O Surrealismo no redondel

 

NICOLAU SAIÃO
Tributo


Entrevista a Nicolau Saião, com perguntas de Joaquim Simões, Manuel Caldeira & Jorge Perestrelo

 

Já é proverbial que em pleno tempo transtagano, num certo dia, 3 confrades se reúnam com um outro, numa povoação alto-alentejana, na ambiência de uma casa bem defendida do calor ou do frio com uma mesa entre eles para possibilitar que algumas iguarias a caracter sejam degustadas de muito salutar maneira…com muito salutar proveito.

Depois, para rebater fazendo apropriadamente a digestão, enquanto bebericam um “Queen Margot” bem dotado conversam, deambulando entre os temas que lhes suscitam o interesse, a curiosidade e o prazer de falar.

… E depois, um pouco mais formalmente, coloca-se em jeito de entrevista-questionário o corpo geral do que, em artes & literaturas – com memórias pelo meio, se tal acontece – se foi falando ao correr dos minutos.

Assim foi no tempo em que vicejámos no ano transacto. E o resultado da refrega agora aqui vos fica neste texto que se dá a lume após normalização.


Joaquim Simões (JS)Em “Deus lhe Pague”, o seu texto teatral mais conhecido, Joracy Camargo pôs na boca da personagem principal, o mendigo-filósofo, a frase seguinte: “Comunismo é uma palavra que tende a passar ao dicionário com escala pela polícia”. Eu, por minha vez, pergunto-lhe: o surrealismo é uma palavra que tende a passar ao dicionário com escala pelas múltiplas prisões do realismo até à vitória final?

Resposta de nicolau saião (NS) – O chamado realismo é, como os próceres da ideologia – que vai do socialismo orgânico ao “anarquismo de aviário” – afirmam sem rebuço, apenas uma arma. Mas o que não dizem, claro, mas se percebe na perfeição, é que é de facto uma arma de extermínio moral, tão-só um objecto de propaganda e das mais rasteiras e cínicas.

Daí que hoje, como anteriormente (quando havia duas censuras, a do salazarismo e a do comunismo, ou seja estalinismo ou, ainda mais adequadamente, fascismo-vermelho como a História provou) promovam poetinhas a grandes poetas, prosadores canhestros a romancistas de vulto ou pinturadores a artistas de qualidade – desde que sigam os ditames que eles usam para submeter as pessoas a totalitarismos da sua preferência ou interesse. Através de intelectuais apaniguados encheram as redacções de propagandistas que só visam ajudá-los a chegar ao poder total. E inçaram os espaços interactivos com indivíduos que, com um discurso nauseabundo, enxovalham todos os que se neguem à vénia aos dos governos que na verdade controlam. Em suma, visam uma verdadeira ditadura de opinião, como existia nos países totalitários.

Nesta perspectiva, é natural que os surrealistas sejam os primeiros a comer por tabela. Sempre marginalizados e obstaculizados (tanto por reaccionários como por estalinistas, tanto por ignorantes pedantes como por “acratas de aviário”, na verdade autoritários à outrance). E nalgumas publicações que acaso tenham alguma abertura ao surrealismo, buscam colonizá-las mediante a confusão, as ideias feitas e as burlas artísticas, servindo-se da boa-fé ou da ingenuidade ética dos que ali residem ou editam.

Infere-se pois que nunca no surrealismo haverá qualquer vitória, será sempre uma prática livre e mágica mas de minorias, enquanto essa tal ideologia tiver na mão o poder que de facto tem – estabelecimentos de ensino onde, com algumas bolsas residuais de seriedade, se promove a mentira e a exclusão da arte livre, órgãos de informação que não passam de altifalantes de colectivos que utilizam a manigância intelectual, de entidades oficiais visando o domínio, até ilegal, que lhes permite continuar a desfrutar do pote onde utilizam e mesmo surripiam o erário do povo. A burla serve-se dos meios intelectuais-literários-artísticos como simples antecâmera do domínio social, simplesmente. E já nem sequer disfarçam o que procuram fazer, tão seguros se sentem no gozo da impunidade que os envolve.

 

JS“Vamos ver o povo / que lindo que é / Vamos ver o povo / dá cá o pé // Vamos ver o povo / hop-lá / Vamos ver o povo / Já está”. Este é um poema de Mário Cesariny. Tratar-se-á de um poema alquímico da harmonização entre o surreal e o subreal?

NS – Creio que é – como eu a vejo aqui – do foro, apenas, da lucidez real, ou seja, duma realidade que alguns tentam mascarar, pois esses que tanto falam do povo são aqueles que, em todo o lado onde se apoderaram do poder, enganaram, hostilizaram e massacraram esse povo de que se haviam servido como pretexto. Hoje já se sabe tudo – tudo o que fizeram na URSS, no Cambodja e na China, e continuam a fazer na Coreia do Norte e nas américas, pedindo meças aos fascistas e ditadores do outro lado, que chegaram a ultrapassar em brutalidade e cinismo.

