O Apocalipse de D. Carlos

 

Tributo a ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

O APOCALIPSE DE D. CARLOS

[Mural duma Família em Sete Painéis]

romance histórico

2008


“Eu, rei de Portugal, súbdito inglês, declaro
Que à nobre Imperatriz das Índias e ao preclaro
Lord Salisbury entrego os restos duma herança
Que dum povo ficou à Casa de Bragança,
Dando-me, em volta, a mim e ao príncipe da Beira
A desonra, a abjecção, o trono… e a Jarreteira.”
GUERRA JUNQUEIRO, PÁTRIA, c. III, 1896

“Eu quero, eu quero dar à minha Pátria
Uma nova harmonia, o seu passado
Transfigurado e vivo…”
TEIXEIRA DE PASCOAES, D. CARLOS, c. I, 1924

 

Em Memória de Fiama Hasse Pais Brandão

 

SUMÁRIO

Abertura……………………………………………………….…. p.

  1. A Doida e o Despenseiro (1767-1807)…………………………………
  2. O Desditoso e a Besta Ladradora (1807-1826)………………..

III. O Cabra e o Arcanjo (1826-1834)…………………………….

  1. A Matrona e o Mágico (1834-1853)………………………….
  2. O Meteoro e o Songamonga (1853-1889)………………………
  3. A Mulher de Negro e o Deus do Mar (1889-1908).……………

VII. O Menino do Fim (1908-1910).……………………………….

Nota Final……………………………………………………………

 

Cronologia…………………………………………………………..

Quadro Genealógico…………………………………………………

Fontes Sumárias……………………………………………………..


ABERTURA


O segredo de Carlos de Bragança é a sua tragédia, uma tragédia funda, sem medida, avassaladora, mas tão íntima, tão secreta, tão escondida, que temos a impressão que ele próprio a desconhecia. Viveu quarenta e quatro anos sem se dar conta dela, mordendo um charuto, contando anedotas, fazendo sporte e pregando partidas. Lembra Édipo matando numa rixa, por descaso, o pai e recebendo em Tebas a mão da mãe, ansioso por se deitar com ela e lhe morder guloso os biquinhos dos seios pontudos. É isto que nos horroriza e fascina.

A tragédia de Carlos não é apenas a tragédia da sua vida, menos ainda a da sua morte, a 1 de Fevereiro de 1908, numa esquina do Terreiro do Paço. A tragédia deste colosso que comia uma ementa de seis ou sete pratos por repasto, pesava cem arrobas e fazia figura de javali grosso apertado numa farda prussiana de generalíssimo é muito mais vasta. Em primeiro lugar é a tragédia da sua família mais chegada: a da mãe, Maria Pia de Sabóia, a da esposa, Maria Amélia de Orleães, filha duma família proscrita, a do irmão, Afonso Henriques, um apatetado maluco dos carros e da velocidade, e a dos dois filhos, Luís Filipe e Manuel. O primeiro, um jovem loiro e angélico, de olho azul e pele de leite, desaparece para sempre na cena do Terreiro do Paço, e o segundo, um menino frágil e imberbe, vê-se empurrado, aterrorizado ainda pela cena do sangue, a herdar do pai a coroa, que é de espinhos, e os trabalhos, que são de Hércules. Mas a família de Carlos de Bragança é muito mais do que a mãe, a esposa, o irmão e os filhos. A sua família remonta pelo menos até aos quartos avôs, Pedro III e Maria I, a Doida, quando no firmamento de Portugal se apagava em púrpuras de ametista a figura sinistra do marquês de Pombal e se levantava a de Pina Manique, ainda mais plebleia, mais sanguinária, mais criminosa.

Carlos I é a tragédia de toda uma família, uma tragédia que vem do fim do século XVIII e se prolonga até aos nossos arrabaldes. A história do nosso último rei a sério – já que Manuel II não passou duma criança que fez de conta que reinou durante dois anos – foi afinal um caso que demorou bem mais de cem anos a germinar e a desenvolver. Que desmedido ventre o trouxe ao mundo! Em vez de nove meses, noventa anos de gestação. É caso muito sério. E é por ser tão horrível e tão imensa, que uma tal tragédia nos parece tão estupenda. Sem conhecermos os avós, nunca perceberemos o neto. Carlos em si é um enigma, uma bola opaca e pesada de carne ou de sebo, avessa ao mais penetrante olhar, mas visto à luz dos hábitos e das histórias dos seus antepassados faz-se claro, fácil, transparente. Este ser que viveu quarenta e quatro anos pode ter sido reservado como um tímido, fechado como um oráculo e desconhecido como um estrangeiro mas o seu passado faz dele um ser tão previsível e tão esperado como um hábito repetido; na sua figura e na sua história vieram afinal cruzar-se com a máxima força e crueza todas as virtudes e todas as taras que encontramos dispersas e desencontradas nos seus antepassados mais próximos.

E essa tragédia descomedida, tão antiga e tão escura, que vinha da antiguidade dos tempos, quando os homens desconheciam o caminho-de-ferro, o barco a vapor e o selo postal, andavam a pé e navegavam à vela como no tempo das cidades gregas ou dos estafetas astecas, não foi a enterrar com o corpinho delicado e frágil de Manuel II em 1932, no panteão braganção da igreja de S. Vicente, em Lisboa. Não. Essa tragédia continuou viva, mesmo que esse reizinho, de tão menino que era, não tenha sequer deixado semente na Terra, morrendo sem descendência. Essa tragédia chegou até nós, queima-nos os olhos e vai para o futuro; está viva e activa, não lhe falta sequer combustível para arder e crescer muito.

Eu bem a sinto aqui ao meu lado. Toda a vida a senti; habituei-me a viver com ela desde criança e tenho a certeza de que sobreviverá muito para além de mim. Na casa onde cresci, muitas décadas depois da tragédia do Terreiro do Paço, havia um pobre baú em madeira arrumado debaixo dum vão de escada, que estava sempre fechado e tapado com um velho pano de chita. Um dia abri-o e dei-me conta estupefacto que lá dentro estava um tesoiro. Eram moedas de cobre, dezenas, centenas, talvez milhares de moedas de cobre, escuras, acastanhadas, grandes como hóstias de missal, com a data de 1890 ou de 1891 e a efígie do rei Carlos I, um senhor gordo e bigodudo, de ar presunçoso e superior. Quando pedi contas daquele tesoiro, explicaram-me.

– São as moedas que o teu avô arrecadou na bancarrota de 1892 .

Mais tarde percebi que essa bancarrota do Estado fora consequência do Ultimato inglês de 1890. Ainda hoje tenho esse baú comigo e o seu tesoiro de cobre. Abro-o de quando em quando; mexo e remexo nas moedas, sempre inquieto e maravilhado. Tomo-as nas mãos, meço-lhes o tamanho, avalio-lhes o peso, contemplo-lhes os pormenores. O que mais me deslumbra é o facto de cada peça ter passado directamente das mãos dos contemporâneos de Carlos I para as minhas. Toco afinal as moedas que esses homens acabaram de tocar. Tudo aconteceu há instantes e essas moedas, acabadas de guardar, ainda estão vivas, como se fossem de hoje. Metem medo; lembram dois cadáveres horrorosos e uma família a tremer de frio, num barracão sujo e feio, ao pé do Tejo, em dia glacial de Fevereiro. Que tragédia tão negra a dessas moedas! Mexo-lhes, remexo-lhes, sempre estupefacto pela sua história, que é o seu poder e o seu segredo. Estão ainda quentes das mãos que outrora lhes tocaram. Têm gritos – digo comigo – estas moedas. Os gritos do horror que há na vida, os gritos da morte, os gritos do fim que a tudo chega. Um fim que para ser mais sinistro e pavoroso nunca termina e está sempre a começar.

A vida é uma sucessão de cenas fúnebres, de fraquezas e de desesperos, de desinteresses e de esquecimentos, uma imolação obscura a que só o imprevisível do amor empresta e por escassos momentos um sentido aceitável. Trata-se dum absurdo que termina sempre com o silêncio da morte, mesmo quando nele brilha o milagre dum clarão. Na História da vida estamos todos condenados, mais tarde ou mais cedo, ao esquecimento definitivo, quer dizer, a morrer duas vezes, a primeira em nós e a segunda na memória dos outros, que é a pior das mortes porque só ela é irremediável. Ninguém se salva de ser um farrapo esquecido atirado em vida para o lixo ou para o pó depois de morto, o que vem a dar no mesmo. Vendo bem, a tragédia de Carlos de Bragança é a tragédia do homem ou a da vida, uma tragédia tão abissal, tão entranhada, tão presente que nenhum de nós lhe escapa. Somos, à nossa maneira, na pessoa ou no colectivo, a actualização permanente, a encarnação sucessiva e sempre viva desse desespero essencial à criação.

É dele, do grande e escuro drama da vida, iluminado embora pelo clarão distante duma estrela, que vamos falar. Escolhemos para isso uma página da História dos homens. Trata-se duma página ínfima e desconhecida, vivida num obscuro recesso da Terra, que por sua vez é um estranho e anónimo recanto do universo, mas página modelar, bem representativa da grande e universal tragédia da vida, suceda ela aqui ou ali, nos grandes ou nos pequenos palcos, nos tablados familiares, imediatamente afins e compreensíveis, ou nos palanques invisíveis, onde têm lugar as propulsões inimagináveis, que nos são estranhas e desconhecidas.


1

A DOIDA E O DESPENSEIRO

(1767-1807)


Comecemos por Maria I e Pedro III, pais de João VI. No ano em que este nasceu, 1767, Lisboa atolava-se ainda nas poças de lama do cataclismo de Novembro de 1755. Viviam pais e filhos retirados numa sala sem estuque do palácio de Queluz. Prestava para alguma coisa o palácio? Prestava, porque o terramoto o deixara quase intacto e Mateus Vicente terminara já os seus trabalhos de restauro. Aquilo que tinha sido no século anterior uma simples casa de campo dum senhor da nobreza, no meio duma mata selvagem onde se não vislumbrava vivalma, era agora uma residência imponente mas pretensiosa, de corpos pesados e intermináveis, um labirinto de salas vazias e inúteis, que se fazia notar pela sumptuosidade exagerada e pelos aparatosos jardins franceses, com bustos e mármores vindos da Itália e estátuas chegadas da Inglaterra.

Pertencia o palácio ao irmão do rei, Pedro, grão-prior do Crato, que o marquês de Pombal casara em 1760 com a sobrinha, a futura Maria I, princesa da Beira e do Brasil e herdeira presuntiva do trono. Por lá passava o rei de visita ao irmão, à filha e aos netos que começaram a nascer em 1761. O primeiro foi o infante José, que depressa se tornou nas esperanças de Pombal. Vigiou-lhe a educação, cuidou-lhe dos horários, arrancou-o ao ambiente tétrico de Queluz, onde pontificava a rainha espanhola, Mariana Vitória, esposa de José, que odiava o ministro do marido e suportava menos mal o cunhado e genro, um idiota de olhar atarantado, feiíssimo, que vivia uma vida estéril, ora fechado nos aposentos do segundo andar de Queluz, num ensimesmamento assustador, ora no teatro da Rua dos Condes, polvilhado de pó branco na cara e sinal postiço na asa do nariz, para assistir na companhia do seu séquito de empoados peralvilhos e castrados à ópera italiana. Chamavam-lhe o titi, desde que casara com a sobrinha. O povo, às escondidas, gostava porém de o apodar de chouriço, pelo seu ar boçal e bacoco. Não se lhe pedia porém muito. Pombal só queria que fizesse de quando em quando herdeiros à sobrinha, mais nova do que ele quase vinte anos.

Quando o futuro João VI veio o mundo o ambiente de Queluz era sombrio e untuoso. A presença constante da rainha, a prosápia da princesa e do irmão do rei, a política apertada da corte contra os jesuítas e as grandes famílias da aristocracia, tornaram o palácio o valhacouto de tudo o que era animosidade contra Pombal e o rei. Davam-se propositadamente saraus, cada vez mais concorridos, para caricaturar o ministro e a sua política; convidavam-se artistas para cantarem modinhas vadias e actrizes para mimarem com jeito e canalhice a brutalidade das ruas. Havia sequências que aludiam à corte e aos costumes burgueses e laicos do rei; eram as mais apreciadas pelos homens graves da Igreja que frequentavam os salões do grão-prior e da princesa e se entretinham com altanaria a jogar o gamão e o voltarete. A reacção beata e freirática, que depois da morte do rei reformador se estendeu a toda a Lisboa, estava então confinada a esse palácio de elegantes e fúteis.

Ainda assim, o marquês passou uma tarde pela alcova da infanta para lhe dar os parabéns e medir o palmo de cara do recém-nascido. A seu lado estava o infante José, então com seis anos, muito aprumado na sua casaca de veludo encarnado, acabado de chegar da Bemposta onde passava os dias na companhia do rei, seu avô. A mãe, recostada em almofadões de penas, embalava com um sorriso o novo filho ao colo. No vasto espaço da cama vogava um berço de madeira, presente do rei, que o fizera ele mesmo ao torno. Lá dentro dormitava a filha do casal nascida no ano anterior, Maria Isabel. À noite, quando se encontrou com o rei, o marquês comentou satisfeito.

– É feio como o tio, com uma beiçola escancarada e zigomas de meter medo. Não serve para nada.

Foi assim que este desgraçado que veio a ser João VI chegou ao mundo. Ninguém o desejava, ninguém o apreciava, ninguém precisava dele. As atenções viravam-se todas para o primogénito, uma criança delicada mas inteligente, muito dada a passatempos instrutivos e de quem muito se esperava. O futuro era só dele. A corte queria-o para si e Queluz espreitava, comandada pela rainha, à espera duma ocasião para deitar a mão ao herdeiro. Aquele cerdo peludo e escuro, vindo ao mundo num dia triste de 1767, que grunhia uns sons desencontrados e ruidosos, broncos como o ressonar dum bispo, interessava pouco e contava ainda menos nos planos daquela gente. Era um traste que se aguentava com alguma paciência, desde que não se desse muito por ele.

Correram os anos mas nada surgiu debaixo do céu que pudesse contrariar a excêntrica estrela daquele nascimento. O príncipe florescia em qualidades e elegância, fazendo-se um cortesão perfeito e moderno, cheio de prosápia e filosofia francesa, que Pombal vigiava atento e matreiro. O rei por sua vez fazia-o já seu herdeiro directo, tanto era o gosto e o orgulho que nele punha, saltando por cima da filha, em quem não confiava.

– Depois de mim, só esta vergôntea. Dom José I há-de ser logo seguido pelo seu Dom José II. Que te parece? – perguntava ele, sonhador e ingénuo, ao valido, que assentia e trazia já debaixo de olho uma lei, a lei sálica, para afastar de vez a princesa da Beira e do Brasil do trono.

Pelo contrário, João crescia ocioso e esquecido. Era de entendimento lento e preguiçoso; os mestres das letras e das ciências depressa desistiram dele; os outros, que se ocupavam da educação física, da esgrima e da equitação, obrigados que eram a assisti-lo diariamente, queixavam-se da sua indolência e do seu feitio medroso e prudente. O infante mostrava um apetite descomunal e punha mais interesse nas cozinhas do palácio que nos salões onde se estudava a matemática, a astronomia e o latim ou nos picadeiros onde se exercitava o florete e o volteio; fazia-se com mais facilidade íntimo do pessoal da copa e das cozinhas do que dos monsenhores da Patriarcal e dos padres-mestres. Detestava o esforço, abominava a correria, odiava o protocolo; para além da comida, só tinha um gosto, a música. Apurara uma voz de baixo, grave e possante, que se mostrava uma valiosa promessa no cantochão. Foi por aí que o apanharam nos saraus e nas missas; era tímido, reservado, de poucas falas, mas não se importava de exibir a bela voz, não por vaidade, que não tinha, mas por desfastio. Tinha consciência da sua nulidade e mostrava-se por isso despretensioso. Na sua timidez entrava uma modéstia sincera, bem-humorada, que não sendo afectação ou ciúme se tornou depois a sua melhor defesa.

­ – Eu canto e o mano manda ­– costumava ele dizer a quem o sondava sobre os planos que reservava para o futuro.

Convinha-lhe a situação. Sabia que tudo estava organizado de modo a deixá-lo na sombra. Mas isso que podia ter causado o seu sofrimento foi afinal o motivo do seu maior alívio. Carregava até na melancolia e na reserva, fazendo-se imbecil, deixando cair a papada para o peito como repulsivo monco de peru, vestindo desajeitadamente mal, tartamudeando sílabas sem nexo, abrindo desmedidamente a beiçola, para dar razões de sobra aos que repetiam as cruéis palavras do marquês.

– É um patareco. Não serve para nada.

Tudo manha e astúcia. Tinha-as de sobra para o que lhe interessava. mas ficava por aí, porque o que de verdade lhe importava era que o deixassem em paz, sem idas à corte e à Bemposta, sem lições e sem cavalos, refastelado no seu cadeirão, diante da janela, de perna aberta e de chinelos velhos, embrulhado numa manta, a comer silarcos e a beber água fresca de Bucelas. Transigências só com o teatro e com a ópera, onde gostava de aparecer, mascarado de peralvilho, com a cara empoada e uma peruca loira, ao lado do pai e do seu séquito. Foi assim que cresceu, sempre vago e alheado dos assuntos da corte e das intrigas de Queluz. No fim do reinado do pai, quando era já um rolo de carne sem forma, rebentou o assunto do casamento do mano José. E com ele o do afastamento da Princesa da Beira do trono. A avó espanhola, Mariana Vitória, tão cheia de ronha e de malvadez que fazia lembrar Catarina de Áustria, queria-o casar em Espanha, com uma princesa da corte de Carlos III. Pombal não deixou; antes o queria casado em Portugal, com uma irmã da mãe, Maria Francisca Benedita, nascida em 1746, que comentava Voltaire, lia Locke no original e conhecia Bach. Acertaram as facções no casamento em Portugal e na sucessão da princesa. Assim se fez, e poucos dias depois do enlace, não sei se para alívio dele, se do país, ou se de nenhum dos dois, morria com sessenta e três anos incompletos o monarca mais desconhecido da nossa História moderna, tão desconhecido e tão discreto que se duvida se chegou a existir. Que discrição a dele, que nem ao certo se sabe se chegou a reinar ou se em seu lugar reinou um homem chamado Sebastião José de Carvalho e Melo.

Subiu ao trono Maria I e o seu consorte, Pedro III. Os intriguistas de Queluz mudaram-se com as tábuas do gamão para o paço de Lisboa; proibiram-se de imediato as companhias femininas nos teatros, exigiu-se moralidade nos espectáculos, esconderam-se os calções e as severas casacas de briche tão do agrado de Pombal. Regressaram os vestidos de veludo, as mantilhas de seda, os sapatos afivelados a cetim, os cabelos empoados e frisados a pedra quente. Era uma reacção moralista, que exigia o regresso dos jesuítas e a reabilitação dos Távoras, o restabelecimento das relações com a Santa Sé interrompidas desde 1759, um levantamento em nome da religião e dos costumes, mas era ao mesmo tempo um desafogo, um alívio, um gozo positivo, à larga, sem medida. A musculada mão com que o marquês apertara Lisboa, calando-a, amedrontando-a, sufocando-a, soltava-se, dando lugar a uma folga. A Viradeira foi afinal um misto de circunspecção e festa, de reacção beata e requinte francês. Proibiram-se as óperas, mas acarinharam-se os castrados, que com os teatros da rua dos Condes meio fechados passaram a tocar cravo e a exercer a voz feminina de soprano na Capela Real e na Patriarcal, diante dum público ainda mais vasto e casquilho. Elogiaram-se os velhos costumes do tempo do Magnânimo, reabilitaram-se os meninos da Palhavã, desejou-se o regresso das anedotas brutas e estúpidas, que o espírito utilitário do marquês abominava, mas nunca como nessa época se caprichou em imitar o requinte francês. Vestiam-se as cadelinhas com camisas de holanda, que se levavam depois ao colo, penteadas e perfumadas, à missa; usavam-se nas varandas macaquinhos de coletes encarnados e chapéus emplumados com presilha e botão de diamante; punham-se anões de rabicho a tocar saltério na esquina da igreja de São Domingos; inventavam-se penteados em forma de mesa, de estrela, de colchão ou de cesto. Era de boa nota ter tiques nas asas do nariz, punhos de renda, insígnias falsas ao pescoço e um lenço de seda perfumado sempre à mão, para além dum preto de cabelo pintado de amarelo e rosto polvilhado de fécula de arroz.

– Oh, pelo milagre do Nosso Senhor dos Passos da Graça – exclamava-se a cada passo, com afectação, abanando repetidamente o lencinho, nas ruas do Bairro Alto, onde ficavam os teatros, quando se queria pedir licença.

E o infante João o que fazia no meio desta reacção afectada, que foi mais uma pândega do que uma disciplina? O que sempre fizera até aí. Soltava gemidos, refinava a voz de baixo, abusava na comida, arrotava, fugia para o andar que ocupava em Queluz, resfatelava-se na poltrona do quarto com um suspiro de alívio, fugia da vida e da corte, a pretexto de estudar música e descansar. As suas aventuras resumiam-se a uma saltada à matinha de Mafra, fechado num coche, para aí se encher com uma vasta merenda de ovos doces.

Ninguém ligava ao caso. As irmãs, meninas brejeiras que começavam a namorar por sinais, viviam para os saraus da corte, para as recepções do marquês de Marialva, para as merendas afadistadas no palácio de Belém, para as touradas do Campo de Santana, para o teatro do Salitre, numa roda viva que não as deixava reparar em nada mais. A rainha e o rei por sua vez contavam as seis dúzias de açafatas, os dez mil cavalos, as setenta pretinhas anãs que faziam questão em levar para todo o lado, de anquinhas armadas e cheias, lacinhos vermelhos de seda nos caracolinhos pretos do cabelo; ouviam ainda as historietas do confessor da rainha, o Tessalónica, frei Inácio de São Caetano, arcebispo glutão e patusco, que se encostava à boquinha apetitosa das moças no confessionário e se locupletava com guizado gorduroso de cabrito três vezes por dia, e entretinham-se com as anedotas porcas do truão da corte, Dom João da Falperra. O príncipe da Beira, o mano José, e a princesa, a titi Maria Francisca, entretinham-se com o duque de Lafões a estudar relógios que batiam os quartos em forma minuete e as meias com harmonias de valsa e a projectar a Academia das Ciências e a da Marinha. Pombal, o antigo ministro, apodrecia ao longe, enclausurado na sua quinta, vestido de roupão, a tratar do milho de Soure, proibido de vir à corte e fechado para sempre à marcha dos negócios públicos. Quem dava pois pela falta do infante peludo, a que alguns chamavam, sem maldade, o almôndega? Ninguém, a não ser o podengo preto e feroz que guardava a guarita de Queluz, o Zéfiro, e com quem o infante repartia generosamente a sua ração de lampreia e carneiro. Além do Zéfiro, só o podão do Tessalónica se metia com ele, amável e mordaz. Conhecia-o bem, apanhava-lhe os fracos, gabava-lhe paciência e arte.

– Tu é que sabes, meu pachola – dizia-lhe ele, beliscando a bochecha gorda do infante quando o apanhava a cantar num sarau.

Assim se passaram os anos, até que morreu de indigestão e tédio, num dia chuvoso de Maio, o rei consorte. Chorou-se muito na corte a morte do titi, que passava por ser uma espécie de chefe de orquestra daquele pequeno Versailles de ócio e requinte. Todos temiam pelo fim daquele tempo bom, pachorrento e sem inquietação, que enterrara as reformas e pusera Portugal a pagodear. Corria o ano de 1786. Quatro anos antes, Pombal baixara à terra, roído de desgostos e desencantos, recusando por medo à hora da morte uma palavra ao seu confessor. Mas a Europa vivia na modorra da sua noite antiga, mergulhada na indiferença e na miséria. Os dias deslizavam iguais e nulos; nada parecia interromper a repetição eterna dos mesmos gestos. Bocejava-se, recebiam-se os dízimos, morria-se de fome ou de fartura, consoante se nascia em cima, nas acomodadas salas do castelo, ou em baixo, nas terras arroteadas e sujas. Além, nas províncias da América do Norte, por entre florestas e lagos desconhecidos, vigiado pelos peles vermelhas e pelas águias solitárias das montanhas, estava a nascer um mundo novo, concretizando os sonhos mais inesperados dos utopistas, mas encontrava-se tão distante e tão longe que nada na Europa podia bulir ao contacto desse vento longínquo de liberdade e progresso. Era uma miragem intangível, uma alucinação evanescente, a tremer, que as águas do Atlântico desfaziam, salpicando de sal e espuma.

E assim correram mais dias, muitos dias, até que numa bolorenta tarde de cinza de 1788 o príncipe José apareceu queixoso e doente. Dias antes, dera conta o príncipe do aparecimento de pápulas no rosto, que o deixaram intrigado. As leituras em que andava, o interesse que sempre tivera pela anatomia, os comentários que ouvira um dia a Ribeiro Sanches, junto ao seu feitio observador e interrogativo, sobrepuseram-se a qualquer aflição. Olhou-se, mediu-se, avaliou-se com distância e circunspecção, quase com curiosidade, e sem qualquer irritação contra o destino que lhe deformava assim, sem complacências, o rosto.

– Que máscara tão singular – exclamou ele, quando daquele modo se viu contra um espelho.

Depois, as pápulas tornaram-se vesículas negras, cheias de pus, que se generalisaram rapidamente a todo o corpo. Vieram febres, dores lombares, fraquezas dos membros, tremores imparáveis. Apoquentou-se a tia e esposa, Maria Francisca Benedita, que há anos e anos chorava com rigorosa regularidade  quando via o fluxo sanguíneo sujar-lhe as pernas. Doía-lhe não ter um filho do sobrinho, que lhe garantisse a sucessão. Caiu o príncipe de cama, sem forças, quase exânime. Diagnosticaram os médicos varíola, que naquele tempo era doença fatal e rápida. As açafatas da rainha entravam no quarto com caldeiras de água fervida e compressas para lhe limparem as supurações de pus e as feridas da carne. À saída, depois de esgotarem os remédios, quando se encontravam nos corredores, ficavam entretidas na conversa, em voz baixa, segredando a sorte do príncipe.

– Nada o salva, coitadito. Aquilo são bexigas negras. Em dois tempos vai-se embora; não dura dois dias.

E não durou. Morreu aos 27 anos, depois de aflições inelutáveis. A mãe, Maria I, que sofrerara dois anos antes a partida do marido, sofria agora a do filho e cunhado. Pela mesma altura, finou-se também, depois de comer leitão e ameixas, o divertido Tessalónica, que teve no corpo e nas palavras lúbricas e grosseiras a alma boçal da Viradeira. A rainha ficou estupefacta e perturbada, habituada que andava a orquestrar o destino. A sua única contrariedade chamara-se Pombal e há muito que a amarfanhara entre os dedos miúdos mas robustos, alimentados a caldos de absolutismo. Agora, diante do sofrimento do filho e da partida do arcebispo, via-se desarmada e frágil; a morte, às escâncaras, ria-se dela e da sua coroa. Mirou-se inquieta ao espelho; era rainha, vivia para ser obedecida, não percebia por que razão aquela mariola escapava ao seu ceptro e às suas ordens. Escolheu para novo confessor um homem severo, de feição chupada e crua, José Maria de Melo, da congregação do Oratório. Queixou-se-lhe.

– Viva Sua Majestade para as negrinhas, arejando o espírito nas merendas da matinha, e deixe o resto comigo e com o Senhor – respondeu-lhe o confessor entre o grave e o assertivo.

Com a morte do Príncipe da Beira lembraram-se enfim que havia um patito feio chamado João que vivia retirado numa das alas porcas do palácio de Queluz. Detestava mostrar que existia; odiava levantar-se de manhã; abominava tudo o que exigisse esforço, mudar de roupa, entrar num coche, usar punhos de rendas, perfumar um lenço, forçar a vista. A sua vida resumia-se a uma sucessão de pequenos hábitos broncos, associais, idiotas. Ainda assim tornara-se o príncipe herdeiro depois da morte do irmão. Foram-no buscar. O pobre, quando lhe deram a notícia, nem quis acreditar. Fora educado nas traseiras, longe dos olhos da corte, sem ambições nem projectos. Era mimado, guloso, de grande beiçola carente, mas inepto e inseguro. As suas raríssimas aparições ficavam-se pelos serões em que aparecia para mostrar a sua voz de baixo, cada vez mais miraculosa, e depressa se sumiam no esquecimento. As suas palavras eram sempre as mesmas, monótonas e repetitivas.

– A mamã manda, o mano vai mandar, eu apareço de quando em quando… para cantar.

Sofreu muito para se adaptar à nova situação. A cunhada e tia, princesa da Beira e do Brasil, retirou-se para a solidão da viuvez, fechando-se para sempre num triste e magoado vestido negro e dedicando-se de longe em longe ao estudo da música, que era a sua paixão de menina orgulhosa. Ele por sua vez foi obrigado a trocar Queluz e Mafra por Belém e pela Ajuda, onde vivia, na ‘Real Barraca’ construída por José I depois do grande terramoto, a princesinha espanhola que viera em 1785 para casar com ele, por iniciativa ainda da rainha velha, Mariana Vitória, que desaparecera quase ao mesmo tempo do velho Pombal. Chamava-se Carlota Joaquina, era filha de Carlos IV de Espanha e de Maria Luiza de Parma. Quando chegara a Portugal para casar com o infante era uma menina de dez anos, arrogante e ingénua, que a rainha tomara a seu cargo. Maria Francisca Benedita ficara de lhe ensinar francês e piano, para lhe completar a instrução. Ela porém mostrava total aversão por tudo o que exigisse esforço e concentração.

– Estão bem um para o outro ­– costumava rematar, a rir, com algum veneno, a mestra quando contava ao príncipe da Beira as lições.

O outro, o outro era o cunhado inculto que vivia  no ermo de Queluz e que nem notícia dava da futura esposa.

Agora, com a morte do príncipe herdeiro, a mãe exigiu-lhe presença assídua nas recepções da Bemposta e das Necessidades e visitas regulares às salas da Ajuda, onde Carlota Joaquina assentara. Apertou-se numa casaca de veludo vermelho, nuns calções de seda branca e nuns sapatos de salto alto e fivela de cetim e lá foi escalar o morro da Ajuda para visitar a princesa espanhola. Pareceu-lhe feia e vulgar, com uma cara redonda e malvada, um sorriso mordaz, um nariz esponjoso, uns lábios devoradores, uns olhos imensos, uns cabelos negros e empoados, quase assustadores. Um dia apanhou-a a colar burriés do nariz numa porta com ar malévolo e satisfeito. Outro deu com ela a urinar, ar cretino e sujo, numa carpete do tempo do avô. As criadas quando a viam murmuravam segredos amedrontados. Uma tarde, o príncipe ouviu uma delas dizer para outra.

– Chiça, lá vem o diabo. Arreda, arreda, senão ainda nos espeta os cornos.

Outro teria ficado preocupado e inquieto. Ele não. O que lhe faltava em espírito sobrava-lhe em humor, que é a inteligência dos pobres ou dos estúpidos. Olhava-se ao espelho, arrotava grosso, soltava gases ruidosos e achava-se a rir o mais benévolo e compreensivo dos homens. Carlota Joaquina, que foi o início da sua socialização, não o mudou. Habituou-se a ver nos soalhos velhos e carcomidos da Ajuda aquela rapariga diabólica e detestada, percebeu o que nela havia de selvagem e de perigoso, mas não perdeu por causa disso a benevolência e o humor. Tornou-se até mais bonacheirão e faceto.

– Um bom guisado vale tudo… até um matrimónio – dizia ele a rir para a mãe, referindo-se à boda.

A rainha, que tinha os olhos penetrantes e os lábios finos do pai, olhava para ele com alguma comiseração. É um pachola, como repetia o querido Tessalónica, pensava ela. Tinha a beiçola desengonçada e trémula dos Bourbons e o olhar vago e enevoado dos Braganças, que descendiam da filha estúpida do Barbadão de Veiros. Como mãe queria-o casado; como rainha exigia-lhe uma legião de herdeiros atrás. Para ela o país continuava a ser um figo ou um sarau com rapé, esmolas, sécias, meninas polvilhadas e mosqueadas de sinais, de cãozinho ao colo, a namorarem peralvilhos de cinta de seda e lencinho de renda entre os dedos. Corria o ano de 1789 e a revolução francesa rebentava em Julho nas ruas de Paris. Estoirava ao longe, depois do fosso do Ebro e da espessa muralha dos Pirenéus, mas ainda assim fazia estrondo. Via-se no céu um clarão sangrento a riscar a noite antiga e indiferente em que a Europa anestesiada vivia. Os botequins do Rossio mexiam-se; a Lisboa fétida e beata da Viradeira agitava-se, tremia de medo ou de comoção; levantavam-se miasmas no ar, suspeições, gritarias. A rainha não ligava. As notícias que vinham de França  pareciam-lhe tão fantasiosas como aquelas outras que momentos antes haviam corrido do lado da América. As anedotas do seu truão, que lhe fazia vénias de rabicho e pijama, eram muito mais reais que as pedras da Bastilha. Não fazia ideia do que era uma Constituição nem desejava saber. Diziam-lhe que era um papel e ela ria-se descarada e avessa.

– Os papéis rasgo-os eu quando não servem para nada. Ou tão-só quando me dá na real gana.

E ficava-se por esta resposta fria. A revolução por sua vez parecia-lhe um simples desacato de rua. Na simplicidade da sua mente de menina caprichosa, criada na atmosfera seca e autoritária do absolutismo, era como se os coxos das alfurjas da Sé e os manetas da Alfândega decidissem no meio duma bebedeira pegar em bacamartes e ameaçassem meia Lisboa. Questão pois de tropa e cacete. O distante primo francês, Luís XVI, saberia tratar do assunto. Acautelou-se pois com o intendente-geral da polícia, Pina Manique, que fazia o lugar desde 1780, e era um taberneiro grosso e cumpridor. Começara por perseguir de pau na mão os corrécios do bairro do Castelo em Lisboa e o seu maior gosto continuava a ser aos cinquenta e seis anos bater-se de sapato grosso e estadulho na mão, dentes apertados, com a corja fedorenta das vielas.

– Não virá uma formiga de França quanto mais um revolucionário – assegurou-lhe o bacharel com despótica ardência.

Em Abril de 1790 o príncipe contraiu matrimónio com Carlota Joaquina, então com quinze anos. Foi buscá-la a uma sala da Ajuda e levou-a para Queluz, onde tinha o seu invólucro de bicho desordenado e sujo. Caía-lhe bem aquele matrimónio; era ele que lhe permitia trocar Lisboa por Queluz, regressando à modorra que tanto lhe sorria. A princípio pensou que podia arrumar a esposa, deixando-a num sossegado recanto com as açafatas espanholas que a serviam, entregando-se ele aos vetustos e familiares prazeres da mesa e do canto. Depois percebeu que não. A esposa era um diabrete de ruídos insanos e de partidas desabridas. Rebentava-lhe as cordas do cravo, rasgava-lhe as pautas do solfejo, sujava-lhe de caliça o leitão que os criados lhe serviam nas bandejas de prata do palácio. Fartou-se e mudou-a com as açafatas para um corpo distante do edifício. Estava dias inteiros sem se cruzar com ela; acabava por se esquecer da sua existência, como se esquecia da tia Maria Francisca fechada no seu triste vestido negro de inconsolável viúva ou do Pina Manique no alto de Lisboa, nas ameias da alcaçova, embrulhado no seu capote preto de cabeção, com o colar vermelho da Ordem de Cristo ao pescoço, e cacete arruaceiro e temível na mão. Ou do Dom João da Falperra, de rabicho e pijama, contando  muito sério no salão do paço anedotas de estoirar de riso.

O príncipe voltava enfim com um suspiro de alívio a ser o João-dos-anzóis, anónimo e estúpido que vivia para comer, arrotar e dormir, longe de de todos. Tudo mergulhava de novo na normalidade da indiferença; nada o tocava, a não ser o Zéfiro, o podengo da entrada de Queluz, que o reconhecia alegre e festeiro, cheio de afecto. O Tessalónica já cá não estava para lhe dar os beliscões marotos na bochecha lassa; em vez dele, vigiava, severo e chupado, José Maria de Melo, inquisidor-geral do reino e confessor da mãe. Era ele que o beliscava agora.

– Sua Alteza há-de cumprir o dever de esposo. O reino impacienta-se. O povo pede um herdeiro.

Ele lembrava-se então da gaiata irreverente e feia que vivia na ala sul do palácio, mas encolhia os ombros, despercebido e sonso. Aqueles olhos desorbitados, líquidos e intensos, deixavam-no doente e os cabelos negros e abissais metiam-lhe medo. Tratava a esposa com deferência protocolar, sem intimidade, como uma peça de loiça rara em que se não bulia. Não queria trabalhos nem maçadas; continuava a ser o mesmo fidalgarrão, que não se dava ao incómodo de mudar de roupa quando se deitava, quanto mais ao esforço de namorar a esposa espanhola.

