O conceito de Surrealismo em Ernesto Sampaio


BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa


SOFIA A. CARVALHO (CLEPUL)

Do Celeste Subversivo à Brutalidade Subterrânea: aproximações estético-metafísicas ao conceito de Surrealismo em Ernesto Sampaio


“Perdi a estrela que me corria nos ossos”[1].

É pelo abeiramento ao paratexto que a convocação da ars poetica em Ernesto Sampaio se nos afigura, simultaneamente, como chamamento iniciático e programático. De imediato, divisamos duas margens[2] verticalizantes, a seu tempo, terrífica e mirífica, que indiciam uma mesma tensão poética: a denúncia subversiva de um elemento sideral, a lembrar essa falta primordial; e a mais pura substância mineral – esse resíduo “ossóptico” que nos ajusta a humana figura – a que subjaz a nossa condição de vanitas[3].

É assim que o princípio aforístico se volve trágica profecia e a ossatura do universo poético de Sampaio, membro do Grupo do Café Gelo[4], ao pressentir esse himeneu trágico entre os céus e a terra, se torna, primeiro, partícipe desse mistério e, segundo, assoma a tensão do Verbo e o seu, consentâneo e feroz, desabamento. Mas onde o Poeta e o seu agónico grito? Quais as sendas dessa concepção ravina de Poesia? Como a expressão da sua acessibilidade? Volve passagem ou é já miragem-precipício? Haverá ingresso ou desfecho destinados? Que ponderações acerca dos seus custos reais, se quisermos, quotidianos? Quais os indeléveis ferretes desse jogar-se na Vida pela Poesia?

Diríamos, sem mais: a ímpar resposta, encontrámo-la, ainda abalados, na inscrição lapidar inicial. É neste sentido que no nosso itinerário, contemplada que está a resposta (note-se, porém, a resposta de Ernesto Sampaio), procurar-se-á a organicidade do espaço de receptividade pura de uma experiência íntima, vital e, paradoxalmente, universal, dádiva de um testemunho singular na história do surrealismo português, não pretendendo apontar formulações estanques, nem tampouco encapsular imponderáveis.

É neste sentido que do celeste subversivo, ímpar condição de libertação por inteiro[5], procuraremos inquirir a natureza operativa do desejo, o como dessa revolatio espiritual, experimentada no limiar da lúcida loucura, plástica de antinomias, cujo refluxo acontece numa zona de abalo, a lembrar o Absoluto Acaso mallarmeano: o encontro amoroso concreto[6]. Paralelamente, equacionaremos o movimento ctónico da brutalidade subterrânea, quer pela erosão alquímica e lúdica dos hábitos mentais (entre outros), quer pela busca de uma sophia perennis, condição de participação no desconhecido e na danação constritora da vida[7]. Para facilitar o decurso desta poética do desejo, exploraremos os seguintes tópicos, cumulativos e subsequentes, a saber:

  1. Do In-cumprimento revolucionante à aspiração da consciência concreta do Amor.

1.a Do pesadelo como choque possibilitante à conquista da irreprimível excepção.

1.b O indomável Salto para a zona geométrica do Mistério.

Avancemos, deste modo, para o primeiro nódulo desta constelação:

 

  1. Do In-cumprimento revolucionante à aspiração da consciência concreta do Amor.

“A posição surrealista porquê?

1º Porque assim me apeteceu.

2º Porque um dia descobri que no céu

só havia nuvens e na terra transformações (…)”[8]

 

A par da marcada convicção de que a poesia consagra espaços que se encontram além da mera fixidez da razão humana, não será nosso intento aqui divisar as peugadas histórico-sociais do aparecimento ou das influentes prévias do surrealismo[9], antes interessar-nos-á o que, historicamente, é apontado pelo nosso Autor como o seu momento kairológico ou, nas suas palavras, a crise do surrealismo[10].

É com agudeza que se ajusta este termo ao dealbar do movimento surrealista, sobretudo, se atentarmos em dois detalhes: primeiro, na relação imediata do vocábulo, quer com o seu étimo latino crĭsis, is, enquanto momento oportuno de decisão, comportando uma mudança súbita, quer na sua procedência grega krísis, eōs, avistando a possibilidade de distinção e decisão; segundo, essa crise, melhor, esse momento oportuno, é por nós sublinhado com o dístico de in-cumprimento revolucionante, porquanto a força do verbo no transitivo sublinha, não tanto a noção de não cumprimento, antes aquilo que resta por cumprir, posto que a premissa pineal deste movimento se encontra longe de estar esgotado[11]. Não fora o caso de fazermos acompanhar esse trânsito, esse transe (essa saída de si) pelo atributo qualificativo de revolucionante – também aqui, optando pela utilização de um verbo transitivo – naquele ímpar sentido etimológico recuperado por Almada: “revolare” dar de novo a volta, fazer de novo o voo.

Neste sentido, propomos dois ângulos especulativos que permitem divisar o acesso, sempre laboratorial e de possibilidades infinitas, à experiência poética surrealista em Ernesto Sampaio: o primeiro, consiste em compreender os campos de subversão emancipadores do espírito e da libertação social do homem, a que chamámos, período épico do surrealismo[12], amplificando a noção cotejada por Ernesto Sampaio; o segundo – onde nos deteremos por mais tempo – concebe o sistema vital do surrealismo no interior de cada um, esse desejo ardente de abolição das antinomias que dilaceram a consciência, enquanto móbil de acção que procura restaurar a unidade perdida[13], aquilo a que o nosso Autor denomina de período heróico[14] do surrealismo[15]. Aqueloutro aponta para uma revolução visível e externa, estoutro indica uma revolução indelével, porque interina.