JS – Privou bastante com o Mário, com o Cesariny e até com o de Vasconcelos. O que pode dizer acerca de cada um deles?

NS – O Mário era um homem civil que vivia as dificuldades, as alegrias e tristezas de todos os que evoluem numa sociedade que forja as circunstâncias da chamada vida-vidinha, o quotidiano que nos rodeia a todos e que se rege por conceitos que não perdoam as diferenças, nomeadamente a diferença que era a sua. É manifesto e sabido o que o fizeram sofrer, tanto mais que a sua juventude a viveu num regime que promovia o preconceito, o arbítrio e a violência.

O Cesariny era o ser superior que a sua qualidade de grande poeta lhe facultava, tendo portanto também sofrido os embates provocados por gente invejosa, de caracter tóxico e velhaco enquadrado por ideologias brutalizadoras e hipócritas, de cores aparentemente adversas mas coincidentes na sua essência.

O de Vasconcelos era o que, tendo situado perspicazmente o ambiente relacional lusitano e estrangeiro, o tratava de maneira adequada, com a distância, a análise arguta ou o desprezo que mereciam. Arrastava também com ele o desgosto por ter sentido na pele a maldade de gentes que, por despeito ou falta de carácter, o tinham primeiramente festejado para melhor o dominarem ou arrastarem para os seus baluartes e, de seguida, frustrados os seus tentames, o atacarem e caluniarem com a desfaçatez que lhe permitia um milieu envolvente onde vicejavam e ainda vicejam os sevandijas prepotentes e os medíocres lacaios, ancorados em redacções e em chefias ao serviço da ideologia e da agit-prop mais rasteira e ou cínica.

JS – A propósito do Mário: e Luiz Pacheco? Há neste momento um grande interesse em torno dos escritos, do papel e da própria figura dele…

NS Frequentemente, isso faz parte da manobra de se tentar tornar legendária a figura de um autor que, para além do inegável talento próprio todavia cortado por leviandades, é para eles o signo de que tudo está bem quando se participa na musculação de um sector totalitário – mas oposto ao autoritarismo que houve, de sinal contrário – cuja existência, para essas pessoas e entidades, cauciona tudo o que se faça aparentemente do outro lado, seja para exibir uma exemplaridade na verdade ilusória, seja para exercer uma acção destrutiva da imaginação e da prática surreal, antepondo-lhes atitudes filhas dum relativismo ético que cobrem com o véu dum pseudo-abjeccionismo, cujas características tentam definir de forma arbitrária, para melhor efectivarem a defenestração dos que não lhes quadram ou os incomodam.

JS – Passou uma parte da sua vida em Lisboa, outra em Portalegre. O que as distingue quanto à percepção do surreal – ou do real, como queira entendê-lo?

NS – A minha estada em Lisboa sucedeu principalmente durante uma parte do tempo da tropa, onde vivia surrealmente por dentro duma forma que a vitalidade da juventude, caldeada pela imaginação, permitia ou propiciava. Era pois uma Lisboa surreal nos passeios que dava e nos contactos que fazia ao acaso dos dias, sempre com o ordálio da vida militar às costas, a que me furtava, ou fintava, como podia. Depois, já vivendo em Portalegre e passado a civil, pelas visitas e incursões que fui fazendo nela, mergulhado num encantamento de ordem interior que já ordenava com outra e maior liberdade. Tanto mais que contactava com autores e companheiros que me ajudavam a comprazer-me na aventura de viver e de mergulhar no sonho de olhos abertos…

Ou seja, possuo uma Lisboa muito minha, que não sei se será a Lisboa realista quotidiana dos cidadãos em geral…

Em Portalegre a visão e o sentir surreal proporcionavam-se de outra forma, se levarmos em conta que, socialmente, esta cidade é um colectivo profundamente reaccionário e limitado. Digamos que há uma cidade que me é própria e que nada tem a ver com o meio societário em que se tem de existir. Sempre fui nela, digamos, um corpo estranho e que procurei que não condissesse com o que nos querem frequentemente obrigar a ser, com ritmos que nada nos dizem e no qual não nos achamos frequentadores.

 

JS – Noutros campos que não os da literatura, quem gosta de relembrar entre os que se afirmaram ou afirmam surrealistas?

NS – Pintores como Cesariny, João Rodrigues, António Quadros, Cruzeiro Seixas…Do estrangeiro, Max Ernst, William Baziotes, Enrico Donati, Wilhelm Freddie, Masson…

 

 JS – Foi o funcionário responsável da Casa de José Régio, em Portalegre. Que relação manteve e mantém indirectamente com ele?