Entretanto, lá longe, depois da grossa parede pirenaica, o alarido da revolução crescia; a gritaria alastrava, incendiando céu e terra, galgando fronteiras e muralhas. A Europa acordava assarapantada da sua letargia numa madrugada de sangue e gritos. Partiam-se vidros, saqueavam-se palácios e conventos, punham-se em movimento exércitos para conter a fúria do povo, que saía aos baldões da noite escura do passado. Nada porém aplacava a raiva dos revoltosos; era um gás que explodia com violência inaudita depois de milénios de compressão forçada. O rei francês, o cidadão Luís Capeto, foi preso, as Tulherias devastadas e saqueadas, a Convenção jacobina eleita, a República decretada. O barrete frígio, vermelho como o sangue, grosseiro como a lã bruta, próprio dos carroceiros e dos talhantes, ergueu-se no cimo dum pau descarnado como insígnia da nova ordem dos Estados. Era o novo Sol da Liberdade que se levantava para aquecer os pobres diabos que não tinham uns sapatos para calçar. E  tão alto se ergeu que a Ibéria por cima da muralha do Pirinéu viu flutuar no azul tempestuoso do céu esse medalhão dos novos tempos.

Atemorizou-se a rainha com a sorte do rei francês, enfiado numa prisão húmida, à espera de ser julgado. Saiu o intendente-geral da polícia para as ruas de Lisboa com a escopeta debaixo do braço e a matilha dos cães ferozes presa na mão. Caçava jacobinos, pedreiros-livres, tudo o que lhe cheirasse a afrancesados mansos ou radicais; um simples jeito na gravata, um toque no chapéu ou no lenço, uma casaca de saragoça ou um calção de cotim eram para ele sinais bastantes. Metia tudo nas prisões, esvaziava os botequins, dava coças monumentais. Ninguém se atrevia a soletrar a palavra proibida, Liberdade. De madrugada, regressava a rir, com os dentes ensanguentados, a pele lívida, às ameias do Castelo de S. Jorge; embrulhava-se na sinistra capa preta que nunca tirava e descansava duas horas, aflito por regressar às ruas, onde a ralé o adulava como um Deus.

A rainha ainda assim não sossegava. Ora se socorria do truão, Dom João da Falperra, para desopilar, ora do confessor, o severo José Maria de Melo, para pensar. Este carregara o feitio austero com os acontecimentos Franceses; estava visionário, exaltado, fanático. Anunciava a vinda do Anticristo na figura ascendente dos revolucionários Franceses, Robespierre, Marat, Saint Just; via o Apocalipse escrito nos sucessos da Revolução; profetizava uma tragédia universal com rios de sangue a correr pelas ruas e que acabaria no inferno.

– E o vosso pai já por lá anda – dizia ele raivoso e cruel à rainha. – Vede-o nas mão do demo, a gritar horrores e labaredas, porque foi o primeiro a pôr a mão nos frades. ­

A pobre chorava, lembrando-se das tropelias do pai e do ministro. Lavava-se em lágrimas azedas, arrepelava os cabelos, esfregava os olhos, procurando apagar as imagens alucinantes e terríveis que lhe passavam pela mente. Começava a patinar na loucura, aos berros, esgazeada e aflita. Não dormia nem comia; desinteressava-se de si e do governo. Por momentos o país ficou entregue àquele quarteto de doidos, a rainha, espantadiça como uma galinha assustada e tagarela, o intendente-geral da polícia, sedento como um vampiro, o truão, imundo como um estalajadeiro de ladrões, e o inquisidor-geral, frio, gelado como um carrasco.Os ministros procuraram pôr cobro à situação.

– Chama-se o príncipe herdeiro para a governação. É um pata-choca mas é melhor que uma doida aos gritos – opinou o mais graduado deles, José Seabra da Silva.

Veio então para o paço de Lisboa o infante herdeiro. Começou a sua segunda socialização, muito mais complexa do que a primeira, porque não era um namoro mas um caso de administração. Havia que tratar do país e das suas colónias no outro lado do mar, na África, na América, no Oriente.

– É um caso sério, um caso muito sério – dizia ele, a sós, preocupado e infeliz, quando pensava no que se metera.

Carlota Joaquina veio atrás dele, cravo vermelho de papel metido nos cabelos e mantilha preta, de linha fina e rebordo de renda vaporosa, nos ombros.  Chegou com o seu bando de espanholas e os baús da tralha em carroças grosseiras. Vinha mais cheia, mais gulosa, mais manhosa. Fizera-se mulher nos dois anos de casamento; trocara as brincadeiras ruidosas de diabrete irreverente e cruel por patuscadas maciças onde se tocava viola e se batiam castanholas. Estava fêmea, apetitosa, sexual, ainda que mais feia e disforme. O rosto ganhara ângulos, o nariz afilara, a testa descaíra, retraindo-se. Depressa se meteu na cama do príncipe, que a recebeu entre o espantado e o medroso. Foi a sua iniciação no assunto, porque era tão idiota ou tão preguiçoso que nem pelo caso ainda dera. Ou se dera, não tomara nele interesse ou gosto. Quando Luís Pinto de Sousa, seu ministro e cortesão habilidoso, lhe perguntou com malícia de marialva o que pensava das suas novas funções, ele encolheu os ombros e respondeu a rir, de bom humor.

– Prefiro o doce de ovos. Come-se melhor e com menos esforço.

Pelo contrário, Carlota Joaquina descobriu maravilhada naqueles meses de idílio nos quartos de Belém ou das Necessidades a sua vocação. Tinha pouco mais de quinze anos, mas uma reputação encontrada para sempre. Acabará por morrer muitos anos depois com uma cirrose no útero. De tanto o molhar e esfregar com vinho doce, um dos seus prazeres originais e perversos, pergunto? Não sei. Assim como assim, a cama era aquilo que em definitivo lhe interessava da vida; tudo o resto ao pé daquele gozo divino, que a fazia berrar de comoção e histerismo, era um cisco insignificante que ela de bom-grado dava de barato.

­– Enquanto houver disto, não me queixo ­– ganhou ela o hábito de dizer por esta altura, fazendo com os dedos um gesto obsceno e provocante.

Não demorou a aparecer grávida. Estavámos no princípio do ano de 1793 e as notícias que vinham do outro lado dos Pirinéus eram aterradoras. O rei francês acabara de ser julgado, condenado e executado. A sua cabeça rolara no patíbulo de madeira e fora depois mostrada aos populares. O carrasco, depois de tirar o capuz preto, dera-se ao cuidado de a levantar pelos cabelos ensanguentados, erguendo-a bem alto, enquanto o corpo descabeçado se desengonçava e se estatelava no chão com estrondo. Tudo se passara numa pequena praça de Paris, onde se concentrava uma multidão enraivecida, barrete encarnado na cabeça e pé descalço. A rainha portuguesa não sobreviveu a estas notícias e perdeu para sempre e de todo a razão. Cacarejava às janelas, gritava nos corredores, comia a cera das velas, soltava gargalhadas sinistras nos salões, urinava nos lençóis. O príncipe aproveitou a gravidez da mulher e o descalabro da mãe para se mudar para Queluz, regressando aos velhos hábitos. Foi uma das raras ordens que se atreveu a dar e talvez a única que o beneficiou claramente. Era parvo e belfo, mas não corrupto.

– Que santa e deliciosa paz ­– exclamou ele quando se viu entre os trastes antigos, de chinelos e roupão, capão loiro no prato e botelha de Colares por perto.

Apesar disso os tempos correram difíceis para o príncipe. Nasceu-lhe a primeira filha, Maria Teresa, que a esposa lhe metia na cama à noite, retirando-lhe o superior prazer de ressonar alto e sozinho, entre nuvens de almofadas; a rainha francesa Maria Antonieta continuava presa, à espera de ser levada a julgamento; caíam destroçados os primeiros exércitos prussianos que se lançaram ao assalto da fortaleza revolucionária. Os soldados Franceses, embriagados pela fermentação estrepitosa da Marselhesa, levavam de roldão os invasores, passavam à ofensiva e ocupavam, a rir, grosseiros e descalços, Bruxelas e várias cidades alemãs. A cronologia cristã era substituída por um calendário republicano, cujo ano I começava com a República francesa, início da nova idade do mundo. Deus foi abolido e substituído pela deusa Razão, cuja festa se celebrou na catedral de Notre Dame com uma cativante actriz a fazer de deusa. Depois veio o Ser Supremo de Robespierre e a ideia duma procissão purificadora.Vivia-se o Terror e a carreta dos condenados rodava inexorável todas as madrugadas em direcção da lâmina da guilhotina. A Inglaterra, preocupada com a chegada dos Franceses aos Países Baixos, preparava-se para se coligar com as potência europeias. Godoy em Espanha, primeiro-ministro aos vinte e cinco anos, avançava aos berros para a guerra com a França. Portugal, como era hábito, hesitava.

O príncipe português maldizia a vida naquele aperto, sem saber o que fazer. Por índole, o que lhe apetecia era não bulir numa palha.

– E logo a mim, logo a mim, agora que estou em Queluz, é que me havia de acontecer tal coisa ­– exclamava ele desesperado, em surdina, a sós, achando-se o mais infeliz dos homens.

Era o pai do reino, mas um pai abúlico, abstracto, tonto, sem vocação, a quem faltava a vontade de falar, quanto mais de fazer viver. No fundo sentia-se um pai de empréstimo, transitório, um padrinho gordo e solteiro a quem pediram um favor e que estava desejoso de alijar a carga, entregando os filhos que não eram dele. Mais do que rei ou regente, sentia-se um despenseiro a quem coubera em sorte distribuir os regalos da munificiência alheia. Os ministros batiam o pé no chão desesperados. Queriam uma resposta pronta do príncipe, uma declaração de guerra à França. O Seabra, que fora ministro de Pombal, e se gabava de ter estratégia e visão, propunha um acordo luso-espanhol para atacar a França. O Cerveira, visconde reabilitado, apoiava. O marquês de Angeja, Pedro José de Noronha, que tivera papel determinante no afastamento de Pombal, falava, com o assentimento de Luís Pinto de Sousa Coutinho, dos compromissos Ingleses e da necessidade absoluta de seguir a sua política.

­– A toda poderosa Inglaterra, meus senhores. A toda poderosa Inglaterra ­– repetia ele com basófia no meio do discurso, quando perorava no conselho, para reforçar a tese.

Carlota Joaquina queria cama e regabofe. Andava ainda muito longe da política, que foi depois a sua segunda paixão, pela qual barafustou, mordeu, matou e envenenou, empurrando a pontapés o reino para os horrores duma guerra civil. Pina Manique, o intendente, engrossava a voz, apurava o estadulho, enchia as prisões com milhares de inocentes. Quando o seu vice, José Anastácio Lopes Cardoso, que era sóbrio e aplicado, lhe perguntou um dia a razão de tal despautério, ele abanou a cabeça em sinal de reprovação e respondeu convicto.

– Com certeza que no meio de tanto ladrão há-de seguir um pedreiro livre.

Dom João da Falperra inventava anedotas sujas com Robespierre e a Deusa da Razão, que faziam muito sucesso nos salões da corte. A Doida gritava de medo, inconsciente e vaga, como se advinhasse o pânico que alastrava pela Europa. O inquisidor-geral, cada vez mais austero e magro, vestido de luto, cruz de ferro na mão, ameaçava o mundo com as chamas do inferno e pedia penitência, muita compunção, séria, grave, conscienciosa, pelos pecados atrozes de José I e do seu ministro. Fazia-se com o seu espectro descarnado e escuro, a sua voz cavernosa e assustadora, os seus olhos penetrantes e frios, os seus cabelos ralos e negros a escorrerem pela face cinzenta, a alma nova da Viradeira, muito mais rigorosa e fanática, muito mais exigente e violenta.

E o príncipe que era feito dele? O príncipe chorava, no quarto, diante da janela que tão ditosa lhe fora outrora, chorava a sua má sorte, disposto a voltar costas a tudo, como fazia em criança, no tempo do mano José. Por fim, num golpe que lhe revirou as entranhas, decidiu-se; assinou em Junho uma convenção luso-espanhola contra a França revolucionária, aproveitando a aproximação da Espanha à Inglaterra. Foi a sua primeira decisão política; ele que estava fadado para ficar nas traseiras do paço, repartindo a ração com o podengo da guarda, principiou o seu governo por uma declaração de guerra contra a França. Ele no aperto tentava brincar.

– Fazem-me pai à força. Não passo  porém dum padrinho.

Mas a decisão foi-lhe violência tão ingente, que operou nele turbulências fisiológicas. Durante dias desfez-se em diarreia nas sentinas de Queluz, enjoado e amarelo. Recompôs-se a caldos de arroz mas saiu do caso enfiado, triste, azedo, com uma ferida indelével, as hemorróidas, que foram para sempre no seu corpo o sinal do fardo que lhe era a obra do paço ou tão-só o acto de viver.

Pela mesma altura, um jovem tenente francês de artilharia obrigava os Ingleses a abandonarem o porto mediterrânico de Toulon e ganhava aos vinte e três anos no cimo duma muralha escalavrada as estrelas de general. Chamava-se Napoleão Ramolino Bonaparte. Era uma luz anónima mas intensa naquele céu tempestuoso e enlameado; levantava-se firme e segura à espera de brilhar naquele mundo novo que nascia do nada e tão escuro se revelava. Ninguém dava ainda por ele, mas depressa a Europa olharia para ele com o deslumbramento que se tem diante do Sol num dia limpo e parado, de céu azul. Por agora, essa Europa procurava apenas a desforra da derrota de Valmy, que abrira as estradas dos Países Baixos aos Franceses, e decapitar de vez a ousadia dos revolucionários. Queluz via-se picada a participar neste primeiro esforço militar das monarquias coligadas contra a França republicana. Os ministros andavam vivos e açodados. Rabiou o príncipe que o deixassem sossegado, que a França ficava lá longe, que os sucessos da Mogúncia, na Alemanha, nada tinham a ver com Portugal.

– Cacete, quando é que estes marmelos me deixam comer em paz o guizado de borrego ­– lastimava-se ele, desgraçado e espirituoso, quando se apanhava sozinho.

Mas já não tinha ilusões; sabia que a entrada da Inglaterra na guerra punha Portugal numa roda-viva. A sua expectativa, como de resto a de toda a Europa, era que aquilo não podia durar muito; a República francesa estava condenada e o regresso dos Bourbons era fatal e próximo. Comprometeu-se então a contra-gosto a enviar um contingente português para combater ao lado da Espanha no Rossilhão francês. Arregimentou-se uma divisão de 6 regimentos de infantaria, mais de mil e quinhentos homens, e um corpo de artilharia com vinte e duas bocas de fogo, comandado pelo velho John Skellater Forbes. O marquês de Angeja, no dia da partida, a 20 de Setembro de 1793, quando viu o britânico na parada de Belém, mais reluzente que soberbo, casaca vermelha de gola alta, alamares doirados traçados no peito, calça branca muito justa na coxa, boldrié negro apertado na cintura, chapéu preto, de feltro, debruado a oiro com pluma branca, comoveu-se.

– Estamos em boas mãos, meus senhores. Não podíamos estar melhor – exclamou.

O príncipe encolheu os ombros, tanto lhe dava o Forbes como outro qualquer. Aquele recrutamento custara-lhe os olhos da cara e roubara-lhe um tempo precioso. Mostrava-se agora avaro, além de indolente e preguiçoso. Detestava gastar dinheiro; ficava doente, mergulhado em sofrimento, quando tinha de ir buscar os dobrões ao saco.

– Contai o dinheiro até à última peça de cobre – dizia ele, com uma preocupação maníaca, adverso a todo o luxo e mesmo a qualquer supérfluo.

Valeu-lhe ser assim? Valeu, porque caso houvesse sido desleixado nunca teria acordado da letargia em que andava e todos o roubariam com o maior descaramento. Encontrara um buraco fundo nas contas públicas; as boas finanças do tempo do marquês de Pombal não eram mais do que uma vaga recordação. A reabilitação dos grandes domínios nobres, o regresso dos jesuítas – cuja Companhia na prática nunca desaparecera, mau grado a dissolução ordenada em 1773 por Clemente XIV –, as reparações a estes e àqueles, o desinteresse do Estado pela política económica, o fim das companhias comerciais, o recuo do mercantilismo, a falta de protecção legislativa à manufactura, a que se juntava ainda o luxo perdulário de Pedro III, de Maria I e dos seus ministros, quase todos ladrões e rapinantes, haviam empobrecido o Estado e criado as condições para uma atmosfera de descalabro económico. Quinze anos de reinado de Maria I haviam arruinado por completo os fundos e deixado o país de joelhos; o príncipe João, querendo, não tinha dinheiro para gastar. Mas não queria. Contentava-se com os chinelos rotos e o roupão velho, a casaca puída e os sapatos estafados, com o tacão alto, Luís XV, meio abalado.

– Ide-me ver se os dobrões estão no lugar ­– dizia ele com ar maroto para o Cerveira, seu secretário de Estado.

No fundo, como bom avaro, fazia às escondidas planos para enriquecer. Esperava multiplicar o oiro gasto no recrutamento do Rossilhão e que tanto trabalho lhe dera amealhar. Nadara numa angústia amarga e sufocante quando fora preciso gastá-lo. Projectava agora a desforra, com grandes ganhos que o compensassem daquele desespero. Contava com a derrota rápida dos Franceses e com as benesses que daí vinham. Já via as dívidas pagas e os cofres cheios. Era o dinheirinho que lhe interessava, não o Forbes com o seu talim galante e gasto a tiracolo.

Infelizmente para ele as notícias foram más. Maria Antonieta foi julgada, condenada e executada; a sua cabeça de rolinha mimada rolou no taboado grosso do patíbulo revolucionário francês fazendo estrondo nas cortes europeias. Portugal, que tinha relações antigas e privilegiadas com a Áustria, berço da antiga rainha, chorou-a estupefacto. Ao fim dum ano de campanha, os cerca de trinta mil soldados do exército luso-espanhol abandonavam o Rossilhão francês, numa retirada precipitada que acabou em debandada. Os Franceses mais uma vez passavam de invadidos a invasores, atravessando famintos e descalços os Pirinéus e pondo cerco por terra a diversas praças espanholas. Estavam a inventar uma nova forma de combater, muito mais veloz e movimentada, economizando meios e mobilizando a nação profunda. O entusiasmo das multidões substituía com vantagem o rigoroso e pesado profissionalismo dos exércitos antigos. Por todo o lado, os exércitos Franceses, mal apetrechados de armas e munições, sem tendas nem rações, apoiados apenas no delírio e nas velozes movimentações dos seus chefes, mostravam uma superioridade táctica sobre o cauteloso espírito dos seus inimigos. Também a República, cuja precária situação interna fora a esperança de muitos, ultrapassava o vicioso período do Terror e encontrava com o Directório a estabilidade das soluções medíocres. A República deixava de ser um caos passageiro para se mostrar um Estado organizado, capaz de assegurar a sua sobrevivência.

– Estão de pedra e cal estes Franceses ­– dizia-se com impaciência e mau humor em Queluz.

Godoy, impressionado pela energia dos Franceses, não hesitou em fazer com eles a paz em Junho de 1795. Abandonou no terreno as tropas portuguesas e rompeu a coligação aliada contra os Franceses. Estes,  encantados com o ministro dos Bourbons Espanhóis, deram-lhe o título de príncipe da Paz. Era o primeiro grande rombo nas monarquias coligadas e a constituição dum bloco continental em torno da França republicana.

– Bela pândega – comentou indignado o Seabra, referindo-se a Godoy, então com vinte e oito anos e acabado de sair da Escola Militar de Madrid.

– Pudera, não. Com uma rainha assim até um ferreiro se fazia rei – atirou-lhe Luís Pinto de Sousa.

A rainha era Maria Luísa de Parma, uma napolitana sardenta, entrada nos anos, mãe de Carlota Joaquina e do futuro Fernando VII. A ninfomania tomava conta dela aos períodos e durante essas épocas era insaciável e voraz, não olhando ao escândalo para se satisfazer. Não lhe chegava o rei nem um amante de ocasião, às ocultas; precisava de arregimentar às claras para o leito toda a elite do corpo de guardas. Era excessiva e portentosa, duma lascívia sem limites. Foi aí, num desses transes agudos de histerismo, que conheceu Manuel Godoy, um militar de bom porte, pernas rijas, lábios grossos e pequeninos, dedos curtos, olhos sagazes, patilhas robustas, que teve a sorte de surpreender a rainha. Tornou-se de imediato seu amante e primeiro-ministro. Três anos depois era feito príncipe da Paz pelos Franceses e conseguia o impossível, a reconciliação dos Bourbons Espanhóis com a França revolucionária.

A vida ainda assim corria satisfatória ao príncipe português. Depois do primeiro choque, aquele que se seguiu à morte do mano e ao primeiro assomo de loucura da mãe, em que teve de tomar decisões arriscadas, puxou do humor e conseguiu recompor-se. A avarícia, com as suas angústias, também o ajudou a ter um contacto mais directo com os meandros do poder e a ter mão nos ministros. As ruas, policiadas por Pina Manique, estavam limpas e serenas; a sua consciência, tratada a capão e doce de ovos, tranquila andava. Fugia de quando em vez para Mafra para visitar a matinha e cantar o canto-chão com os frades. Tocado pelas arremetidas fogosas de Carlota Joaquina, fizera-lhe mais três filhos, António, que veio a morrer aos seis anos em 1801, Maria Isabel, que foi mais tarde casar a Espanha com o irmão da mãe, Fernando VII, e Pedro, que nasceu num quarto de Queluz em 1798 e veio a ser o imperador do Brasil e o fundador dos Braganças modernos que reinaram em Portugal até Carlos I. Ademais, havia sempre as suas fugas, proverbiais e queridas, quer para o quarto, enfiando-se no roupão esfiapado, quer para Mafra, onde tinha os pombais e o canto.

Com tudo isto atreveu-se mesmo a uma remodelação do gabinete em 1796, altura em que mandou iniciar as obras na Ajuda, depois do Real Barracão ter ardido num incêndio arrasador. Mantinha os ministros e nomeava novos conselheiros, entre eles Alexandre de Sousa Holstein, diplomata e filho duma vítima de Pombal. Recusava-se ainda assim a assinar com o seu nome. Ele não era nada, a rainha tudo. Continuava a querer ser apenas o filho da rainha.

– Vamos pelo hábito e por ele ficamos – dizia ele, sem prosápia e sem mentira, quando os frades de Mafra lhe perguntavam como iam os afazeres por Queluz.

No meio, em surdina, a sós, querendo mal ao Pinto que tanto insistira no negócio, só lamentava o dinheiro perdido com o contingente português mandado para o Rossilhão francês. E não havia mesmo maneira de recuperar um cobre que fosse. O contingente regressara humilhado, com as peças perdidas, os homens esfarrapados e abatidos.

– Ide saber das famílias e deixai o resto – foi tudo o que o príncipe encontrou para dizer ao exército, quando o recebeu no cais de Belém.

Entretanto os exércitos Franceses, cheios de voluntariedade e entusiasmo revolucionário, mostravam-se imparáveis; desafiavam destemidamente meia Europa. Napoleão Bonaparte, o tenente anónimo de Toulon, tomou em mãos o exército da Itália, e conquistou em menos de quinze dias todo o Piemonte, ocupou a Lombardia, entrou em Milão e Mântua, derrotou os austríacos, marchou vitorioso sobre Viena. Em menos de nada os seus exércitos expulsaram reis, fundaram Repúblicas à imagem daquela que governava a França, saquearam os tesouros dos conventos e das grandes casas senhoriais, financiando assim o esforço de guerra e equilibrando as finanças do governo.

A Holanda, a Bélgica, a Suíça, uma parte da Alemanha e a Itália agrupavam-se à volta da França, como as seis estrelas da nova constelação que brilhava sobre o mundo, a liberdade. O século fechava com a música ideal das esferas a falar francês. Em breve os reis desapareceriam, as monarquias seriam abolidas, as Constituições e a liberdade substituiriam o absolutismo do mundo antigo. O povo saía da noite escura e anónima em que vivera esquecido durante séculos e ocupava de repente a cena toda. A ordem velha estava a morrer e a França saída da Revolução surgia como o farol do mundo novo. Para isso Napoleão sonhava um Grande Exército capaz de alargar a toda a Europa a constelação da liberdade, por ora reduzida às cinco ou seis estrelas que se agrupavam na sua periferia. Em menos de nada, a República fê-lo primeiro cônsul, com poderes ilimitados. A França era sua; abria-lhe as pernas, desde que ele não se esquecesse de lhe injectar aquele sonho dum exército sem fim enterrando dos Urais ao Atlântico a ordem velha do absolutismo.

Em Portugal as ondas de choque deste delírio subiram alto. Pina Manique aguçou o estadulho; Maria Francisca Benedita chorou a viuvez; o inquisidor-geral riu com cinismo e ira, confirmando as suas visões apocalípticas.

­– Robespierre foi o Baptista do Anticristo. Este, o corso, gordo e impante à frente dos seus exércitos invencíveis, é que vai espalhar por toda a parte o terror do fim do mundo – dizia ele, de olhos esgazeados.

A rainha, nos raros momentos de lucidez, tremia, tremia, tremia, para voltar logo de seguida a mergulhar aos berros numa loucura profunda e letárgica, donde era cada vez mais difícil arrancá-la. Os conselheiros e os ministros insistiram para que ela fosse afastada de vez do governo.

– Sua Alteza não pode continuar a firmar em nome da rainha. É preciso que o faça como regente de jure – disseram ao príncipe.

Este, de beiçola desgarrada, cada vez mais gordo e disforme, lamentava como era hábito a sua sorte.

– Não bastava o Corso para fazer dores de cabeça. Agora ainda por cima me querem fazer regente sem excepção. Logo de jure; ainda se fosse de juba… – exclamava ele, olhando-se ao espelho, repuxando a papada, desagradado, triste, gozão.

Não houve modo de fugir à formalização da regência. Outro há muito que se teria batido por ela; ele, com a sua índole de despensareiro, adiara-a o impossível. Sentia-se um padrinho convidado à força, um simples divisor de rações, não um pai de facto, carinhoso e preocupado. Queria ele lá saber de formalidades; um homem que se entendia com a vida enfiando um roupão no fio e umas chinelas emporcalhadas dava de barato a coroa, quanto mais o direito e a etiqueta. Quando se viu regente do reino, apareceram-lhe uma revoada de novos interesses em Queluz. Já ninguém ligava à rainha velha, doida de todo, fechada num quarto escondido, quase sem visitas e vida própria. Só o Melo, enfiado nos sapatões negros de meio tacão, sotaina sinistra até aos pés, cruz de ferro ao peito, chapéu no alto da cabeça, tapando-lhe a tonsura, lhe permanecia fiel. Foi esse o momento em que desapareceu o velho Seabra da Silva e surgiram novas caras. Apareceu o conde de Vila Verde, o Francisco Lobato, depois visconde de Vila Nova da Rainha, o Araújo, conde da Barca e Rodrigo de Sousa Coutinho, conde de Linhares. Ainda por lá andavam o marquês de Angeja, o Cerveira, o Pinto e os outros, todos os outros que haviam chegado em 1796. O desastre do Rossilhão, o afastamento de Godoy, a projecção europeia dos exércitos Franceses, o sonho visionário de Napoleão empolgavam as conversas. As opiniões dividiam-se entre os que continuavam a exigir um esforço militar contra a França e os que, diante daquele quadro, sobretudo da aliança franco-espanhola, se batiam por uma aproximação, ainda que tímida, a Paris.

– Os Bourbons são o legítimo governo da França; hão-de regressar. A Inglaterra não vai baixar os braços – diziam os primeiros, capitaneados por Rodrigo de Sousa Coutinho.

– Temos obrigações para com a Espanha – respondiam os segundos, tendo à frente o Araújo, que fora em 1797 a Paris tactear um tratado de entendimento com a República.

O regente olhava abstractamente para aquelas duas influências. O conde de Linhares, Rodrigo de Sousa Coutinho, era um leão matreiro e muito sabido, bem nutrido, boémio, folgazão, mas cheio de projectos grandiosos. Tanto ele como Pina Manique protegiam debaixo das asas frondosas as legiões de exilados realistas Franceses, que depois da República haviam chegado a Lisboa. Cativavam esses pobres diabos com lugares públicos de relevo, esperando assim contar com eles, quando chegasse a hora de fazer a guerra à França. Sousa Coutinho andava sempre vestido de casaca vermelha, com grandes bordados a oiro, imitada dos Ingleses. Dava-se muito com o Angeja, também ele um sátiro atrevido e untuoso, que não dispensava a moda londrina e que repetia a todo o instante o seu estribilho preferido.

– A toda poderosa Inglaterra, a toda poderosa Inglaterra, meus senhores.

A coroa de glória da vida do Angeja, que passava por sábio naturalista mas não ia muito além dum velho marau, era o encontro particular que tivera uns anos antes, em 1794, com William Beckford, escritor e diplomata inglês. Debitara uns números e umas banalidades sobre a rainha e o príncipe herdeiro, mas ainda assim considerava o seu depoimento de transcendente importância para o futuro das relações luso-inglesas.

O Araújo, mais magro, mais novo, mais idealista, deixara-se tocar na primeira juventude pela cultura dos Franceses e tinha um ar distinto de tribuno plebeu, com o lenço branco enrolado ao pescoço, a casaca azul, simples, sem bordados, com botões de prata, e os cabelos pretos e curtos tapados por uma peruca esticada e despretensiosa. Quando lhe perguntavam malevolamente se, além da peruca, a cabeça também era de importação gaulesa, ele sorria mas respondia friamente, de mau humor.

– Não se trata disso. Não são as minhas ideias que são francesas, é o acordo de 1778  que condiciona a nossa política externa. Não o devemos rasgar.

O acordo era o Tratado da Amizade e da Garantia assinado pela rainha e por Carlos III de Espanha e que tivera o dedo de Mariana Vitória, a rainha velha, tia do rei de Espanha e viúva de José I. Antes, fora severamente censurado por condicionar a política externa portuguesa à Espanha; agora servia para uma aproximação à política europeia continental. Alguns membros influentes da corte acompanhavam a política do Araújo. Era o caso do duque de Lafões, um grande influente, que descendia dum filho de Pedro II e fora nos pratos da balança da primeira Viradeira peso muito grado. Fundara em 1780 com o abade Correia da Serra, seu confidente, a Academia Real das Ciências e a rainha no fim da sua governação nomeara-o marechal de todas as armas, pondo-lhe nas mãos exércitos e armadas.

O regente, com um pouco de esforço, lá percebia que naquele jogo perigosíssimo em que se tornara a política estrangeira portuguesa tanto o Araújo como o Coutinho tinham trunfos para dar.

– Não podemos estar mal com a Inglaterra por causa do Atlântico e do comércio com o Brasil, mas não convém por nada bulir com a França para a Espanha não aguçar para cá da fronteira os olhos gulosos – repetia ele.

Era o que dizia Alexandre de Sousa Holstein, seu diplomata e conselheiro. Fazia sentido e por isso o regente tomava aquelas palavras como lei. Por inclinação, o assunto não lhe interessava; por obrigação habituara-se a ele. Logo, aproveitava uma vezes o Coutinho para bajular a Inglaterra e outras o Araújo para ir engodando a França. Sabia que a estabilidade da situação portuguesa dependia nos próximos anos do equilíbrio desses dois pesos. Um dia, que lhe perguntaram qual dos dois ministros tinha por mais próximo, ele respondeu, iludindo o juízo.

– O segredo está em ter à mão os pesos, para não desiquilibrar o instrumento – disse ele, referindo-se aos dois ministros.

Já ninguém pensava que a França revolucionária se desfizesse nos tempos mais chegados. Era caso que tinha vindo para ficar e durar. Napoleão mostrava-se invencível; as suas manobras velozes à frente do Grande Exército levaram à derrota dos austríacos em Marengo e à necessidade dos austríacos assinarem a paz com os Franceses, pondo fim à segunda coligação e permitindo ao primeiro cônsul algum desafogo para se dedicar à sociedade francesa. Ainda assim o secreto impulso deste continuava a ser enterrar o velho mundo na Europa, destituindo reis, abolindo monarquias, redigindo constituições, levando vitorioso atrás de si dos Urais ao Atlântico o Grande Exército. Estava consciente que um único país lhe podia fazer frente, a Inglaterra, e preparou-se quanto antes para o vergar. Exigiu dos aliados Espanhóis um compromisso naval e pediu a Portugal que fechasse os portos ao comércio inglês. Caso assim não fosse, ameaçou com a ocupação de Portugal. Era o primeiro esboço do bloqueio naval, que mais tarde quase sufocaria a Inglaterra, e o primeiro ensaio daquilo que seis anos depois seria a primeira invasão francesa em Portugal.

– O Araújo é que nos vai tirar desta embrulhada ­– exclamou o príncipe, quando soube das exigências de Napoleão.

Mas o Araújo não salvou nada, porque as intenções do regente não eram obedecer ao primeiro cônsul mas como era seu modo entreter-lhe por uns momentos a atenção. A Espanha, fiada nos acordos com a França, tratou logo de declarar guerra a Portugal, atirando os seus exércitos contra a fronteira portuguesa. À frente deles, vinha o príncipe da Paz, com os seus olhos penetrantes e os seus lábios sensuais, desejoso de se cobrir de glória nos campos de batalha e imitar os generais Franceses. Também ele, o cadete da escola de oficiais de Madrid, pândego e arruaceiro, se sentia um Napoleão. Não conquistara o lugar de ministro aos vinte e cinco anos, impondo desde logo a sua vontade política ao rei? Sim. E agora, ainda por cima, chicanava ele com os antigos camaradas da guarda real, pregava uns valentes bofetões na rainha. Não era homem que deixasse uma mulher falar de alto; demais, os nervos da magana vibravam com aquilo e as sessões de pancadaria acabavam sempre em êxtases de cama. Quando mais gozava com a rainha, não duvidava, era quando começava por lhe ir ao coirão com uma palmada valente. Godoy e Maria Luísa eram a devassidão em toda a sua fealdade.

Foi este melro que se dirigiu para Portugal. Pela frente ia encontrar o marechal de todos os exércitos, o duque de Lafões, um velho com mais de oitenta anos, que se lembrou à última hora de chamar os Ingleses. Quando o regente, seu parente ainda, lhe deu a notícia da indiferença da Inglaterra diante da invasão espanhola, o marechal encolheu os ombros roídos pelo reumatismo e exclamou com a voz sábia, já apagada pela idade.

– A mim nunca me enganara. A toda poderosa Inglaterra é um fiasco.

E lá foi com as suas hostes estremunhadas pela luz do novo século para a sua primeira batalha. Perdeu tudo, porque não tinha idade para dar um passo fora do quarto quanto mais para comandar uma carga de baioneta. No tempo dum relâmpago, Godoy ocupou Olivença, Juromenha e Campo Maior. À frente das tropas, embrulhado no capote de generalíssimo, de sorriso sumarento, imitava as poses soberbas e desdenhosas dos generais Franceses; fazia de conta que os outeiros do Alentejo eram os penhascos dos Alpes. As últimas laranjas ainda pendiam doces e suculentas dos ramos nos pacatos pomares que ele ia ocupando. Lembrou-se então que metia no leito uma rainha e enviou-lhe um desses ramos para ela se lembrar do gozo do amor. O duque fugiu para Abrantes, onde se fechou cambaleante e amedrontado. – Procura-se um menino que se perdeu entre Portalegre e Abrantes – anunciavam com ar sério os pasquins que se publicavam em Lisboa, a propósito da evaporação do duque.

Depressa se tornou na mais rídicula personagem do Portugal do tempo. Todos riam do pobre velho de oitenta e dois anos, chalado e enclausurado nas fortificações de Abrantes. O regente viu-se obrigado a assinar à pressa a paz com a Espanha e a França, entregando à primeira a praça de Olivença e à segunda uma parte da Guiana brasileira e pagando a ambas grossas indemnizações. Por fim, comprometia-se ainda a fechar os portos aos Ingleses.

– Ide de vez. Estou por tudo desde que me deixem em paz ­– reflectia ele, amargurado e doído com o destino e com a vida.

O que mais lhe custava eram os dobrões de oiro que tinha de desembolsar. Olivença ao pé do dinheirinho não valia nada. Vingava-se fazendo durar a casaca, o lenço e os sapatos e mandando suspender parte das obras do novo palácio, na Ajuda.

Carlota Joaquina dava à luz nesta época Isabel Maria, que se tornará a irmã dilecta de Pedro e uma das personagens que mais nos acompanharão neste relato. Muitas desaparecerão para sempre, não deixando rasto, como este pobre e ridículo duque de Lafões, que morreu de vergonha pouco depois dos sucessos de Olivença e Juromenha; não é porém o caso desta Isabel Maria, que sobreviverá até 1876, será regente e acompanhará ainda a primeira infância de Carlos de Bragança, seu sobrinho. Lá a veremos mais tarde nas salas da Ajuda, amargurada pelos amores frustrados da juventude e pelo clamor brutal da violência entre os dois irmãos, fechada num vestido negro, cada vez mais amarrotado e bafiento. Foi a ave agoirenta da infância de Carlos, aquela que lhe lembrou as tragédias recentes da família e lhe instilou no destino a certeza da catástrofe, se não o humor do desastre. Por agora era uma recém-nascida, de olhos negros, mansa e parda, nos braços peludos da mãe. Aos seus ouvidos chegavam os berros dilacerantes da rainha, sua avó, enclausurada num quarto distante de Queluz com o Melo severo e apocalíptico ao lado. E pelos seus olhos passava a sombra escura e silenciosa de Maria Francisca Benedita, cada vez mais enlutada e sinistra no vestido negro e nas olheiras fundas de viúva.