É na palestra “Surrealismo” que encontramos as pistas para a compreensão deste primeiro período, cujo mapeamento sugere não só as possíveis causas da crise do surrealismo mas, sobretudo, a aponta como “principal sintoma da sua vitalidade”[16]. É neste sentido que firma: “os surrealistas não foram capazes de digerir a burocracia”; “os mentores do partido operário também não percebiam que necessidade tinham os surrealistas, sendo socialistas, de ser surrealistas (…)” e, por fim, “Por culpa de quem? Possivelmente dos surrealistas, incapazes de se submeterem convenientemente às disciplinas sociais”.[17]

Ora, a insubmissão aos valores instituídos veicula a legitimidade do segundo período, não secundário, de integração de um projecto amoroso que surge como apeiron do desejo – aspiração da consciência ou, melhor, da vivência concreta do amor: “(…) promessa indefectível de encontros definitivos (quero dizer: amorosos), ou naquele ‘túmulo exaustivo’ de que falava o poeta António Maria Lisboa”[18]. É assim que nos colocamos entre o primeiro termo da epígrafe de António Pedro (que aponta precisamente para o ímpeto desiderativo) e o segundo que indigita esse assomo telúrico-celeste de uma possível metanoia interior.

Impõe-se, antes, um movimento retroactivo: atentar na etimologia latina da palavra desejo (desiderare: “desejar o que falta ou está ausente”), formada por de- (prefixo intensificativo), siderare (sidus: “astro, estrela, celeste”) cotejando-a com a epígrafe inicial do nosso Autor: “perdi a estrela”. Numa tentativa decifradora das possíveis latências poéticas, sobressai nesta decomposição da palavra um intervalo que se repete, estrutura radical que assombra o lugar do Outro e que se poderá amplificar: “perder a estrela”, implicará o extravio do desejo e do seu objecto, o seu derribar ou, outrossim, a ausência desse ímpeto desiderativo? Poder-se-á atender a uma ruptura do “eu” pela ausência do “outro”? E, em que medida o “Outro” aponta para uma cisão interna do “eu” ou, condensando, para um contínuo sumir-se do “eu”?

Inquiramos, especulativamente, quer a natureza desse desejo, quer o seu acontecer, o seu dar-se em mim. A arqueologia do desejo, na esteira de Freud e Lacan[19], ao irromper das profundidades labirínticas da alma permite não só o acesso às mais penetrantes antinomias e pulsões[20] mas, especialmente, à radicalidade irrecusável de uma dimensão que suplanta os domínios da racionalidade estrita e, gradualmente, poderá transgredir os limites de uma historicidade. Será nesta senda que idearemos uma poética do desejo quer como privação ou ausência, quer como disposição para a Alteridade[21] que, em última instância, poderá abarcar a insaciabilidade d’Infinito. A este respeito clarifica o Autor:

É o desejo que liga o homem ao mundo. Sem o desejo, o mundo estaria morto para o homem e o homem morto para o mundo. Mas não é fácil a vida do desejo. Gerado nas profundezas labirínticas de um inconsciente arcaico, o desejo procura objectivar-se, encontrar o seu objecto, mas a consciência não deixa. A consciência recalca-o, desvia-o, corrige-o, censura-o. De meio de libertação e realização do homem, a consciência transforma-o em meio de destruição[22].

Não será estranho identificar o intertexto, nem tampouco, relacioná-lo com os conflitos inerentes aos binómios desejo-vontade; corpo-mente; razão-instinto; consciente-inconsciente (entre outros), profusamente trabalhados durante o período épico do surrealismo. Importa, então, ressalvar o carácter dinamitador desse impulso na sua estreita relação com os processos da consciência: se, por um lado, o desejo surge como organon operativo de libertação do homem[23], por outro, não deixa de conter perigos deformatórios, aquando dos processos delimitadores e reprovadores da consciência. Por conseguinte, acresce o Autor: “Ao desejo, chama o surrealismo necessidade interior, e ao objecto que clama pelo desejo necessidade exterior. À convergência das necessidades interior e exterior dá o nome de ‘acaso objectivo’”[24].

A íntima relação entre desejo e necessidade contradiz, numa primeira leitura, o carácter disjuntivo das duas noções: a primeira relacionada com a disponibilidade no domínio do ser; a segunda aposta ao plano do ter[25]. Todavia, numa segunda leitura, talvez por aqui se inicie a propedêutica do paradoxo e da abolição das antinomias através da linguagem ou de qualquer outro modo de expressão[26], a saber: este conúbio constitutivo, ao conduzir-nos ao “acaso objectivo”, supõe uma subversão do sujeito na dialéctica objectiva dos “encontros amorosos”, quer como fonte primeva de acção, quer como ânsia de prospectividade, efeito de um sentimento natural e congénito de incompletude e imperfeição, qual plenitude que nos escapa. Ouçamos o Autor: “O acaso objectivo é portanto um encontro, mas um encontro decisivo, que transforma as nossas vidas, e é por isso que os ambientes naturais do surrealismo são as grandes cidades, onde as possibilidades de encontros de acaso são maiores”[27].

Encontramos, desta forma, uma poética do desejo que, partindo da cisão entre sujeito desejante e objecto desejado[28], só se restaurará pelo encontro dialéctico amoroso com o outro, ofertando-lhe, assim, o acesso directo à sua existência, como aponta Lacan: “Car je puis à la rigueur prouver à l’Autre qu’il existe, non bien sûr avec les preuves de l’existence de Dieu dont les siècles le tuent, mais en l’aimant, solution apportée par le kérygme chrétien”[29]. Será pela descarga magnética dessa clássica díade, a seu tempo, aquosa e delapidante, – Eros e Thanatos – que, em Ernesto Sampaio, se concretizam as incidências do período épico do surrealismo[30]. Poética do desejo que, ao minar a estrutura lógica da consciência, cria uma espécie de mecanismo de abandono[31] – princípio que preside ao dealbar do período heróico do surrealismo onde topamos o espaço aural desse encontro cuja função simbólica do imaginário se poderá divisar em dois momentos: primeiro, na pulsão primordial da temporalidade dada pela e na sincronia constitutiva da Identidade de dois seres concretos; segundo, na inscrição da palavra poética como movimento diacrónico de busca da Unidade Perdida.

 

1.a. Do pesadelo como choque possibilitante à conquista da irreprimível excepção.