NS – Sempre o tenho lido, principalmente os seus ensaios e textos ficcionais em prosa, com gosto por ser um autor sério e com independência de espírito. Na poesia, a forma com que se defrontava com o mistério e o enigma que a arte poética contém, independentemente de não estarmos na mesma via ou caminhada envolvente.

Manuel Caldeira (MC) – “Vou por aqui por este lado/ a vistoriar o historiado”, versejou infeliz o Mário. O surrealismo em Portugal está bem vistoriado (analisado)?

NS – De forma alguma! Universitariamente, as análises são escassas e pouco subtis, em geral anquilosadas pelo academismo e a pedantice que por cá é uma constante devido à pequenez que grassa nessas entidades. Dum modo geral, à falta de liquidez mental forjada por décadas de salazarismo onde o provincianismo era rei e senhor. Em suma, é frequentemente encarado dum ponto de vista simplesmente historicista, o que serve excelentemente os konzerns reaccionários (estalinistas e derivados) ou de cunho fideísta e pacóvio.

 

MC – Mas o que justifica esse panorama?

NS – A necessidade que essas gentes têm de estabelecer o seu domínio retrógrado e que visa crestar a liberdade e a imaginação em todas as direcções que o surrealismo é e que, portanto, está nos antípodas da existência desses príncipes e senadores de ruins manobrismos.

Jorge Perestrelo (JP) – Surrealismo e anarquismo: há proximidades ou coincidências?

NS – Talvez proximidades, talvez coincidências…Mas o anarquismo moderno, entre nós, vive pelo que tenho visto muito enfeudado à prática duma propaganda ideológica jungida a esquemas e discursos que o afastam da aventura surrealista, que leva em conta os avanços da Ciência, da tecnologia de ponta e do pensamento descomprometido que o fazem existir sem partis pris de obrigatoriedade militantona, que aqueles frequentemente praticam exalçando muitas vezes mediocridades só porque são da corda

MC – Posição pessoal tua e de diversas outras personagens. A que leva essa actividade?

NS – A actividade, a prática surrealista e do surrealismo em si leva a duas vertentes. Uma, termos de estar de fora, fortemente críticos da sociedade lusa, ora política ora social, o que arrasta a nossa marginalização que sabe muito bem, é muito saborosa para quem reside nas estalagens do mando. A outra, à feitura de percursos que são bem recebidos e bem reconhecidos em lugares mais salubres, no estrangeiro, uma vez que são a concretização de rotas com matéria e substância legítimas e potáveis.

JP – Perspectivas de futuro…Memórias do passado…

NS – Muito prosaicamente: ter saúde e isso permitir anos de vida com lucidez, para não desmerecermos do que foi um passado de vida que se procurou fosse íntegra e ligada aos grandes ritmos da existência sempre iluminada pelo maravilhamento que, se a soubermos merecer, a Vida pode ser ou é realmente.

Memórias são tantas…E tantas as nostalgias – por amigos que desapareceram, por momentos que se foram e por coisas que não puderam comparecer na nossa jornada…O balanço é positivo, pois até os maus momentos foram postos fora de borda pelas alegrias que conseguímos ou pudemos atingir!

MC – Quais os maiores inimigos da surrealidade? O surrealismo, nacional ou estrangeiro, leva em conta as descobertas de ponta feitas nos campos da linguagem tecnológica e da ciência?

NS – Os maiores inimigos são a brutalidade de ideologias hipócritas, o cinismo de operadores enfatuados e pedantes que usam colectivos de poder para se enquadrarem falseando a qualidade e projectando os seus produtos com que infantilizam as populações, o fideísmo de todos os quadrantes que buscam dar de novo de forma imperativa o domínio à superstição e ao fanatismo, o fascismo eterno, ou ur-fascismo, seja ele de cor cinzenta ou vermelha, o politicamente correcto dos novos inquisidores que tenta de novo extinguir a liberdade humana nas suas diversas vertentes.

JP – Livros, de Portugal e de fora, que achas importantes ou significativos ou que consideras de colocar em relevo?

NS – De maneira não sistemática e sem me ater a datas: todos os que procuram ir além da imaginação limitada e das fórmulas caducas ou sem brilho: obras de Bulgakov, de H.P.Lovecraft, de Ray Bradbury, de Hans Carossa, de Maria Judite de Carvalho, de J.B.Priestley, de Gide, de Floriano Martins, de Camus, de Julian Gracq, de Michel Leiris, de Thomas Mann, de Roald Dahl, de C.Ronald, de Karel Kapek, de Graça Pina de Moraes, de Czeslaw Milosz, de Roman Gary, de Bruno Schulz, de Wislawa Szymborska, de Jean Ray, de Buero Vallejo, de Radiguet, de Clifford Simak, de Claude Seignolle… E por aqui me fico!


Nicolau Saião \ Biobibliografia sucinta


revista triplov

série viridae nr 02

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