– Devia ouvir música de Málaga, comer pimenta e bater castanholas  – dizia Carlota Joaquina a propósito dessa cunhada que em tempos lhe havia ensinado sem sucesso francês e solfejo.

A mulher do regente era agora outra pessoa. Estava com vinte e seis anos e seis filhos paridos. Fizera-se grande, esguia, pesada; acentuara a escuridão dos olhos e deixara crescer os cabelos negros, que enrolava à volta da cabeça como uma cobra de muitas voltas. No meio, sobre a testa, punha um diadema de oiro com um diamante vermelho. Exagerava no luxo e na cor; alguém que a viu por esta época descreve-a, ao longe, como uma rainha lendária, irreal, fabulosa, carregada de jóias e de tecidos raros, vaporosos. Perto era outra coisa, pois começavam a faltar-lhe os dentes, exalava mau hálito, fedia dos pés, tinha os ouvidos pretos e mostrava a cara e os braços cobertos de pêlo sujo e ralo.

Desde a campanha do Rossilhão e da ascensão de Godoy que a política se tornara para ela uma paixão. Tomara o partido dos Espanhóis e aproximara-se do Araújo. Não tinha a mais leve simpatia pelas ideias revolucionárias, que na essência desconhecia, ignara e espessa que era; soubera odiar o constitucionalismo francês dos primeiros tempos e indignar-se com raiva feroz perante a Convenção, de que fora a mais assanhada inimiga portuguesa. Defendera apaixonadamente os Bourbons e o seu estilo aristocrático de vida; gritara irada com a morte de Luís XVI e chorara verdadeiramente desconsolada o infortúnio de Maria Antonieta. Mas amava a Espanha, o seu berço de menina, essa Espanha que agora se derretia de enlevo com as vitórias de Napoleão.

– Olvida o Coutinho, que nos come a todos ­– avisava ela o marido, à noite, quando o encontrava na cama.

O regente, banazola que era, acenava que sim; não fazia tempestades, mas por trás lamentava-se com o Lobato, seu guarda-roupa e porteiro da real câmara, da paixão política da mulher. Estava inconsolável.

– Estou perdido! Deus meu, só me faltavam agora os conselhos acalorados daquela extravagante.

Quando fora da guerra das Laranjas e ela vira que o regente mandava o duque de Lafões com um exército armado ao encontro do príncipe da Paz, enfurecera-se e tomara o partido dos Espanhóis contra o marido. Intrigara, mexera e remexera, mostrando-se disposta a uma vasta conjura caso o marido não assinasse de imediato uma capitulação favorável aos Espanhóis e aos Franceses. Por fim, sanhuda e apaixonada, estreloiçara em berros, pelos corredores da corte e pelas ruas de Lisboa.

– Arriba Godoy.

O regente quando se dera conta do procedimento da mulher desgostara-se dela de vez. Sobreviera-lhe uma tristeza tão funda e tão aflitiva, que nunca mais se libertou dela até morrer. Para o mal encontrou depois atenuantes momentâneas, como a separação da mulher, mas nunca remédios definitivos.

– Não lhe suporto o cheiro, quanto mais tê-la ao pé de mim na cama – desabafara o infeliz ao ouvido do Lobato, quando a soube afervorada de Godoy.

Exigiu pois a separação da mulher, quando assinou os tratados com a Espanha e a França. Não era tanto a humilhação das cláusulas que pesava sobre os seus ombros, mas a necessidade de pôr a andar de vez aquela mulher que o assustava. De extravagante arriscada e inconveniente passou a indesejável, se não a estafermo insuportável.

Carlota Joaquina não se fez difícil. Pegou nos baús da roupa e nas açafatas espanholas e foi para o Ramalhão, na entrada de Sintra, a duas ou três léguas de Queluz. Aí, numa quinta encantadora, atapetada de relva, enriquecida de árvores seculares, regada por bicas de água fresca, protegida das bocas do mundo, mandou construir um palácio, cujas janelas abriam, através de vastas alamedas de árvores, para os penhascos mouros de Sintra. Nas traseiras tinha os jardins e os pomares de fruta onde se regalaria no Verão. Nem sequer pensou em dependências para instalar a criadagem; o seu modo de vida era tão desbragado e solto que enfiou os criados com ela no palácio. Aquilo depressa se tornou um refúgio de pândega, um valhacouto de vadios, fadistas, toureiros, fidalgos ociosos, moços de estrebaria, palhaços, actrizes, libertinos e prostitutas, que se cruzavam a desoras uns com os outros, falavam aos berros um calão castigado, espalhavam vidros pelos corredores, partiam loiças nos quartos, deixavam peças de roupa íntima nos salões, vomitavam mistelas avinhadas pelos cantos.

A esposa do regente reinava no meio daquela porcaria como uma deusa ébria; comandava todas aquelas extravagâncias e todos lhe obedeciam, não por medo mas por atracção e não sei se por amor. Era cruel, vingativa, descarada, mas sabia igualar-se ao mais insignificante dos seus servos, criando assim uma irmandade, que era cumplicidade para a morte e simpatia para a vida. Quando se embebedava à mesa logo chamava para o pé de si o moço da copa para beber com ela. Acabavam a vomitar das janelas, mas unidos por um laço em que nem a morte tinha poder. Foi o seu primeiro período áureo, aquele em que ela, livre de todos os constrangimentos, criou pela primeira vez a sua corte, reinando a seu modo. Era bruta, ignorante, suja e por isso aquele mundo nasceu alarve e grosseiro como uma estrebaria ou um bordel. Assim ela seria sempre até ao fim, quase trinta anos depois. Do mesmo modo, o mundo que ela foi criando, do Brasil a Queluz, foi sempre brutal e negro. Mas o ponto de todos esses círculos concêntricos foi o Ramalhão da sua Primavera.

– Sem o Ramalhão não passava duma desdichada – confessou ela, por esse tempo, ao Vila Verde, quando este a procurou da parte do marido.

O regente, quando a soube assim satisfeita, respirou de alívio.

– Ainda bem. Que fique, que fique… e que me apareça o menos possível – aliviou-se ele com o Vila Verde.

Quando se viu sem marido, a princesa passou a deitar-se com qualquer um, à espera de encontrar o amante sublime. Repetia em tintas mais carregadas a mãe, Luísa de Parma, a amante de Godoy, não sei se por destino, se por moda, ou se pelas duas, o que me parece bem possível. Escolhia todas as semanas novos pares e de todos se desfazia. Não se fixava, mas experimentava de tudo. Era um regabofe, que a enchia de entusiasmo e de boa disposição. Deitava-se com fidalgos e toureiros que passavam pelo Ramalhão acompanhados por actrizes e prostitutas de face branca e magra; deitava-se com fadistas e com libertinos famosos que tinham levado à histeria da loucura mulheres frias e defensivas; deitava-se com moços de cavalariça, com saloios, com pescadores de tez tisnada e pernas bem desenhadas que ela mandava buscar às cabanas da beira-mar. Era uma legião sem fim, ululante e alterosa, onde se encontrava de tudo, desde o artista devasso ao labrego ignaro, arrancado aos torrões da terra e que nem sequer sabia com quem gozava.

– A rata, a rata… vem aí a rata – era assim que nos obscuros lugarejos dos saloios os miúdos andrajosos, de braços na cabeça, davam o sinal da sua chegada, porque a diziam feroz, insaciável, peluda e húmida como uma selva.

É o momento em que o regente, com pouco mais de trinta anos, picado pelos femeeiros da corte, tentou a sua sorte junto duma pequena que andara em tempos junto da mulher. Chamava-se Eugénia José de Menezes e era neta do velho marquês de Marialva, o das corridas de toiros do tempo do avô José. Tratava-se de mulher discreta, líndissa, muito fina, de porcelana e a quem o regente passou a galantear como coisa rara, favorecendo-a com presentes caros. Foi amor? Não creio, que este homem era demasiado céptico e tinha humor a mais para acreditar no amor, que é uma paixão ingénua e quente. A menina, quando percebeu as intenções do regente, entregou-se-lhe humildemente, satisfeita por ter os seus favores. Ele levou-a para Vila Viçosa e passou com ela um fim-de-semana eufórico. Mas depois, quando se preparava para continuar, sobreveio-lhe uma violentíssima crise de hemorróidas. Palpava o rabo e tinha por lá um inchaço de pedra que o fazia gemer de dores.

– Oh diabo. Isto assim é uma desgraça. É parar – desbafou consigo.

E parou, parou para sempre. Histórias de mulheres ficaram por ali, nunca mais até ao fim da vida tocou em nenhuma. Em vez delas preferia o sossego do rapé, a graça das anedotas e a segurança séria e solitária do cantochão. Havia mais sossego assim.

Carlota Joaquina por sua vez quando se cansou de tanta cabeça a entrar e a sair do Ramalhão, numa pândega sem fim, num monte de cacos e vidros partidos, ficou com dois amantes em serviço permanente. O primeiro era o João dos Santos, um quebra-esquinas de Alfama e da Mouraria, com um corpo de sonho, torneado no Olimpo pelos deuses gulosos, que tirava acordes lânguidos da voz e tinha um desempenho divino na cama; matara de amores não sei quantas mulheres, todas a suspirarem por gozar com ele. O outro, era o jardineiro do Ramalhão, uma viga colossal de dois metros de altura, bronco e feio, com cara de hipopótamo, que enchia de lirismo e excitação a princesa. Adorava ir ter com ele à choupana mísera onde ele guardava os intrumentos e ser possuída toda nua no tapete de folhas, debaixo das árvores vetustas do parque, ouvindo os roncos salivosos do bruto, as doçuras da folhagem doirada e o correr manso das bicas de água por perto.

– A mãe fez chefe de governo um cabo da guarda; a filha vai levar ao Conselho real um jardineiro – murmuravam na corte as más-línguas, voltando a cara, para não serem ouvidas pelo regente.

Aquele desbragamento em que a princesa andou nos dois ou três primeiros anos em que viveu no Ramalhão levou-a a libertar sem critério os instintos mais fundos e selvagens. Estava tão desenfreada como Calígula,  tão tarada como Nero, tão debochada como Heliogábalo. A certa altura, passou-lhe pela ideia trucidar os homens que dormiam ou haviam dormido com ela. Mandou a tropa chacinar um por um os saloios a pretexto de pequenos roubos e desacatos; logo de seguida o colosso do Ramalhão apareceu degolado ao pé do barracão de madeira onde ela o procurava. Sobreviveu o João dos Santos, porque era intangível e etéreo como um deus eternamente belo e musical. Dava tudo para o ter uma noite em cima de si e não teria suportado sabê-lo a desfazer-se debaixo da terra por culpa sua. Não o matou por egoísmo. A princípio esse sangue fresco criou uma onda de pânico entre as pequenas espanholas que a seguiam e viviam com ela a mesma vida de orgias e bebedeiras. Depois, engoliram seco, riram, e cantaram a malaguenha, ainda mais embriagadas por essa novidade viva e colorida.

– Niñas, los hombres no tienen menstruo, pero tienen venas – casquinava ela, tentando ter graça.

Pelo meio, entre 1802 e 1806, nasceram-lhe três filhos, um rapaz, Miguel, em 1802, e duas raparigas, Maria da Assunção em 1805 e Ana de Jesus, em 1806. De quem eram? Talvez o rapaz fosse de João dos Santos e as duas raparigas do marquês de Marialva. Talvez. Mas o contrário também era possível, porque o Marialva, Pedro de Meneses, bonitão e afrancesado, terá sido dos primeiros a meter-se nos lençóis da rainha. Depois do colosso do Ramalhão desaparecer de cabeça cortada na terra regressou, mas por pouco tempo, porque no princípio de 1806 afastou-se para sempre, desgostado com as ambições políticas da princesa. Demais, já por lá andava há muito João dos Santos, o sátiro adorável. De quem essas crianças não eram de certeza era do banazola que vivia para Queluz ou para Mafra de costas voltadas para a mulher. Ela, quando os íntimos lhe perguntavam de quem eram os três últimos filhos, respondia desabrida e feroz:

– São meus. Basta, não?

Sentia-se forte, decidida, viril. Tinha jeitos de homem, expressão musculada, face esquálida, mãos escuras e grossas; quando alguém lhe desagradava traçava os braços e fazia um manguito largo e grosso. Vista entre as árvores do Ramalhão, nos seus xailes cor de cinza ou de vinho, parecia uma mendiga magra, esguia, com cara de fome; à luz das velas que ardiam nos castiçais de prata dos salões, cabelos tapados por um lenço de seda crua, parecia uma bruxa ameaçadora, terrosa, sinistra, dessas que deitam cartas e transformam príncipes em sapos. Mantinha contacto com a corte dos pais e estava a par de tudo o que Godoy fazia. A sua paixão, para além do sexo, era a política. Ansiava pela sua hora, desejosa de poder. Vivia roída de ambição, porque se algo a magoava era ver o círculo apertado, quase provinciano, em que se mexia. Queria mandar, queria dar ordens, queria ser rei. Para isso intrigava, espiava, observava os movimentos na Europa. Esperava o momento para dar o golpe, a ocasião de saltar para o centro do palco. Os fidalgos que apareciam no Ramalhão faziam parte dos seus planos; eram a alavanca do seu salto, a guarda real no meio da qual ela entraria, luxuosa e imperial, em cena.

– Não tires olho do paspalho – recomendava ela ao Marialva, referindo-se ao marido, sempre que dele se despedia.

No Outono do ano de 1805 trouxeram-lhe a notícia de que o regente adoecera com alguma gravidade em Samora Correia depois duma batida às lebres. Pela mesma altura chegou a novidade da derrota da armada franco-espanhola à entrada do estreito de Gibraltar, na batalha de Trafalgar. A vitória assegurou à Inglaterra a supremacia definitiva nos mares e consolidou-lhe o lugar cimeiro entre os adversários da França. Logo depois veio porém Austerlitz, em que Napoleão desbaratou sem misericórdia a terceira coligação das monarquias europeias. A República francesa, à imagem do que na Antiguidade acontecera com a República romana, ganhara entretanto a forma de Império. A velha ordem fora demolida furiosamentea pela plebe saída da noite escura, mas das suas ruínas o que nascia era um novo império. A plebe regressava de novo à escuridão da dor e do esquecimento, aprisionada pelos seus novos senhores.

Quando a notícia chegou a Portugal, o marquês de Alorna, Pedro de Almeida, um dos entusiastas grandes duma solução francesa para Portugal, suspirou num dos conciliábulos com a princesa.

– Napoleão, coroado de loiros, guarnecido de sucessivas campanhas militares vitoriosas, é o novo César da Europa.

Segundo ele, Austerlitz aniquilara de vez as potências continentais e deixara a Inglaterra do lado de lá do continente, a passear nos mares, sozinha e impotente, sem poder pôr pé em terra.

– O imperador espera agora o último braço de ferro. Em terra ele se decidirá. Recordais como o embaixador francês ainda há pouco pedia ao regente que fechasse os portos Portugueses aos barcos Ingleses?

Carlota Joaquina recordava. Fora mesmo a Queluz receber Andoche Junot, o novo embaixador, e sua mulher, Laura. Apresentara-se no meio das suas açafatas carregada de jóias, emplumada de penas coloridas, vestida de musselinas vaporosas e perfumadas. O casal francês abrira os olhos de espanto (e de riso) quando ela entrara, com ar inacessível, no meio do luxuoso e lento préstito das suas damas andaluzas. Logo que Junot entregara as credenciais, exigira uma declaração de guerra à Inglaterra por parte da governação portuguesa. O regente tossira, sorrira e respondera com um inocente encolher de ombros, fazendo-se desentendido. Lembrava com nitidez a cena, porque tudo se passara no dia do seu aniversário.

– A França – concluiu Pedro de Almeida – vai de  novo exigir de Portugal o bloqueio comercial à Inglaterra. Isto se ainda houver por lá um resto de resignação. Se não houver, é a ocupação.

Não houve e logo no princípio de 1806 Godoy entendeu-se com Napoleão para a partilha de Portugal. Carlota Joaquina viu aí o momento certo para actuar.

– É agora ou nunca ­– entendeu-se ela com Pedro de Almeida.

Mostrou-se disposta a aceitar a partilha de Portugal, regendo em nome de Godoy e Napoleão o território português. Contou de imediato com o consentimento da Espanha, que a tomou como uma arma importante da sua política. Fortalecida por este apoio, a princesa pôs de imediato a funcionar uma conspiração, que se destinava a afastar o regente da governação. Depois apareceria ela como a herdeira natural da regência. O golpe foi agendado para o dia 25 de Abril, aniversário da princesa e teve como agentes o marquês de Alorna, o conde de Sarzedas, o marquês de Ponte de Lima, o conde de Sabugal e o barão de Porto Covo, Jacinto Fernandes Bandeira, banqueiro pessoal da princesa, na casa de quem o núcleo central dos conspiradores se passou por precaução a encontrar. De lado ficou o marquês de Marialva já descontente com as intrigas do Ramalhão. O golpe foi descoberto pela mulher do Lobato, que tinha acesso à princesa. Foi despedida à última hora, mas já era tarde. Quando deram notícia ao regente do assunto, ele suspirou, conformado e paciente, sem dar sinal de grande alteração.

– Tende paciência. Não vem mal ao mundo daquilo que acaba bem – acabou por dizer.

Não quis devassas nem grandes averiguações. Quando os ministros lhe falaram em castigos duros, ele assustou-se. Nem pensar, não queria tempestades, nem falatórios. Que se mandasse para a Índia o Sarzedas como vice-rei, o Alorna para o Alentejo em comissão de serviço e o Sabugal e o marquês de Ponte de Lima para Almeida, também em comissão de serviço. Tudo discreto e sem violências. Bastava. E que não se tocasse no homem da narta, o Fernandes Bandeira, que era um dos principais financiadores da corte e que muita falta lhe fazia. Já antes o regente o agraciara mesmo com um título para o ter por perto.

– E a princesa? ­– perguntou o Vila Verde atónito com a brandura.

– A princesa? – lembrou-se ele, atarantado. – Que fique pelo Ramalhão, vigiada à distância. Espiai-lhe os passos, mas sem incómodos excessivos.

Sentia-se o mais infeliz dos homens; tudo contribuía para o seu infortúnio. Não havia um cisco que lhe desse alegria. A política europeia era um vinco venenoso na sua alma; a Inglaterra andava isolada pelos mares, quase esfomeada, em barcos de papel que mal podiam tocar os portos do continente, mais parecendo jangadas de náufragos que corpos da mais poderosa armada do mundo; as monarquias estavam de rastos e faziam a vontade da França. A sua vida familiar era um frangalho, com uma mulher escandalosa e traiçoeira, que lhe fazia filhos fora de porta e conspirava contra ele, e uma mãe doida, aos berros, de lábios tortos e olhos esgazeados. A corte era um ninho de traidores, que à primeira ocasião o punham na rua sem complacência e se fartavam de rir à conta dele. O seu corpo era um trambolho feio e mal-cheiroso, que lhe dava um trabalhão arrastar; tinha uma barriga descomunal, de herbívoro ruminante, que não conseguia arrumar nas calças. As hemorróidas, que se agravavam nos momentos de maior nervosismo ou esforço, andavam uma miséria. Cresciam, cresciam, duras e túmidas, que era um pavor.

– Parece que tenho uma couve-flor reboluda a nascer-me do meio das nalgas – confessava ele desconsolado ao Lobato, um dos poucos a quem se entregava sem desconfiança.

As nalgas, dizia ele! Que palavra e que suplício na sua boca! Até medo tinha de se sentar nos cadeirões de veludo vermelho do paço. Há anos que deixara de se interessar por mulheres, mas nem mesmo assim o hemorroidal lhe dava descanso. Abandonou a caça, deixou de montar a cavalo, passou a fugir a qualquer esforço. Ainda não tinha quarenta anos, mas sentia-se acabado, sem razão para viver.

– Que regência, que mulher, que mãe, que filhos, que corte e que cu tão desastrado – rematava ele com o seu guarda-roupa.

Sobrava-lhe ainda assim a bondade, que o levava a evitar violências, e sobretudo a bonomia que o fazia sorrir bem humorado de si próprio e da vida. Decidiu ir para Mafra, para o palácio, para ver se espantava o cotão que se lhe ia acumulando nos quartos da alma. Tinha lá o pombal, o canto, o pomar, a livraria e a matinha para passear e para merendar. Adorava o toque dos carrilhões a flutuar na atmosfera parada do vale e os corredores vazios, infinitos, vaporosos, onde se abriam e fechavam mais de oitocentas portas. Foi e por lá ficou uns tempos, tranquilo como um hortelão, que era aquilo que ele gostava de ser. Estava cada vez mais próximo do Lobato, a quem tratava por Francisquinho, e com quem passeava na matinha de braço dado, muito encostado, muito dado, com um ar encantado e feliz. Deliciava-se a ouvir e a contar anedotas, que era o passatempo preferido do regente quando tinha companhia.

– Sua Majestade é um homem simples e tão fácil de contentar. É o nosso João… – confessava espantado o Francisco Lobato à mulher quando à noite recolhia aos aposentos.

Sua Majestade não passava de feito do João-dos-anzóis. Não passava, nem queria passar. Era nesse papel que se restituía à paz e às boas com a vida e por nada deste mundo o queria largar.

Mas quando o regente se começava enfim a reconciliar com a vida, esquecendo-se das amarguras, apareceu-lhe a mulher montada numa labareda ruiva. Fugiu numa sege, a toda a pressa, num pânico exaltado. Tinha medo dela; Carlota Joaquina era uma bruxa, com pacto com o demónio, malévola e criminosa. Conhecia as histórias que se contavam sobre o Ramalhão, os saloios chacinados nas aldeias, o jardineiro degolado no parque. Não desejava encará-la por nada deste mundo; sentia-a adversa a tudo aquilo que lhe era caro e indispensável para viver, a resignação, a paciência, o humor, a generosidade. Detestava-a, tinha-lhe mais medo do que a um espectro do Outro Mundo, mas era incapaz ainda assim de lhe fazer mal. Fugia, não mais. Foi a correr para Vila Viçosa, cheio de pressa de lhe voltar costas. Soube porém que ela o perseguia e então meteu para o Alfeite, para a quinta real, na esperança de a despistar. No momento, em que a sege aliviava a velocidade, convencidos os ocupantes que estavam livres de perseguição, o regente tira a cabeça de fora, fica um momento absorto e de repente avista num turbilhão de poeira a montada da mulher. Saiu-lhe então o grito espontâneo e apavorado.

– Fujam! Fujam! Vem aí a puta.

Ao longe, por detrás, enquanto este doloroso drama familiar se desenrolava num cenário esburacado e quase esquecido, os Franceses continuavam a medir forças com a Inglaterra. Como o Alorna previra, Napoleão não se atrevia a sair ao mar; bastara-lhe perder Abuquir e depois Trafalgar. A terra era o seu elemento natural e só com ela moldava vitórias. A única solução era o estrangulamento económico da Inglaterra através dum bloqueio comercial, que a forçasse a assinar a paz e a reconhecer a supremacia francesa na Europa. Em 1806, só dois países escapavam a esta orientação. Primeiro, a Rússia, que, embora aniquilada em Austerlitz, ficava muito distante, nas fronteiras da Ásia, para se lhe ter o freio nas mãos; depois, Portugal, que, fiado num príncipe rebolão e na sua vontade de voltar costas à vida, continuava a assobiar para o ar e a receber nos seus portos os barcos Ingleses. Era a Rússia do Ocidente, cuja estepe imensa, latitudinária, a perder de vista, maior ainda que a outra, era o mar salgado, povoado de espumas e de neves.

Preocupado com a situação oriental, Napoleão derrotou os restos do exército russo em duas batalhas, Eylau e Friedland, obrigando o czar a aderir ao bloqueio continental. Sobrava então Portugal, no extremo ocidental da Europa, cuja importância estratégica, com portos situados em lugares-chaves das rotas africanas e americanas, era vital para os objectivos Franceses.

Com as mãos livres, a Europa submissa, os exércitos disponíveis, não perdeu tempo; andava a perdê-lo desde 1801, quando assinara a paz com o regente. Falou para Portugal. O regente meteu o Araújo na barafunda; evitasse-se a guerra, mesmo que fosse preciso aderir ao bloqueio continental. Escreveu o Araújo para França, dizendo que os portos Portugueses estavam fechados aos navios Ingleses. Riu o imperador da notícia; ia-se habituando às manhas do regente. Planeou de imediato ocupação de Portugal por um exército franco-espanhol, a deposição dos Braganças, que seriam capturados e aprisionados em França, a  partilha do país entre Godoy e o rei da Etrúria. Entregou o comando do exército a Junot, antigo embaixador em Lisboa, seu homem de confiança, impulsivo e violento, e exclamou triunfante:

– C’est fini le Portugal!

Pelo Tratado de Fontainebleau Portugal desaparecia formalmente do mapa dos continentes, desmembrando-se em três províncias da nova Europa, uma de Godoy, outra do rei da Etrúria, outra administrada pelos Franceses. As ondas de choque da revolução francesa, que tinham até aí abalado todo o continente, chegavam finalmente a Portugal. E chegavam para ficar; a morte de Carlos de Bragança cem anos depois é ainda o resultado daquilo que então nos bateu à porta.

Quando o Lobato aflito e trapalhão noticiou ao regente português que o Junot vinha a caminho de Lisboa, com trinta mil homens atrás, três generais, Delaborde, Loison e Travot, numa marcha apressada e feroz para o prender e mandar a ferros para França, ele não se assustou.

– Calma homem, repita lá isso outra vez – pediu.

Depois do outro assaranpantado lhe repetir a notícia, ele respondeu cheio de humor.

– Francisquinho, assusta-me mais a minha mulher do que o Junot.

Mas tanto diante do Junot como da mulher só tinha uma resposta, fugir. Fugir, não mais. Estavam fora de questão actos de heroísmo, tempestades, berrarias, aflições, cóleras, resistências, maus humores. Para apoquentações bastara-lhe em 1801 o Lafões, que a terra por uma vez piedosa já comera, e o Pina Manique, que também já se fora e que tanto horror lhe causara com as cenas em que se metera. Suportara o intendente por conveniência, não por simpatia ou afinidade. O Araújo que escrevesse uma carta aos Franceses, declarando-lhes que os portos estavam fechados aos Ingleses.

– Se aliviar a pressão, estou por tudo – exclamava ele, atarantado pelas atribulações do momento mas sempre confiante na boa estrela dos seus engodos.

Ainda pensou doirar a carta com uma indemnização voluntária, mas o pilim custava-lhe tanto a sair do bolso. Administrava o reino, que valia ainda assim uma fortuna colossal, como se gerisse uma casa apertada e pobre, onde faltasse tudo, desde o unto até ao cobertor. Deixou cair por isso a reparação. Sousa Coutinho, o da casaca londrina bordada a oiro, não se convenceu e pediu com altivez resistência armada à invasão.

– Tiros não – respondeu com determinação o regente.

Foi o feitio assustadiço que lhe ditou a frase, não a estratégia ou a lógica; como foi o feitio que lhe orientou a fuga. Não sabemos se por uma vez o seu medo estava com a razão. Impossível sabê-lo. Era nobre e eficaz a resistência? Era escusada e mesmo nociva? Salvaria a nação ou incitaria tão-só a fúria dos Franceses? Impossível responder. Para ele, por índole, não havia outra saída a não ser a fuga. Fugia, pois.

Foi para casa emalar a trouxa, buscar a mãe doida ao quarto, vestir os filhos, dar as últimas ordens, arranjar à pressa uma junta de governadores que se entendesse com o Junot. Ele não queria saber de nada; ia para o Brasil com a armada e levava tudo o que podia. O Araújo e os seus homens que tratassem de tudo com os Franceses, que ele ia escoltado pelos Ingleses para o Rio de Janeiro. A saída não era má; o pavor estava na viagem de barco. As nalgas é que sofriam. O hemorroidal punha-se-lhe a crescer desalmadamente mal punha pé no mar. Bastavam-lhe os cruéis nós das hemorróidas, que naquelas alturas lhe cresciam no rabo real como repolhos no jardim, para se dar conta que nada neste pobre mundo podia ser perfeito.

– E a princesa? – lembraram-se de lhe perguntar.

– Vai para Espanha ter com o Manuel Godoy ou vem ele ter com ela ao Ramalhão – brincou ele.

  • Era Novembro, Novembro de 1807; a carne dos diósporos desfazia-se nas árvores despidas, as folhas bailavam no ar uma dança macabra, as nuvens corriam no céu, o vento zunia nas esquinas, fazia frio, o Sol andava encoberto. Uma tristeza de fim de mundo, uma cinza de morte, um perfume venenoso e doce vibrava no ar apagado e sombrio. Que momento tão cruel na história dos Braganças! Que quadro tão atroz! Dum lado estão os soldados de Junot, desejosos de deitarem os dedos de aço ao gasganete dos Braganças, depois de terem enforcado os Bourbons numa praça de Paris. Do outro, está um pobre rapaz de quarenta anos, aflito por fugir para o outro lado do mundo, com uma mãe doida, filhos de colo e uma esposa traidora, que ficava para receber nos braços peludos os Franceses e os Espanhóis. É uma cena trágica, num quadro de morte, mas é também uma cena cómica e rabulona. Que sainete, essas nalgas reais a tremelicarem de susto diante das grandes naus do Tejo!
  • Ao longe, cada vez mais perto, caminhando em silêncio nos caminhos enlameados da Península, debaixo da chuva fria e monótona que caía do céu mudo, com as portas dos casebres fechadas à volta, marchavam apressadas e sisudas as legiões do novo César. À sua frente, com o pendão da águia imperial, vinha um antigo sargento, ambicioso e teimoso, de olhos tortos, testa curta, grandes suíças encaracoladas até ao pescoço, que dormia duas a três horas por noite e avançava a passo estugado doze a quinze horas por dia. Movia-o a sede de deitar a mão à riqueza dos Braganças que ele conhecia bem do tempo em que fora legado em Lisboa, e o interesse em servir Napoleão. A travessia da Espanha, pela linha seca e plana do Douro, foi um instante. Era Paris-Lisboa a correr, quase sem dormir, pouco mais do que uma maratona antiga, quando os gregos corriam na Ática para vencer os persas.
  • Em pouco menos de nada, os granadeiros da vanguarda do exército francês, entravam de roldão por Portugal, na Beira Baixa, apanhando a linha do Tejo para descer sobre Lisboa e levar tudo na ponta da baioneta. Em país tão miúdo, já se faziam em Lisboa dentro de poucas horas, mas à medida que avançavam foram obrigados porém a diminuir a velocidade, pois as chuvas fortes dos últimos dias haviam feito transbordar o Tejo do leito, inundando as margens. Campos e caminhos estavam transformados num atoleiro pantanoso. Era o desespero; as botas enlameadas colavam-se ao caminho e não queriam despegar. Cada passo pesava chumbo e custava tanto a dar como quarenta ou cinquenta dos anteriores, quando como galgos frescos transpunham as pedras secas do Douro.

Em Lisboa o regente suspirava e arrumava com a indolência que lhe era própria as últimas baixelas. Quando soube dos atrasos forçados dos Franceses no vale do Tejo, enterrados no lodo do rio, lutando desesperadamente com a lama e a chuva, riu-se com gosto, Gostava de partes assim, teatrais e engraçadas.

No cais de Belém debaixo da chuva que continuava a cair monótona e fria, acumulavam-se os baús, as arcas, as malas, as trouxas, os caixotes. A cada instante chegavam carroças, que despejavam novos fardos. Eram os reposteiros de Queluz, a baixela das Necessidades, os candelabros da Bemposta, os volumes da Real Biblioteca, os arreios reais, os papéis do Estado, os móveis, a prata da Patriarcal, o oiro da Capela Real, as jóias do tesoiro, os quadros dos museus, as loiças, as roupas, as cadeiras, as gaiolas, os tapetes, as carruagens, as mantas de arminho que não se queriam perder, um pandemónio interminável que nunca mais acabava. Havia sempre alguém que se lembrava de mais alguma coisa. E Junot atolado em lama, com o pendão imperial numa mão, onde uma ave de rapina olhava feroz e esfomeada, e as botas na outra, avançava pelo vale do Tejo a ver se deitava a mão àquilo tudo. Mas, infeliz e desesperado, quanto mais próximo estava mais longe lhe parecia. Que tragédia atroz aquela fuga, com os papéis do Estado, debaixo da chuva, metidos num caixote frágil de madeira, ao pé dos cueiros sujos das crianças. Nem o saque de Roma pelos Vândalos se lhe compara. Mas ao mesmo tempo que comédia tão ridícula, com o sanhudo do Junot a avançar na lama ou no lodo, pés descalços, calças arregaçadas e botas penduradas numa das mãos.

Uma multidão acumulava-se no cais. Era o inferno de Dante posto à superfície da Terra, num dia escuro e arrepiante de Novembro. Estavam lá cegos, pedintes, prostitutas, soldados, peralvilhos, estudantes, padres, aguadeiros, rústicos, quadrilheiros, coxos, pasteleiros, ciganos, espiões, pretas, anões, um ajuntamento imenso, andrajoso, sujo, mal cheiroso, mudo de espanto diante daquela gigantesca mudança e do tropel dos Franceses a correrem cada vez mais perto. Lisboa esvaziara-se; nas ruas não se via ninguém; as portas e as janelas dos pardieiros estavam fechadas a prego. Debandara tudo, uns para a província, outros para Belém, na esperança de embarcarem com o regente para o Brasil. Quanto mais próximos do oceano, mais seguros se sentiam; preferiam ser tragados pelas águas frias do Atlântico do que pela onda humana que lá vinha. De vez em vez, quando se aproximava uma sege vistosa, de rodas altas, lacaio fardado na portinhola, alguém gritava, destapando a boca com a capa:

– É o regente! É o regente e a rainha!

A multidão ondulava de imediato, unida, em grupo, aos berros, empurrando, implorando, acenando. Tinham medo dos Franceses; queriam fugir; estavam apavorados e desesperados; corriam, caíam, atropelavam-se. Havia mães rodeadas de filhos, com uma trouxa aos pés; todos os bens que possuíam encontravam-se ali enrolados num lençol encharcado de lágrimas. Ao lado, viam-se cegos, de guitarra partida ao ombro, olhos no vazio, atarantados, a mão trémula segurando a trela de cordel dum cão lazarento. Por detrás, postava-se uma criança perdida, a chorar, cheia de ranho. À volta, enrolados em capas esburacadas, saloios, com ar aparvalhado, pareciam árvores mudas, feridas, arrancadas à terra pelas raízes. Os burros zuniam, os cães ladravam, as gaivotas, aos círculos, grasnavam enraivecidas pelo temporal. Era um quadro de Bosh vivo, à solta numa praia suja de Lisboa; um painel tenebroso de sofrimento e desespero arrancado ao manicómio da HistóriaiastóriaHyyyy. Quando se aproximavam da sege e percebiam que não era a sege da família real, abatiam os braços num desânimo profundo, regressavam à posição inicial e esperavam, esperavam debaixo daquela chuva triste. Daí a pouco tudo recomeçava de novo, igual, repetido, com as mesmas lágrimas, os mesmos berros, o mesmo absurdo.

Por fim, ao longe, no meio da borrasca, vindo de Queluz, descendo da Ajuda, avistou-se o préstito real. À frente vinha a sege do regente, com os infantes e a rainha. Não se via um guarda, um polícia, um soldado armado. Não houve tempo, e talvez nem pachorra, para pensar nisso. Foi tudo improvisado no meio da chuva e da pressa; à última hora faltava tudo, até comida para a viagem. Só aquela multidão fétida, vinda dos subterrâneos da vida, das cavernas do passado, das labaredas dos infernos, só ela estava presente, com o seu desespero. Ela e a corte, que saía das páginas nobres e perfumadas da História e dos altares do Céu e da Civilização. Ali estavam frente a frente, uns miseráveis, outros privilegiados.

Saiu o regente de mão dada com a mãe da sege. O povo, que queria protecção, ficou estupefacto quando viu a sua rainha aboletar-se no ombro do filho, a tremer de medo, babada, glacial, de olhos esbugalhados, só pele e osso, mais doida e mais desesperada do que todos os que estavam ali. Há quinze anos que ela vivia fechada num quarto e que não lhe punham os olhos em cima. E ali estava ela, mais desgraçada do que todos eles, alheada, incoerente, perdida como um recém-nascido, de mão dada ao filho, incapaz de dar um passo sozinha. Que momento este tão absurdo e tão cruel na história dos Braganças! Um filho desesperado, com uma pobre e trôpega alma de homem, que nunca nenhum incêndio consumiu ou alteou, conduz, por entre o povo reverente e basbaque, a mãe doida e babada pela mão. É uma cena aflitiva, desumana, que devia figurar num cardápio filosófico ou religioso, inspirando as mais altas cogitações sobre a crueza da criação e o destino da vida.