“O choque (…) é susceptível de produzir
uma descarga capaz de iluminar”[32]

É pelos umbrais da poética do desejo que encontramos matéria para activar a engrenagem do encontro amoroso, naquilo a que apelidámos de período heróico do surrealismo. Assim responde Ernesto Sampaio à pergunta:

O que é então o surrealismo? Para quem o estude, nunca aparece com os contornos de um sistema, de um conjunto de regras, de uma ética específica da poesia ou da estética. O que propõe é uma investigação a fazer no interior de cada um e na vida[33].

Tendo apurado que a visão do mundo se encontra em premente transformação e o seu potencial subterrâneo habita as forças indomesticáveis da consciência, trataremos, por conseguinte, do primeiro momento dessa simbólica do imaginário: o pesadelo como choque possibilitante e a certeza do real como cenário quotidiano com proporções de pesadelo[34]. O cenário deste combate precipitará o imaginário na devoração do real, estugando o sonho nos limites da vigília[35] e é, neste sentido, que firma Natália Correia: “O estranho, o maravilhoso, o terrífico e o fantástico são as escalas de uma sensibilidade aberta ao insólito, com a qual o surrealismo opera uma ruptura brusca com o previsível, abolindo os mecanismos de habituação”[36].

Esta féerie intérieure (expressão cunhada por Breton), ao emergir “entre a irreprimível vocação para a liberdade e o fatal destino de bestas de cargas”[37], tenta conquistar, pela revisitação do percurso dantesco, essa excepção: a luz[38]. Será inequívoco o instrumento dessa manobra: a linguagem e o somatório inventivo das suas manifestações. Estes forjadores de planos subterrâneos desobstruem as vias do espírito ao radicalizar o caos e o desastre e ao vazar abismos sob a égide epigramática “la poesie doit être faire pour tous. Non par un”[39]. Ora, o nosso autor, ainda que referindo o paráclito “ciclo pré-surrealista” (Sade, Blake, Rimbaud, Lautréamont e Jarry, entre tantos outros), evoca a definição de Breton[40] e, em mote programático, enuncia as práticas do empreendimento surrealista: o automatismo psíquico, através da escrita automática[41]; o assomo da psicanálise, combinando mais facilmente a prospecção dos estados segundos e do sono hipnótico, das coincidências, dos fenómenos do acaso objectivo (relações entre a necessidade e liberdade[42]), da interpenetração das séries causais, do humor negro e da paródia[43], da actividade lúdica (cadavre exquis; o modo analógico, intervenção do irracional, jogos mediúnicos)[44] e, mais tarde, do método paranóico-crítico e as simulações verbais dos vários tipos de mania e loucura.

O apelo programático do surrealismo – “aniquilar os limites da condição humana”[45] –, acontece com o consagramento dos contrários[46] e transmuta a condição genesíaca de queda em aquosas possibilidades. Não é isto senão a máquina do desejo e da vontade, em tempestade de espírito, a irradiar o contíguo dinâmico de correspondências simbólicas e míticas. Aqui, acontece a mágica passagem dessa subversão celeste à brutalidade subterrânea: os dois condutores de pensamento – mythos e logos – encontram-se em titânico confronto. A valorização, já pelo exposto, recairá no processo analógico-anagógico do pensamento poético numa ostensiva pugna dos reinos precários e repressivos da razão. Assim, à tirania celeste (que exclui qualquer movimento redentório) contrapõe-se o poder insondável das vocações dionisíacas e da consequente fragmentaridade dos processos demonstrativos e racionais. Não poderemos, contudo e como anotado por Natália Correia[47], entender esta nova direcção da consciência como forma de reintegração dos mitos fundadores, antes como sinal ardente de reconstituição das pulsões elementares e primitivas que ceivam a consciência mítica[48]. Por conseguinte, encontramos uma acção que, erigida dos escombros nocturnos e infernais, procura frechas de transformação do mundo e da vida e se dirige para as funções reais da Poesia – “função do desejo e raiz do conhecimento”[49]. Só a descoberta heróica de um sistema próprio de aquilatação do real poderá cristalizar o ponto de contacto vertiginoso onde o real e o imaginário se fundem: “essa descarga luminosa – a imagem poética (…)”[50].

 

1.b. O indomável Salto para a zona geométrica do Mistério.

“Atento a todos os sinais reveladores,
o poeta espera acordar”[51].

“Seja como for, é preciso atravessar abismos […]
o crepúsculo veio para ficar”[52].

Não nos será estranha a experiência de deserção e de exílio interiores a animar “essa mentalidade de cercados”[53]. Todavia, existem faúlhas que, dando o indomável salto de dentro das cavidades infernais, quebram a engrenagem histórica e nos revelam espaços sem tempo, encaminhando o corpo e a poesia, gládios da verdadeira ordem do espírito, para a zona geométrica do Mistério: ápice convergente do Espírito e da Matéria, da necessidade e da condição, do desejo agente e agido, do criador e da criatura, do sonho e do real, do existente e do possível[54]. Na poesia predomina a procura da graça ou da fulguração[55]; no poeta, habita a disponibilidade amorosa[56], enquanto capacidade de reconhecimento dos sinais que resiste às hostilidades mutiladoras do viver e do pensar.

Acesa essa possibilidade, não permanece interdita a nova Hora[57], desmesura que nos habita e irrompe como processo de sublimação (referido por Breton no segundo manifesto)[58] alterando o fenómeno da consciência, tornando-a disponível, plástica e aberta para, por um lado, desviar e transformar a realidade objectiva – a partir, justamente, da operatividade da poética do desejo – e, por outro, através dos mecanismos de delírio e loucura[59], injectá-la de realidade subjectiva, recompondo-a como existência contínua e trágica, expressão livre dos entraves do imaginário: a regressão reveladora do pensar mitogénico. Este princípio de aspiração concreto traduz, no nosso entender, a vontade de transformação do real que nos faz, qual Perséfone, revisitar, não poucas vezes a superfície, como averba o nosso Autor:

[…] o verdadeiro, o grande, o absoluto valor que norteia os surrealistas é o amor humano […] Esse amor, o amor do homem pela mulher e da mulher pelo homem, continua a ser aos olhos dos surrealistas, o factor mais importante na vontade de transformação do mundo[60].

