá-la em mim, como nunca havia feito antes. Foram apenas segundos, mas me pareceram horas, dias de tortura, invadindo sua mente e seduzindo-o. Quebrando barreiras e fazendo-o apaixonar-se por mim. Foi um esforço imenso, exaurindo minhas forças, sugando meus poderes e tornando-o um menino, meu menino apaixonado, entregue a sua paixão por mim…

E quando finalmente senti que Rogério seria meu… quando pude perceber, na névoa do meu cansaço e com o resto dos dons que ainda tinha, a imagem que se formava na minha mente… quando entendi o que significava a expressão “revelação dos últimos instantes”, eu gritei.

Rogério abriu os olhos. Seu olhar agora era diferente. Apaixonado.

_ Rute. – lágrimas em seus olhos. – Minha querida Rute…

Rogério se ergueu da cadeira, abrindo os braços para mim. O que deveria fazer? Correr para aqueles braços adorados, receber seu beijo e entregar-me a ele, meu homem, fiz tudo por ti, o derradeiro gesto que uma bruxa pode fazer, não é mesmo? Meu homem…

Medo. Vê-lo assim de braços abertos, convidativos, me assustou. Afastei-me dele.

_ O que foi, Rute? Eu te amo, Rute! Volta aqui,…

Fugi do consultório, segui pela escada sem esperar o elevador, ainda parei um instante entre dois andares para tirar os sapatos altos e corri pelas ruas, entrei num táxi chorando e me tranquei no quarto, onde estou até agora, por tantos dias, a pensar, a pensar e sofrer…

A “revelação dos últimos instantes”. A maldição das bruxas que se atrevem a ultrapassar a barreira de seus dons. Eu a vi.

Era a morte. A revelação da minha morte, o instante em que deveria morrer, foi isso que vi, quando os dons agonizavam e eu conquistava o amor de Rogério usando do mais forte artifício cometido por uma bruxa.

Agora já chorei tudo que tinha de chorar. Já revi, insone, por mais de mil vezes a hora de minha morte. Será breve e eu não a temo.

Todos esses dias, não atendi telefone: sabia que era Rogério. Não atendi a porta, deixei recado na portaria do edifício para não receber ninguém. Mas hoje, não… falei com Rogério. Marcamos o encontro à noite. No hotel. Sei como será a cama do hotel. Sei como o quarto estará decorado, a marca do champanhe que meu amado irá pedir pelo interfone. Sei como ele se desnudará e como eu ficarei excitada ao ver seu corpo nu. Sei quais as delícias de sentir o seu beijo e como suas mãos irão avidamente escorregar pelo meu corpo todo. Sei como será o nosso ato de amor. Sei como ele irá dizer “eu te amo”, a me achar tão maravilhosa e desejável. E sei também como meu coração irá parar, nesse momento.

Vindo depois do momento mais lindo da vida, não temo o final. Só tenho de lacrar essa carta. Colocá-la no cofre. Terminar de me arrumar e seguir para o hotel.

Onde o amor me espera. E a morte.

                                                               – Marcia Kupstas


© Revista Triplov  .  Série Gótica .  Inverno 2017