O príncipe num relance, com a mão descarnada da mãe a tremer na sua, percebeu toda a tragédia do momento. Comoveu-se e desfez-se em lágrimas, disposto a não sair dali; o povo, quando o viu assim, desajeitado, simples, fraterno, com as lágrimas a correr e o beiço a tremer, ajoelhou. Caía de joelhos em silêncio diante da dor e da desgraça. E num curto momento aquela massa humana irmanou-se no mesmo sentimento de absurdo e tragédia, disposta a dar-se as mãos, morrendo unida ou unida partindo. Família real e povo apertavam-se num abraço de saudade no momento da despedida; era uma tragédia doce ao lado das outras que os Braganças teriam ainda de viver no curto e largo espaço de cem anos, até se desfazerem numa poça de sangue.

Logo depois, o regente veio a si, levou os dedos grossos à cara para limpar as lágrimas e soprou a custo as palavras esperadas e habituais:

– Afasta! Afasta!

E o povo, refeito daquela vertigem, abriu passagem e ficou estático a ver passar o cortejo real para os barcos da armada. Primeiro, passou o rei com a rainha; esta, cheia de medo, recusava-se a subir a prancha do navio-almirante da frota, pronunciando diante da aflição do príncipe palavras desconexas, arrepelando os cabelos, de olhos muito abertos e escandalizados.

– Nem pensem! Nem pensem! – gritava ela, a propósito sabe-se lá de quê.

Por fim, um capitão de fragata convenceu-a e ela deixou-se levar, abúlica e vaga. Logo depois, passaram os dois varões, o príncipe Pedro de Alcântara com o mano Miguel pela mão. O primeiro era um rapazinho de nove anos, olhos escuros e determinados, beiços grossos e sensuais; o segundo, de cinco anos, um anjo de caracóis loiros. O mais velho, gorducho  e trigueiro, dando a mão ao mais novo, olhava para aquela cena de boca aberta, com o espanto de quem via pela primeira vez a mole do povo. Espantava-se com aquelas caras desdentadas, de farripas sujas e pústulas abertas. Não imaginava que pudesse existir outra coisa que o palácio de Mafra ou o de Queluz, com as açafatas, os salões, os homens de lábios pintados de batom e cara polvilhada de pó de arroz, as senhoras de altos penteados, vestidas de musselina e recamadas de jóias.

De seguida passou Maria Francisca Benedita, a viúva do príncipe José, cada vez mais escura e infeliz, no seu triste e enfadonho vestido de viúva; acompanhavam-na as sobrinhas, algumas amedrontadas, a chorar, outras empoadas, muito senhoras do vestido e dos brincos que lhes desciam até aos ombros. Depois vieram os conselheiros, os ministros, as damas, os nobres, os bispos, os generais, os pregadores, os oficiais régios, os tabeliões, os criados, os moços de serviço, uma infinidade de gente que nunca mais acabava. Eram para cima de quinze mil, distribuídos pelos quinze navios da armada real e pelas trinta embarcações mercantes que se fretaram e aparelharam para a bagagem.

No fim, a correr, quase às escondidas, a escorrer água, apareceu Carlota Joaquina, que à última hora, assustada com as intenções de Junot e a expulsão da irmã do trono da Toscânia, decidira embarcar. A multidão, que até aí se mantivera em silêncio, numa atitude de respeito, explodiu. Troaram gritos, insultos, apupos.

– É a rata! É a rata assassina – ouviu-se berrar.

Ela não esteve com mesuras nem etiquetas; voltou-se para eles, no meio da passadeira de madeira que dava acesso à nau, cruzou os braços e construiu-lhes um vasto e potente manguito. É este o instante mais contraditório da fuga de 1807! Nada consegue ser tão doloroso e tão cómico como ele! Nem mesmo o hemorroidal do rei ou as botas enlameadas do Junot!

O povo, quando a viu assim, de cabelo preto enrolado à cabeça, magra e tétrica, sujos sapatorros de meio tacão, corpo ligeiramente flectido para a frente, a fazer o manguito, braços de fora da capa de lã, riu. Mas passado o primeiro momento de surpresa, uma fúria ondeou pela multidão. Nesse impulso se viu a sua disposição fera de subir a bordo e escaqueirar tudo para lhe deitar a mão, linchando-a ali mesmo. Valeu o regente que apareceu numa galeota aflito, a chorar, de mãos na cabeça.

– Calma… Ide com calma… ­– implorava ele, banhado em lágrimas, vendo tudo perdido no último minuto por causa da mulher.

Tudo se recompôs. Houve abraços e beijos ao regente, lágrimas de reconciliação, suspiros de saudade. Por fim a armada alinhou no Tejo, com as galeotas recolhidas, pronta a fazer-se ao oceano, e o povo espalhou-se pelo cais, acendendo fogueiras com os restos das madeiras dos caixotes e disputando como cães famélicos as bagagens que não puderam embarcar. Depois, quando a chuva amainou e o céu clareou, na madrugada de 29 de Novembro, os navios enfunaram velas e puseram-se em movimento, avançando em direcção do horizonte, para lá do forte do Bugio. No dia seguinte, na claridade fria da primeira luz da manhã, ainda se viam os seus pontos a diminuirem ao longe. Foi então que se ouviu no meio da multidão que ficara no cais um grito dilacerante, agudo, um uivo de pânico, vindo das entranhas fundas da terra.

­– Vêm aí os Franceses. Vêm aí os Franceses.

Logo seguido dum outro, não menos apavorado.

– Fujam! Fujam!

E de outro, que correu de boca em boca.

– Vêm aí as legiões do Anticristo! Fujam! Fujam!

E fugiu tudo; ou quase tudo. Fugiu a rainha, fugiu o regente, fugiu a corte, fugiu o povo. Foi a debandada geral. Fugiu tudo, ou quase tudo, uns por mar, para o Brasil, para os arquipélagos atlânticos, para a África, para o Oriente, outros por terra, para o que estava mais à mão, as matas e as alfurjas escondidas das aldeias. Os Franceses chegavam enfim a Lisboa, descalços, com as botas na mão, a roupa esfarrapada e encharcada, a arma à cabeça, em mísero estado, mas ferozes e famintos, com uma águia desenhada no estandarte, uma águia com garras e olhar de abutre, desejosa de comer. Usavam casaca azul aberta na frente com bandas vermelhas, calça branca ou vermelha, o boldrié de cabedal negro com as munições à cintura, botas ferradas que tiravam lume da pedra do chão e na cabeça a enorme barretina cilíndrica de penacho vermelho. Ficaram a ver do cais de Belém os mastros da real armada desaparecer no horizonte. Os galeões iam atulhados da pesada e rica baixela e saracoteavam por isso lentamente nas salsas ondas do oceano. Mas o mar, aquele mar, era mais vasto, mais frio, mais desabrigado que a estepe da Sibéria. Não se atreviam pois a pôr pé, quanto mais alma, em tal desolação líquida. Não lhes restou senão deitar mão a Lisboa, declararando a deposição dos Braganças e o governo do país em nome de Napoleão.

Os que ficaram para os receber contavam-se pelos dedos duma mão. Eram os apoiantes da nova ordem europeia desenhada pelo César de Paris. Um deles foi Pedro de Almeida, marquês de Alorna, que reorganizou o exército português, baptizando-o de Legião Portuguesa. Levou-o para França para ser incorporado no Grande Exército do imperador. Outro foi o Melo, o inquisidor-geral do reino, o confessor do paço, que teimou em ficar. Endoidecera também ele, abandonando a rainha, a sua discípula doida. Queria contraditoriamente incitar os Franceses a prosseguirem a sua obra de ocupação e rapina.

– Depois do Anticristo consumar o seu reinado de destruição universal a Terra conhecerá a Luz – gargalhava ele, louco, alucinado de profecias e visões, no seu gabinete do Largo de São Domingos.


2

O DESDITOSO E A BESTA LADRADORA

(1807-1826)


Novo painel, nova paisagem. Deixemos o velho mundo e passemos ao novo; em vez de Portugal, o Brasil; em vez de Lisboa, o Rio de Janeiro. Há mais cor, há mais luz, há mais vida. É o eldorado, com as minas de oiro e a extracção de diamantes a norte e a baía da Guanabara em frente, acabada de sair duma página do Génesis. A terra dá tudo, cana-de-açúcar, algodão, mandioca, arroz, milho, tabaco, quase sem trabalho. O clima é quente, húmido, sempre igual. Pode usar-se todo o ano a mesma camisa leve de linho e os mesmos calções. Os pássaros cantam todo o ano, numa sinfonia permanente de luxo e génio. Está tudo muito próximo do Éden; as árvores não se despem e as mulheres não cortam os cabelos. Para perceber esta terra é preciso pensar no Paraíso e deixar de lado Lisboa e o seu drama de nevoeiros e fomes. Que interessam no novo mundo os lábios pintados de Pedro III? Ou os sopranos castrados dos teatrinhos de Santa Marta? Ou a etiqueta de Queluz e da Bemposta? Nada. Aqui a História é recente, tão recente que a luz do Génesis ainda ondula sobre as águas diáfanas da baía e os homens e as mulheres, sorridentes e despreocupados, andam quase nus.

Foi esse o mundo que os Braganças receberam em troca, quando io deixaram Lisboa aos Franceses. E troca por troca, devem ter ganho o seu tanto, salvante os incómodos da viagem. Em Março de 1808, quatro meses depois de deixarem o cais de Belém, aportaram ao Rio de Janeiro, depois de terem passado um mês em Salvador da Baía. O regente vinha enjoado das águas e da comida; o hemorroidal não parara de crescer desde a precipitação da fuga. O pânico da imensidão, o terror dos temporais, o balançar do barco, o mau passadio adubaram depois o plantio daquelas nalgas. O seu estado geral com o esforço da viagem era lastimável.

– Nunca mais me meto num barco – prometeu ele aos próximos, quando avistou a ponta de Copacabana e os morros macios do Pão de Açúcar. – Ouvis direito, espero.

O Paço do Governador, mesmo ao pé do cais, pareceu-lhe acanhado. Requisitou por isso o Convento do Carmo, a Casa da Câmara e o edifício da cadeia, num conjunto coeso que ocupava a praça toda. Ainda assim, a presença da mulher perturbava-o. Todos os dias a via descer à praça num velho roupão de linho, cada vez mais magra, suja e feia.

– Que suplício aquela mulher – queixava-se ele nos dias em que tinha o azar de a avistar por várias vezes.

Detestava-a, mas sem rancor, sem ruído. Não era tanto o golpe de Estado que ela patrocinara três anos antes que o magoava; era a figura descarnada que lhe metia medo.  Tinha mais pavor daquele rosto velhaco, do queixo maldoso, da aura sórdida dos cabelos, dos olhos devoradores que dos franceses. Só descansou quando arranjou modo de se livrar dela. Mudou-se para fora da cidade, para um casarão colonial, baixo e comprido, no lugar de São Cristóvão, que um rico comerciante local pôs à sua disposição. Era a Quinta da Boavista, no meio dum palmeiral, com um sossegado braço de mar mesmo ao lado e a serra dos Órgãos por detrás. A princípio nem cama tinha para se deitar; aconchegava-se numa rede coberta com um mosquiteiro e ali ficava com o corpo descomunal a baloiçar sobre o abismo.

– Tudo se suporta, menos o cheiro a pulga e vício de minha mulher – dizia ele, quando os ministros lhe perguntavam como era capaz de tolerar semelhante vida.

O Lobato apoiava-o com um rifão.

– Choupana onde se ri vale mais que palácio onde se chora.

Entretanto do lado de lá do mar, no quadradinho português, rebentava a sublevação popular contra os Franceses, chegavam os jaquetas vermelhas, partia o Junot com o saque e entrava o Soult para beber mais sangue. Em Espanha dava-se a queda de Godoy, a abdicação e a prisão dos Bourbons, a entrada de Napoleão em Madrid. O regente olhava tudo aquilo à distância, encostado ao muro da sua nova quinta, com as araras a cantarem na densa vegetação dos morros próximos e os barcos indolentes a deslizarem nas águas azuis do canal. Encolhia a beiçola, atirava um seixo às águas, pensava no gamão que jogava à noite com o Lobato, afinava a sua voz de baixo.

– Ainda tenho cabeça e coroa enquanto os outros perdem anéis e dedos – repetia satisfeito sempre que alguém chegava à sua beira para lhe relatar os tristes acontecimentos que se desenrolavam na Europa.

Ganhava confiança; dava-se os parabéns. Todas as monarquias na Europa continental haviam ruído. Portugal também; mas enquanto os outros monarcas estavam encarcerados ou degolados, ele tinha o Brasil e acima de tudo a Quinta da Boavista. Isso lhe bastava para se começar a avaliar com mais agrado. Não ficou vaidoso, mas tão-só surpreendido com o destino. Pouco a pouco os intestinos deixaram a ebulição ruidosa em que andavam desde há anos; pôs de lado os banhos com folha de sabugueiro que lhe aliviavam os pruridos anais; viu as hemorróidas grossas como cogumelos secarem até só deixarem uma aspereza indolor de lixa.

– Sou um homem feliz – atreveu-se mesmo um dia a dizer, quando se viu rodeado por gente simples que lhe vinha pedir a benção.

A Quinta da Boavista no Rio de Janeiro foi a sua parcela de felicidade nesta Terra. A política entregou-a a Rodrigo de Sousa Coutinho, o mais anglófilo dos seus ministros e aquele que menos se conformara com a passividade diante dos granadeiros de Junot. Por isso, o primeiro acto político do seu governo, logo em finais de Abril de 1808, foi declarar guerra à França e nulos todos os tratados antes feitos com Napoleão. O Araújo ficou esquecido, na prateleira, passeando pelas praias do Rio de Janeiro com livros de Voltaire e Diderot debaixo do braço. Arregimentaram-se tropas para reocuparem os territórios a norte do Brasil que se haviam perdido depois da guerra das Laranjas; jogou-se com a presença do infante espanhol Pedro Carlos, esposo da filha mais velha do regente, Maria Teresa, para se impugnar a abdicação dos Bourbons em Espanha; prepararam-se os tratados de aliança com a Inglaterra através do embaixador inglês no Rio de Janeiro, Lord Strangford. Deu-se tudo à Inglaterra, pedindo-lhe apenas em troca que sustentasse os Braganças no desmanchado trono de Portugal.

Foi este o único princípio orientador dos Tratados de 1810 entre Portugal e a Inglaterra. Abriram-se os portos brasileiros ao comércio inglês; levantaram-se as proibições de exportação de produtos ingleses para o Brasil; aceitou-se o fim do comércio português. Em troca, exigiu-se apenas que a Inglaterra nunca aceitaria no trono português outro que não um Bragança. Valia assim tanto um Bragança? Parece que sim. Valia o comércio todo do Brasil e ainda o português. Mas por uma rainha com grão na asa e um regente forçado bem se podia ter pago outro preço. Um preço de saldo e não de luxo.

Dois anos depois morria o Coutinho e era substituído por um homem que lhe seguia de perto os passos, João de Almeida de Melo e Castro, conde Galveias. O Araújo continuava dispensado de qualquer serviço, passeando pelas praias, entretido nas leituras e na paisagem. A estrela dos Franceses começava a declinar na Europa; ao fim de vinte anos de vitórias sentia-se que o brilho francês empalidecia. Wellington batera os generais franceses no território português e preparava-se para entrar em Madrid e expulsar José Bonaparte, um arrogante sem educação que reinava em nome do irmão Napoleão. O exemplo fazia furor na Europa; as insurreições populares incendiavam vários pontos do Império; a Rússia de Alexandre I atrevia-se a furar o bloqueio comercial. O Império tremia, sem coesão nem argamassa. Napoleão não perdia tempo e preparava o Grande Exército para avançar sobre Moscovo, disposto a castigar o czar russo. Mantinha o optimismo e o entusiasmo dos primeiros dias; acreditava que os Franceses, pela posição central e latitudinária que ocupavam na geografia do continente, eram os senhores naturais dele. Os incêndios que lavraram a ocidente eram no seu entender de estratego de pouca monta. Submetida e castigada a horda do oriente, ele próprio, em pessoa, viria apagar com a agulheta dos castigos os fogachos da Ibéria.

E Carlota Joaquina? Carlota Joaquina não tomava banho. No entretanto, abrasileirara-se muito. Comia farinha de mandioca com feijão, punha saias listradas de algodão, parecia uma mãe-de-santo do candomblé da Guanabara. Não perdia o gosto das intrigas. Estava mais feia, mais desleixada, mais assustadora, mais ambiciosa. Disputou a Pedro Carlos a impugnação dos Bourbons Espanhóis; tentou ser reconhecida como regente de Espanha pelo cabildo de Buenos Aires; exigiu ao vice-rei da Argentina a regência do território. Por detrás fazia feitiços, aprendia a preparar venenos, ria impudicamente mostrando os dentes estragados pelo tabaco e pelo excesso de açúcar.

Imaginava-se a governar o novo e o velho mundo, com uma coroa de oiro na cabeça e um ceptro de diamantes na mão, tão vivos e tão vermelhos como sangue. Alimentava pretensões estupendas, tão eufóricas e tão doidas como a vida desenfreada que fazia à noite nas tabernas da barra da Tijuca, onde os corpos nus e suados dançavam o lundum à luz das fogueiras e se extasiavam nos gritos da macumba. Estava com trinta e sete anos, muito assanhada ainda pelos calores do cio, que ali no Brasil se tinham renovado e expandido com a força dum gás em liberdade.

Entretanto na Europa Napoleão chegava a Moscovo com o Grande Exército, mais de meio milhão de homens. Viu-se diante duma cidade abandonada, em chamas, sem víveres nem gente, um espectáculo macabro e dantesco, no meio das estepes batidas pelos primeiros ventos frios do Outono. Bailavam ao longe os primeiros flocos de neve. Aquilo só terminava muito além, no mar do Japão, depois da vasta e glacial Sibéria. Sentiu-se Junot em Lisboa, no cais de Belém, impotente e assustado, diante do oceano infinito. Também ele não se atrevia desta vez a pôr o pé do seu exército, quanto mais a alma, naquela vastidão desolada. Assustou-se. Não tinha saída senão voltar para trás. Regressou à pressa para escapar ao Inverno russo; a princípio os flocos caíam lentos, leves, irregulares, mas depois fizeram-se pesados e persistentes.  O horizonte fechou-se num manto branco e a neve, como uma gelada e gigantesca mortalha, acabou por sepultar o Grande Exército no seio da imensidão gelada. Dos seiscentos mil homens que haviam deixado Paris na Primavera só regressaram a casa quarenta mil, esfarrapados, esqueléticos, ulcerados pela neve, prontos a morrer de exaustão e desespero.

Quando soube do caso, interessou-se pelo destino da Legião Lusitana. Também ela fora tragada pelo manto branco da morte. O regente juntou os lábios, o que nele só acontecia em momentos de compunção. De ordinário, a beiçola pendia-lhe lassa e despreocupada.

– Pobre do Alorna, que morreu roído pelo gelo.

Ó santa simplicidade! Nunca como neste momento a alma de João VI nos parece boa e rara. A sua figura simplória de personagem vicentina comove-nos e inspira-nos carinho e simpatia.

Uns meses depois, nos finais de Janeiro de 1814, morria o conde Galveias. Napoleão fora entretanto derrotado com os restos esfrangalhados do Grande Exército em Leipzig; anestesiado, desiludido, sem reacção, viu os exércitos inimigos entrarem pelas fronteiras francesas e dispôs-se a assinar a abdicação. Os Bourbons regressaram a Paris. E com eles voltaram todos os emigrados que a Revolução atirara para o exílio. Passou a reinar Luís XVIII, um homem velho, sexagenário, doente, feio, vingativo, que era irmão de Luís XVI. Ouviu-se um rugido furioso por toda a Europa. Era uma casquinada de escárnio e de vingança.

A cena da História devia pertencer doravante às damas de vestidos encantadores, aos generais constelados de estrelas, aos embaixadores frívolos e galantes, aos papas carregados de ouro, aos reis coroados como deuses, absolutos e indiferentes ao mundo e aos homens. A nova Europa saída dos escombros da Revolução era a Europa absolutista, a Europa da velha ordem, a Europa que julgava possível mexer nos ponteiros do relógio atrasando o tempo. Era a Europa do presunçoso czar russo, dos petulantes Habsburgos austríacos, dos agressivos e pérfidos Hohenzollerns prussos, dos orgulhosos e aristocráticos britânicos, dos Bourbons estouvados. Portugal no meio deles não existia. Tinham a vaga noção que existia lá longe entre comerciantes de tabaco, plantadores de algodão, negreiros e fabricantes de açúcar uma casa dita de Bragança. Nada mais. Mas tão vaga era a ideia que no primeiro encontro que os aliados europeus que derrotaram a França revolucionária tiveram em Paris, em Maio de 1814, o czar russo se lembrou de considerar a integração de Portugal nos territórios dos Bourbons espanhóis a troco de concessões no Mediterrâneo. Salvou-nos a Inglaterra, que representava os nossos interesses e se comprometera em 1810 a receber todo o comércio português a troco dum Bragança puro.

No Rio de Janeiro correu uma onda de preocupação; Portugal resistira à guerra mas nada valia na paz. Foram à praia chamar o Araújo, que continuava a ter relações em França e deram-lhe uma pasta. Propuseram ao regente o regresso à Europa. Estava em preparação um grande congresso para Viena onde se estabeleceriam as bases da nova Europa. Preciso era que ele fizesse ouvir no meio dos soberanos europeus a sua bela voz de baixo. Ele titubeou.

– Bem sabeis… os barcos e minha mãe, Sua Majestade, não me deixam arredar pé.

Eram duas desculpas verosímeis. No fundo não trocava a América por uma merenda calma na tapadinha de Mafra, quanto mais por um sarau em Viena. Sentia-se feliz no Rio de Janeiro, muito bem adaptado à Quinta da Boavista, onde decorriam obras de melhoramento, e por nada deste mundo estava disposto a deixar o sossego daquela vida, muito mais despreocupada que a que levara em Queluz ou na Bemposta. Ali passavam de quando em quando uns fazendeiros de ar apalermado e pacífico, com umas carroças de cachaça e feijão, que o cumprimentavam como a um vizinho, parando um momento para lhe pedir a benção e dar dois dedos de conversa. Perguntavam-lhe pelo pombal, davam-lhe sugestões, riam-se com ele, ofereciam-lhe flores e ananazes. Em baixo, deslizavam nas águas azuis da baía os botes da pesca ou os veleiros de recreio; ao fundo, ouviam-se as lavadeiras negras num rego de água doce a bater roupa na pedra e a cantar canções dolentes; por cima, em formações caprichosas, passavam os bandos rápidos dos pássaros. Todo o dia se ouvia o seu canto secreto, franco, ardente.

No centro da cidade tinha a mãe, a rainha, na companhia da tia e cunhada Maria Francisca. A Doida vivia no Brasil como se vivesse na Islândia. Não sentia o calor nos ossos enregelados e tremia de frio como nas sazões frias de Mafra ou de Vila Viçosa. Pedia braseiros e mantas de lã, quando os termómetros marcavam a temperatura tórrida dos trópicos. Perdera há muito o tino do mundo e regia-se por uma lógica de todo inapreensível. Estava mais espectral e descarnada; parecia um fantasma do Outro Mundo, saído duma opereta da rua dos Condes, quando o marido lá ia de lábios pintados, rosto empoado e peruca farta, de caracóis caindo pelos ombros. O filho visitava-a de quando em quando. Apoquentava-se muito com o seu estado e aquele espectáculo macabro era forte o bastante para impressionar a sua alma bronca. Recordava-se então do mano José e do seu passado triste, passado entre as quatro paredes do seu quarto de Queluz, com lágrimas e tremuras no beiço. Para distrair cantava modinhas aprendidas no Brasil, que a mãe se deliciava a ouvir, com um sorriso estúpido de papel nos lábios secos e ele se enamorava de trautear.

Para ir a Viena, no princípio de 1815, escolheu Pedro de Sousa e Holstein, conde de Palmela desde 1812, filho de Alexandre de Sousa, que morrera em Roma, no ano de 1803. Palmela estava com trinta e cinco anos, bonita idade para se apresentar nos salões vaidosos de Viena; tinha experiência, era arguto, teatral, manhoso, insinuante, cínico, artista; corria-lhe sangue italiano nas veias, nascera em Turim, fora educado em Londres, acompanhara o pai a Roma, convivera com Alfieri, Humboldt e Madame de Stäel, integrara os batalhões de Arthur Wellesley nas guerras peninsulares, ligara-se pelo casamento aos Gamas da Vidigueira.  E a partir de agora até ao instante da sua morte, em 1850, passa a ser personagem grada do nosso novelo. O Portugal moderno foi obra sua. E como a sua alma era feita de cera branda e cínica, apta aos retoques da arte, também o novo país nasceu torto e dissimulado para acabar numa charada de sangue.

Portugal valia no conciliábulo de Viena o que podia valer um protectorado inglês. A Rússia, para brincar com os Ingleses, insistiu nos planos de integrar Portugal em Espanha, a França exigiu a restituição da Guiana brasileira, a Espanha recusou-se a devolver Olivença, a Inglaterra garantiu a soberania dos Braganças mas lembrou logo de seguida os deveres do pupilo, proibindo-lhe determinantemente o tráfico de escravos, que era o que ia valendo algum dinheirame à coroa. Palmela assentia, ar postiçamente inteligente, como quem espera alguma recompensa da sua benevolência. Vestia com requinte, acompanhava com vivacidade os brindes, tornava-se espirituoso para não desiludir, fazia-se o mais querido das senhoras para vencer em algum lado. Que nova tragédia para a história dos Braganças, esta reunião de Viena! Que retrato tão humilhante! Veja-se só o efeito malvado e venenoso do quadro: Palmela safando-se menos mal com as senhoras e o rei lá longe, num morro da Guanabara, com a mãe doida a tremer de frio nos trópicos. Mas isto que pode passar pela desfeita de Portugal é afinal o desconchavo geral da vida. Nesta existência nunca se ganha nem nunca se perde; feitas as contas finais no grande livro do Universo, ganhos e perdas empatam-se tão certinhos como se houvessem sido lançados por mão de juiz salomónico.

Saiu da reunião de Viena a Santa Aliança, união de países dispostos a defenderem a Igreja e o Trono. O regente, quando viu a Europa assim entregue a uma liga de tão seguro e firme nome, suspirou de alívio. Queria paz e a tranquilidade. Arrumassem a casa, que ele depois logo veria. Os Franceses haviam armado uma tal bulha, que até a pobre mãe enlouquecera. A limpeza ia concerteza agora demorar uns largos anos. Entretanto ele ficava livre para viver a vidinha descansada e cheia dos trópicos. Afeiçoou-se mais à Quinta da Boavista, onde as obras avançavam a bom ritmo. Aquilo que uns anos antes fora apenas um grande armazém de víveres, era agora um apalaçado edifício colonial, com um torreão de zimbório e primeiro andar e um belo e arejado pátio de entrada donde se avistava um dos mais belos recantos da Baía. Estava encantado e feliz com a sua vida de velho retirado. Tudo o que lhe interessava era permanecer por ali, naquele lago de serenidade e pasmaceira. Elevou o Brasil a reino e criou o reino unido de Portugal, Brasil e Algarves. E para limpar os cacos que os Franceses lhe haviam feito na sua casa europeia – um pequeno rebordo do continente – chamou um dos intendentes da nova Europa, Beresford, a quem deu poderes plenos. Beresford era um careca inglês, com o cinzento aspecto dum gato-pingado e os modos brutos dum instrutor de recruta. Ele, o João-dos-anzóis, ficava com as mãos livres para as pôr ao Sol.

Quando pouco depois, em Janeiro de 1816, a mãe, descarnada e irreconhecível, rendeu por fim a alma nos braços da cunhada e tia, Maria Francisca Benedita, o regente desculpou-se com a dor e o luto para se deixar ficar escondido na Boavista. Decretou um ano de luto e adiou assim por doze meses a aclamação.

– Depois se verá. Podemos agora voltar tranquilamente para o gamão – disse ele ao ouvido do Lobato.

Era malicioso, mas genuíno e sincero como uma criança. Bem se pode adiantar que, num meio de videirinhos encantados pelos ouropéis dos lugares vistosos, a sua principal virtude era a contumácia de pastelão que mostrava. Resistia a reinar o mais que podia e sabia.

Logo de seguida veio Palmela insistir com ele para que casasse o primogénito, Pedro de Alcântara. A última vez que encontrámos este Pedro era ele uma criança mimada. Tinha nove anos, dava a mão ao mano Miguel, saía pela primeira vez de Queluz, via o inferno de Dante ao de cima da terra, abria os olhos de espanto e preparava-se para fugir atrás das calças do pai. Vinha lá a onda dos Franceses e era preciso escapar. Agora era um homem a caminho dos dezoito anos, cabelos encaracolados, olhos cor de mel, lábios grossos, hábitos vadios e sensuais que tudo o que desejava era não ver o pai por perto. Envergonhava-se da indolência e da falta de autoridade que ele apresentava. Sentia um desprezo que chegava à insolência.

– Não é rei, não; aquilo é espanta pássaros – costumava ele exclamar em privado.

Mas não afrontava directamente o pai. Raramente o via e nunca o procurava; evitava-o. Vivia nos edifícios do centro da cidade uma vida ruidosa, que era aclamada com risos de aplauso e ditos de condescendência. Era espalhafatoso e cheio de presunção, apesar de frágil e enfermiço, com ataques fortes de epilepsia e dores frequentes na cabeça, que o obrigavam a fechar-se a sós, na escuridão do quarto. Criara-se nos morros da Guanabara no meio da molecagem; regionalizara-se nos modos e na linguagem. Ganhara distâncias do mano Miguel que era mais novo do que ele quatro anos. E quatro anos naquelas idades são um fosso sem transposição, pior que um oceano de fogo.

A mãe era-lhe indiferente. Carlota Joaquina tinha a sua vida nas traseiras da cidade, o seu grupo de açafatas e picadores que tomavam por sua conta os bosques da Tijuca. As histórias grosseiras das suas obscenidades que corriam na boca risonha dos comerciantes da baixa fluminense não o impressionavam; ele próprio era despudorado e incontinente como um cão. A soltura de costumes era corrente naqueles lugares; o sol incentivava a nudez e a nudez estimulava o apetite libertino dos corpos. As raças cruzavam-se ali com mais rapidez e desejo do que coelhos a fornicarem. Foi neste meio que o instinto do príncipe despertou e se desenvolveu, tornando-se desvergonhado e selvagem. Despucelara não sei quantas molecas nas fazendas dos arredores e não se contentava nunca com uma mulher por perto. No mínimo exigia-as aos pares, disponíveis, ternas, enciumadas, disputando com fúria mimada, aos beijos e às unhadas, os seus abraços. Por fim, sentava cada uma delas em sua perna e ali as punha a soluçar convulsas e histéricas com a força.

– A máquina triforme é pior que boca de fogo de fragata. É tiro repetido e continuado – disparava ele às gargalhadas aos criados da Quinta da Boavista que lhe gabavam a fama das proezas na cama.

Chamava máquina triforme ao seu aparelho genital, de que se orgulhava como uma peça precisa e bem oleada. Descarregava fogo como uma metralha; nunca o traía e era de tiro preciso e estampido longo. Quando esvaziava a arma fazia-o com uma tal violência que ficava com a impressão de furar as tripas que encontrava pela frente. Epiléptico ou não, era um picha de aço que se vangloriava de partir com ela, à força de marretada, tijolo do antigo, de duas dobras.

Dava-se muito com um rapaz mais velho do que ele, Francisco Gomes da Silva, o Chalaça,  que fora em 1807 na armada real para o Brasil como moço do paço e nascera filho dum ourives de Santarém. Era então um rapazote de quatorze anos, assomadiço e prestável, que chegara ao paço pela mão do visconde de Vila Nova da Rainha, o valido mais querido do regente. Agora era um mocetão de vinte e cinco anos, danado para a pancadaria e para a estúrdia com mulheres. Como tantos outros que partiram crianças do cais de Belém em 1807, também ele abrira em alegria e pilhéria ao Sol quente do Brasil.

– Tu és homem mesmo. És cabra macho ­– costumava o príncipe atirar-lhe como elogio, quando no fim duma zaragata o via de varapau na mão e sorriso safado nos lábios, enquanto os adversários debandavam assustados diante dele.

A única educação séria que teve no meio desta estroinice foi com o Araújo, já que a sua primeira mestra, a tia Maria Francisca Benedita, estava cada vez mais silenciosa e apagada no seu amarrotado vestido de viúva e Palmela, que depois tão crucial lhe foi nos lances decisivos da vida, andava demasiado ocupado com os negócios das secretarias do reino. Vivia para fazer render o seu talento de cortesão e a sua vivacidade experimentada e falsa de homem mundano. Interessava-se evidententemente pelo príncipe, mas só o bastante para se fazer notado. O príncipe herdeiro, o futuro Pedro IV, era rebento sensual e nervoso, que desabrochara já na terra úbere e nova da América ao sol tórrido e cruel dos trópicos. A seu tempo o estudaria, para com ele se haver.

O Araújo aparecia com alguma regularidade nos aposentos de Pedro. Vinha-o buscar para um passeio pelas praias da baía. O infante deixava-se ir, porque estava desejoso de se industriar na História recente da Europa e o Araújo era quase tudo o que tinha à mão para se industriar no assunto. As conversas recaíam sempre sobre a Revolução dos Franceses, o período do Terror, o Directório, as vitórias militares de Napoleão e o seu modelo administrativo. O seu interesse centrou-se pouco a pouco na figura do imperador. A sua estrela militar fascinava-o e não tardou a fazer dele o herói dos seus sonhos de grandeza e de glória. Seguiu durante algum tempo o seu percurso vitorioso e sofreu com ele os infortúnios da Rússia e as tragédias da sorte. Chalaça pelo seu lado contrariava-o, apontando Napoleão como o seu pior inimigo.

– Não vês direito. Aquele homem não é bastardo, não. É cavaleiro assanhado, cabra macho de verdade ­– respondia ele, quando discutiam os a figura do corso.

O imperador dos Franceses tinha todos os ingredientes para lhe agradar. Era rijo e vaidoso, gostava de andar ao sopapo, tinha um coração trémulo e generoso. No fundo, era ele o seu modelo de pai e não o palerma que o destino lhe dera como progenitor. Esse era um inábil, um frouxo, mais mole que uma banana madura, que passava os dias de beiçola descaída num banco de madeira do terreiro da Quinta da Boavista. Este envergonhava-o, o outro entusiasmava-o.

Desde que soube os Bourbons de novo no trono de França e o imperador atirado para o duro exílio dum rochedo de pedra, rodeado por desapiedados carcereiros Ingleses, comoveu-se; fez-se definitivamente bonapartista. O destino do teso cabo de guerra iluminou-se-lhe ainda mais com a derradeira derrota de Waterloo e a partida para Santa Helena.

– Eu digo a você, esse homem não está errado, não. Você o vai ver ainda como o maior carácter da História do mundo – disse ele ao Chalaça por essa época.

O Chalaça pouco queria saber do assunto, e menos ainda da História do mundo, e ele apenas o bastante para cuidar da sua vaidade, que com um nada se comovia e com um nada se enfurecia. Ao infante, na verdade o que o preocupava eram as francesinhas do Rio de Janeiro que apareciam pelo teatro da Baixa.

– Minha França é esta – exclamava ele extasiado, de pé, na sua farda de gala, batendo palmas, diante das artistas francesas, quando estas apareciam no palco.

Essas mulheres perfumadas, sedutoras, respirando meiguice e requinte, abalavam-no até ao mais fundo do ser. Não descansou enquanto não caçou uma. Apanhou-a numa companhia colorida de bailarinas num dia do princípio do ano de 1815. Chamava-se Georgette Thierry e não se fez rogada aos avanços do infante. Este deitou-lhe a mão e desfrutou-a com a sofreguidão das novidades. E como em geral apanhava as borboletas aos pares, não se deitou enquanto não lhe apanhou a irmãzinha mais nova, Noémie Thierry, um raminho tenro por desflorar, com uns olhos doces, uma pele acetinada e uma boquinha de cravo. No momento em que ela se rendeu aos seus presentes doidos e apaixonados, ele viu diante de si um corpo escultural e perfeito. Foi a loucura e o escândalo. Durante três meses cevou naquelas carnes toda a sua sensualidade; levou-a aos salões do paço do governador; apareceu com ela ao lado no Rossio; deu-lhe lugar no camarote real do teatro. Por fim, ela confessou-lhe que estava grávida dele e ele, doido de alegria, presenteou-a com uma fortuna de jóias e sedas.

Quando o barbeiro do príncipe, Plácido Pereira de Abreu, que era para ele outro Chalaça, lhe perguntou o que pensava fazer, ele olhou-o com ardência de louco e respondeu ébrio de entusiasmo:

– Casar-me, pois não, seu Plácido.