Concluindo: ao seccionarmos dois períodos distintos do surrealismo, ainda que complementares e imbrincados, tentámos sublinhar as singularidades de uma voz que, ainda que pertencendo a um grupo, não submete o espírito a imposições, antes cultiva um grito agónico cuja dialéctica tensional interna não deixa de ser vista à luz dos círculos mais visíveis desta corrente, não sendo, porém, redutível a uma domiciliação. O desejo infinito de remoção de todas as resistências[61], de sabotagem das estruturas logicistas, de dessacralização e insubordinação totais permite a participação directa no desconhecido. Repare-se: trata-se de uma teleologia operativa do desejo que privilegia tanto o seu objecto, quanto o seu ininterrupto fluxo. Por outras palavras: a poética do desejo conduz à fundição do hiato entre o Espírito e a Matéria e “Doravante, a poesia será vidência, prospecção dos poderes originais do espírito, conquista pelo desregramento de todos os sentidos, da faculdade de ver e sentir a realidade, finalmente, pela primeira vez”[62]. Inquirimos, porém, se esse desejo operativo de amor concreto em Ernesto Sampaio, não se inscreverá como heróica tentativa de ablução da morte[63] –   residindo aí essoutro plano milagroso: o do encontro na terra de uma geometria sófica e perene que aponta o amor como maior que a morte[64] e, resgatando o ensinamento socrático, a arte de viver como ars moriendi[65].


[1] Ernesto Sampaio, “Perseguição”, In Feriados Nacionais, Lisboa: Fenda, 1999, p. 11. Doravante, utilizaremos as siglas ES para o Autor e FN para a obra supracitada.

[2] Observemos a referência textual: “[…] em cima / o olho do mundo / em baixo / o sonho indestrutível” ES, “Geografia”, In FN, op. cit., p. 9 e ainda “Considerando o abismo / de séculos e gestos / tudo o que importa / passa-se na outra vertente / mais bela que a cor / desta luva esquecida no mar / onde o tempo / como um crepúsculo / se dispersa na noite / com todos os segundos a arder” Id., “Janela”, In FN, op. cit., p. 14. A esta visão tensional não foi estranha Natália Correia (org.), “Os Grandes Transparentes”, O Surrealismo na Poesia Portuguesa [SPP], 2ª edição, Lisboa: Frenesi, 2002, p. 218 (216-249).

[3] Concretizemos: “[…] nada mais há do que a imagem, cada vez mais próxima, do túmulo e da irremediável privação” ou “A extraordinária elegância do esqueleto humano, vertical e solto, simples, raro, subtilmente equilibrado nas duplas palmas do tórax, os seus acentos, ossos largos, os seus repousos, ossos chatos, as suas pérolas finas, os ossículos, toda essa engrenagem ágil, rápida, para sustentar este bolbo polido de fundas cavidades […]” ES, Fernanda [F.], Lisboa: Fenda, 2005, p. 25 e 39, respectivamente. E ainda: “Melhor a noite e a sua trégua refrescante, melhor o silêncio, princípio e fim de toda a música, melhor o sono, grácil imagem da morte” ES, “Os anjos em 53”, In FN, op. cit., p. 61. A propósito da estreita relação do acto da escrita com a passagem inelutável do tempo, agudizada pela consciência da finitude vide ES, F., op. cit., p. 50.

[4] Acerca desta denominação e das suas dissidências cf. Fernando B. Martinho, “A segunda geração surrealista”, In Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50, Lisboa: Colibri, 1996, pp. 78-102.

[5] Atentemos: “[…] la libération de l’homme, première condition de l’esprit […]” André Breton, Seconde manifeste (1930), In Manifestes du surréalisme, Paris: Éditions du Sagittaire, 1946. p. 110 (91-183). E ainda: “Il faut absolument convaincre l’homme qu’une fois acquis le consentement général sur un sujet, la résistance individuelle est la seule clé de la prison.” Id., Prolégomènes à un troisième manifeste du Surréalisme ou non (1942), In Manifestes du surréalisme, op. cit., p. 204 (193-211).

[6] Sobre esta temática angular: “‘Si une idée paraît avoir échappé jusqu’à ce jour a toute entreprise de réduction, avoir tenu tête aux plus grands pessimistes, nous pensons que c’est l’idée d’amour, seule capable de réconcilier tout homme, momentanément ou non, avec l’idée de vie. […] nous le restituons ici à son sens strict et menaçant d’attachement total à un être humaine, fondé sur la reconnaissance impérieuse de la vérité, de notre vérité ‘dans une âme et dans une corps’ qui sont l’âme et le corps de cet être.” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., pp. 141-142 (91-183). Cf. ainda André Breton, Du surréalisme en ses oeuvres vives (1953), In Manifestes du surréalisme, Paris: Gallimard, 1963, p. 184 (179-188).

[7] Como nobilita: “[…] abrindo o espaço / com os gestos lentos de um náufrago / a caminho / do fundo […]” ES, “O Menos Possível”, In FN, op. cit., p. 12.

[8] António Pedro, “A posição surrealista porquê?”, In Natália Correia (org.), In SPP, op. cit., p. 431 (424-536).

[9] Acerca desta temática cf. Natália Correia (org.), “Da Permanência do Surrealismo”, In SPP, op. cit., pp. 5-9; e ainda Maria de Fátima, O Surrealismo em Portugal, “História do Surrealismo em Portugal”, I Parte, Lisboa: INCM, 1987, pp. 11-113 (7-700).

[10] Aclaremos: “[…] le surréalisme ne tendit à rien tant qu’à provoque, au point de vue intellectuel et moral, une crise de conscience de l’espèce da plus générale et la plus grave et que l’obtention ou la non-obtention de ce résultat peut seule décider de sa réussit ou de son échec historique” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 76 (91-183).

[11] Oiçamos: “Révolte absolue, insoumission totale, sabotage en règle, humour et culte de l’absurde, le surréalisme, dans son intention première, se définit comme le procès de tout, toujours à recommencer.” (Albert Camus, L´Homme Révolté, Paris: Gallimard, 1951, pp. 118-9). Ainda sobre esta temática cf. André Breton, Premier manifeste (1924), In Manifestes du surréalisme, op. cit., p. 75 (13-75); Seconde manifeste (1930), In Manifestes du surréalisme, op. cit., p. 103 (91-183).

