Poeta à civil

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


De um livro em elaboração


POESIA PERFUMADA CHEIRA MAL

 

Nas poças congeladas da neve

as nuvens urdem facas no solo.

Os ciprestes colhem do céu

letras

quebradas.

 

Gosto dos poemas que caem nas mãos como balas

ou como granadas.


A PROPÓSITO DAS ÁRVORES

 

As árvores de outono pensam demasiado

—as suas folhas começam a cair—

Enfrentam o ar de coração tombado.

 

Sejamos claros: a arte é uma operação revolucionária.


POEMA DA CABEÇA DE MULHER EM SACO DE PLÁSTICO

 

Cabeça de mulher encontrada dentro de saco de plástico

Saco de plástico encontrado no bolso de um homem

Esse homem outrora escreveu uma redação

com uma frase

 

A frase foi encontrada na barriga da mãe.


SOBRE OS QUE TÊM MEDO DOS ESPELHOS COMPLETOS

Uma mulher vestiu-se de mulher e ficou invisível

Uma outra caiu dum corpo e despedaçou-se na Terra

Uma criança descobriu a morte

num pássaro-de-ferro

ferido.


UM CÃO E UM MANEQUIM NA CASA-DAS-MOEDAS

 

Todo o dia em casa,

excepto pela manhã
que fui tomar café e comprar umas calças.

Falei com a dona da loja
— monólogo para coisas silenciosas—

 

(Está a prazo na Tabela Periódica.)

Não sabe quanto tempo dura.

 

Na vitrina: um cão e um manequim

com um lenço atado à cabeça.


UMA GRANDE CAMINHADA

 

Salomé apenas tem o vento

um pássaro sem olhos

um pelicano no ventre

 

Em casa       a irmã

com duas serpentes

chora através de dois ovos

 

O pai

num lenço de misericórdia

 

jaz

 

na rosa de um cemitério


UM JARDIM COM DUAS PERNAS

 

A noite fecha-se

De si mesma cai.

 

Procura o jardim onde sempre foi.

Onde me perdi, não sei.


ARTISTA SEM ESCOLA

 

Com cinco anos aprendeu que estava só

ficava com os séculos e um quarto

onde podia arrumar os pés

Pensava:  o universo é mais perfeito com os mortos


STAY-COVID. OU O BANQUETE ESTÁ PRESTES A TERMINAR

 

Na casa onde vivo

brinco aos anjos queimados

 

As crianças afogam-se em desenhos

nos martírios da escola

 

A morte

estava mais abaixo


AMNÉSIA DO SÉCULO

Debaixo do teu nome

estou eu

não estou eu

 

O que um velho tem de gramar


LÊ CADA PALAVRA QUE ESCREVO

Há muitos segredos

Não os digo

 

Sigo-me


PORTA SEM FECHADURA

 

Peço-te:

não saias de casa.

 

Se os bárbaros baterem à tua porta

arranca-a

e coloca em seu lugar um deles.

 

Da próxima vez talvez se confundam.


 O PONTO FINAL É CONTIGO

Enquanto durar tudo isto

ergue uma obra de arte.

 

Não te mates como é costume.


ZOOM PARA UM MORTO DESCONHECIDO

 

Não o conheço.
Não me conhece. Encontrámo-nos.
Não importa onde.

– Quantos ficámos?
É difícil dizer.

 

Falou-me de um rocket que o fazia gritar em silêncio
quando à noite se deitava com os seus mortos. E vimos

um negro pássaro rasgar de uma ponta a outra o céu

diante de uma parede.

 

E era como cuspir sol para dentro dos ossos.

 

Subitamente o espaço fechou-se.


 ARCO DE TRIUNFO

 

Leu Kafka              de um modo
nunca antes feito

 

num canto

do

quarto

a enterrar os seus mortos


SARS-COV-2

 

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end


UNICAMENTE POR CAUSA DAS MÁSCARAS

 

As máscaras vivem com as suas máscaras
esperando que o silêncio as venha configurar.

Debaixo dos seus nomes
um campo de mortos:

alguns dentro de telas      outros

em loucos combates

 

O morto-mais-alto      manda

calar.


 POETA À CIVIL

 

O nosso Pai dorme.

Vai para muitos séculos de prisão.

Traz na mão uma carta que nunca me foi entregue. E

foi assim que resolvi exercer o meu ofício de poeta à civil.

Quando era criança julgava-me imortal.

 

Na minha cabeça

ainda estão alojados alguns fragmentos dessa memória.


BLUETOOTH

 

O poema liberta pérolas no coração da terra.

Começa com uma aranha à sua mesa de trabalho.

 

Trémula tece uma teia fonética.

 

O poema é o Bluetooth do século.


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