A notícia rebentou como um tiro no Rio de Janeiro. Não houve quem não risse da ingenuidade do príncipe, mas não houve também quem não lhe gabasse a ousadia e a sinceridade. Num infante fadado como ele para o trono aqueles arroubos apaixonados até ao casamento eram caso para lhe pendurar ao pescoço um grosso louvor. O perfil de romântico e de demagogo ganhou-o Pedro naquele momento. Foi vestuário que lhe assentou bem à vaidade e aos sonhos de grandeza e popularidade. Não mais se quis fora dele e alguns dos casos mais flagrantes da sua vida serão arroubos assim de romantismo e teimosia. Lá os veremos a seu tempo. Diga-se tão-só para já que este Pedro de Alcântara é o primeiro rebento da raiz da árvore que deu depois na tragédia do seu bisneto, Carlos de Bragança.

Interveio a mãe, que era bicha muito sabida nestas coisas de paixões e desvarios. Chamou a garotinha de parte, fez-lhe ver que os príncipes só entre si se matrimoniavam e perguntou-lhe, enquanto mexia distraidamente nas sinistras penas do seu toucado, se preferia a prisão, o veneno, o punhal ou o discreto benefício pessoal.

– O benefício pessoal – respondeu sem hesitações a pequena.

– Assim é gostoso. Boa moça, boa moça ­–  assentiu a rainha com um sorriso, enquanto lhe passava as mãos sujas pelos cabelos.

Arranjou-lhe casamento com um tenente do exército, dotou-a com dez contos de réis e despachou-a para o distante Recife. O príncipe ficou furioso quando soube do afastamento. Procurou a mãe nos aposentos da cidade disposto a deitar-se a ela numa fúria cega. Partiu-lhe o aparador dos perfumes a pontapé e se o Araújo não se tem metido tinha-lhe deitado as mãos ao pescoço frio e cinzento de cobra. Era o princípio dum assanhado confronto que ali se via. Na fúria daquele momento desenhou-se afinal toda a tragédia futura da guerra que na década seguinte rebentaria. Depois, quando lhe falaram nos deveres de príncipe, caiu em si e mostrou-se inconsolável.

Veio-se a saber que Noémie dera à luz um nado-morto. O príncipe recebeu a notícia banhado em lágrimas, como se tivesse perdido um tesouro. Aquele filho era um nada, mas para ele valia uma civilização. Teve então o seu segundo grande momento teatral. Exaltou-se e prometeu a si mesmo um monumento que perpetuasse a memória daquele amor, já que nem as obrigações nem o destino lhe haviam sido favoráveis. Grandiloquente, dramático, exagerado, delirante, exigiu o corpo da criança que mandou mumificar e guardar num cofre de prata.

– Me vai acompanhar até minha morte ­– jurou ele ao Chalaça com emoção despropositada, de mão aberta no peito, quando instalou o cofre no centro do seu escritório.

E assim estavam as coisas quando Palmela cauteloso achou por bem encontrar casamento para o príncipe. O rei estava por tudo desde que o deixassem continuar a partida com o visconde de Vila Nova da Rainha e não lhe pedissem para deixar a Boavista, que era o retiro da sua paz. Adorava cada mais o recanto, com seus mestiços de passagem, carregados de farinha e peixe seco.

– Que diacho, meus senhores, ainda estou de luto – desculpava-se ele, com a cara gorda a luzir de suor e os dentinhos brancos de coelho medroso à mostra.

Palmela engendrou então casamento para o príncipe. Via no caso um assunto sério, o mais sério dos últimos tempos. Era assim o talento de Palmela, fazer dum assunto íntimo a salvação dum reino. Para ele aquele casamento devia projectar Portugal na nova Europa saída das ruínas da Revolução. Apontou pois para um casamento na Áustria, já que em Inglaterra ninguém o queria. Estivera em Viena em 1815 e saíra-se menos mal. Metternich, o estadista austríaco, o novo árbitro da Europa, achara-lhe picante e simpatizara com a sua frivolidade galante. Sondou-o e mostrou-se empenhado em ser generoso. Metternich deixou-se fazer; convinha-lhe aquele casamento na corte de Francisco I para ver se contrabalançava a pressão que a Inglaterra punha junto de Portugal. Palmela enviou a Viena o marquês de Marialva, Pedro de Meneses, embaixador português em Paris, e a 29 de Novembro de 1816 assinava-se o contrato de casamento entre o príncipe Pedro de Alcântara e a arquiduquesa Leopoldina, filha de Francisco I da Áustria.

Regressou o Marialva a Paris para fazer o pedido oficial ao imperador da mão da filha. Preparou um vistoso cortejo de cerca de meia centena de carruagens de berlinda alta, cada uma delas com seis emplumados cavalos, ladeada por várias alas de criados de libré, e um préstito de gente a pé com cerca de oitenta pessoas. Cada um dos pagens a pé levava nas mãos um presente de oiro ou de diamantes para oferecer na corte do imperador. Na frente vinha um oficial da embaixada portuguesa com uma almofada de veludo nas mãos, onde se anichava o presente para a arquiduquesa, um retrato do noivo com uma generosa cercadura de diamantes. Entrou o Marialva ao comando desta gente em Viena a 17 de Fevereiro de 1817. Foi o delírio.

No Brasil, o príncipe punha-se a sonhar com a noiva. Quando o barbeiro lhe perguntou o que pensava ele da duquesinha austríaca, o príncipe respondeu.

– Seu Plácido, a garota me agrada muito, muito mesmo. Lembre que é irmã ela da princesa Maria Luísa que casou com o grande imperador dos Franceses.

Era esta a principal qualidade de Leopoldina para Pedro, ser irmã da segunda esposa de Napoleão. Saber que ia tocar e modelar nas mãos o corpinho da cunhada de Napoleão entusiasmava-o mais do que qualquer outra coisa. Bem lhe podiam falar nos olhinhos azuis da noiva, na pele alva do seu pescoço ou na sua esmerada educação de princesinha letrada que isso para ele eram insignificâncias quando postas ao lado do parentesco em que se via metido com aquele enlace.

Entretanto rebentou no Recife o levantamento republicano de Março de 1817. A América sonhava com a independência e misturava nos seus anseios as novas ideias. Queria varrer os reis e viver a liberdade. Por todo o lado surgiam notícias de pronunciamentos; por toda a parte nasciam libertadores a quererem imitar o exemplo de Washington. O Brasil era um floresta, resguardada apenas pela presença do rei, no meio dum gigantesco incêndio. Ninguém acreditou porém que a revolução vingasse. Ainda assim o rei lastimou o caso.

– Agora uma desordem destas.

  • Quando soube que a revolta alastrava a outras capitanias do Nordeste, amedrontou-se. Estava de novo no meio de tiros, gritos, confusões. Já se via a fugir como da outra vez, com os baús empilhados à pressa nos brigues da armada. Nem na Quinta da Boavista o deixavam em paz. Logo depois, chegaram ao Rio os primeiros boatos da conspiração em Lisboa de Gomes Freire de Andrade, um dos validos de Pedro de Almeida na legião portuguesa de Napoleão e chefe dos mações Portugueses. O rei sentiu-se o mais desgraçado dos homens; foi chorar para os braços do Lobato a triste sorte da sua vida de rei à força. O drama deste rei foi viver num mundo demasiado agitado e ter uma alma simples de hortelão. Isso fez dele um rei desditoso e fá-lo agora simpático aos nossos olhos.
  • Palmela aflito garantiu-lhe que aquilo era fruto passageiro do banzé anódino da imprensa portuguesa de Londres, onde uns tantos emigrados teimavam em difundir as ideias revolucionárias. Estavam por lá alguns agitadores como João Bernardo da Rocha Loureiro e José Liberato Freire de Carvalho que publicavam uns pasquins indigestos e ilegíveis. Mas eram inofensivos, não se entendiam entre si, tudo o que lhes interessava disputar era uma nesga de popularidade.
  • – É gente que se cala com uma bucha ou um emprego numa secretaria – garantia Palmela. – Isto dentro em pouco está acabado e esquecido.

E estava. O levantamento de Pernambuco foi sufocado em finais de Maio e o Andrade acabou preso na mesma altura e enforcado pouco depois em Oeiras, na fortaleza de São Julião. Chamou-se para o ministério do reino um partidário severo da política anti-liberal da Santa Aliança, Tomás António de Vilanova Portugal. O rei estalava os dedos e media o sossego que lhe deixavam. Tinha maus pressentimentos. O Brasil engendrava dentro de si uma carga de trabalhos e Portugal, o rebordo da Europa, havia de ser um problema maior. Preferia não pensar muito num e noutro e ver se o deixavam esquecido pelo oásis da Boavista, onde ninguém dera sequer por Franceses ou por Russos.

No fim do ano, em Novembro, chegou finalmente ao Rio a arquiduquesa Leopoldina. Quando a viu, Pedro teve um susto. A princesa era baixa e avantajada de carnes, com a pele avermelhada e cerosa, os olhinhos severos e sapudos, os cabelos ralos e secos, o nariz fininho e ridículo, os zigomas salientes e grossos, as mãos papudas. Fazia-se acompanhar dum batalhão de sábios germânicos, muito interessados no estudo da flora e da fauna do novo mundo. A menina era aquele corpinho penoso e desajeitado que dava tristeza funda ver, mas por dentro havia nela um portento de energia e saber, trabalhado com muito estudo, muita prelecção didáctica e muito esforço de disciplina. Era tal a sua ordem, que quando chegou ao Rio já falava português.

– Puxa, que desgraciosa. Parece musaranho de cauda – exclamou o príncipe desagradado para os amigos.

– Contente-se, meu irmão; é a cunhadinha de Napoleão – chacoteou o barbeiro a rir.

O príncipe teve uma fúria. Quis atirar-se ao ministro do pai que lhe havia metido dentro de casa com palavras doces um tal estafermo. Tinha proximidade com Palmela, que ao lado do Araújo era a sua fonte de informação sobre o que se passava na Europa. Perdeu porém a cabeça e tomou aquela fealdade como desfeita pessoal. Chegou-lhe ao gabinete desabrido e raivoso, rugindo como leão, disposto a desafiá-lo para um duelo de morte na madrugada seguinte. Partiu-lhe com um encontrão um jarrão de loiça da Índia, onde estavam pintadas as armas dos Holsteins, e abriu-lhe os olhos loucos de dor.

– Você, seu macaco, vai ter de se haver comigo por causa deste negócio mau – repetiu ele fora de si, enquanto o Palmela se encostava amedrontado a um canto do gabinete.

Valeu-lhe o Araújo. Tomou o príncipe nos braços, levou-o para as praias mais distantes, distraiu-o com curiosidades da sua vida passada. Alguns dias depois, Palmela escreveu-lhe uma carta, em nome do pai. Pedia-lhe atenção para a importância política da aliança com a Áustria. Através do seu casamento com Leopoldina os Braganças voltavam a ser reconhecidos na Europa como uma importante casa reinante. Até o príncipe Metternich, o homem mais poderoso da Europa, punha os olhos naquele enlace. O príncipe, depois do primeiro impulso desabrido, retraiu-se e lamentou o desacerto. Por fim, Palmela atreveu-se a procurá-lo para lhe falar da filosofia do enlace.

– Sua Alteza sabe. Nestes casos o casamento é uma função de Estado, nada mais. Tudo o que se pede são herdeiros, não amor.

O príncipe procurou adaptar-se à nova situação. Galanteou o que pôde a esposa para se meter com ela na cama. Quando a viu desnudada horrorizou-se com aquelas formas mais grosseiras que uma saca de carvão mas lembrou-se de Metternich, o homem mais poderoso da Europa, e não desistiu. Como não era homem duma única mulher, divertia-se por fora com as cafuzas esculturais que frequentavam as tabernas da baixa fluminense e que davam tudo por uma noite de embriaguez e sexo desenfreado à luz das velas com o príncipe da máquina triforme.

– Quando dispara, parece canhão de rodas. Até faz eco – diziam a rir entre si.

A princezinha Habsburgo percebeu aquelas traições. Escreveu para casa, mas pediram-lhe paciência. Choramingou, mas o esposo prometeu dar-lhe noites de prazer e loucura, desde que ela fechasse os olhos às suas escapadelas. Viviam agora no lugar de São Cristóvão, numa pequena dependência da Quinta da Boavista, que Leopoldina cobiçara para as suas expedições científicas. Passava os dia nos bosques cerrados da serra dos Órgãos ou na subida do Corcovado, identificando borboletas, desenhando plantas, coleccionando um herbário, estudando insectos e discutindo energicamente com os seus mestres todo aquele novo mundo desconhecido na Europa e nos seus livros. Vestia calças como um homem e punha na cabeça um capacete germânico de ferro, envolvido numa lona grossa, para se proteger do calor escaldante do Sol.

– Lá vão os soldados e o general prussiano – dizia Pedro ao Chalaça, quando a avistava no meios dos bosques, a dar ordens e a tomar apontamentos nos cadernos.

Chegou por fim a altura do João-dos-anzóis se fazer aclamar. Era-lhe impossível protrair por mais tempo a cerimónia.

– É quase tão mau como ir Viena dançar a valsa – desabafou ele.

Quando olhou a corte no momento da sua aclamação, percebeu como estava sozinho e a sua vida de rei era triste e pardacenta. Duas filhas, Maria Isabel e Maria Francisca, haviam ido para Espanha casar, uma com o rei Fernando VII e outra com o seu irmão Carlos. Ainda assim ficou Isabel Maria, porque as outras duas, Maria da Assunção e Ana Maria de Jesus, tinham-lhe o nome mas não a paternidade. A mãe, a Doida, já partira deste mundo. Ainda lá estavam no canto da praça os aposentos onde ela se apagara uns meses antes. A tia e cunhada, Maria Francisca Benedita, escondia-se dentro do seu murcho e escuro vestido de viúva.  Depois havia o filho Pedro e a nora Leopoldina, que ele via muito pouco. O mesmo acontecia com Carlota Joaquina e Miguel, um espigadote rapaz de quinze anos que só encontrava nos raros momentos em que dava nota pública.

A arquiduquesa apareceu grávida no fim da Primavera de 1818. Foi um alívio e um enlevo para Pedro, que sentiu saudades magoadas e urgentes de Noémie e olhou para o cofresinho que Luís do Rego Barreto, o governador do Recife, lhe mandara dois anos antes. Não sossegou enquanto não instalou de novo no Rio a bailarina francesa, descarregando nela o apetite de tantos e tantos meses de separação. Era tão inconsciente que chegava a visitar a bailarina acompanhado da esposa grávida. A francesinha ria dos maus hábitos do príncipe, pondo algum picante no caso, mas a esposa,  menina sem malícia, quando percebeu o que se passava desgostou-se e nunca mais o quis acompanhar. Desconhecia-lhe o modo ingénuo e romântico de menino mimado, feito desde o princípio para ter o rei na barriga, habituado a pôr e a dispor, criado à solta entre moleques esfarrapados que lhe obedeciam às cegas, de olho no chão, e por isso às vezes assustava-se pensando que casara com um homem medíocre e instintivo, cheio de baixos apetites, sem etiqueta nem educação.

– É um poltrão – confessava ela em português, lavada em lágrimas, a uma das camareiras, quando sabia que o príncipe ia passar a noite com a bailarina, deixando-a sozinha, no meio dos seus apontamentos e dos seus sonhos.

Admirava-lhe ainda assim o vigor sexual. A promessa de lhe dar noites de loucura e de prazer fora cumprida à risca. Nunca ela, menina de livros e solfejo, de ordem e disciplina, muito da intimidade de Santo Inácio, imaginara que pudesse haver dentro do ritão do corpo uma substância assim inebriante e gostosa.

Amava-o? Talvez, não sabia ao certo. Mas se sim, não tanto que não se desgostasse dele a valer e não chegasse a temer as suas fúrias disparatadas e cegas. Jogaram cartas um dia e por um acaso da sorte ela ganhou; foi logo uma tal pé de vento, com os perfumes todos do aparador em cacos no chão, que nunca mais ela se atreveu a confiar na sorte. Fazia sempre por perder para lhe não sofrer a fúria e o mau génio. E até para lhe não ouvir depois as súplicas, as desculpas, as contrições dilaceradas e sonoras de menino arrependido, embrulhadas em muitas lágrimas, suspiros e desesperos. Que estranha e extravagante natureza a desse Pedro de Alcântara! Era um bruto pela ferocidade crua dos Bourbons espanhóis, um apaixonado pela paixão ardente dos Parmas napolitanos, e era ainda um menino cego pela fortuna incerta dos Braganças.

Deu à luz a princezinha austríaca no dia 4 de Abril de 1819 uma menina. Era um chouriço de carnes tenras e amarrotadas, que depressa se percebeu que era o corpo e o feitio da mãe. Acabara de nascer para este mundo a futura Maria II de Portugal, que tanto foi depois a matrona sólida desta família como o seu ponto frágil de corrupção. Nariz fino, boquinha insignificante, carnes sem forma, pele avermelhada, dedos curtos e balofos.  Chamaram-lhe Maria da Glória, pela devoção da corte e pelas circunstâncias do tempo, muito atreito a ver na talha dos altares o esplendor da bem-aventurança eterna. Pedro viveu momentos de desvelo junto do berço da filha e renovou as juras de encantar a mãe com noites de delírio e gemidos. Cumpriu, porque logo a arquiduquesa apareceu de novo grávida e sorridente. Se não podia viver a elevada etiqueta com que sonhara em Viena, ao menos podia dar filhos ao seu novo reino e receber assim os aplausos do povo e do rei, seu sogro. Era pouco, mas servia de consolação.

Com tudo isto Pedro não se furtou a visitar a amante francesa que mantinha em casa da Baixa, aproveitando para levar de vencida mais algumas das meninas da vizinhança. À noite os moleques da quinta vinham chamá-lo à janela do quarto, de lampião aceso na mão. Conheciam-no desde criança e tratavam-no com desusada familiaridade.

– Seu Pedro, a cabocla Maria está esperando você no Terreiro da Lagoa e pede para cê levar vestido para ela.

Este o refrão repetido até à exaustão naquelas noites quentes e suadas dos trópicos. A única variante estava no nome da cariboca e no objecto requerido; mas à força de batido já nem os nomes nem os objectos se diferenciavam entre si. Era tudo o mesmo assunto de arrebatamento, isso mesmo, ardor e rebentação. A princesa enrolava uma lágrima amarga na alma, que lhe escorria depois escaldante pela face. Ficava-lhe a consolação da gravidez e o impulso da Ciência, uma das suas deidades de menina prendada da Áustria. Vingava-se com verdadeiro empenho em dissecar, anotar e conhecer a natureza pródiga e virgem daquele meio. Contava dar conta das suas indagações em livro, onde devia fazer convergir a larga história da pesquisa, a descrição das espécies e a interpretação dos dados. Consolava-se olhando o ventre arredondado que lhe crescia de dia para dia, o berço da pequena Maria da Glória e os apontamentos espalhados na mesa do seu pequeno gabinete de trabalho, onde pendurava as calças, o capacete colonial e a cápsula de rede com que caçava insectos e borboletas.

Entretanto rebentou em Espanha uma sublevação constitucionalista; estávamos em Janeiro de 1820. Era o primeiro rebento revolucionário numa Europa apertada no colete-de-forças do absolutismo da Santa Aliança. Ninguém se convenceu que vingava, mas vingou. Restabeleceu-se a Constituição de Cádiz, acta fundadora da soberania das nações ibéricas e do direito do sufrágio universal, que fora redigida e aprovada em 1812 num intervalo das convulsões, quando os Bourbons estavam presos em França e José Bonaparte andava já corrido pelas guerrilhas e pelos exércitos anglo-lusos. Era uma Constituição revolucionária que estabelecia a distinção dos três poderes, residindo o poder legislativo na nação reunida em Cortes e não no rei. A inpiração francesa do modelo era evidente.

Temeroso com os desenvolvimentos que o caso espanhol podia ter em Portugal, Beresford, o careca inglês, planeou ir no Verão ao Brasil pedir mais poderes ao rei. Conhecia-o. Sabia-o temeroso de tiros e revoluções e acreditava por isso que lhe daria tudo o que lhe pedisse. Sonhava ser cônsul vitalício de Portugal, aproveitando-se da falta de jeito do rei. Foi, mas quando regressou já não o deixaram desembarcar. A revolução estava na rua e incendiava as almas ao toque de lunduns filarmónicos e de fitinhas constitucionais.

– É o briche. É o briche – apregoavam os anões nas ruas do Porto e de Lisboa, com as peças de saragoça passadas à volta do braço.

A revolução, que começara com um pronunciamento militar no Porto a 24 de Agosto de 1820, depressa chegara a Lisboa, pegando fogo ao povo que saiu delirante para a rua para atirar foguetes, bater palmas e pôr o chapéu alto com a roseta revolucionária que os soldados distribuíam. Estavam cansados da ditadura do Beresford. Chamavam-lhe o Bordafora e diziam que ele cheirava a azedo. Outros, mais directos e grosseiros, tratavam-no pelo cara de cu ingalês e estavam desejosos de o deitar ao mar, vendo em seu lugar o simpático molengão que partira há mais duma dúzia de anos para o Brasil.

Que desejava a revolução? Um conjunto de reformas que ninguém entendia e com que ninguém se preocupava, como chamar ao domínio público as propriedades da prelatura, tributar forte nas rendas das corporações religiosas, extinguir mosteiros, proibir votos, chamar ao fundo nacional os bens da coroa de modo a amortizar com eles a dívida pública e eleger uma assembleia constituinte que redigisse uma acta constitucional para o reino. E por fim desejava uma medida que todos compreendiam e todos aplaudiam com forte e alta berraria, chamar o rei do Brasil, para que ele assinasse e jurasse a Constituição. Queria o povo tal Constituição? Queria. Se era preciso uma Constitição para o rei largar do Brasil viesse depressa a Constitição – assim se dizia. Tanto fazia ao povo uma ‘Constitição’ como uma Constituição. O que ele queria era o rei no Terreiro do Paço como nos velhos tempos antes dos Franceses.

Quando estas notícias chegaram ao Rio de Janeiro a surpresa foi total.

– Essa é boa. O mundo já não tem vassalos fiéis mas cidadãos livres – dizia-se com estupefacção nas ruas.

E a par da surpresa veio o desnorte. A Santa Aliança continuava a realizar os seus encontros anuais e tudo na Europa se passava debaixo da sua vigilância. O constitucionalismo fora abolido em 1815, parece que para sempre, e em seu lugar reinava de novo o velho absolutismo. As ideias liberais estavam proibidas em quase toda a Europa, com gravíssimas sanções para quem as pusesse a circular, e só em Londres havia uma pequena tolerância para com alguns jornais da oposição. Não se conseguia pois entender o que se estava a passar na Península com a chegada de duas novas Constituições.

– Isto não dura uma estação – profetizava o ministro do reino, Tomás António de Vilanova Portugal.

O rei hesitava, deixava tremer a beiçola com o nervoso, ponderava com olhar assustado a verdade ou a falsidade daquelas palavras. Não acertava com conclusão em que se fiar.

– Aquela gente é como fumo. Deixe Sua Majestade a coisa correr que dentro de pouco tudo se desfaz. Em dois ou três meses ninguém se lembra da Constituição – reforçava o ministro. E depois concluía, encolhendo os ombros – Aquilo cai por si.

O rei ainda assim não se deixava convencer. Tudo se passava lá longe, num país para ele quase esquecido, do qual se ausentara há mais de treze anos; assim como assim, as ondas de choque daquela desordem chegavam até ele, ao morros arredondados do Rio. Sentia-as estremecer no corpo; todos os seus sentidos tremiam a cada berro mais alto que se gritava em Lisboa. O Atlântico repercutia aquele ruído; era uma chapa metálica, verde e lisa, que conduzia na perfeição a electricidade revolucionária. Uma das exigências dos sublevados era que ele regressasse a Lisboa para jurar a Constituição. E isto mexia com ele. Na verdade o que o deixava fora de si era mesmo e tão-só a necessidade de regressar a Lisboa. O restante a bem dizer era-lhe indiferente.

Sentia-se de novo o mais infeliz dos homens. Não se conseguia imaginar a fazer as malas e a deixar a quietação da Quinta da Boavista. Queluz, com o Ramalhão por perto, parecia-lhe um monstro e a Bemposta, no meio do ruído da cidade, um castigo. E as Necessidades, com as Cortes reunidas dentro, então era caso para esquecer. Dava de barato aquilo tudo, desde que o deixassem gozar as delícias do sossego brasileiro.

Palmela, que era homem com muita experiência nos conciliábulos políticos, percebeu desde cedo o seu dilema. Mas entendeu também que aquela revolução era bem mais nefasta do que pensava o Vilanova. Estava longe de acreditar que tudo aquilo se resolvesse assim dum dia para o outro. E mesmo que os Bourbons Espanhóis chamassem os Franceses para se verem livres dos constitucionais não acreditava que os deixassem atravessar a fronteira portuguesa. Defendeu por isso desde o princípio uma orientação cheia de manha e hesitações.

– É preciso que o rei se adiante à revolução e tome lugar à cabeça do movimento ­– afirmava ele.

Queria para isso uma Carta em vez duma Constituição. O rei, idiota por natureza, não percebia aquelas subtilezas. Palmela insistia.

– A Constituição é revolucionária; a Carta é real. A primeira é fruto da subversão dos súbditos, a segunda da generosidade de Sua Majestade. Na primeira manda o povo reunido em Cortes; na segunda reina com todas as prerrogativas Sua Majestade.

– Então, ó Pedro, não tem diferença entre a monarquia ao modo dos velhos reis e essa Carta de que falas tu – inquiria o rei com lentidão.

– Tem. Pela Carta reconhece Sua Majestade direitos aos súbditos, o primeiro, o fundamental, o de se reunirem em Cortes e de participarem na feitura das leis.

– Então, ó Pedro, é o contrário. Entre a Carta e a Constituição não tem diferença.

– Também tem. Na Constituição o rei está como Pilatos no Credo; estar ou não estar vai dar ao mesmo. O constitucionalismo é uma República coroada. Na Carta não é assim; o rei nomeia uma Câmara de pares que partilha com a Câmara dos representantes populares o poder de fazer as leis. Ademais, tem veto sobre as leis, podendo governar em ditadura.

Estava criado o partido Cartista português, que tanta importância viria a ter na história do século XIX português e cujo primeiro mentor foi Palmela. Foi o cartismo que deu a Carlos de Bragança o quadro político da sua tragédia pessoal. E por isso este Palmela, cujo retrato ainda hoje anda pendurado numa sala do palácio de Vila Viçosa, foi o supremo magistrado para o bem e para o mal desta nova dinastia bragantina nascida do confronto político com as novas ideias.

A princípio o rei não se inclinou para as teorias de Palmela. À força de as ouvir, entendeu-as, se não em tudo, ao menos no essencial; simpatizava até com o gesto de ser generoso e reconhecer direitos e garantias ao povo. Caía-lhe bem a casaca comum do fraterno. Não gostava de se sentir excepcional e menos ainda rei absoluto. Na verdade, era um simplório, que tudo o que desejava era viver como um lavrador abastado. Fora rei à força e partilhava de boa vontade o ceptro. Ademais não desembolsava por aquele negócio um dobrão que fosse; parece até que em vez de andar atarantado a fazer somas e subtracções passava a ter uma lista civil paga pelas Câmaras com dinheiro contado e a horas. Nada disso lhe custava; pelo contrário, era-lhe simpático. O que lhe desagradava de sobremodo na teoria do seu diplomata era que tinha de regressar a Lisboa.

– Regressar a Lisboa, Deus meu, nem pensar ­– desabafava ele aos íntimos, com um calafrio de horror, deitando contas aos incómodos da viagem.

Virou-se por isso para o Vilanova. Era jurista conspícuo, homem de muito estudo. Não tinha talvez a habilidade política do Palmela, ganha nos círculos ardilosos da Europa, mas mostrava juízo, seriedade, trabalho. E sobretudo garantia-lhe com um encolher leve de ombros e um jeito sisudo do rosto o seu mais querido desejo.

– O Vilanova é sensato, tão sensato que me evita a passagem para Lisboa – dizia o rei bem humorado e benevolente, quando percebeu que se livrava de deixar a Boavista.

O ministro, fiado nos poderes que o rei lhe deu, decretou em Fevereiro de 1821 o envio da Constituição de Lisboa para o Rio, salvaguardando a posição do rei e dando a entender que a lei teria apenas uma função meramente consultiva.

Foi o desastre. O Rio de Janeiro quando teve notícia do decreto do ministro de João VI saiu em massa para a rua, repetindo o ambiente revolucionário e festivo do Porto e de Lisboa. A tropa sediada na cidade pronunciou-se a favor da revolta e exigiu que o rei jurasse a Constituição que as Cortes produzissem. Para agravar a situação, a revolta alastrou as outras cidades do Brasil, todas ela exigindo o compromisso do rei para com a Constituição. O rei teve uma crise de choro.

– Não bastava a desordem que vai por Lisboa. Uma coisa destas aqui no Rio, mesmo à porta de casa – lamentou-se ele, lavado em lágrimas, nos braços da filha dilecta Isabel Maria, enquanto o povo ocupava em festa as ruas.

Chamou à pressa Palmela para ver se este lhe arranjava uma saída de última hora. Estava outra vez com o hemorroidal, uma batata gorda, dorida, pronta a rebentar em sangue. E ainda por cima já não tinha o Lobato para passear de braço dado e para estafar umas tantas anedotas à volta das tábuas do gamão. Restava-lhe apenas a filha querida, Isabel Maria, que tinha os olhos negros da mãe e um feitio doce, leal, hesitante, que se parecia ao seu. O diplomata, que percebia o dilema do rei, trazia a lição estudada.

– Mande Sua Majestade a Lisboa Sua Alteza, o príncipe Dom Pedro. Contenta os constitucionais de lá e os de cá.

Palmela era cheio de artifícios e de labirintos, mas quando o deixavam a sós tinha a visão certa do momento. Pedro fizera-se com o Araújo bonapartista e depois da aventura dos Cem Dias, que lhe arrancara soluços de entusiasmo e o sufocara em lágrimas de comoção, entrara pelo cartismo com a mesma excitação com que antes aderira ao cesarismo. Tinha em boa conta a obra de Benjamim Constant, sobretudo o Acto Adicional às Constituições do Império, de 1815, redigido a pedido do imperador regressado da ilha de Elba. A sua primeira poximidade com Palmela datava desse momento e das histórias que lhe ouvira emocionado sobre Madame de Stäel, a amante de Constant, que o diplomata conhecera na Suíça doze ou treze anos antes e que tanto excitavam a imaginação ardente do jovem Pedro.

Pouco depois acabou por conhecer num dos morros do Rio um dos ministros plenipotenciários de Napoleão, o holandês Dirk Van Hogendorp, que fora um dos criadores da República revolucionária da Batávia e que após Watterloo conseguira embarcar em Nantes para o Rio, onde vivia numa cabana chamada Nova Sião. Foi aí que o príncipe o conheceu por volta dos apertos de 1820.

– Que ninho de reliquías, meu irmão, aquele colmado. Até cartas do imperador você tem lá – confessou ele ao Chalaça com os olhos arregalados, quando visitou pela primeiro vez a habitação do holandês.

Ganhou desde então o hábito de frequentar o exilado, fascinado com as suas histórias e as suas excentricidades de visionário. E junto dele conheceu também muitos dos revolucionários fluminenses que frequentavam a cabana do velho bonapartista e aí discutiam as suas estratégias e os seus ideais. Era uma fauna diferente daquela que ele conhecia das tabernas das vielas da baixa, onde os corpos suados dançavam lascivamente o fandango e se refrescavam com a água lustral da cachaça, uma fauna mais mental, mais circunspecta, mas não menos arrebatadora, com os seus entusiasmos políticos, as suas histórias comoventes sobre os momentos mais extasiantes da revolução dos Franceses, as suas visões do futuro, ordenadas, seguras, épicas como batalhões em marcha.

O jovem príncipe modelou a sua formação política nessa choupana e aí sonhou revolucionar a política no reino unido de Portugal, Brasil e Algarves. O seu modelo foi ainda Bonaparte, mas um Bonaparte desta vez liberal, de cesarismo atenuado pela colaboração com Benjamim Constant. Foi assim o primeiro Cartista de verdade que a dinastia de Bragança teve, já que o pai, João VI, o velho da horta, foi logo nessa hora Cartista por oportunidade, para o deixarem sossegado.

Entretanto a revolta no Rio alastrava e tomava proporções de insurreição popular e de pronunciamento militar. A qualquer momento se esperava que as exigências subissem de tom. Temia-se inclusivé que os revoltosos se constituissem em assembleia constituinte e obrigassem o rei a jurar provisoriamente qualquer documento dela emanado. Silvestre Pinheiro Ferreira, ministro do rei, e Palmela, bom conhecedor dos principais agitadores, não hesitaram em pedir a intervenção do príncipe. Este viu no caso a sua primeira oportunidade política. Sonhava pôr-se à frente dos revoltosos e alterar o rumo da História. Inflamava-se com a antevisão dum grande momento político, protagonizado por ele, com a entrega da Carta ao reino unido. Os revolucionários da baixa fluminense receberam-no aos vivas. Eram os seus conhecidos da cabana de Hogendorp. Capitaneavam por lá o movimento o padre Macamboa e Francisco Góis, que eram desde há anos seus convivas.

– Deixe por ora a Carta, seu Pedro. Peça a seu pai que assine a Constituição que as Cortes de Lisboa estão redactando e volte descansado para casa depois de beber uma cachaça com seus amigos – disse-lhe um deles.

Queriam-lhe tanto como as caboclas da baixa da cidade. Gostavam de ter a seu lado um príncipe real; sentiam-se vaidosos e prestigiados com aquela presença. Era como se estivessem acompanhados por um calor novo, ainda mais intenso que o do Sol. Aquele príncipe era uma bebida forte, que fazia sonhar e bater mais depressa o coração. Lembravam-se dos momentos com Hogendorp e dos entusiasmos do príncipe. Fraternizavam com ele, sentiam-no próximo, faziam-no seu. Ele pelo seu lado não era nada protocolar e deixava fazer.

– E diga ao Palmela que você daqui não arreda pé. O rei que vá a Lisboa e lá se arranje – disse-lhe outro na excitação do momento. – Você, seu Pedro, não há-de ser novo Bonaparte, não. Mas novo Washington aqui, ouviu.

Pedro exultava. Aquele dito puxava-lhe pela vaidade. Foi ajuste que lhe ficou para sempre. E logo ali lhe pareceu estrada muito mais promissora do que a do reino unido. O exemplo de Bolívar queimava então a América do Sul. Acabara de fundar a República da Colômbia e a da Venezuela e mostrava-se disposto a prosseguir a campanha militar contra os Espanhóis nas províncias dos Andes, mesmo às portas do Brasil. Bolívar era o herói do momento. A América do Sul libertava-se da Europa. Assentou-se ali, naquela praça, a independência do Brasil. Mas para o rasgão era cedo, faltava ainda a ocasião. Por agora, os assuntos do reino unido que contavam eram os do Brasil.

De momento, o motim serenou. Os revoltosos voltaram para casa, satisfeitos com a promessa feita em volta da Constituição e o príncipe regressou para o pai, que o premiou, associando-o ao governo. O rei não teve porém outro remédio senão ficar confrontado com a necessidade de embarcar para Portugal. O filho recusava-se a ir, escudado nas promessas feitas ao povo e na gravidez de Leopoldina, prestes a dar à luz. Naquele transe de tristeza, sem saber que fazer, procurando ainda uma solução miraculosa que lhe evitasse a viagem, deu em pensar no mano José. Procurou a tia Maria Francisca para saber como ela se comportava no meio da crise, mas encontrou-a alheada, amarfanhada no luto, indiferente à agitação do Porto, de Lisboa, do Rio ou da Baía.

– O mano José é que devia estar aqui para fazer frente à gravidade destas questões – desabafou o rei.

Maria Francisca saiu por momentos do seu nevoeiro, olhando-o com interesse. Aquele nome, José, dito assim à distância de tantos anos, num outro século, num outro continente, arrancou-a ao sonambulismo em que vivia, postando-a diante de alguém que partilhava do seu presente, um presente com mais de trinta ou quarenta anos. Acordou duma solidão letárgica de várias décadas para encontrar um conviva.

– Ele é que era o rei, não eu – acrescentou o rei com ar desolado, prestes a rebentar em lágrimas.

Era o desditoso que toda a vida se lastimou de ser rei, sonhando antes com uma vida pacata e anónima, longe da corte e da capital. A tia compreendeu num relance o drama daquela vida. Lembrou-se da criança de todo inapta para o estudo, do adolescente desajeitado e furtivo, dos ditos marotos do Tessalónica. Pegou-lhe nas mãos trémulas, apiedada e compreensiva, enquanto ele, sentindo-se acarinhado, deu saída à sua tristeza mais profunda. Lembrou-se da Quinta da Boavista, que era agora ao fim de treze anos uma pequena pérola de repouso e conforto, com os seus aposentos pessoais voltados para as encostas da serra dos Órgãos. Entreviu os quartos vazios, os baús atulhados, os caixotes empilhados e os brigues ao longe, no cais, instáveis e enjoativos, à espera para o levarem de volta.

­– E para quê, meu Deus… – lamentou-se ele, em desespero fundo.