[12] Esta determinação especulativo-conceptual, bífida e concomitante, abarca, por um lado, os parâmetros histórico-sociais e culturais do surgimento do surrealismo, porquanto se refere à concordata da revolta surrealista com o Partido Comunista Francês, enquanto apologética da liberdade e da fecundação do automatismo através da insurreição contra todas as espécies de parangonas constritoras (políticas, culturais, morais, estéticas, entre outras); por outro, sem denegar os preceitos estético-metafísicos anteriores, aponta para a descoberta de uma via própria, inimitável e excepcional, da apreensão subversiva do real. O primeiro, intitulámos de período épico do surrealismo; o segundo, qualificámos de período heróico. Porém, ainda que a nomenclatura utilizada parta da palestra de ES, a leitura encontra-se muito próxima do seguinte: “Logo no seu início, a aparição do surrealismo em Portugal, com a organização dos primeiros núcleos, foi marcada pela hesitação entre a militância revolucionária, apostada em ‘mudar o mundo’ e a opção de uma revolta interior, capaz de abrir acesso a uma ‘realidade mágica’, englobando os aspectos inconscientes e ‘irracionais’ da psique e susceptível de promover uma nova visão do mundo” (AA. VV., Mário Cesariny, Lisboa: Dir. Geral da Acção Cultural, 1977, p. 30). Acerca da temática da revolta interior cf., ES, “Rimbaud e as Ilusões da Cultura”, In Sal Vertido [SV], Lisboa: Hiena Editora, 1988, pp. 53-68 e ainda sobre as problemáticas de inserção histórica do Surrealismo e a sua definição como experiência interior vide Perfecto E. Cuadrado, “Uma Ousadia Necessária (?): ‘Fazer História’”, In A Única Real Tradição Viva [AURTV], Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998, pp. 25-35.

[13] Ilustrando metaforicamente o frémito dessa busca: “[…] a terra prometida / elegante e descontraída / ainda faz tremer […]” ES, “A Noite Solução do Oriente”, In FN, op. cit., p. 14. Não poderíamos deixar de apontar a estreita ligação (como, inequivocamente, demonstra o admirável trabalho de António Cândido Franco) com a poética pascoalina. Este assombroso conúbio encontra marcas na epistolografia entre Teixeira de Pascoaes e Mário Beirão, comprovando uma relação de admiração e amizade cf.: Pedro da Silveira, “Cartas Inéditas de Teixeira de Pascoaes e Camilo Pessanha”, Revista Colóquio- Letras, nº19, Maio de 1974, pp. 41-50. Vide ainda a comovente entrevista a José Gomes Ferreira.

[14] ES, “Surrealismo” [“S”], p. 1.

[15] Resgatemos o topos onde as antinomias de diluem: “Tout porte à croire qu’il existe un certain point de l’esprit d’où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passe et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 92 (91-183).

[16] ES, “S”, p. 1. Fundamentemos: “Por um lado, os surrealistas ‘declaram-se em insurreição contra a história’ reclamando uma liberdade baseada nas necessidades espirituais mais profundas. Por outro, afirmam que não concebem a Revolução a não ser sob a sua forma social”. Ainda: “Certo é que o surrealismo […] viu nessa ´verdade moral’ do marxismo um dos valores espirituais que cabiam na ordem mais vasta do seu pensamento englobante. Só neste ponto o surrealismo coincide com o humanismo comunista […]” Natália Correia (org.), “O ultimato surrealista a todas as formas de opressão”, In SPP, op. cit., pp. 388-389, respectivamente (387-423). Sobre esta temática cf.: Natália Correia (org.), “A Ruptura Surrealista”, In SPP, op. Cit., pp. 424-430 (424-536). Por fim, sobre a praxis surrealista e a sua colossal necrologia resta-nos referenciamos: António Cândido Franco, “André Breton Libertário e Automatista” e “Pirâmide – uma Revista do Surrealismo Português”, A Ideia, Revista de Cultura Libertária 71/72, Novembro de 2013, pp. 193-202 / pp. 203-207, respectivamente.

[17] ES, “S”, pp. 2-3.

[18] ES, “S”, sem paginação. Note-se, porém, a advertência: “Et le diable préserve, encore une fois, l’idée surréaliste comme toute autre idée qui tend à prendre une forme concrète, à se soumettre tout ce qu’on peut imaginer de mieux dans la ordre du fait, au même titre que l’idée d’amour tend à créer un être, que l’idée de Révolution tend à faire arriver le jour de cette Révolution, faute de quoi ces idées perdraient tout sens – rappelons que l’idée de surréalisme tend simplement à la récupération totale de notre force psychique par un moyen qui n’est autre que la descente vertigineuse en nous, l’illumination systématique des lieux caches et l’obscurcissement progressif des autres lieux, la promenade perpétuelle en plein zone interdite et que son activité ne court aucune chance sérieuse de prendre fin tan que l’homme parviendra à distinguer un animal d’une flamme ou d’une Pierre – le diable préserve, dis-je, l’idée surréaliste de commencer à aller sans avatars” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 92 (91-183).

[19] Ainda que as preocupações sobre o papel e a função do inconsciente os possam aproximar, não podemos desconsiderar as destrinças fundacionais entre os dois autores: “En d’autres termes, la psychanalyse qui se soutient de son allégeance freudienne, ne saurait en aucun cas se donner pour un rite de passage à une expérience archétypique ou d’aucune façon ineffable: le jour où quelqu’un y fera entendre quelque chose de cet ordre qui ne sera pas un minus, ce serait que toute limite y aurait été abolie” J. Lacan, “Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien”, Écrits, Paris: Seuil, 1966, p. 797 (793-878).

[20] Atentemos: “Les pulsions sont nos mythes, a dit Freud. Il ne faut pas l’entendre comme un renvoi à l’irréel. C’est le réel qu’elles mythifient, il l’ordinaire des mythes: ici qui fait le désir en y reproduisant la relation du sujet à l’objet perdu” (Id., Ibidem, p. 853).