Tinha medo de Lisboa. Apavorava-o a sedição constitucionalista. Tinha dentro de si, cada vez mais vivas, desfilando em todo o seu pormenor, as imagens terríveis da revolução francesa. Essas imagens, que haviam levado a mãe à loucura funda, atormentavam-no agora. Tinha medo de se ver no meio da multidão, enxovalhado, humilhado, maltratado. Sentiu-se um desgraçado sem eira nem beira, uma folha morta e suja, jogada nas tempestades mais cruas por ventos impiedosos e cáusticos, que se riam alto dele.

– Sou um infeliz ­– soluçou ele, de cara escondida nas mãos gordas, lavado em lágrimas, enquanto a tia lhe tocava os cabelos já esbranquiçados.

Pouco depois rebentou nova revolução na Baixa do Rio de Janeiro, desta vez por causa da escolha dos delegados a enviar às Cortes de Lisboa. A multidão amotinou-se e a tropa portuguesa, descontrolada, disparou. Houve mortos e feridos. O rei desesperou com  as notícias; amofinava com aquelas desordens. Foi isso que o fez decidir a embarcar. Queria escapar mais uma vez de tumultos. Que triste destino, o deste homem! Sempre a fugir, sempre a escapar ao que mais lhe desagradava! Fugia da mulher, fugia dos Franceses, fugia das revoluções, fugia do sangue. À despedida, abraçou-se ao filho que deixava no Rio.

– Pedro, se o Brasil se separar, deita tu a mão à coroa, antes que algum desses temerários que por aí andam e tu bem conheces a arrabate para a cabeça dele.

Dois meses depois avistou a costa portuguesa. O cenário mudava de novo, regressando ao primitivo. Em vez de sol via-se cinza e em vez da novidade a monotonia. O Brasil acabava e começava de novo Portugal. Também desta vez o estado geral do rei era deplorável; o medo da imensidão, a escuridão das noites, o balancear da embarcação, a ansiedade do futuro haviam dado cabo dele. A 3 de Julho avistaram Lisboa e no dia seguinte deitaram âncora em frente da Junqueira, mas o rei estava incapaz de descer a terra. Perscrutava de longe, com  receio e curiosidade, o movimento do cais de Belém e as janelas do palácio das Necessidades que se avistavam ao fundo, para os lados de Alcântara. Tudo lhe parecia calmo, familiar, mas irreconhecível. Não se atrevia a sair a terra com medo que por detrás daquele sossego se escondesse uma tempestade. Insistiram da cidade; esperavam-no. Esperavam-no desde há muito, pelo menos desde Waterloo.

– Desembarco amanhã de tarde no Terreiro do Paço – mandou ele dizer  lacónico.

E no dia seguinte, depois do meio-dia, ansioso e desajeitado, no meio dum calor insuportável, desceu para a galeota e deslizou pelo Tejo à procura do Terreiro do Paço. Não se atreveu a desembarcar em Belém e a seguir de coche pela estrada da Junqueira, como o Palmela lhe havia sugerido. Tinha medo, estava desconfiado, imaginava uma emboscada. No Terreiro do Paço esperava-o o Senado. Foi recebido com circunspecção e cerimónia. Ele foi protocolar, tentando não trair o nervosismo intenso em que estava metido, com a estátua em bronze do avô a observá-lo. Recebeu das mãos dum vereador as chaves da cidade e viu o povo bater palmas nas arcadas com as fitinhas constitucionais presas ao peito ou nos chapéus, enquanto os canhões do castelo despejavam uma salva prolongada de artilharia. Depois dum ofício na Sé, o rei seguiu para o palácio das Necessidades num coche puxado por seis cavalos e acompanhado por uma guarda de honra composta de oficiais generais. Atrás vinham os deputados das Cortes e logo depois os vereadores e os membros do Senado da cidade. A cidade estava engalanada de fitinhas constitucionais, as janelas abertas e cheias de gente que dava vivas ao rei e à Constituição, as praças iluminadas com filarmónicas que tocavam as modinhas revolucionárias e populares. Nas ruas, gente vestida com o velho briche pombalino agitava bandeirinhas e acenava ao cortejo. No salão onde reuniam as Cortes o rei jurou as bases da Constituição. Estava enfiado e pálido.

– Paizinho que calor horrível tem esta cidade em Julho – disse-lhe Isabel Maria à noite, quando recolheram à Bemposta.

Saíra de Lisboa uma menina de seis anos e regressava com vinte, quase sem memória dos lugares e da atmosfera da cidade.

– A mim, o que me pareceu horrível foi aquele meu avô de bronze no meio dos constitucionais do Terreiro do Paço, a apontar-me o dedo acusador e a dizer-me com ar desdenhoso – Vê lá, tu não dês o braço a torcer a esses imbecis. – Que horror – replicou-lhe o rei e pai, com humor magoado e displicência.

A menina entendia-lhe o sentir. Pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios para a beijar. O pai continuou.

– Mas o pior, foi aquela sala das Necessidades onde jurei as bases da tal Constituição.

Balbuciara a medo as palavras do juramento. Acudiam-lhe ao espírito pressentimentos negros. Lembrava o destino do pobre Luís de França, que começara assim num dia de festa por jurar um papel inocente e acabara mal,  cabeça fora, no cadafalso.

Uma semana depois deu o rei beija-mão à corte em Queluz, mas não se adaptou ao edifício, que lhe pareceu sem jeito e grande de mais. Lembrava com uma saudade que lhe magoava o peito a habitação campestre do lugar de São Cristóvão, nas traseiras do Rio de Janeiro. Ai, a vilegiatura da Quinta da Boavista, lamentava-se ele como se Braga por um canudo. O paço da Bemposta, com os campos em frente, foi o que o mais lhe fez lembrar o retiro da Boavista e foi lá que se instalou. Carlota Joaquina, por seu turno, desdentada, mole, rosto enrugado, descarnada e esguia, não quis regressar ao Ramalhão.

– O Andoche Junot deu cabo daquilo – disse ela com tristeza para a camareira-mor, quando regressou da visita que fez à quinta na entrada de Sintra.

E dera. O Ramalhão cheirara-lhe logo a fêmea mal o visitara nos primeiros dias da sua chegada a Lisboa; ainda por lá andava nesse tempo um resto de perfume barato, carnívoro e felino, que pertencera a Carlota Joaquina e às suas muchachas. Fizera pois Junot do Ramalhão o seu retiro de estúrdias. Quando se queria ver livre da duquesa de Abrantes, para lá se retirava. Era um soldado rijo e brutal; tinha um feito torto e teimoso; fizera as duras campanhas que se seguiram à revolução; estava habituado às brutalidades da guerra; a única coisa que o distendia era uma boa pândega nos intervalos dos combates. Gozava, não amava, como dele disse Raul Brandão. Recebia nas antigas divisões da regente a condessa da Ega, uma criança voluptuosa de olhos azuis e cabelo loiro que vivia num palácio da Junqueira com um velho, o conde da Ega, e era filha da marquesa de Alorna, irmã de Pedro de Almeida. O Junot não gostava daquelas extravagâncias a sós e metia lá com ele os generais também acompanhados de actrizes ou de senhoras da corte. Num relâmpago estoiraram com aquilo tudo. No fim, quando o Junot já se preparava para assinar a Convenção de Sintra, passaram por lá e arrebataram loiças e móveis. Deixaram só as paredes, todas esburacadas e sujas; até as portas e as janelas levaram.

Carlota Joaquina instalou-se por isso em Queluz. Fazia-se agora acompanhar muito pelo filho Miguel, que era um rapazinho petulante de dezoito anos, habituado às mesmas liberdades estouvadas do mano Pedro. Criara-se sem freio nem educação, entre os moleques do Rio de Janeiro, habituado a fazer todas as vontades e sem qualquer consideração por aquele a quem chamava pai.

– Não precisei dele para nada. És meu, não dele ­– ouvira ele dizer um dia à mãe.

Foi o suficiente para nunca mais respeitar nem pai nem rei. Também as relações dos dois manos se haviam degradado muito. Os Brasil os separara para sempre. Ficaram para trás os tempos em que Miguel dava a sua mãozinha de anjo loiro ao mano Pedro. Desde cedo, que as incompatibilidades entre os dois se haviam manifestado, com o irmão mais velho a tratá-lo com sobranceria e o mais novo a arredar-se dele com espírito de revolta e de revindicta.

Mal percebera o entusiasmo bonapartista do irmão, Miguel fizera tudo para o contrariar. Mostrara antipatias severas pelo imperador, delirara com a derrota de Waterloo, brincara com o humilhante exílio em Santa Helena, mostrara-se um indefectível da Santa Aliança, cortara com todos os ministros que se afastassem uma linha do programa do absolutismo. Este começou por ser para ele uma reacção, quase uma brincadeira de galucho ofendido. Depois tornou-se um destino político, mas a princípio foi apenas uma pirraça ao irmão mais velho.

– O mano é um atrevidinho, mas não passa dum bandido ­– dizia Miguel, para desculpar as suas primeiras excitações políticas.

A mãe seguia encantada aquela rebeldia. Detestava surdamente o entusiasmo político do filho mais velho, todo voltado para as ideias novas, e via na reacção do mais novo um ensejo para reinar.

Agora, em Lisboa, no meio duma revolução constitucional, a rainha queria conspirar e virar aquilo tudo. Não dava nada por aqueles burgueses gordos e sérios, todos formados em Coimbra, todos direito romano, todos mações, todos enfatuados, todos vazios. Arranjasse ela quem lhes desse um pontapé e aquilo acabava num segundo. Sabia que não podia contar com o rei para nada; era um inútil, um vadio, um idiota, que dizia que sim a tudo, sempre cheio de medo e de cautelas. Se os revolucionários não lhe passassem a corda, seria ela própria a deitar-lhe a mão. Não tinha dúvidas. Um dia dava cabo daquele mole. Tinha a certeza de que o reino unido lhe viria às mãos. No meio da barafunda em que o país andava, safava-se quem tivesse esperteza, força e pressa. Chamou para junto de si os principais opositores ao pronunciamento militar de 1820, em primeiro lugar o conde de Amarante, Francisco Teixeira, um veterano encarniçado da luta contra os Franceses.

Continuava lúbrica e lasciva, capaz de estafar uma noite inteira com um amante. E durante um tempo, quando chegou a Lisboa, não pensou mesmo noutra coisa. Esperava-o o seu velho amante, o quebra-esquinas João Santos, que continuava a ter um corpo que valia oiro, o pai mais que provável do seu esperançoso Miguel. O reencontro dos dois ao fim de tantos anos de separação foi uma loucura de beijos e noitadas de amor. Mas depressa a rainha se desviou para a política. Estava com quarenta e seis anos e era ela quem melhor via as fragilidades do presente. Tinha experiência, tinha olho, tinha ambição. Aquela revolução era uma labareda ténue, sem vida, incapaz de sobreviver. A sua primeira paixão passou a ser o governo e a reacção contra a Constituição. Não perdera o seu ar de mãe-de-santo do candomblé da Guanabara, saias listradas de algodão e grande toucado de pano emplumado na cabeça. Desdentada, magra, mole, rosto enrugado e chupado, mostrava-se também mais negra, mais sinistra, mais assustadora. Os seus olhos lampejavam na escuridão como os de Kali, sedentos de sangue e de carne inocente. E de quando em quando, no meio dessa negridão onde só os seus olhos luziam, ouvia-se a sua gargalhada rouca e funesta, preparando a contra-revolução. Que sinistra a sua figura de deusa assustadora! Que perniciosa a sua figura de feiticeira aterradora! Entre as tragédias dos Braganças, a sua história não é das menos chocantes e bem merece neste livro lugar de destaque.

Entretanto, as Cortes no fim de Setembro de 1821 decretavam o regresso do príncipe a Portugal. Pensavam assim cortar qualquer veleidade separatista do Brasil, obrigando-o a depender de Lisboa, onde o regente passaria a residir. A notícia, quando chegou ao Rio de Janeiro, caiu que nem pólvora. Inflamou discursos, provocou ajuntamentos, levantou fúrias e revoltas. As tropas portuguesas prepararam-se para intervir como acontecera em Abril. Uma Junta criada em São Paulo, onde sobressaía José Bonifácio de Andrada e Silva, pediu ao príncipe que tomasse a testa da insurreição e desobedecesse às ordens de Lisboa. E no dia 10 de Janeiro de 1822, o príncipe, na varanda da sua residência, rodeado por uma multidão, entusiasmou-se como lhe convinha à natureza desabusada.

– Para bem de todos e felicidade geral dos povos deste reino estou pronto. Fico.

Era uma frase pomposa, onde decerto metia a mão algum frade, cabecilha ou não dos constitucionais do Rio. Sentia-se nela o gosto dos grandes lances espectaculares, o hábito das tiradas ocas e dramáticas, a vaidade de quem fala para o vazio. Com ela nós percebemos a projecção dum espírito que se criara na admiração de Bonaparte e chegava à idade adulta com o hábito teatral da imitação. Mas, salvante a presunção, era também o começo do rasgão e da separação do Brasil.

Entretanto em Lisboa Carlota Joaquina estudava os meios da contra-revolução. Se a revolução nascera nos conciliábulos maçónicos, esta agora nascia nos gabinetes sujos da rainha. Era um outro ajuntamento secreto, com senha e conjurados. Sondaram-se os velhos militares das guerras peninsulares; auscultou-se a nobreza; bateu-se à porta dos conventos, tão ameaçados pelas leis civis do constitucionalismo. E no fim estava reunida uma loja considerável e destemida para fazer avançar os planos da rainha. Lá se juntavam o segundo conde de Amarante, filho de Francisco Teixeira, entretanto falecido, o duque de Cadaval, o João Santos e alguns dos veteranos das guerras peninsulares contra os Franceses. Cada um deles tinha as suas hostes; uns traziam consigo o recheio graúdo das casas aristocráticas, outros a obediência dos regimentos; outros o verbo fulminante do clero nas missas e nos conventos e outros ainda o cacete assustador da maltesia das ruas que vinha das aldeias ao redor bater com o choupo verde nos gordos lombos constitucionais. Era uma tropa disposta a tudo e que se sentia muito mais representativa do sentir bruto da nação que as Cortes dos bacharéis empoados.

– Citam Rousseau e Bentham e pensam com isso salvar o país. São burros. O país salva-se com um pontapé – dizia o duque de Cadaval.

A rainha aproveitava para juntar.

– E ninguém como o Miguel para levantar o pé.

Era ele, o loiro e rosado Miguel, o arcanjo das novas ideias anti-constitucionais. Ela ia a caminho dos cinquenta anos, era uma safada que todos temiam e que todos vituperavam. Ele era um menino sem mancha, a caminho dos vinte anos, que todos adoravam. Sabia que na verdade não era para si que estava a trabalhar, mas para o filho. Ele é que havia de se sentar no trono, destronando o banana que por lá andava por engano e roubando a primogenitura ao irmão mais velho. A ela estaria apenas destinado o lugar de rainha mãe. Ainda assim sabia que aquilo não ia lá sem alguma bordoada e era isso que puxava por ela. Adorava aquelas desordens e estava ansiosa por ver correr o sangue. Esta mulher que foi rainha de Portugal tinha quatro braços; num pegava na espada, noutro na cabeça decepada do inimigo e com os outros dois comandava a tropa e os paisanos. Era sanguinária e destrutiva, mas era também fútil e quase infantil. Não duvidava que a vitória lhes pertencia. Sabia aquele conciliábulo muito mais representativo da vontade do reino que as Cortes pindéricas das Necessidades, onde só pontuavam ricos comerciantes e bacharéis. Tinha de antemão certezas. Não obstante não era a vitória que lhe interessava, mas o solavanco da sua hoste.

– Aquilo lá pelas Cortes – dizia ela amiúde – é um corrupio de banquetes, discursos, arcos de triunfo, vivas e brindes. Quando os deitarmos abaixo, nem dão por nada. Passam desta vida para a outra com a mesma facilidade com que passam agora da mesa para a cama.

Demais estava bem informada do que se passava lá por fora. Os agentes da Santa Aliança sempre vigilantes garantiam-lhe que tudo iriam ser facilidades. Tinha notícias de Espanha, que davam o constitucionalismo por arrumado. Em França os liberais estavam presos e a reacção ainda prometia ser mais brutal. Segundo se dizia preparava-se um grande exército para passar os Pirinéus e cortar o pescoço dos constitucionais espanhóis.

– Meninas, fico triste que isto sejam assim favas contadas. Excitava-me mais o rugir das feras – disse ela, frívola e desiludida, às açafatas, quando percebeu que aquilo ia ser tiro e queda.

A preocupação das Cortes de Lisboa era naquele momento o Brasil. A desobediência do príncipe precipitara os medos da separação e radicalizara a situação. As Cortes, aflitas e hesitantes a princípio, acabaram por decretar medidas severas: reforço da tropa portuguesa nas principais cidades e destituição do regente, a quem alcunharam depreciativamente de rapazinho do Brasil.

Mal estas notícias foram conhecidas no outro lado do Atlântico, o clamor da insurreição cresceu. Pedro regressava de São Paulo ao Rio de Janeiro quando recebeu os mensageiros com o correio das Cortes de Lisboa. Estivera em São Paulo para pôr fim às discórdias entre a Junta e José Bonifácio e para visitar a sua nova amante, Domitila de Castro Canto e Melo, filha dum coronel açoriano que vivia em São Paulo e irmã dum homem que lhe era muito próximo na política e na estúrdia, Francisco de Castro Canto e Melo. Estávamos a 7 de Setembro e ele acabara de conhecer em Agosto Domitila. Era uma mulher de vinte e quatro anos, olhar lascivo e formas esculturais, cabelos negros e ondulados até à cintura, que acabava de desfazer um casamento com um alferes por suspeita de adultério. Pedro ficara encantado com os prazeres que ela lhe proporcionara na primeira noite e não descansara enquanto não arranjara pretexto para se voltar a meter com ela nos lençóis.

A farra fora tão destemperada que os intestinos se lhe soltavam sem freio. Foi neste estado de incómodo e cansaço que o correio lhe entregou as missivas vindas de Lisboa. À medida que as leu, e se viu destituído sem qualquer dó da regência, um incêndio de raiva subiu-lhe ao rosto. Tratavam-no como um fedelho, ferindo-lhe a vaidade, humilhando-lhe a atitude.

– Urubus de merda – exclamou ainda no meio da fúria, referindo-se aos constitucionais de Lisboa

Mas depois calou-se. Abrandou nele a excitação raivosa. Olhou o céu e sentiu por perto o correr das águas do Ipiranga, um ribeirão que corria farto para o Tamanduateí; lembrou-se dos quatro filhos de Leopoldina nascidos no Rio do Janeiro, das pândegas no Corcovado, dos passeios a São Paulo e a Minas, das caboclas que beijara e comprara, dos filhos espalhados de toda a sorte por aquela terra, do feijão, do angu e da couve, lembrou-se dos abraços desperdiçados, de Noémie e agora de Domitila, lembrou-se das águas da baía de Guanabara, das ilhas, da vegetação e do buraco negro que era para ele Portugal, onde o tinham por desobediente, lembrou-se enfim do seu herói, que acabara de morrer tinha meses em Santa Helena, e de Bolívar, o incansável fundador das novas repúblicas da América do Sul, e achou que aquele momento pedia um lance de teatro. Não seria ainda o maior da sua vida, outros viriam ainda mais inesperados e mais espectaculares, mas ainda assim teve o picante bastante para o envaidecer para sempre.

Esqueceu a fraqueza intestinal e o cansaço, voltou-se para os dragões que o acompanhavam, puxou da espada e ergeu-a ao céu. O Chalaça a seu lado, vestido como um burguês prático, enternecido por este gesto teatral, tirou o chapéu; os dragões da guarda, trajando de branco, capacete doirado emplumado de negro e vermelho na cabeça, empertigaram-se nos estribos e sacaram dos sabres. Mostravam assim que sabiam responder marcialmente à atitude de desafio do regente destituído. Então, lavado em lágrimas, comovido e excitado, o príncipe arrancou com determinação o laço azul do seu chapéu, amarrotou e rasgou os papéis que o correio lhe trouxera e soltou o grito da libertação.

– Independência ou morte. Estamos separados de Portugal.

Tremeu de comoção aquela guarda de honra e tremeu logo de seguida o Brasil inteiro. O grito da libertação foi um urro que chegou às choupanas mais distantes e em todas elas foi recebido com lágrimas e ovações. A tropa portuguesa, impedida de desembarcar, não se bateu e o Brasil pôde entrar sem quase derramar sangue na família universal das nações livres e independentes, se liberdade e independência não são neste mundo ficções que servem apenas para o nosso ludíbrio.

Pedro deu em andar ufano entre a excitação da nova amante e a alegria da sua retórica política. Como era homem insofrido e insaciável não descansou enquanto não seduziu a irmã da nova amante, Maria Benedita, uma menina casada e um pouco mais velha, a quem fez de imediato um filho. Não se contentava nunca com uma mulher e se as pudesse sentar aos pares nas pernas não hesitava. A máquina triforme era, como o leitor sabe, de disparo repetido. E como o seu modelo era megalómano e o seu partido bonapartista, não se contentou com um reino, quis um império. E a 12 de Outubro de 1822, quando perfazia a jovial idade de vinte e quatro anos, no centro do Rio de Janeiro, Campo de Santana, debaixo da nova bandeira auriverde, diante duma guarda real de seis mil soldados e ao lado de Leopoldina, banhado de lágrimas, inchado de virilidade, a estoirar de orgulho, ele ouviu a multidão rebentar numa explosão de gritos.

– Viva o imperador! Viva o imperador! Viva o senhor Dom Pedro I.

Em Lisboa os trabalhos da constituinte chegavam ao fim. O texto no fim do Verão estava pronto para ser assinado. Carlota Joaquina aproveitou para dar o primeiro abanão no edifício constitucional, recusando-se teimosamente a jurar o texto. As cortes exaltaram-se.

– Se a rainha não efectua o juramento da Constituição não tem lugar entre nós – chegou a avançar a voz exaltada dum constituinte.

Não se percebia muito se a queriam recambiar para Espanha donde ela viera gaiatita ou se a queriam levar ao patíbulo. Os jacobinos de 1820, os democratas pé-de-boi como eram conhecidos, mostravam-se hirtos, façanhudos, mas exaltavam-se quando o caso misturava o rei. Para eles o rei era um cidadão e a rainha nem isso chegava a ser.

– A rainha é de Sua Majestade. Trate-a com festas quando ela se porta bem e aperte-a quando sai da linha – diziam muito sérios ao rei, lembrando-se com certeza do que se passava lá pela casa deles.

Era esse o entendimento que os democratas de 1820 tinham do lugar da rainha e do rei. Mas o pobre coitado nem tratava com ela duma maneira nem doutra. Não se viam nem se falavam há anos. Ela pelo seu lado ria, muito confiada que tudo aquilo eram basófias que depressa iam ter o seu escarmento duro. O rei ao invés tremia. Um tal sucesso era mau agouro para o seu futuro. Lá compareceu na sala a medo, sozinho, sem rainha, tartamudeando sem nexo as palavras do juramento. Como sempre, queria-se dali para fora o mais rápido possível. Ai, se pudesse fugir! Mas não podia. Aguentou-se o melhor que pôde, com as almorreimas a queimarem-lhe as bordas das nalgas, e a 1 de Outubro de 1822 a Constituição estava selada e jurada.

Logo depois chegou a Portugal a nova da separação do Brasil. Foi um banho gelado que deixou tudo transido. As Cortes porque perderam a cartada política de trazerem o Brasil ao redil, cortando-lhe de raiz as aspirações de autonomia, e a sociedade porque se viu sem negócios e ainda mais pobre, se isso era imaginável depois do saque francês. Ficaram de fora os conspiradores em volta de Carlota de Joaquina que choraram como todos os outros a perda do reino, mas logo viram no caso uma saída de oiro para as suas desordens.

– Os pedreiros-livres das Cortes é que nos fizeram perder o Brasil. Não fossem eles e os Brasileiros ainda estariam unidos aos Portugueses – diziam estes últimos.

– Filho ladrão aquele que assim rouba seu pai – reforçavam nos jornais em gordas letras os desbragados plumitivos da reacção.

E a retórica das células secretas da conspiração anti-liberal calou fundo no coração das gentes. Correu as vielas, as tabernas, as prisões, os conventos, as arenas, as estrebarias, os comércios, as praças, as choupanas, as aldeias, incendiando tudo. A perda do Brasil desacreditou as Cortes, enodoou a Constituição, desprestigiou o herdeiro. E depois disso avantajou Miguel.

– Se não for Miguel quem nos há-de valer? O ladrão que nos roubou o Brasil se viesse mais nos roubava ainda – dizia-se por todo o lado.

Os tempos estavam maduros para a rainha avançar. Logo em Fevereiro do novo ano o conde de Amarante levantou tropas em Vila Real contra a Constituição, dando vivas ao rei absoluto. Depressa reuniu à sua volta mais de seis mil homens, dispondo-se a descer sobre o Porto. As Cortes aflitas enviaram ao seu encontro as tropas constitucionais comandadas pelo general Luís do Rego que bateu em Amarante os homens do Silveira, obrigados assim a fugir para Espanha. Foi esta a primeira desordem civil de muitas outras. Choupanas em fumo, campos incendiados, estampidos de pólvora, corpos de infantaria em movimento, gente a cavalo, descargas de artilharia, civis armados de bacamartes, colunas de prisioneiros, corpos amortalhados no chão, gemidos de feridos. Eis as imagens vulgares no território português no tempo dos Franceses. Estavam agora de volta para ficarem durante mais duma década. Era de novo a guerra, a pior delas, aquela que é feita entre irmãos e que mais parece um castigo que um produto da razão.

Em Abril chegaram à Península as tropas de Luís XVIII, tendo à frente o duque de Angolema. O constitucionalismo espanhol ameaçava desfazer-se num curto momento; Madrid caiu em Maio e o resto do país baixou os braços. Carlota Joaquina riu e chamou assertiva o filho ao seu gabinete.

– Ouve, isto está podre de maduro. Dá um encontrão à parede que o tecto vem abaixo. No Verão és rei.­

Miguel era um rapaz magro de vinte anos. Criara-se no descuido da Guanabara e desde que chegara a Lisboa pusera-se a frequentar os meios plebeus da capital. Acamaradava com picadores e toureiros; adorava noitadas de fado e vinho. Vestia com desmazelo, como um moço de estrebaria. Usava sempre o mesmo casaco de baetão verde, o mesmo boné vermelho amarrotado e as mesmas botas altas e surradas, com tacão de prateleira. Gostava do trato físico e dedicava muitas horas a puxar pela força. Toureava, domesticava potros, aguentava se preciso fosse a rabiça dum arado. Falava grosso e alto; tinha maus modos mas era fino de cara e elegante de corpo, modelado em mármore como um deus grego. Era no fundo um misto da mãe, com todas as paixões rasteiras dos Bourbons e dos Parmas, e do pai, o João Santos, um ribatejano habituado ao mar, muito desprendido de tudo, corpo polido pelas fragatas e língua finória, balançeada pela água.

Não perdeu tempo. Mostrava agilidade para a intriga; entusiasmo para a acção; determinação apaixonada para perseguir os fins. Levantou um regimento de infantaria da guarnição de Lisboa e planeou com ele a saída de Lisboa em direcção à fronteira da Beira, Almeida, onde se encontrariam com o conde de Amarante e os seus homens. Pelo caminho, às portas de Lisboa, em Vila Franca de Xira, fariam a primeira proclamação contra a Constituição, destituindo as Cortes. Sabiam que os regimentos de Lisboa, os mesmos que dois anos antes haviam tomado o partido da revolução liberal, estavam dispostos na totalidade a aderir a um pronunciamento absolutista. O Brasil fora a razão de tão abrupta mudança.

– Sem as Cortes, os Brasileiros regressarão à união com os Portugueses – prometia sonoramente Miguel.

E com estas promessas saiu de Lisboa, na manhã de 27 de Maio, dirigindo-se para a Beira, o regimento de infantaria número vinte e três. Em Vila Franca de Xira como combinado esperaram pela chegada do infante, que lá apareceu ao princípio da tarde. Fazia-se acompanhar dum corpo de cavalaria, onde se notavam os picadores e os moços do costume; eram os mesmos que o acompanhavam nas vadiagens pelas vielas de Lisboa e pelas azinhagas do Ribatejo. Foi o primeiro passeio de muitos outros, em que não percebemos muito bem se o infante queria tão-só divertir-se à custa de coisas sérias ou fazer alguma coisa de sério à custa de brincadeiras. Era um garoto mal habituado, de resto como o irmão, que vivia de entusiasmos passageiros e de virilidades puxadas, mas que não tinha uma ideia de sua. O absolutismo foi nele, como já se viu, o pecado simples duma reacção de família. O irmão mais velho esticou-o um dia pelas orelhas e ele, belicoso e vingativo, respondeu-lhe desse modo. Não era uma ideia; era uma desforra.

Mal se reuniram na praça de Vila Franca, vieram as proclamações inflamadas, os gritos de vivas e morras, as tiradas teatrais, o empertigamento nos estribos dos cavalos, os sabres desembainhados, tudo isto no meio de muito riso, de muita fúria e por fim de muita libação com as canecas de barro cheias do falerno grosso e escuro do Cartaxo. Chamaram a essa galopada de moços ‘Vila-Francada’. Poeira, disseram outros. E disseram bem, porque tudo se desfez numa nuvem de pó. Houve ali menos a orientação cautelosa do tino que o pico desbragado do divertimento.

Ainda assim em Lisboa as Cortes tremeram. Quando quiseram deitar mão aos regimentos da cidade, estes voltaram costas e foram ter com o infante a Vila Franca de Xira. A perda do Brasil, as notícias recentes da coroação imperial do príncipe, as eleições para a constituinte, a consolidação das instituições brasileiras, haviam minado o exército, voltando-o contra a Constituição. Mesmo um gabarola de vinte anos, sem educação nem direcção, conseguia com pouco mais que uma risada deitar abaixo o edifício da Constituição. As Cortes viam-se sozinhas no meio do povo hostil. Orgulhavam-se de representar a Nação, mas esta não queria saber deles para nada.

Mesmo o povo de Lisboa, tão engalanado de enfeites constitucionais, tão guloso de lunduns revolucionários, tão vicioso nas filarmónicas das ruas e das praças, voltava a cara às Cortes. Viram-se nessa altura morrer nos seus lábios os derradeiros vivas ao espírito do constitucionalismo. Calou-se e foi para casa curar o corpo e o espírito daquela farra patriótica que durava há mais de dois anos. O entusiasmo de 1820, que expulsara o Beresford e os demais Ingleses de Portugal e trouxera do Brasil o rei, estava morto. E fora um fedelho de boné amarrotado e modos desabridos de toureiro que o matara, cara cerrada, com duas voltas da capa vermelha e um golpe seco da fina espada. E toda essa onda desabrida e leviana que antes aprovara os constitucionais se voltava agora para o fedelho para lhe gritar com aplauso – olé. Não restava às Cortes senão sumirem-se, porque já não representavam ninguém, ou morrerem, caso os seus membros mostrassem a febre exaltada do heroísmo, o que estava longe de ser o caso.

E o rei? O pobre João VI, o filho segundo de José I e da espanhola Mariana Vitória, o desgraçado que tivera de fugir aos Franceses para o Brasil, o pobre diabo que tivera de regressar cheio de medo para jurar a Constituição, ficou enfiadíssimo com tudo aquilo. Não dava muito pela Constituição, que lhe retirava soberania e o deixava à mercê dos tribunais como qualquer zé-ninguém, mas ainda assim estava disposto a transigir desde que o deixassem sossegado pela Bemposta ao pé da filha dilecta e da tia Maria Francisca e não o obrigassem a ir a Queluz onde estava a bruxa espanhola e a sua corte de feiticeiras.

– Só faltava mais esta desordem – disse ele, quando o informaram do pronunciamento de Vila Franca.

Detestava aquele rapaz, a quem por dever e cinismo chamava filho. Julgava-o um presumido, um arruaceiro perigoso, um mal-educado, em que reconhecia por inteiro o espírito da mãe. Nem por infante o avaliava; sabia-o filho duma noite passageira de gritos e loucuras. Mas calava com medo do escândalo e do rídiculo. E estava agora nas mãos daquele rapazote loiro e grosseiro, um arrieiro violento de vinte anos, que o odiava teimosamente como se odeia um padrasto.

– Prisão por prisão, antes a das Cortes, que pagavam e falavam latim – queixou-se ele agarrado à filha Isabel Maria nas horas agudas da crise, quando os regimentos desertaram de Lisboa e os populares passavam às portas da Bemposta dando vivas ao rei absoluto.

Suspirou. Talvez nunca como naquele momento se tenha sentido tão infeliz na sua vida de tantos e tão fundos infortúnios. Uma coisa eram os granadeiros do Junot e os brigues da armada real, duas coisas francas e abertas, outra aquele enteado dentro de portas, ignorante e feroz, pronto para com um rugido lhe deitar a mão à coroa. E eis mais um triste drama para pôr às costas desta família! À noite lavou-se de novo em lágrimas, sem saber para onde se virar. Dum lado estava a infantazinha, com os seus olhos negros assustados, e do outro, a princesa da Beira, sua tia e cunhada, cada mais amarrotada. Era senhora duns olhos cinzentos, lavados por uma água suja, onde se viam ainda correr, a tremer, os desgraçados que foram apanhados pela onda do terramoto de 1755. Nascera em 1746 e era neste momento da nossa história uma velha toda encarquilhada, com gosma e ramela amarela, de setenta e sete anos. Coxeava do juízo como coxeava das pernas, confundindo o passado mais antigo com o presente mais presente e comportando-se como se os mortos ainda fossem deste mundo.

Palmela, com manha, oportunismo e muita frieza, encontrou-lhe a saída para a crise.

– As Cortes estão perdidas. Não têm ninguém com elas. Os regimentos desertaram todos para Vila Franca. Gritam por lá o seguinte – Libertem o rei, libertem o rei. – Apareça pois Sua Majestade por Vila Franca e passeie por entre os seus súbditos, livre e soberano. É uma lição capaz de calar aquele rapazote.

– E as Cortes? – perguntou assustado o rei, sem compreender como se safava para Vila Franca.

Via-se nos apertos de Luís XVI e era o que mais temia, pois se nunca meditara na repetição do facto em História tinha pelo menos consciência que todos os anos regressava ao Inverno depois dos calores do Verão. Era elementar mas suficiente para se ver arrestado em Sacavém por indicação de qualquer burguês do lugar, seguindo daí, entre alas de soldados ferozes, como um facínora, para uma sala das Necessidades, onde ficaria a aguardar julgamento.

– As Cortes? – repetiu Palmela. – As Cortes querem ir para casa, descansadas e sorrateiras. Não se dá que haja por lá algum Danton pedindo audácia e mais audácia.

Era a filosofia do partido Cartista em acção; contrariar a esquerda e a direita, aproveitando os avanços duma e os erros da outra. Neste caso, o cartismo livrava-se dos radicais, aproveitando a carreira dos absolutistas, livrando-se depois dos absolutistas com a ajuda dos constitucionais. Era golpe de mestre, que só o cérebro requintado e perverso de Palmela podia conceber. E lá foi o rei na sua nova casaca amarela para Vila Franca, onde constituiu novo ministério, entregando a pasta crucial dos Estrangeiros a Palmela e chamando para o pé de si alguns vintistas de relevo como Mouzinho da Silveira e Pamplona Corte Real, o conde Subserra, um afrancesado com cara de peixe e lábios grossos de lúcio, que andara pela Europa com o Alorna e que ficou com a pasta da Guerra. Demais reconheceu a dissolução das Cortes, prometeu uma Carta e para calar a contra-revolução que rasgara aquela janela na parede fechada da Constituição promoveu Miguel a comandante-chefe do Exército e amnistiou o conde de Amarante, autorizando-o a regressar com os seus homens a Portugal.

A rainha ficou fula com a saída da crise. Não era aquilo que esperava e não era aquilo que queria.

– Que raposão, aquele Palmela – queixou-se ela furiosa quando percebeu o desenlace de tudo aquilo.

Começou de imediato a intrigar contra a nova situação.

Detestava a Carta ainda mais que a Constituição. Era um termo médio que a aborrecia tanto como as naturezas dúbias. Ela gostava das índoles nítidas e demarcadas. Não se conteve e planeou um golpe de força, com dois assassinatos de entrada, pronunciamento militar, prisão do rei em Mafra, perseguição, espancamento e encarceramento de todos os Constitucionais e Cartistas conhecidos de Lisboa. A poeira fora pó, mas esse mesmo pó que os pés dos praças e as patas dos cavalos haviam levantado na terra seca de Junho não era afinal mais que o indício duma tropeada muito mais excitante. Aquilo entusiasmou-a e esteve a pontos de gostar do jeito que o assunto tomava. Sentia-se bem no meio daquela gente porca e grosseira que o João Santos lhe metia em Queluz disposta a malhar nas novas ideias e a espetar a naifa no rei se preciso fosse. Os seus olhos sedentos de sangue brilhavam na escuridão e o seu riso demoníaco rebentava aterrador no silêncio dos corredores do palácio de Queluz. Ao final da noite, quando todos se recolhiam, ela ficava ainda; gostava então de se chegar à varanda do salão e respirar o ar silencioso da noite morta. As narinas abriam-se-lhe ao cheiro do sangue da madrugada e ela ladrava como uma besta selvagem tocada pelos fluidos estranhos das estrelas que se apagavam todo o ódio que lhe emporcalhava a alma.

E a 24 de Fevereiro de 1824 na sua quinta de Salvaterra de Magos era assassinado à marretada o primeiro marquês de Loulé, José Rolim de Moura, um dos que andara com o Subserra, o Alorna e o Gomes Freire de Andrade nas campanhas napoleónicas da Áustria e da Rússia. O rei lembrava-se dele menino de colo, no tempo da mãe e do pai, nos saraus de Queluz, com os monsenhores a contarem anedotas e os castrados dos teatros a tocarem cravo e a trinarem cantatas sacras com voz fina de mulher. Sempre se dera com ele antes da partida para o Brasil e voltara ao seu convívio no regresso. Fizera-o estribeiro-mor, metia-o por privado nos aposentos, confiava nele como outrora nos Lobatos. Dentro da nobreza que vinha dos tempos antigos era ele depois do retorno do Brasil o mais próximo do rei. Era um liberal, marcado pela experiência constitucional dos Cem Dias, entusiasta das ideias de Benjamim Constant. Fora ele que ao lado de Palmela mais trabalhara por fintar o pronunciamento de Vila Franca, transformando-o numa confusa e inofensiva poeirada. O rei agradecera-lhe chamando-lhe carinhosamente o meu zézito e passeando de braço dado com ele, quando tudo acalmou, na tapadinha de Belém.

– Quê? Assassinaram a cacete o José Rolim de Moura, em Salvaterra? – exclamou agora o rei horrorizado, sem querer acreditar na notícia que lhe traziam.

O homicídio do marquês levantou uma onda de terror na corte. O propósito era esse, aterrorizar o rei, levando-o a abdicar e a fugir, como era seu costume. Ainda assim o choque do desaparecimento de José Rolim de Moura foi tão brutal que por momentos os homens de mão da rainha e do infante se retraíram. Eles que até aí mostravam ostensivamente as marretas nas praças de Lisboa e corriam para Queluz à luz do dia esconderam-se nos tugúrios lisboetas e nos refúgios das aldeias dos arredores. O ministério abrira de imediato um inquérito e os assassinos eram procurados com sanha. Percebia-se que estava em causa muito mais do que a figura do marquês; era a corte de Bemposta que se arriscava a cair e a ser substituída pela de Queluz. Palmela, que se seguia na lista dos assassinos, foi poupado, mas o plano da rebelião não estancou.

– Precipitai a queda do rei. Paralisa-se o inquérito e salvam-se os homens que andam fugidos ­– ordenou a rainha, que era o cérebro daquilo tudo.

E a 29 de Abril o infante Miguel veio para as ruas de Lisboa na sua qualidade de comandante-chefe do exército. Desta vez, em vez do boné amarrotado e do casaco de baetão, aperaltara-se na sua farda de generalíssimo das tropas, colarinho alto, ombreiras franjadas e casaca bordada a oiro. Ainda assim fazia-se acompanhar pela malta dos botequins do Loreto e do Bairro Alto que antes andara fugida e agora aparecia à luz do dia para dar vivas ao rei absoluto e morras à pedreirada dos cafés do Rossio. Enquanto o infante andou a bater à porta dos quartéis para levantar a tropa, esta turba juntou a ralé dos frades dos conventos e o que restava dos arruaceiros plebeus da cidade. O pretexto era uma conjura promovida pelos liberais contra a vida do rei.

À noite este magote concentrou-se no Rossio; era um exército burlesco e ruidoso, recortado em linhas sinistras na penumbra da noite. Durante a tarde correram os botequins a beber canecas de vinho e a apalpar a carne nutrida das moças que vinham de Sacavém, da Palhavã e de Benfica com os burricos carregados de hortaliças. Chegaram à noite a cair de bêbados e a cabecear de sono. Depois, mal começou a despontar o primeiro livor da alvorada e o infante se lhes juntou com as tropas dos quartéis, rebentou tudo numa explosão de gritos de atroar os mortos.

– Salvem o rei! Salvem o rei! Morte aos traidores! Morte aos traidores!

Queriam pandêga. E tiveram-na. Em duas horas foram presas mais de trezentas pessoas; assinalava-se uma casa onde vivia um suspeito de ter ideias liberais, metia-se a porta dentro, arrancava-se o pobre da cama e atirava-se com ele para o Limoeiro. O infante e a tropa dos quartéis ficaram com a missão de apanhar o peixe graúdo, enquanto a ralé ficava com o mexilhão da costa. Pescaram o Palmela num instante e estiveram por um triz para deitar a mão ao Subserra que avisado a tempo conseguiu refugiar-se no último momento na embaixada francesa e depois num paquete inglês que ancorava no Tejo. Quando o infante, percebeu que o Pamplona escapara, teve um ataque de fúria.

– Dá-se cabo daquilo tudo a tiro de artilharia. Escaqueira-se o Pamplona e tudo o resto ­– ainda chegou a dizer.

Mas depois desistiu, por causa das complicações diplomáticas. Optou por mandar cercar a Bemposta por um regimento de caçadores, dando seguimento ao plano da rainha e do seu estado-maior.

Quando o povo da cidade teve notícia do que se passava, veio para a rua defender o rei. A rainha sentiu que era o seu momento e apareceu em Lisboa, no Rossio, a pedir o apoio do povo para a família real. Segundo ela, o infante salvara o pai duma conjura do Palmela e dos maçónicos das lojas do Grande-Oriente. O povo não se conteve e explodiu numa alegria.

– Viva o infante! Viva a rainha!

Carlota Joaquina começava a ficar mestra nas armadilhas da política e na forma de conduzir as massas. Vila Franca fora a sua maior lição. Inventava um golpe contra o rei, prendia os Cartistas do governo, perseguia os liberais da cidade, cercava a Bemposta para garantir a segurança do rei e depois com o rei na mão seria ele próprio, calado e medroso, de olhos no chão, que se poria a andar. Já o via fechado para sempre nos corredores de Mafra, num exílio de que nunca mais regressaria. Ela assumiria a regência, com o filho a ser jurado de imediato herdeiro do trono.

Quando chegou à Bemposta, deu-se conta dum pormenor que complicava a rapidez do assunto. O embaixador francês, Hyde de Neuville, conseguira furar o cerco dos caçadores e postara-se ao pé do rei. Este ficara paralisado mal teve notícia das desordens promovidas pelo filho nas ruas da cidade. Reviveu os momentos mais angustiantes do ano anterior e sentiu na agitação do ar que chegava do rio o ódio brutal e impiedoso que o enteado lhe tinha. Estava outra vez nas mãos daquele rapaz soez e turbulento e daquela bruxa temível que viera para Portugal para lhe aterrorizar o espírito e que tão má impressão lhe fizera logo de entrada no antigo pavilhão de madeira da Ajuda.

– E desta vez sozinho. Nem o Pedro Holstein nem o Rolim para me valerem. Um preso e outro assassinado por aquele monstro – queixou-se ele inconsolável.

Aliviou-se, chorando. Foi quando lhe apareceu pela frente o legado francês. Era homem determinado, entendido nas voltas do poder e na manha dos golpes e contra-golpes dos políticos. Quando viu o rei naquela miséria, deu-se como missão tirá-lo das garras do filho. Convocou os embaixadores para a Bemposta e exigiu a presença imediata do infante no paço para se explicar com o pai diante dele. Assim encontrou as coisas a rainha, quando chegou à Bemposta com o povo. Esperou o desenlace daquele imprevisto, passeando nervosamente, de chicote delgado na mão, nos jardins das traseiras do paço.

Quando o filho regressou do encontro com o pai, a rainha sentiu que o infante tremia. O diplomata francês apertara com ele, confrontando-o com as queixas do pai. Ninguém o quisera assassinar, tinha os seus ministros fiéis presos, e muito o lastimava, estava de mãos atadas na Bemposta. Diante destas declarações do rei, o infante fora obrigado a retractar-se e a reconhecer que nunca a vida do pai estivera em perigo.

– Foi um engano, desculpai ­– dissera ele no fim da conversa, antes de beijar protocolarmente a mão do pai.

A conjura fora descoberta e o infante comprometera-se a respeitar a vontade do pai. Exigia-se a libertação imediata do Palmela. A rainha pensou que ainda não era daquela vez que arrumava o rei pastelão numa cela de Mafra. Assim como assim, não deu em desistir tão depressa. Uma cidade com quase cem mil habitantes estava levantada por ela e pelo infante.

– Isto ainda não se decidiu. O rei que fique na Bemposta que nós temos Lisboa na mão – disse ela.

Foram para as ruas. Continuaram a campanha de intimidação dos liberais com novas prisões e mais espancamentos. Os frades e a súcia dos botequins que acompanhava o infante estavam desejosos de desordens. Chegou ao paço a notícia de que dezenas ou centenas de prisioneiros estavam a ser enviados para os fortes da costa, já que as prisões de Lisboa estavam sobrelotadas. O rei aterrou-se; Palmela acabara de ser libertado devido à intervenção do embaixador inglês mas refugiara-se de imediato num barco inglês, atemorizado pelo clima de insegurança. Também o rei não descansou enquanto não saiu com a família mais próxima da Bemposta, subindo por sua vez a bordo duma nau inglesa, Windsor Castle, onde se lhe juntaram o Subserra e o Palmela. Aí organizaram em conjunto a resistência ao golpe, protegidos pelos embaixadores que se lhes reuniram e que tiveram papel crucial no desfecho. O infante foi chamado à presença do rei, que o recriminou pelo silêncio. Já não regressou a terra, perdeu o posto de comandante-chefe do exército e dois dias depois era intimidado a abandonar para sempre Portugal. Passou como prisioneiro para uma fragata portuguesa, Pérola, e no dia seguinte, 13 de Maio, partia para Brest no navio português, comboiado por uma fragata inglesa e por um brigue francês.

Chamaram àquela desordem que durou até ao exílio do infante ‘Abrilada’. Nuvem de poeira de novo? Não. Desta vez houve mais do que pó; houve lágrimas, gritos, sangue, carne espancada por cacetes, grilhões. Foi no fundo a primeira encenação das cruzes da guerra civil que estava para vir, essa Abrilada gigantesca, que em vez de durar dez dias demorou seis anos.

No dia seguinte à partida do infante, vieram os ministros e o rei para terra. Haviam estado cinco dias fechados na nau inglesa. O tempo suficiente para uma das filhas de João VI, a sua filha dilecta, Isabel Maria, se apaixonar por um jovem oficial inglês, de quem veio a ter nove meses depois, em segredo absoluto, e na máxima consternação, um par de gémeas. Esta pobre rapariga, que tinha uns bonitos olhos negros de algarvia e uns lábios roliços e sumarentos, ficou para sempre espremida com esta escorregadela. Abriu-se para o amor durante um curto instante de Primavera, num beliche de camarote escondido, com as águas do Tejo a cantarem ao lado, mas fechou-se logo a seguir para a vida toda. Foi alma ou flor humana que só viveu uma estação e o seu perfume foi tão fugaz que um ano depois já estava apagado e ela murcha e envelhecida. Carlos I ainda a conheceu. Foi ela a Maria Francisca Benedita do seu tempo de criança e de jovem. Nos olhos da Maria Francisca vislumbravam-se os tropeções do terramoto, mas nos da Isabel Maria eram os cacetes da Abrilada e os tiros da guerra civil que se viam a silvar. Nesses olhos leu mais tarde o jovem Carlos I o destino de Portugal. Foi neles que distinguiu pela primeira vez a bala perdida que lhe estava destinada.

Carlota Joaquina quando viu do cais de Belém a Pérola a sair a barra levando o filho querido no porão para sempre teve uma crise de abatimento como nunca até aí experimentara. Aquele filho foi o único amor sincero que conheceu. Pariu-o sozinha nos currais do Ramalhão, deu-lhe o leite do seu peito a mamar, levou-o nos braços para o Brasil e viu nele a sua viril continuidade. Dava a vida por ele. Ela, que era demoníaca como uma deusa vocacionada para destruir, que se ria malevolamente do sofrimento que provocava, era capaz dum gesto de bondade por ele. Ela, que nunca vertera na vida uma lágrima, chorou lágrimas verdadeiras no momento em que o viu afastar-se para sempre. Perdê-lo foi perder toda a esperança de se redimir pelo amor e ficar condenada a nunca mais regressar dum mundo infernal de escuridão e desespero.

Ó figura trágica e descarnada, repelente como a condessa húngara que se banhava com o sangue das virgens que ela mesma  decepava, que foste a mais terrível e a mais cruel das rainhas portuguesas e por isso és uma das mais fantásticas e eternas. Ó figura infernal, ó harpia horrível, ó espectro condenado a penares eternamente os teus crimes atrozes. Ainda hoje vens do outro mundo, nas noites geladas em que escrevo este meu livro, assustar-me com o teu riso satânico e a tua fealdade de monstro frio e sanguinário.

– Hoje morro para o mundo – exclamou ela, no dia em que estupefacta e ferida de morte viu partir o filho barra fora, sem sequer se poder despedir dele.

A princípio viveu assim aquela falta. Perdeu o interesse por tudo o que anteriormente a motivava. Não quis mais saber de política nem do amante. Perdeu o apetite, deixou de falar, banhava-se de lágrimas, fugiu do sol. Pôs de parte a colorida e festiva indumentária que trouxera do Brasil e amortalhou-se num roupão negro e num original chapéu de feltro sebento. A tiracolo passou a usar uma fita de relíquias macabras, que mais tarde reuniu nas escarcelas do cinturão. Era uma figura grotesca e extravagante, com as suas botas rotas de lã e o seu fato de mendiga, onde os ossos das relíquias faziam um efeito assustador. Quem a visse nos corredores sombrios de Queluz assim negra e bárbara, uivando dia e noite a sua mágoa, diria que ela pertencia a uma estirpe de seres repelentes e amaldiçoados e não aos terrenos e medíocres Braganças portugueses, descendentes da filha astuta do irado Barbadão alentejano.

Mas depois, à medida que os meses foram passando, a tristeza transformou-se num ódio fundo, obsessivo, vingativo, onde foi beber vida e forças. Saiu do abatimento em que andava por causa dessa novidade. O ódio levantou-a de novo para a vida, dando-lhe motivação para continuar. Era uma energia, uma razão, uma força, um sangue novo que justificava a sua reabilitação. Comeu, dormiu, abriu as janelas, regressou à luz do Sol e aos braços do amante. O ódio que sentia tinha uma direcção: o rei, esse bode asqueroso, esse caracol viscoso, que se montara nela com a sorna das coisas adormecidas e que era o motivo da sua mortal consternação.

– Cabrão! Estou capaz de te matar ­– exclamava ela, quando pensava no rei.

E estava mesmo. Matando-o cumpria a sua sede de vingança e abria uma porta ao regresso do infante. Concebeu o projecto durante meses, primeiro fechada nas salas de Queluz, depois nos jardins, ruminando a sós, cheia de entusiasmo e pormenor, aquele homicídio libertador. À medida que ele se desenhou no seu cérebro, deu-o como definitivo; ao tempo que o sentiu vibrar nos seus sentidos, percebeu-o como uma realidade que já nada podia deter. O rei estava morto, mesmo antes dela o matar; bastava para isso o pensamento vivo com que agia. Era o princípio da acção do símile sobre a realidade que as velhas e experientes quintandeiras da Tijuca lhe haviam ensinado nos intervalos do candomblé. Quando a rainha percebeu que havia saído da dobra soturna em que a partida do filho a mergulhara, quando se deu conta que rebolava nas mãos um morto que odiava, escancarou a boca feia e desdentada e atirou aos ares luarentos da noite um uivo feroz e sinistro. Ó alimária ruidosa, ó besta ladradora, que ainda hoje apavoras de medo a escuridão com os teus urros monstruosos.

E o rei entretanto o que fazia? Nada, a não ser mostrar-se sorna e tolerável. Regressou às suas rotinas da Bemposta, perdoou, ressalvando Miguel, a todos os implicados na Abrilada, mandando mesmo parar o processo de averiguação do assassínio do marquês de Loulé. Sentia-se seguro com o enteado longe e a rainha encafuada nos corredores escuros de Queluz. Voltou-lhe o gosto de ir merendar à matinha de Belém e de largar para Mafra, onde tinha os pombais e os frades para o canto, as anedotas e os passeios.

– Vamos ter agora sossego, vamos ter sossego – dizia ele à titi Maria Francisca, quando a encontrava nos jardins de Benfica, para onde ela fora passar a última velhice.

Mas durou pouco o sossego. A 1 de Março de 1826 a rainha conseguiu subornar um criado do rei e infiltrar na sua merenda laranjas envenenadas. O rei, lambendo os grossos beiços, merendou-as em Belém no dia seguinte e regressou a Lisboa em agonia. Recostado num leito de pau-santo, branco e sem pinga de sangue, com as hemorróidas outra vez de fora, reboludas e doloridas, arrancava vómitos esverdinhados num solavanco e recordava nos momentos em que vinha ao de cima os episódios cruéis da sua vida de desgraçado. À sua volta via os destroços do passado e os do futuro; boiavam os primeiros na podridão do seu estômago e os segundos no veneno do seu sangue. O que mais lamentava era não poder ir uma última vez a Mafra, despedir-se das pombas que tinha no pombal do convento. Queria-lhes mais, muito mais, do que ao trono e à corte, que eram para ele deveres forçados e infelizes.

Os últimos lances da vida deste rei ainda são mais miseráveis que os restantes; desfazia-se em vómitos azedos e aflições, rezava sem tino, atormentava-se de dúvidas e de dores. Tinha guinadas nos tecidos abdominais e visões interiores repentinas que o enchiam de terror. A 6 de Março fazia de urgência regente a filha dilecta Isabel Maria e quatro dias depois revirava os olhos e mergulhava num estertor convulso. A mulher, estendendo os braços magros de megera por cima do chapéu sebento, ria  assustadoramente aos haustos, enquanto ele, como um porco esventrado e caído, agonizava estendido na tábua em que o deitaram, com o veneno negro a fazer de faca.

Pobre rei João, sempre incomodado, sempre desgraçado, sempre inconformado, que foste um infeliz e não mereceste o triste destino que te calhou nesta vida. Deixaste em herança a infelicidade, tu que parecias fadado para a pacatez e a continuidade.

A História não te poupou, pobre e infausto rei João. Morreste sem te despedires das pombas que tinha no pombal de Mafra, e por quem nutrias um desvelo que nunca sentiste pelos homens, tal como nasceste por acidente, quando todas as atenções se voltavam para outro lado, esse José talentoso mas infeliz, teu irmão. Foste um pobre diabo, um gebo feio e disforme, ridículo e doente, um filho segundo com mais vocação para sargento do que para rei, que se queria esconder de tudo e de todos.

A época deu-te uma epopeia gigantesca, a do mundo moderno, com os episódios épicos e terríveis da grande Revolução e depois os sucessos e a barafunda do Império napoleónico, mas tu se pudesses terias virado costas a tudo para te sentares num banco de pau, afinares a voz e cantares em sossego um salmo grave ou então viveres como um hortelão, desfrutando a tua cabana e o teu pedaço de terra. Eras no fundo um simples, um bom, um campónio, a quem chamaram Clemente, porque com tudo transigiste e porque com nada te importaste. Foste obrigado a ocupar o palco da História e a tornares-te um dos protagonistas. Mas viveste tudo à força, a contra-gosto, sempre aos gemidos e aos baldões, ansioso que te deixassem em paz e te não dissessem nada. Eras um misantropo, desejoso de te isolares dos homens, no meio das couves e das pombas, em que punhas todo o teu cuidado. Não te deixaram e empurraram-te para a boca de cena. Entre a regência e o reinado calhou-te nada menos que ver a mãe expulsa do trono por um generaleco de algibeira, Junot, e saber Portugal riscado do mapa das nações por um Tratado assinado por Napoleão. Podias ter sido o Dom Sebastião da dinastia de Bragança, o último rei de Portugal. O povo de Lisboa, quando foi espreitar a chegada do teu féretro à escadaria da igreja de S. Vicente, assim temia.

– Perdemos o Brasil. Agora é a nossa vez. Esse que aí vai é o último rei de Portugal – vaticinou mordazmente alguém que estava na praça fronteira à igreja, onde se aglomerava o povo que viera espreitar, mais curioso que deferente, o ataúde.

Mas não foi. Não foi, porque como rei lhe calhou ainda restaurar o trono e fundar o Portugal moderno, o da liberdade, o da Carta, o da moderação, o do dinheiro, o dos barões. Mas deixou o toque em herança, no código genético e no sangue, ao neto da sua neta, o rei Carlos I, que esse sim foi na verdade trágica dos factos o Dom Sebastião dos Braganças.

 


III

O CABRA E O ARCANJO

(1826-1834)


A morte do rei perturbou os nervos do reino; deixou em aberto um novo painel e uma nova paisagem. Em vez dum rei borrado, ficámos com os gritos duma rainha que ladrava. Aquilo que o exílio forçado de Miguel calara veio de repente ao de cima, com renovada força. Corria o mês de Março e os braços secos da vida retomavam cor e calor; uma seiva desconhecida e áspera punha-se a circular em todos os canais; os espíritos acumulavam electricidade, prontos a explodir em trovões e chispas. Agitaram-se de novo os botequins da rua do Loreto e os da rua da Rosa; os facínoras pegaram discretamente nos cacetes e pespegaram-se nas esquinas do Bairro Alto à espera que alguém os chamasse; os conventos arderam em pragas contra os jacobinos e a pedreirada das lojas maçónicas; os frades vieram para a rua beliscar as moças e falar mal da regência e pagodear o Pedro ladrão que roubara o Brasil e deixara Lisboa à beira da miséria e do não.

– É um ladrão. Que venha, para lhe darmos uma tosa valente no lombo – secundava por todo o lado o povo, afiando facas e paus.

A rainha, percebendo a atmosfera violenta daquele início de Primavera, ria de entusiasmo na certeza de que nunca os negócios lhe haviam corrido assim de feição. Tinha o povo por si, os botequins a ferver por desordens, os conventos a praguejar contra os novos Franceses, os soldados dispostos a enterrar os constitucionais. Todos clamavam por Miguel, o arcanjo loiro, o novo desejado. A regência estava isolada; os seus propósitos de encontrar continuidade ao cartismo do rei e dos ministros, escolhendo o primogénito do Brasil para sucessor e herdeiro da coroa portuguesa, esbarravam na força espantosa daquela corrente que por todo o lado se levantava contra os constitucionais, os mações e os Cartistas. Mostrou-se por isso a rainha indiferente à regente, a sua filha Isabel Maria, que, baseada no direito de primogenitura e fiel às derradeiras indicações do pai, escolhera como rei o seu irmão, o imperador do Brasil. A rainha trabalhava pela calada, levantando o povo, os quartéis e os conventos. Ansiava por sangue. E pelo regresso apoteótico do filho querido.

No Brasil, quando o imperador recebeu a notícia do falecimento do pai e da sua sucessão encheu-se de orgulho. Era imperador na América e rei na Europa. A sua pobre cabeça de rapaz estouvado e sonhador, criado ao acaso ao lado do Chalaça nos caminhos da Guanabara, acomodava duas coroas; as suas mãos de estroina da baixa fluminense seguravam dois ceptros e os seus ombros, bem marcados pelas unhas doidas de desejo de muitas mulheres, deixavam escorregar dois fofos e fartos mantos. Sentia-se inchado e importante: um crioulo americano moderno, como Bolívar e San Martin, e um rei clássico da velha Europa, com coração generoso e largo, perfilhando as ideias avançadas de Hogendorp e Constant e admirando o coração ardente e impetuoso de Napoleão nos Cem Dias e as aventuras românticas e violentas de Byron em Missolonghi, onde acabara por morrer uns meses antes, em Abril de 1824. Demais, acabara nos anos imediatamente anteriores de descobrir no colo de Domitila aquilo que nunca descobrira antes nos braços de qualquer outra amante, ele que as tivera às dezenas, se não às centenas, numa luxúria intensa, voraz, sem pausas. Experimentara debaixo da amante aquilo que uma geração inteira de homens pode passar sem descobrir.

– Pedro com Domitila geme consolado como menina e tem chorinho de comoção como se estivesse na hora da morte – dizia o povo nas ruas com malícia.

Aquela mulher, que lhe surgira nos dias entusiásticos da independência, tornara-se para Pedro uma revelação sem a qual não era capaz de viver. Quando a percebeu única, deu-lhe tudo. Fê-la viscondessa e depois marquesa de Santos e ao pai visconde de Castro. Maria Benedita, a irmã de Domitila, foi despachada baronesa de Sorocaba e o marido nomeado intendente-geral das quintas e fazendas imperiais. Não descansou enquantou não enfiou a amante no palácio imperial, dando-lhe um estatuto idêntico ao da esposa. Fê-la dama camarista e meteu-a nos aposentos. Com ela vieram os dois filhos que passaram a ser criados com os filhos do casal imperial. Em serviço, levava sempre as duas mulheres, a cunhada de Napoleão, imperatriz, e a filha do Castro, dama da sua carne, que o fizera único entre os homens. Leopoldina, a irmã de Maria Luísa, a filha de Francisco I, o general prussiano como lhe chamava o marido, suportou mal aquele escândalo e sentiu aquilo como uma vergonha que lhe mergulhava a alma em fogo amargo. Deu em se meter com o marido e atacar a rival. Esqueceu os filhos, que eram cinco, os trabalhos de botânica e zoologia, que eram morosos e muito do seu agrado, e entregou-se àquela paixão enciumada que lhe azedou o tempo e o temperamento e que era o resultado duma pressão desde há muito acumulada. Assim estavam as coisas quando chegou ao Rio de Janeiro a notícia da morte do pobre rei João português.

Depressa percebeu Pedro, pelos rumores que lhe chegaram de Lisboa, que dificilmente o aceitariam lá como rei. Tinha por si a irmã regente, que ele confirmou no cargo, e os ministros do pai, em primeiro lugar o Palmela finório, mas o povo estava voltado contra ele e idolatrava o irmão Miguel e seguia a mãe, que ele sabia desde há muito adversa às ideias constitucionais. Mas pior do que isso, era a oposição declarada da Inglaterra à reunião das duas coroas numa única cabeça. Os bravos filhos de Albião não perdiam uma para mostrar que os Braganças lhes deviam o trono. Os mais fortes eram os mais autorizados.

Abateu pois Pedro o orgulho de ser imperador no novo mundo e rei no velho, dando uma Carta a Portugal e abdicando da coroa portuguesa na sua filha Maria da Glória, uma menina de sete anos, de olhos azuis, pele fria e branca, calada e reservada, que parecia a mãe talhada em minúsculo marfim, com o pescoço atarracado, o peito gordo, os ombros bojudos. Conhecia-a mal, mas era a sua primogénita legal. Demais, esperava com essa medida acalmar a perturbação da imperatriz, consolidar a posição da marquesa de Santos na corte do Rio de Janeiro, descansar de vez daquela guerra em que andava metido desde que fizera entrar a amante no palácio imperial.

– E tu que fazes com Miguel? ­– perguntou-lhe o Chalaça quando tomou conhecimento dos planos do imperador.

– Casa-se a infanta com o mano Miguel, sob condição de juramento da Carta ­– respondeu-lhe Pedro.

Calou-se o Chalaça e calaram-se o Rio e Lisboa quando souberam da decisão de Pedro de casar a filha com o irmão homiziado. Era um rasgo estratégico, no meio daquela agitação ameaçadora em que se andava desde que Carlota Joaquina tomara desforra do exílio do filho, matando o rei. Esta, em Lisboa, quando soube da decisão de Pedro, riu e esfregou as mãos de contente.

– O macaco brasileiro é tão generoso. Que lindo gesto oferecer a coroa ao irmão pobre e deserdado – comentou ela, com ar de mofa e os lábios penugentos em biquinho.

Estava decidida a desbancar aquele enlace. Era uma solução conciliadora que desagradava à natureza violenta e dramática da sua alma de bruxa espanhola. Ela queria um furacão, ela precisava de sangue; dava de barato aquelas águas mornas, em que tudo se apagava e confundia. Via à distância no filho brasileiro uma reedição mais solta e determinada do marido e ansiava pelo momento de lhe dar uma lição que fosse uma tosa monumental. Ganhou-lhe ódio e as suas entranhas voltaram a arder num calor infernal e bom. O seu sangue não circulava com desenvoltura sem esse fermento da alma, o ódio.

– O estupor do brasileiro é como o pai, só ronha e receio – habituou-se ela a dizer por esse tempo, entre colérica e displicente.

Começou de imediato uma campanha a favor da abdicação de Pedro no irmão Miguel. O povo, os frades e parte do exército aceitaram bem a ideia e preparam-se para receber Miguel sem mais como rei. Quando o embaixador inglês no Rio, Stuart, chegou a Lisboa, a 2 de Julho de 1826, com a Carta no bolso estava tudo em polvorosa. A electricidade soltava as primeiras chispas no meio do calor acumulado; o Verão, com as suas névoas indecisas e baixas, era uma estação propícia às tempestades. Os botequins da rua do Loreto e os da rua da Rosa enchiam-se todas as tardes de gente sedenta, mal encarada, suja, que emborcava vinho de Almeirim e soltava piadas anti-liberais de cacete escondido nas casacas vermelhas encardidas. Os frades ardiam em pragas contra os jacobinos Franceses, a pedreirada das lojas maçónicas, os Brasileiros constitucionais, os ímpios dos cafés, os emigrados Portugueses de Londres, a Carta, sobretudo a Carta, que ninguém vira mas todos sabiam a caminho.

A regência, mal afamada entre o povo de Lisboa, pressionada pela Espanha e pela Rússia, partiu para as Caldas. Isabel Maria andava amedrontada e doente; atribuía todos aqueles desaires ao seu comportamento na Windsor Castle e ao nascimento das duas gémeas, que viviam na Ajuda, fora de vistas. Atormentava-se noite e dia com o seu destino, quase indiferente ao resto. Os ministros andavam também receosos, ainda que por outros motivos. A atmosfera tempestuosa que se fazia sentir naquele início de Verão era a razão forte da preocupação. E por isso todos juntos, ainda que a desfavor da regente, votaram em Conselho contra a publicação da Carta. Mais tarde se veria. Agora, no meio daquele calor baixo e indeciso, com a Espanha e a Rússia a defenderem com tanta determinação a rainha, o melhor era assobiar para o ar e fazer de conta que a Carta não existia. Vinha no bolso dum emissário inglês e nele deveria regressar ao lugar de origem, quieta,  calada, para que ninguém desse por ela.

Foi então que uma voz se levantou sobre aquele silêncio pusilânime. Era a voz grossa e sonora do governador militar do Porto, a voz de João Carlos de Saldanha de Oliveira e Daun, neto pela mãe do marquês de Pombal, que aos trinta e cinco anos via surgir no horizonte uma oportunidade de se fazer notado.

– Se até ao dia 31 de Julho se não jurar a Carta, juro-a eu e faço-a eu jurar pelo exército!

Bastou aquela voz para abalar de novo a regência. Os ministros, a banhos nas Caldas, viam-se apertados entre as pressões que vinham de Lisboa e as que chegavam agora do Porto. Dizia-se que o Porto revivia à sua maneira a exaltação constitucionalista de 1820. A crise motivada pela perda do Brasil fora aí mais benévola do que em Lisboa. A burguesia comercial da cidade mantinha um importante intercâmbio com o norte da Europa, que a compensava o seu tanto da perda do Brasil. Demais, a cidade sentia-se orgulhosa do protagonismo que tivera no regresso de João VI. Os seus heróis continuavam a ser os homens que haviam feito a revolução de Agosto de 1820, Manuel Fernandes Tomás, Borges Carneiro e Ferreira Borges. Esperava-se por isso com entusiasmo pela prometida Carta. Foi essa atmosfera de exaltação constitucional, com filarmónicas e discursos exaltados, que levou Saldanha a mostrar-se audaz. Era mais de oportunidades que de ousadias. Levantou a voz, bateu o pé, ameaçou tudo e todos, mas tinha consigo as guarnições militares do Porto e por detrás de si um cidade disposta a adjuvá-lo.

A regência ainda assim calou-se. O Porto ficava longe das Caldas e as notícias que de lá chegavam contraditórias. Mais perto estava Lisboa e mais seguras as informações que de lá vinham. E essas não deixavam lugar a dúvidas. O povo, os frades e as guarnições eram contra a Carta. Saldanha deu ares de se enfurecer, quando percebeu o silêncio comprometido da regência. Entendeu-se com Pinto Pizarro, dois anos mais velho do que ele, seu próximo desde as primeiras campanhas da Guerra Peninsular, e enviou-o com um ultimato às Caldas. Quando a regência viu o coronel Pizarro com ar carregado, sobrolho baixo, espalhar a infantaria pela praça central das Caldas, levou o caso a sério. E quando recebeu as suas notícias, amedrontou-se. Saldanha só deixava duas saídas: ou se jurava de seguida a Carta ou marchava de imediato com as tropas para Lisboa. Entretanto chegou às Caldas a informação que os esquadrões de cavalaria de Chaves haviam reforçado em Gaia as tropas do governador militar do Porto. Era muito para quem queria tranquilidade e estava de Verão a banhos nas termas. Jurou-se a Carta a 31 de Julho, e para se acalmar o general deu-se-lhe uma pasta no ministério, a da guerra, como não podia deixar de ser depois de tanta bambochata.

Carlota Joaquina em Lisboa foi apanhada desprevenida por aquele lance. Não se lembrava de Saldanha, a não ser na poeira da Vila-Francada, quando o general por despeito deixara Lisboa e se juntara ao infante em Vila Franca, acompanhando o movimento geral dos regimentos que haviam abandonado as Cortes e desertado de Lisboa. Era mais uma voz no meio dos vivas e dos morras com que a tropa aclamara o levantamento do infante e dos seus amigos de estúrdia. Parecera-lhe uma figura fraca, apagada, de olhos tortos, míopes, lunetas presas na ponta do nariz, suíças mal tratadas, um desses burgueses desprezíveis que se interessavam por letras e contas. Agora, essa mesma voz levantava-se sozinha do outro lado do mundo e era capaz de impor a vontade do filho brasileiro, que era o seu ódio novo e bom, o ódio que a alimentava e lhe dava renovada vida.

– Esse Saldanha ou é um farsante que nos enganou a todos com uma mascarada sem valor ou uma criança que não sabe o que faz – avaliou a rainha.

Assim como assim não perdeu tempo. Levantou os exércitos em Trás-os-Montes e no interior do Alentejo, estabeleceu contactos com a filha Maria Teresa, casada em Espanha em segundas núpcias, para reavivar os planos de invasão do duque de Angolema, comprou a polícia de Lisboa, aliciou guarnições do exército, planeou cercar a Ajuda, prender a filha Isabel Maria, aclamar o filho Miguel e ficar a governar em seu nome enquanto ele não regressasse de Viena. A 21 de Agosto a sedição rebentou em Lisboa mas foi abafada à última hora. O governo foi obrigado a substituir os destacamentos da guarda do paço por voluntários civis, Cartistas de confiança. Ao mesmo tempo, a sublevação no interior do país crescia. O marquês de Chaves levantava a tropa e os camponeses e formava um novo exército, pronto a descer sobre o Porto e Lisboa aos gritos de viva el-rei Dom Miguel, rei absoluto. Em casa, a marquesa de Chaves, quando soube da pouca sorte da rainha na sedição da Ajuda, ficou colérica e decidida.

– Cabrões! Isto só lá vai com porrada grossa ­– exclamou ela para o almocreve que lhe trouxe a notícia.

Era uma mulheraça rude e suja, habituada a lidar com a gente das aldeias da Terra Fria. Calçava socos de madeira e punha capote de palha quando se deslocava fora de casa. Não esteve com delicadezas, albardou o macho, pegou no bacamarte, tapou-se com um chapéu sebento de grandes abas, bebeu três dedos de aguardente e foi ter com o marido. Estava disposta a sublevar o que faltava da província e a assumir o comando desses camponeses que ela tratava à cachamorrada. Tinha uma cara horrenda e um bico adunco de ave de rapina em lugar do nariz, os olhos tortos e um bigode preto, emaranhado, de meter respeito a um facínora do Barroso. Metia medo de tão horrorosa. Em cima do macho, de bacamarte a tiracolo, lenço vermelho, legitimista, ao pescoço, chapéu preto enterrado na cabeça e uma chusma de gente à sua volta, levantando pesadas gadanhas e forquilhas nas mãos calosas e cabeludas, parecia a emissária fantástica da alma danada de Carlota Joaquina por aquelas terras. Era a camareira-mor da rainha ou, tanto fazia, do Diabo em pessoa, e a sua comparsa natural de aventuras sinistras e cheias de sangue. Ainda hoje, enquanto o espírito da rainha anda por aí a penar os seus negros e abomináveis crimes, ela o acompanha com o seu chapéu sebento, as suas cerdas horripilentas e o seu peito a rebentar de ódio. São duas Harpias pavorosas a gritarem os seus gritos assustadores na solidão desesperada do mundo e que por nada, mesmo nada, eu desejaria encontrar ao virar da esquina.