[21] Como acentua J. Lacan: “Le désir est désir de désir, désir de l’Autre” (Id., Ibid., p. 852).

[22] ES, texto póstumo, Mil Folhas, suplemento literário do Jornal Público, 22 de Dezembro 2001.

[23] Epicuro aponta para uma tipologia de desejos relacionados com a experiência do prazer (hedone), cuja base doutrinária e ética aponta para o conceito de eudaimonia, diferenciando os prazeres cinéticos (mutáveis) e os catasmáticos (estáveis), podendo ser, ambos, predominantemente corporais ou espirituais (Epicuro, Carta sobre a Felicidade, trad. João Forte, Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1994, pp. 25-32). Contrariamente, o estoicismo enquadra o desejo, esse elemento perturbador da constância da vontade, nas paixões fundamentais da alma (desejo, dor, prazer e medo).

[24] ES, texto póstumo, Mil Folhas, op. cit..

[25] E. Levinas, Totalité et Infini, La Haye: Matinus Nijhoff Publishers, 1980, p. 4.

[26] “Qui dit expression dit, pour commencer, langage” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 108 (91-183).

[27] ES, texto póstumo, op. cit..

[28] Esclarecemos: “Le sujet, le sujet cartésien, est le présupposé de l’inconscient, nous l’avons démontré en son lieu. L’Autre est la dimension exigée de ce que la parole s’affirme en vérité. L’inconscient est entre eux leur coupure en acte” (J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 839). Encontramos aqui duas instâncias contraditórias do “eu”: a primeira, refere um “eu” dual, narcísico e alienado (pela metáfora do espelho); a segunda, um “eu” significante e simbólico, reificado no Inconsciente e no discurso do Outro – aqui encontramos possibilidades analógicas e até anagógicas com os princípios subversivos do surrealismo heróico. A este propósito, não deixa de ser relevante o princípio topológico da fantasia como consequência do sujeito que se sabe efeito da palavra: o termo genérico de phantasia dado pelo estoicismo, sugere não só os estados cognitivos do sujeito, mas também sonhos e alucinações.

[29] J. Lacan, Écrits, op. cit., p. 819. Ainda que a matriz da abertura ao outro resida no reconhecimento de uma Alteridade, poderá ainda abalar um dos pressupostos da dialéctica dos desejos, tal como a compreende o epicurismo: a ataraxia, essa imperturbabilidade da alma. Nesse sentido, é reveladora a sentença: “Mas quando a memória nos cai em cima com um dilúvio, quando o passado nos submerge e afoga, estamos perdidos. Sobrevivemos entre sombras, somos almas penadas, entregues ao desespero e à cólera. Vivemos no inferno, pois inferno é a ausência de quem amamos” ES, F., op. cit., p. 22.

[30] Acerca desta relação iniciática-limite: “Durante quarenta anos, só desejei o seu amor, aprovação e estima, e desde que ela partiu e me retirou tudo isso, lançou-me numa espécie de opróbrio, num estado em que a realidade não me toca mais do que o sonho, vivendo uma existência quase póstuma, à margem da verdadeira vida” ES, F., op. cit., p. 30.

[31] Não deixa de pertinente a relação entre o sujeito desejante e o objecto desejado – clara meditação tanatológica que não ignora a estrutura da linguagem e os seus processos de substituição e combinação como a metáfora e a metonímia: “On peut ici tenter, dans un souci de méthode, de partir de la définition strictement linguistique du Je comme signifiant: où il n’est rien que le shifter ou indicatif qui dans le sujet de l’énoncé désigne le sujet en tant qu’il parle actuellement. C’est dire qu’il désigne le sujet de l’énonciation, mais qu’il ne le signifie pas. Comme il est évident au fait que tout signifiant du sujet de l’énonciation peut manquer dans l’énoncé, autre qu’il y en a qui diffèrent du Je, et pas seulement ce qu’on appelle insuffisamment les cas de la première personne du singulier, y adjoignîton son logement dans l’invocation plurielle, voire dans le Soi de l’auto-suggestion (…) /  Il ne savait pas…Un peu plus il savait, ah! que jamais ceci n’arrive! Plutôt qu’il sache, que Je meure. Oui, c’est ainsi que Je viens là, là où c’était: qui donc savait que j’étais mort? Être de non-étant, c’est ainsi qu’advient Je comme sujet qui se conjugue de la double aporie d’une subsistance véritable qui s’abolit de son savoir et d’un discours où c’est la mort qui soutient l’existence” (J. Lacan, Écrits, op. cit., pp. 800 e 802, respectivamente).

[32] ES, “A única Real Tradição Viva”, In SV, op. cit., p. 39 (33-41).

[33] ES, “S”, op. cit., p. 5.

[34]Id., ibid., p. 6. Adentrando esta temática, não resistimos à alusão de algumas referências: a primeira de cariz pictórico – o opus magna do século XIX da autoria de Henry Fuseli intitulada O Pesadelo; a segunda de cariz literário-pictórico com a profusão do tema no Modernismo espanhol – Caprichos, gollerías, trampantojos (1923-1953) de Ramón Gómez de la Serna, cuja tessitura simbólico-poética se constrói precisamente a partir dos Caprichos de Goya; e, por fim, a terceira de claro cariz jungiano – as relações entre a auto-gnose e a análise do sonho não-lúcido, prestimosas iluminações para entender as práticas grupais do surrealismo, pertencentes ao seu período épico.

[35] Exemplifiquemos: “Tout comme dans le monde physique, le court-circuit se produit quand les deux ‘pôles’ de la machine se trouvent réunis par un conducteur de résistance nulle ou trop faible. En poésie, en peinture, le surréalisme a fait l’impossible pour multiplier ces courts-circuits. Il ne tient et il ne tiendra jamais à rien tant qu’à reproduire artificiellement ce moment idéal où l’homme, en proie à une émotion particulière, est soudain empoigné par ce ‘plus fort que lui’ qui le jette, à son corps défendant, dans l’immortel (…) ces produits que sont l’écriture automatique et les récits de rêves.” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., pp. 120-121 (91-183).

[36] Natália Correia (org.), “Os grandes transparentes”, In SPP, op. cit., p. 218 (216-249).

[37] ES, “S”, op. cit., p. 7.

[38] Possui o autor “uma certa tendência para dar razão a Victor Hugo quando afirmava que a noite era a lei do Universo e a luz uma excepção” id., Ibid., p. 6.

[39] Lautréamont, Poésies II, Oeuvres complètes, textes établis, présentes et annotés par Pierre-Olivier Walzer, Paris: Gallimard, 1970, p. 285 (275-292).

[40]Assim versa: “SURRÉALISME, n.m. Automatisme psychique pur par lequel on se propose d’exprimer, soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionnement réel de la pensée. Dictée de la pensée, en l’absence de tout contrôle exerce par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou morale. ENCYCL. Philos. Le surréalisme repose sur la croyance à la réalité supérieure de certaines formes d’associations négligées jusqu’à lui, à la toute-puissance du rêve, au jeu désintéressé de la pensée. Il tend à ruiner définitivement tous les autres mécanismes psychiques et à se substituer à eux dans la résolution des principaux problèmes de la vie” André Breton, Premier manifeste (1924), op. cit., pp. 45-46 (13-75).

[41] Será de capital importância recordar que o automatismo verbal ou gráfico jamais poderá ser entendido como um qualquer critério gráfico: “Le tout, pour le surréalisme, a été de se convaincre qu’on avait mis la main sur ‘la matière première’ (au sens alchimique) du langage […] parmi nous la pratique de l’écriture automatique ait été délaissée si vite” André Breton, Du surréalisme en ses oeuvres vives (1953), op. cit., p. 181 (179-188).

[42] Acerca desta tentativa de expressão total a partir da categoria do acaso objectivo cf. ES, “A Sétima Face do Dado”, In SV, op. cit., pp. 17-24.

[43] Será adequado referir a relação parodística do Surrealismo (quer através de elementos de corrosão, quer de graus de carnavalização – este tópico permite-nos acentuar, uma vez mais, a certeira ligação com Pascoaes) com a estética romântica. A este respeito vide J. Cândido Martins, Teoria da Paródia Surrealista, Braga: APPACDM, 1995.

[44] Cf., ES, “S”, op. cit., pp. 12-16. Acerca desta temática vide Perfecto E. Cuadrado, “Uma Divagação Final (mais) Abjectamente Académica: Notas Sobre a Poesia Surrealista (Portuguesa)”, In AURTV, op. cit., pp. 36-63.

[45] Id, ibid., p. 7.

[46] Os sinais poéticos de uma reflexividade e de uma meditação sobre a relação entre poesia e sagrado, anotada por Herberto Helder, a par da visão do poeta como vidente e mago compõem o ponto da Bauhütte simbólico onde os opostos se poderão intersectar sem contradição. Mais: “Esta reconciliação dos contrários, exposta por Breton no Segundo Manifesto, é paralela do primeiro arcano da via iniciática: tudo o que está em cima é igual ao que está em baixo. Tal é a filosofia da unidade proposta pela tradição iniciática” Natália Correia (org.), “As metamorfoses e a alquimia surrealista”, In SPP, op. cit., p. 335 (335-349). Sobre a influência desta temática no nosso autor cf. Fernando B. Martinho, “A segunda geração surrealista”, In Tendências dominantes da poesia portuguesa da década de 50, op. cit., p. 93 (78-102).

[47] Cf. Natália Correia (org.), “O Mito”, In SPP, op. cit., pp. 271-334. Não será inglório cotejar a mundividência surrealista com as aproximações mitogénicas de Eudoro de Sousa e Vicente Ferreira da Silva.

[48] Aventemos: “O Amor é o único mito de pura exaltação que a humanidade conheceu. O único que parte do coração do desejo e visa a sua satisfação total. O único grito de angústia capaz de se metamorfosear em canto de alegria. Com o amor, o maravilhoso perde o carácter sobrenatural, extraterrestre ou celeste que possui em todos os mitos, regressando de algum modo à sua origem para se inscrever nos limites da existência humana […] O desejo, no amor, longe de perder de vista o ser de carne que lhe deu origem, sublima o seu objecto numa espécie de sexualização do universo que restabelece no homem uma coesão anteriormente inexistente. O amor não admite a menor restrição: tudo ou nada, sendo o tudo a vida e o nada a morte” ES, F., op. cit., sem paginação. Acerca das pulsões atávicas, da reversibilidade do desejo e do papel da “loucura controlada” cf. ES., “O Materialismo dos Índios Yaquis”, In SV, op. cit., pp. 109-117 e acerca do doloroso despertar da consciência a partir de uma linguagem simbólico-arquetípica cf. ES, Poph Vuhl, Lisboa: Hiena Editora, 1994, pp. IX-XIII.

[49] ES, “Única real tradição Viva”, In SV, op. cit., p. 37 (33-41). Acerca das funções gnosiológicas (e não só) da poesia vide J. Pinharanda Gomes, “António Maria Lisboa: uma Gnosiologia Lógico Poética”, In A Ideia, Revista de Cultura Libertária, op. cit., pp. 51-58.

[50] Id., ibid., p. 39.

[51] Id., ibid., p. 37.

[52] ES, “Violeta Flor das Trevas”, In FN, op. cit., p. 36.

[53] ES, “Franz Kafka e Walter Benjamin”, In SV, op. cit., pp. 119-129. A experiência radical solidão é aprofundada, ainda, em ES, “O Não e o Sim em Mário Cesariny”, In SV, op. cit., pp. 131-137.

[54] Relembremos:“[…] on peut espérer que les mystères qui n’ent sont pas feront place au grand Mystère. Je crois à la résolution de ces deux états, en apparence si contradictoires, que son le rêve et la réalité, en une sorte de réalité absolue, de surréalité, si l’on peut ainsi dire.” André Breton, Premier manifeste (1924), op. cit., p. 28 (13-75). E vide ainda Natália Correia (org.), “As interpretações delirantes”, In SPP, op. cit., p. 367 (365-386).

[55] Atentemos: “A atracção do surrealismo pelo mistério deve-se ao facto de os surrealistas se assumirem como decifradores […] os surrealistas acariciam os enigmas como se tacteassem portas fechadas sobre ‘o outro lado da vida’. Não é a crença no sobrenatural” Natália Correia (org.), “Os grandes transparentes”, In SPP, op. cit., p. 216 (216-249).

[56] A articulação geométrica do Mistério é assim divisada: “Sondar / a linguagem das trevas […] / Decifrar / numa pedra fria / letras a arder […] Ser / um sinal […]” ES, Tão Pouco”, In FN, op. cit., p. 20. Assim, a figura do poeta-demiurgo surge como condutor alquímico de possibilidade de transubstanciação da matéria em espírito: “O espelho, a acção mediúnica de nos invocarmos a nós mesmos, está presente sempre que damos um passo decisivo para o mistério” Natália Correia (org.), “Os grandes transparentes”, In SPP, op. cit., p. 217 (216-249). Todavia, este movimento redentor assume contornos de tragicidade quando, ao invés do seu resgate, nos confrontamos com o algar da sua ausência: “De mim não resta grande coisa […] Eras tua a gravitação da terra e do céu, e anulaste-as […] Desde 6 de Janeiro que ando às escuras, apesar da espantosa precisão das estrelas, dos seus dardos dolorosos numa carne de tinta coagulada.” ES, F, op. cit., p. 51.

[57] Anunciemos: “Agora o dia protege-se com palha loira / do hálito do pensamento / confiante como um profeta / à espera da hora marcada” ES, “Dia da Liberdade”, In FN, op. cit., p. 21.

[58] André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 119 (91-183). Note-se que o processo de compromisso supremo do Encontro Amoroso, não despreza as fontes de conhecimento consideradas ‘menos sérias’: “[…] je pense qu’il y aurait tout intérêt à ce que nous poussions une reconnaissance sérieuse du côté des ces sciences à divers égards aujourd’hui complètement décriées que sont l’astrologie, entre toutes les anciennes, la métaphysique […] / Quand on songe, d’autre part, à ce qui s’exprime astrologiquement dans le surréalisme d’influence ‘uranienne’ très prépondérante, comment ne pas souhaiter, au point de vue surréaliste, qu’il paraisse un ouvrage critique et de bonne foi consacré à Uranus, qui auderait à combler, sous ce rapport, la grave lacune ancienne?[ …] Le ciel de naissance de Baudelaire, qui présente la remarquable conjonction d’Uranus et de Neptune […] De la conjonction d’Uranus avec Saturn […] qui caractérise le ciel de naissance d’Aragon, celui d’Éluard et le mien  […] amour profonds des sciences, recherche du mystérieux […]” André Breton, Seconde manifeste (1930), op. cit., p. 170 e p. 174 (91-183), respectivamente. Passados quase trinta anos do Primeiro Manifesto e ainda reservando incólume o seu espírito inconformista e, a nosso ver, num tom de maior agudeza espiritual, anota a importância vital da obra de René Guénon Les États multiples de l´être, ao defender a absurdidade de crermos que o homem ocupa um lugar privilegiado no Universo no conjunto da Existência Universal cf. André Breton, Du surréalisme en ses oeuvres vives (1953), op. cit., 1973, pp. 187-188 (179-188).

[59] A condição da loucura prescinde da destrinça entre o alienado e a sua obra, sendo ambos objectos estéticos indissociáveis. A isto se alia o mito do poeta maldito: “Ambos os primitivos e esquizofrénicos, manifestam uma tendência para reorganizar o mundo desorganizado pelas potências invisíveis ou pela doença. É essa, nos primeiros, a função dos mitos, e nos segundos a da efabulação que caoticamente destrói e cria sentidos ao mundo […] No louco não há planos, pesquisas ou ensaios […]. A porta do inconsciente abre-se de rajada, como se cedesse à fúria da tempestade” ES, “O Espírito Sopra Onde Quer”, In SV, op. cit., p. 82 (79-85).

[60] ES, “S”, op. cit., p. 17. Será disto prova irrefutável Fernanda, poema-penhasco contínuo, testemunho prodigioso dessa experiência limite: “[…] falta-nos metade das nossas veias, metade dos nossos nervos, metade da nossa pele esfolada, metade do nosso coração gelado. Estou meio cego, perdi metade da minha idade. Falta a sombra dos teus cabelos, a raiz dos teus dentes, o meu abismo debaixo de água” ES, F., op. cit., p. 31.

[61] A dialéctica entre o orgânico e o maquinal poderá ser encarada na poética do desejo como a introdução de um novo, complexo e trágico paradigma, explorado, posteriormente, por Gilles Deleuze e Felix Guattari. Acerca deste tópico cf. ES, “Máquinas Solteiras”, In SV, op. cit., pp. 67-77.

[62] ES, “S”, p. 11. Acrescentemos: “É absolutamente certo que o amor carnal e o amor espiritual são um só. Entre nós, e por mais de quarenta anos, a atracção recíproca foi suficientemente forte para realizar a complementaridade absoluta, a unidade integral, ao mesmo tempo orgânica e psíquica” ES, F., op. cit., p. 55.

[63] Oiçamos a pungente confissão: “[…] nada não é parte / de outra coisa / para encontrar alguém / é preciso partir […].” ES, “Dois Rios”, In FN, op. cit., p. 22.

[64] Cf., ES, F., op. cit., p. 56. E acrescenta no poema-epitáfio: “Assim é o amor sobre o qual o tempo não tem poder, porque tudo o que podia diminuí-lo não faz mais do que avivá-lo: as suas raízes estendem-se até não deixar nada que não abracem. Só ele permanece, sem o corpo de onde nasceu; tudo o que vai passando e não tem a ver com ele fica irremediavelmente ferido de irrealidade.” ES, F., op. cit., p. 81.

[65] Cf., ES, F., op. cit., p. 66.


REVISTA TRIPLOV

série gótica

Verão de 2019