Entretanto em Viena, por indicação de Metternich, Miguel mostrava-se prudente. O novo árbitro da Europa estava tanto como ele interessado em sufocar o novo constitucionalismo português. Ao austríaco tanto lhe faziam as Constituições revolucionárias, conquistadas aos tiros na rua, como as Cartas, concedidas pela generosidade dos soberanos. Abominava da mesma forma umas e outras e todo o seu trabalho desde a queda de Napoleão era policiar a Europa de modo a que não se vissem em parte alguma sinais dumas e doutras. A Constituição espanhola já lá ia, a França de Carlos X, irmão de Luís XVI e de Luís XVIII, manifestava desde 1824 um modelo apostólico sem nódoa; restava apenas na calma e consensual cena europeia, tirando a Inglaterra de Canning, intocável essa, o tumor inesperado que era a Carta portuguesa. Havia que o esvurmar rapidamente mas sem provocar no paciente dores e agitações desnecessárias. Demais, o casamento de Miguel com Maria da Glória interessava muito à Áustria; a menina, nascida no Brasil, era afinal neta do imperador Francisco. Por isso, o infante português jurou em Viena, a conselho de Metternich, a Carta, comprometendo-se logo de seguida nos esponsais com a sobrinha.

Ao mesmo tempo, a vida familiar de Pedro no Brasil piorava momento a momento, a caminho do desastre. A abdicação na filha mais velha, feita a conselho do inglês e que ele julgara um oportuno remédio para a impaciência da imperatriz, mostrara-se um engano. Leopoldina continuava a recusar a situação de Domitila na corte, mostrando-se dia a dia mais obcecada com o caso. A sua cegueira chegava ao ponto de ter crises nervosas nas recepções aos legados estrangeiros, o que exasperava o imperador. Desinteressara-se de tudo o que antes fora o seu paliativo: abandonara os herbários; despedira os sábios alemães; perdera há muito a paciência e o sentido pedagógico com que a princípio se enganara a si própria no trato dos filhos. À luz quente dos trópicos, todo esse manancial de objectividade, todo esse esforço da vontade, se derretera numa volúpia nova e sobretudo numa paixão descontrolada e nervosa. Detestara Domitila desde o primeiro momento, mas quando percebeu a fixação carnal que Pedro nela tinha começou a odiá-la com todas as forças. Nada a demovia, nem mesmo o destino da filha Maria da Glória, em quem se revira nos primeiros tempos com garbo. Isso fora antes, porque agora tudo o que lhe interessava era ter nos braços o corpo ágil do marido e senti-lo bem longe da marquesa de Santos.

Um dia, em que Pedro passara muitas horas seguidas nos aposentos da amante, Leopoldina não se conteve e entrou-lhes pela câmara. Estavam nus, recostados em almofadas, comendo frutos e bebendo sucos. Ela desnorteou-se e fez-lhe uma cena carregada de lágrimas e recriminações. Estava grávida, a caminho do parto, e o seu desespero vibrava-lhe ainda mais agudo nos nervos. Pedro, que era bravo e precipitado, sem a bonança temperada do pai, não lhe admitiu a cena e saltou-lhe em cima aos urros, infamando-a e socando-a. Sovou-a sem piedade diante da amante e foi preciso acudirem-lhe para lhe poderem tirar das mãos a mulher.

– Que é lá isso, seu Pedro? Guarde o facão para os caipiras da rua das Violas – pediu-lhe depois o Chalaça, sombrio e sério, enquanto ele limpava o sangue das mãos com a língua.

A imperatriz, maltratada a pontapé no ventre, morria dias depois, a 11 de Dezembro de 1826, em consequência da agressão. Pedro, que era violento e brigão, sem ser maldoso, ressentiu-se daquele desenlace. Era filho de Carlota Joaquina, uma criminosa vulgar e vil, mas estava longe de fazer o género da mãe. Tinha um tipo impulsivo, autoritário, agressivo, mas ao mesmo tempo um coração mole, cheio de lágrimas e arrependimento. O seu herói balançava entre um general sanguinário, sem escrúpulos, como Napoleão, e um poeta sentimental, cheio de arroubos espirituais, como Byron. Fora um romântico atormentado pela paixão, a das mulheres e a da política; era agora um romântico torturado pelo crime. Deu em olhar o escrínio, onde continuava depositada a minúscula urna que continha os restos da sua louca paixão pela francesinha Noémie Thierry. Dez anos depois, via-se com um novo cádaver nos braços, o de Leopoldina. Imaginou outro golpe espectacular, embalsamar o cadáver da imperatriz, depositá-lo no átrio de entrada do palácio imperial, onde ficaria por entre círios sempre acesos e as eternas reverências dos seus súbditos. Era a loucura dum espírito ardente e tropical dando as mãos ao arrependimento sincero dum espírito infantil e generoso.

– Feche o caso depressa, desate a língua com frade penitente e arranje mas é nova imperatriz ­– aconselhou-o Plácido Pereira de Abreu, o prático que todas as manhãs lhe ensaboava a cara para lhe tratar da barba.

Pedro amofinou-se.

– E não esqueça desta vez que não basta a noiva ser cunhada do grande e espalhafatoso Napoleão. É preciso ser mulher e mulher de cara bonita e carne gostosa, bem a seu jeito – acrescentou Plácido.

Pedro acabou por lhe seguir o conselho. Deixou cair o espectáculo, enterrou com lágrimas Leopoldina, preparou-se para arranjar nova esposa que pudesse representar um trunfo nos apertos da coroa portuguesa em que via metida a filha Maria da Glória. Domitila estava lá para lhe secar os arrependimentos e lhe arrancar sempre que podia gritos de prazer. As notícias de Portugal eram animadoras; os levantamentos absolutistas do norte haviam sido batidos pelas tropas do governo, fugindo o marquês de Chaves para Espanha, e o irmão Miguel em Viena jurara a Carta e comprometera-se com o casamento. Saldanha, o novo paladino português da liberdade, mostrava-se um militar experiente, que sabia ganhar batalhas. Como político era medíocre e inutilmente conflituoso; arrastava com ele um feitio que na aparência passava por agressivo, ou até por grosseiro, mas no fundo era apenas ingénuo e franco. Depois das sedições e dos levantamentos absolutistas do Verão e do Outono desse ano iniciara uma política de oposição aberta e teimosa ao regresso do infante de Viena. Não admitia o seu retorno ao país e via traidores em todos aqueles que defendiam o regresso do filho de Carlota Joaquina. Falava alto, acusava com despeito, desconfiava. Escrevia todas as semanas longas e exaltadas cartas ao imperador, alertando-o para o perigo do irmão e pedindo-lhe uma nova saída para o caso português. Oferecia-se para seu fidelíssimo general e acenava-lhe com um destino de grandeza numa Península unida debaixo da sua coroa imperial e conquistada para a santa liberdade pelos fogosos exércitos portugueses.

– Este Saldanha cansa-me ­– queixava-se ele ao barbeiro, quando recebia a carta semanal do ministro português.

– Com suas doidices? ­– perguntava-lhe sempre o prático.

– Não, seu Plácido. Esse doidão importuna-me com sua letra miúda e nervosa, mal desenhada – replicava-lhe de bom humor o imperador.

No fundo nutria simpatia por aquelas fantasias loucas, aqueles sonhos pomposos de grandiloquência, que lhe lembravam os momentos épicos de Hogendorp no instante revoluteante da fundação da República batávica. Assim como assim, todos os seus conselheiros brasileiros o instigavam a ser prudente, a esperar muito do casamento do irmão com a filha, a desistir de quimeras e caprichos, a deixar na prateleira aventureiros palavrosos e cheio de perigo.

Saldanha, em Lisboa, descoroçoado com as evasivas do imperador, via a situação escapar-lhe. O governo em peso, o embaixador inglês, os legados das potências continentais, a própria regente, todos, salvante Saldanha, diante do proselitismo audacioso da rainha e dos seus seguidores, defendiam uma solução de compromisso, ao centro, que não excluísse ninguém. Queriam entregar a regência da coroa a Miguel até à maioridade de Maria da Glória, fazendo regressar de imediato o infante de Viena, sem porém baratear a Carta, que estava jurada por todas as partes, e as Cortes, que estavam eleitas e paulatinamente reunidas. Isolado, foi Saldanha despedido do ministério. Ninguém precisava dele para nada; tornara-se aos olhos de todos um estorvo com as suas teorias conspiratórias e um incómodo com os seus devaneios iberistas de paladino da liberdade.

A sua queda foi estrondosa, como não podia deixar de ser num general que obrigara a regência a jurar a Carta em Julho de 1826, quando ninguém a queria em Portugal. Tinha naturalmente consigo uma parte importante do exército, que o tomava por intangível, e congregava à sua volta, mais por ensejo de serviço que por afinidade de ideias, o velho partido constitucionalista, radical e plebeu, que fizera no Porto a revolução de 1820 e se opusera depois da morte do velho rei João às manobras da rainha. Quando a notícia da sua demissão correu, percebendo a urgência do golpe, esta facção juntou os seus correligionários nas duas grandes cidades do litoral, Lisboa e Porto, e saiu para as ruas, de grandes archotes acesos nas mãos, aos gritos ferozes e intimidantes, com a face banhada de luz, os olhos arregalados pela ânsia, a testa franzida de preocupação e fúria.

– Morra DomMiguel – grunhiam uns.

– Viva Dom Pedro – latiam outros.

– E viva Saldanha – clamavam todos em uníssono.

Mas na verdade, salvando estas graçolas, ninguém estava interessado em Saldanha. Nem a regente Isabel Maria se enamorou dos seus ultimatos, nem Pedro se mostrou temeroso da sua força, nem a rainha aproveitou as archotadas que percorreram as ruas de Lisboa e Porto durante duas noites para lançar pela calada as suas negras e caninas hostes num reencontro que bebesse o sangue dos últimos vintistas portugueses. Isabel Maria obedecia às ordens do irmão brasileiro; este acreditava nas sensatas indicações dos seus prudentes conselheiros; a rainha, por seu lado, o mais que desejava era o rápido regresso do filho querido de Viena. As archotadas cairam assim na indiferença dos que mandavam e na graça dos que andavam anónimos pelas ruas. Não restava a Saldanha senão voltar costas ao país e partir para o exílio inglês, safando-se a tempo do regresso do infante. E com ele embarcou o que ainda restava por cá do partido vintista radical.

Em Viena chegou por fim a Miguel o dia do seu regresso. Voltava um nada mais civilizado do que fora. A corte de Francisco I, tão protocolar, com Metternich por guia, dera-lhe uma descorada ideia do que por então se pedia a um príncipe cristão na Europa. Até aí, não tinha a mínima impressão do que isso fosse, ele que crescera bravio e fero por entre a molecada da Tijuca e os caipiras ferozes das ilhas da Guanabara e sempre pensara que governar era como dar cachaporra nos machos desembestados. Mesmo nos momentos que seguiram ao pronunciamento de Vila Franca, em que assumiu o seu primeiro cargo público, tivera dificuldade em substituir o casaco de baetão verde, as botas altas de picador, o boné amassado, o lenço de campino e o calção preto coçado pela farda apalmelada de generalíssimo. A sua popularidade ganhara-a em Portugal nas tabernas ou nas arenas, de casacão surrado e barba por fazer, acamaradando com os fadistas e os toureiros e empurrando aos risos para os palheiros de Queluz ou do Ribatejo as moças roliças e quentes do campo. Agora vinha mais reservado, mais composto, com ideias de protecção e protocolo, convicto do seu destino real e da sua alta estrela de aristocrata na roda das melhores famílias europeias.

Desembarcou em Lisboa em finais de Fevereiro de 1828. Estava um dia ardente de Sol, com um céu azul de meter inveja aos olhos nórdicos. As árvores mostravam os primeiros rebentos, a vegetação saía vigorosa e esplêndida da terra, as aves gritavam tumultuosas as primeiras alegrias do cio. Ao longe, começaram a repicar com entusiástico fanatismo os sinos das velhas igrejas de Lisboa; corria um fluido doce na brisa que vinha dos lados da terra; uma exalação de perfumes e de incensos beatos parecia pairar por cima dos telhados vermelhos das casas da cidade.

No cais, à sua espera, com cara de bestas e olhos gulosos, estava a rapaziada que o João Santos lhe dera por companhia no regresso do Brasil e com a qual fizera a desordem de Vila Franca e virara Lisboa do avesso nos dias crus da Abrilada. Mal os viu, cavalares e soezes, prontos a estrangulá-lo num abraço sincero, desistiu logo dos regalos e das mesuras de Metternich e ansiou de boa vontade pela disposição antiga, pela grosseria ardente que tantas horas de encanto e entusiasmo lhe haviam dado.

A mãe, que também viera esperá-lo, enfiada no seu negro e sujo roupão, viu a cena à distância e percebeu num repente o que se passava. Estava melancólica mas sagaz, tocada por estranhos afectos e pressentimentos. Aquele regresso do filho pródigo a casa era para ela um quadro bíblico; comovia-a, dava-lhe misteriosos pensamentos, revolvia cenas esquecidas do seu passado, acordava nela para o futuro esperanças sem limite. E assim comovida e retirada, encardida e escura, debaixo dum céu azul, sem nódoa, calada e hierática, ela fazia naquela história feliz de estátua de pedra. Parecia uma pinta negra no céu azul, um oráculo antigo, escondendo no seio segredos cheios de sangue e lágrimas.

– É bravo e duro que precisamos cá de ti – sussurrou-lhe a mãe ao ouvido, quando o recebeu nos braços e o apertou contra o seio bambo.

E bravo e duro se mostrou de entrada ele, não desiludindo as expectativas dos partidárias nem as esperanças da mãe. Mergulhou fundo na atmosfera marialva do seu passado vivo. Regressou às touradas e às vielas onde se cantava o fado; voltou a beliscar as carnes rijas das saloias de Queluz ou de Sintra; pegou na rabiça do arado e gritou aos bois quando eles se afastaram da leiva; chicoteou os machos teimosos; domou os cavalos bravos; exercitou os músculos com pedras e sacas; visitou os conventos e ouviu os frades; apareceu de boné sujo e surrão a tiracolo nas aldeias dos arredores de Lisboa; fez-se entender pelo povo, que viu nele um anjo salvador, mas um anjo simples, humano e plebeu, diferente de todos os outros, um anjo cuja linguagem todos entendiam e por isso todos sabiam venerar.

– Entre o ladrão do Brasil e o menino loiro, pode lá haver dúvida em que há-de ser  rei – exclamava o povo.

E Miguel, levado pela onda de entusiasmo do povo que orava todos os dias por ele, pelos discursos dos frades que alvoroçados o designavam por Messias salvador, pela mãe que se revia vaidosa na sua crescente popularidade, deu de barato os compromissos que fizera em Viena, junto do sensato Metternich. Não queria a Carta nem o casamento com a sobrinha. Tanto lhe dava que a Carta estivesse jurada e que Maria da Glória fosse neta do seu antigo anfitrião. Não queria uma nem outra. Foi o delírio em Lisboa. Os frades bateram palmas, vieram para as ruas, rabulões e faladores, abanar as batinas, polvilhar os ares de farinha, comer doces, beber a água fresca de Caneças que se vendia nas esquinas, dar vazão à língua, à alegria e ao alívio. Acreditavam que a Europa estava de vez pacificada e o seu futuro garantido. Desde que Saldanha voltara costas ao país, que Lisboa andava de todo limpa de constitucionais. Era como se não existissem mais; não se via uma única casaca azul nas ruas, um único toutiço jacobino, uma única gravata alta. Fizeram-se missas de gratidão na Sé e rezaram-se responsos de gala em todas as igrejas de Lisboa. Os saloios dos arredores passavam os dias entre a porta do Martim Moniz e o Rossio a vender bolinhos de erva doce, copinhos de jeropiga, fava-rica, colares de pinhão, tremoço e figo seco. A cidade confraternizava de cacete na mão e terço ao pescoço, inebriava-se com o azul da Primavera, dizia grosserias, festejava o regresso do rei.

– Nem Dom Sebastião se regressasse pelo Tejo a Lisboa num dia de nevoeiro teria espera assim festiva e regresso assim amado – diziam os frades de S. Francisco.

–  Nem Jesus Cristo, quanto mais o Dom Sebastião ­– replicavam fanfarrões e maliciosos os de S. Domingos.

E a 25 de Abril, depois de se terem dissolvido em Março as Cortes da Carta, reuniu-se no Terreiro do Paço uma multidão para aclamar o infante rei. Estavam lá os comerciantes, os regimentos da polícia, os vereadores da Câmara, os frades dos conventos, as colarejas das vielas, os saloios dos arredores e alguns regimentos do exército. Era dia de anos da rainha, dia privilegiado de conspirações, e a aclamação improvisada do filho era a prenda que lhe davam. A aclamação pegou e fez furor. Em poucos dias correu o país e regressou a Lisboa. Em todas as bocas andava o nome de Miguel como se fosse o dum salvador. Era o milagre vivo, de quem tudo se podia esperar. E a 7 de Julho, na Ajuda, perante os três estados do reino reunidos ao modo do velho regime, Miguel fazia o seu juramento de rei absoluto, eliminando de vez a Carta e os conluios do irmão brasileiro, para quatro dias depois voltar a ser aclamado em Lisboa no meio da euforia popular. Iniciava o seu reinado aos ombros dos frades e das regateiras, num cortejo de figurões, carnavalesco e grotesco, cujo chefe era a mãe, com a sua bossa de bruxa, embrulhada no seu sebento roupão de feltro escuro, seguida logo atrás pelo seu amante, João Santos, de capa verde, chapéu de três bicos, meia preta e sapato de fivela.

Foi tudo assim de verdade tão simples? Não, não foi. Logo depois da proibição do hino da Carta, que aconteceu em Março, veio o assassínio dos lentes de Coimbra em Condeixa e que foi o trovão, o primeiro relâmpago de sangue da tempestade ulterior. Depois, em Maio, já a improvisada aclamação do infante no dia de anos da rainha tivera lugar, vieram as sedições liberais em Aveiro, no Porto, no Algarve ou em Almeida. O Porto, que os frades consideravam o refúgio da hidra constitucional, a gruta escura que vomitava os vermes repelentes do constitucionalismo, levantou-se contra o infante e a sua improvisada aclamação no Terreiro do Paço. A atmosfera da cidade continuava a mesma que fora no tempo de Manuel Fernandes Tomás e na época mais recente de Saldanha. A exaltação constitucional estava viva e contrastava com o clima ultramontano que se vivia em Lisboa. Os regimentos da cidade, preparados por Saldanha para fazer a regência jurar pela força a Carta, permaneciam fiéis aos princípios em que haviam sido educados; os burgueses queriam a Carta e as ordens do imperador cumpridas. Davam de barato Miguel e gritavam de entusiasmo pela rainha.

– Dona Maria II, nossa senhora e rainha ­– gritavam os jovens leões que frequentavam os cafés da praça da Cordoaria ou os botequins das imediações do teatro de S. João.

Adensou-se o clima de insurreição do Porto. Chegaram à cidade os jovens fogosos que alimentavam na cidade do Mondego o espírito radical e jacobino de 1820 e que haviam feito pouco antes a sangrenta façanha dos lentes. Vinham cheios de ideias radicais e dispostos a dar a vida pela Carta. Era o batalhão académico, onde pela primeira vez se viam os irmãos Passos, Manuel e José, e José Estevão. Constituiu-se uma Junta, no género daquelas que se haviam formado no tempo do levantamento contra os Franceses de Junot e que funcionavam como governo paralelo. Que queria a nova Junta do Porto? O que os burgueses da cidade e os militares sediciosos pediam: a restauração da Carta, o afastamento de Miguel, a aclamação da rainha. Depressa o poder da Junta do Porto cresceu. Na segunda metade de Junho, a Junta governava o Minho, a Beira, até ao Mondego, e tinha por si guarnições militares da Beira Interior e da Estremadura. Por fim, na parte final do mês, até a Madeira pedia adesão.

Em Lisboa, preparava-se o juramento do infante diante dos três estados do reino e a aclamação popular.

– O Porto é uma caverna sem luz – disse o padre José Agostinho de Macedo, um dos foliculários mais indecorosos da nova situação, quando lhe falaram dos casos do Porto. – Em pouco mais de nada tropeçam todos uns nos outros.

Não se dava muito crédito às notícias que chegavam do norte. O entusiasmo de Lisboa pelo infante era grande e seguro; grande porque unânime, seguro, porque contagiava o país. Ninguém acreditava que a Junta representasse mais do que o Porto e uma parte do Douro. Nos outros lugares, tirando a tropa dos regimentos de infantaria que permanecia fiel a Saldanha, a adesão era irrelevante. Os civis, o povo, eram todos pelo infante de Lisboa. Em todas as igrejas os frades inflamavam-se contra o ladrão do Brasil, tomavam a defesa do infante loiro, arrastavam atrás de si as vozes das famílias. Nas bancas de comércio insultava-se o chefe de Estado do Brasil, comparando-o a Napoleão e chamando-lhe rei dos macacos e imperador dos crocodilos; por todo o lado, os que teimavam em ser fiéis às ordens do novo Napoleão eram avaliados como mais perigosos que Junot, Soult, Massena. O povo que agora se enfebrecia contra Pedro e os seus partidários era o mesmo que antes crescera contra os Franceses.

O Alentejo e Trás-os-Montes, levantados pela marquesa de Chaves, eram absolutamente fiéis ao arcanjo loiro; nem os soldados e os oficiais dos regimentos ficavam de fora. Outras áreas, na Beira interior, na Estremadura, nas ilhas, seguiam-lhes o exemplo. Os milhares de emigrados da revolta absolutista de Trás-os-Montes de 1826 estavam de regresso ao reino e engrossavam a nova situação. Até Beresford, o careca que fizera de Portugal um protectorado da Inglaterra e mandara para a forca o grão-mestre dos mações Portugueses, Gomes Freire de Andrade, foi convidado a regressar. O miguelismo, que nascera hesitante na poeirada quase estival de Vila Franca, impunha-se forte, vigoroso, com um ímpeto impossível de conter. Era um caudal largo, impetuoso, alimentado por muitos e variados cursos. A Junta, do outro lado, para bem dizer, não existia, ninguém dava por ela. Ou não existia, ou era uma inutilidade.

Mas a rainha tomou a sério o assunto do Porto. Viu nele uma oportunidade de enxovalhar o filho do Brasil. Não lhe perdoava o papel que tivera na crise que se seguira à morte do rei; demais, o seu espírito atrevido e irregular não podia viver sem um ódio. Reuniu de imediato os generais que acompanhavam o golpe do filho e estudou com eles um plano de guerra. Cortar as ligações entre os quartéis dos revoltosos e o Porto, isolar a cidade do Douro, aprisionar os regimentos do Cartismo e cair depois sobre a Junta, não deixando pedra sobre pedra, eis o plano da rainha e dos generais. Queriam uma tempestade; queriam trovões; queriam uma guerra fácil que aliviasse de vez o ar. Esfregavam todos as mãos, porque aquilo para os militares era um passeio, um pulo quase sem riscos, e para a rainha o seu divertimento preferido. Preparavam uma tragédia a rir. Eis então mais algumas cenas tristes e fúnebres da história dos Braganças.

O comando foi entregue a Álvaro Xavier da Fonseca Coutinho e Póvoas, um militar de sessenta anos, que assentara praça no tempo da loucura de Maria I, no início da regência do seu filho, em 1792. Desertara da Legião Portuguesa do marquês de Alorna e fizera as campanhas de Beresford nas guerras peninsulares. Habituara-se à crueza e ao terror da guerra; era o homem indicado, dizia-se, para uma campanha que se queria veloz e sangrenta.

– Ó Póvoas, você é o homem certo para tomar a dianteira desta campanha – disse-lhe descontraída a rainha à despedida. – Faça-me como no tempo dos Franceses, mutile, enforque, estrangule, crucifique, empale, chacine. Não deixe um mação vivo no Porto; use azeite a ferver, fogo, serrote, punhal, machado, pregos, martelo, maça, tesoura, podão. No fim ponha fogo naquilo e reduza tudo a cinzas.

Calou-se por um instante. Os seus olhos brilhavam mais, à luz daquelas labaredas. Depois, como Póvoas permanecesse em silêncio, rematou com uma casquinada rota e malévola.

– O Porto é uma caverna escura, de pedra, com um dragão peçonhento a viver lá dentro. É dar cabo dele e tapar-lhe a cova para sempre.

O Póvoas perfilou-se em sentido, fez a continência à rainha, não pestanejou. Não estava ali para discutir as palavras da rainha mas para cumprir obrigações.

– Pode ser que o caipira brasileiro, perceba o que por cá lhe guardamos caso decida vir de passeio à Europa ­– lembrou ainda a rainha.

Eis o momento mais trágico, mais negro, mais repugnante da vida sinistra de Carlota Joaquina! É o instante em que ela se despede à saída de Lisboa do Póvoas, nos finais de Maio de 1828. Que palavras atrozes! Que ira infernal! Que riso satânico! Que veneno certeiro! Nunca como neste instante ela nos parece uma ave tétrica, de rapina, dando pios sinistros nos galhos secos da pobre História de Portugal. Bate as asas sujas, encurva a garra adunca do nariz, saltita, pia, abana as ferozes serpentes do cabelo, e tudo isso ao cheiro da carne morta e do sangue fresco que se avizinha. Ó rainha cruel, ó deusa sanguinária, ó besta ladrarora que pediste a rir uma guerra civil e lançaste os teus dois filhos um contra o outro. É este o teu momento mais monstruoso, ó ser horrendo! Que medo fantástico, que pavor gelado e fatal tu me inspiras, a mim e a todos os que conhecem a tua história. Da tua alma horrível de megera escanifrada ficou dito sentencioso, que ainda há pouco se ouvia como aviso sério: mulher magra, mas não de fome, foge dela que te come.

Entretanto em Inglaterra os emigrados liberais planeavam o regresso ao reino, para apoiar a Junta do Porto e descer com os seus exércitos até Lisboa. Aí esperavam depor o usurpador e restabelecer a Carta. Ninguém porém se entendia. Dum lado estavam os aristocratas, desconfiados e prudentes, com Palmela ao comando, e do outro os soldados, retóricos e sonhadores, com Saldanha à frente. O desentendimento entre Palmela e Saldanha era total; o que um tinha de estudado, de matreiro, de reticente, o outro tinha de espontâneo, de sincero, de aventureiro. Assim, o que um desejava era sempre recebido com evasivas pelo outro. Saldanha fantasiava batalhas e proezas, enquanto Palmela, dissimulando as preocupações, falava de coisas práticas, números, dinheiro, apoios, base da acção, dizia ele com o seu sorriso tortuoso e o seu olhar vivo e videiro.

Finalmente, ao cabo de muita balbúrdia, de muito azedume dum lado e doutro, conseguiram pôr-se de acordo, reunir trinta homens e partir para o Porto a bordo dum vapor fretado em Plymouth, o Belfast. Palmela ia à cabeça da expedição; era o mais velho, o mais experiente, o mais graduado, antigo ministro de João VI, homem de confiança do imperador, que o fizera seu embaixador em Londres, protector e regente em nome de Maria II. Era ele a autoridade máxima entre os emigrados políticos Portugueses. Estávamos em meados de Junho, fazia bom tempo, as viagens eram amenas, havia dinheiro, muito dinheiro, o dinheiro que o Brasil estava disposto a empregar na restituição da coroa de Maria II, e nem Saldanha nem Palmela queriam passar por traidores à rainha e à Carta. Saldanha e o seu partido, além duma garrafeira bem fornida e variada, levavam a consciência tranquila; Palmela e a sua facção, não menos sossegados de consciência, seguiam, com o dinheiro brasileiro aplicado no conforto das cabines e na provisão de charutos, lunetas, toalhas e sabonetes perfumados.

Quando chegaram às águas tranquilas do Douro, as tropas constitucionais da Junta, que eram sobretudo os antigos regimentos da guarnição do Porto, cerca de dez mil homens, retiravam diante do exército de Lisboa. Póvoas reocupara a Beira Litoral, a norte do Mondego, e estava a passar sem dificuldade a linha do Vouga, empurrando para norte a tiro de canhão e carga de baioneta o exército da Junta. Palmela achou melhor não desembarcar durante muito tempo. Foi a terra receber de corrida as honras da Junta e escusou-se ao resto, desejoso de regressar para a segurança do vapor. As tropas do Póvoas continuavam a empurrar para norte os regimentos do Porto; em dois ou três dias, estes seriam obrigados a entrar dentro dos muros da cidade. A situação fazia-se de momento a momento mais aflitiva. Palmela, que fora ministro de João VI e se dizia agora protector de Maria II, encolheu-se preocupado e avisou.

– Entregue-se o exército ao Póvoas e embarque a Junta conosco para Inglaterra.

O exército da Junta, comandado por Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, futuro marquês Sá da Bandeira, recusou a humilhação de se entregar. Saldanha, que lhe levara com Pizarro a ordem de Palmela de capitulação, regressou ao Porto, onde lhe disseram que Junta e emigrados se haviam já acomodado no Belfast. Foi a bordo falar com Palmela e este deu-lhe ordem de embarque e partida. Enfureceu-se. Recalcitrou, mas não se atreveu a desobedecer-lhe. E teve também ele uma razão de monta para o não fazer: a garrafeira do Belfast, que fora entretanto renovada com os vinhos generosos dos armazéns de Gaia. E a 3 de Julho, quando os destacamentos do Póvoas transpunham as primeiras portas do Porto e entravam de roldão pelas ruas da cidade, os emigrados Portugueses partiram como tinham vindo. Palmela no salão jogava voltarete e Saldanha no refeitório brindava às suas fantasias, Regressavam ambos de novo, pelo calmo e azul mar de Verão, às verduras inglesas, como se nada tivesse acontecido. Faziam de conta que aquela viagem não passara duma excursão de recreio. Tranquilizavam o espírito e tonificavam o corpo.

– Vamos precisar no futuro de finura, muita finura ­– repetia Palmela para os seus comparsas, enquanto as caldeiras do Belfast trabalhavam tranquilamente.

No Porto, Póvoas viu-se diante duma cidade deserta. O exército de Sá Nogueira, ajudado agora por Pizarro, homem de Saldanha, batera para o Minho, recusando capitular como combater. Os últimos embates, os da linha Vouga, haviam sido desastrosos; para se não perderem de todo, procuravam agora fugir com as armas e os feridos em direcção da fronteira galega. Sá Nogueira era o general dum exército fantasma, espectros em fuga, esfarrapados, sujos, famélicos, cheios de medo, quase sem víveres e com os feridos a agonizarem em improvisadas macas de andrajos. Temia-se qualquer reencontro com as forças miguelistas; tudo o que se desejava era passar a território seguro. Não se entregavam, mas fugiam, prontos a debandar ao primeiro sinal de perigo.

O general miguelista, percebendo a velocidade que o exército constitucional levava, abandonou a ideia de o seguir. Desistia dum combate fácil, mas ganhava uma cidade, ainda por cima limpa, sem dar um tiro na linha das suas defesas. Preferiu jogar pelo seguro e tratar da cidade revoltosa e deserta; os comércios estavam vazios, com os taipais de madeira ou de ferro corridos, os cafés fechados, as ruas e as varandas sem vivalma, os portais de madeira cerrados, as janelas forradas de pano, os pássaros domésticos recolhidos. Só se viam bandos de cães a remexerem o lixo, indiferentes ao medo e à suspeição. Póvoas avançou prudentemente até à Praça Nova e aí ocupou a Câmara e mandou os seus homens tomarem conta das vazias casernas saldanhistas. Depois, quando percebeu que tinha a cidade na mão, debaixo de artilharia segura, esteve vai não vai para desencadear a chacina ordenada pela rainha. No último momento, teve mão em si.

– Aclame-se el-rei Dom Miguel nos paços da Câmara e chame-se o povo a festejar – ordenou ele ao exército.

Aclamaram o novo rei e chamaram o povo. Este abriu a medo as janelas, espreitou as ruas, viu as patrulhas de Lisboa com ar pacífico, ouviu as fanfarras festivas da tropa e suspirou de alívio. Alguns, os mais afoitos, desceram às ruas, para verem o efeito da aclamação, outros, mais temerosos, ficaram nas varandas, enxotando aos berros a canalhada para dentro. Pressentiam todos o destino de Sá Nogueira e dos constitucionais. Lastimavam que a história da Junta, com tão grandes empolgamentos, tantas horas de entusiasmo, tanto hino, tanto brinde, acabasse daquela forma triste e soturna, uns num barco à deriva nas águas do grande oceano, outros feridos, acossados como animais selvagens, no meio das serras e dos caminhos, mas tinham todos espírito prático, sangue frio, cabeça no lugar.

– Antes bibos, carago, no meio duma festa, posto que estranha, do que mortos e estropiados, no meio duma chacina ­– diziam os manhosos burgueses do burgo tripeiro.

Eis então como começou o reinado do arcanjo loiro; nem entrou de modo pacífico, nem o seu destino foi depois tranquilo e beatífico. Uma coisa eram os sermões exaltados da Lisboa fradesca e os corsos carnavalescos das vielas alfacinhas, com o João Santos a tocar guitarra e a rainha  inebriada a cantar o fado ou a gritar contra os mações, outra a realidade funesta dos acontecimentos. Os episódios sangrentos da Junta, a exaltação académica e radical de Coimbra, o estado de espírito dos que viviam no Porto, o caso do Belfast, a retirada penosa mas resoluta de Sá Nogueira com um exército de dez mil homens, mostravam que o miguelismo, embora jactante e vitorioso, tinha inimigos poderosos, nem todos determinados, nem todos espontâneos, nem todos honestos, mas ainda assim fortes, largos, preocupantes.

Por isso, o primeiro propósito do governo miguelista foi a repressão. Estava no código genético do movimento e estava ainda na ordem natural dos derradeiros acontecimentos daquele Verão. Já antes, em meados de Junho, enquanto o Póvoas avançava seguro em direcção do Porto, pronto a acabar com a Junta, se haviam enforcado no Cais do Tojo, em Lisboa, com requintes de crueldade, nove estudantes de Coimbra, acusados do homicídio dos lentes de Coimbra, em Março. Três deles, depois de enforcados, foram esquartejados, sendo as mãos e as cabeças pregadas na madeira de pinho das forcas. Depois, quando a Junta do Porto se exilou, o exército de Sá Nogueira fugiu em direcção da Espanha, o rei jurou diante dos três estados reunidos no palácio da Ajuda e o Póvoas regressou a Lisboa com o reino pacificado, desencadeou-se uma sede descontrolada de sangue e de terror. Lisboa estava hebética, encortiçada, sequiosa. O entusiasmo messiânico, a loucura visionária, a alegria popular que o regresso de Miguel despertara na cidade durante a Primavera transformava-se agora na embriaguez duma onda de violência e sangue. À sua frente, de bacamarte a tiracolo, chapéu de abas e roupão sebentos, escarcelas do cinturão repletas de caveiras, cada vez mais feia e suja, desdentada e assustadora, estava a besta ladradora. Era ela que incentivava os padres, era ela que picava os populares, era ela o calor do Verão, o suor pegajoso, a sede escaldante, o ardor insuportável que exigia para seu sossego o refrigério bom do sangue fresco.

Criaram-se tribunais especiais em todo o reino para julgar com rapidez e severidade exemplar os crimes políticos; para que eles pudessem funcionar era preciso, ademais dos juízes, uma polícia disposta a prender e torturar e uma milícia de delatores. O miguelismo entrava pressuroso, irrequieto, decidido a esvurmar fosse onde fosse os restos de constitucionalismo e de cartismo que pudessem ter sobrevivido na sociedade portuguesa à expedição do Póvoas e às purgas da Primavera em Lisboa. O norte do país, foco da rebelião da Junta, teve atenção especial. Escolheu-se uma ala de rígidos magistrados fiéis à nova ordem, prosélitos todos de apertadas medidas para limpar a região, e criou-se com eles uma Alçada própria ao Porto.

– Não façam como o Póvoas – atirou-lhes à despedida a rainha desconfiada. – Estalem as cabeçorras duras dos malhados. Aquilo é alho chocho. Ouviram? Não me desiludam com branduras.

Por uma vez a ouviram e por uma vez a não desiludiram. Essa aglomeração de magistrados pronunciou de imediato milhares e milhares de pessoas, levantou forcas na Praça Nova e na Cordoaria, degredou, prendeu, torturou, matou, enforcou, esquartejou e enviou enfiadas em pau de pinho novo cabeças empalhadas, de olhos vidrados e estupefactos, para os quatro recantos do norte, onde o levantamento constitucional de Maio ganhara adeptos tímidos, Aveiro, Feira, Figueira da Foz e Coimbra. A atmosfera no resto do país era idêntica. Em Lisboa levantaram-se novas forcas, desta vez no Cais do Sodré. O dia da execução foi dia de festa. Os frades rapiocavam de contentes; tinham na mesa capão gordo, vinho espirituoso, gulodices, e tinham sobretudo na cabeça grandes e regalados planos para o futuro, um futuro livre de malhados. Engalanaram-se de pano de seda vermelha as janelas e as varandas das ruas por onde a carreta dos condenados ia passar; houve missa de gala em todas as igrejas da cidade; repicaram os sinos com ar alegre de manhã. Era dia de festa, de solenidade religiosa. As famílias que moravam na rua do Arsenal, no largo de São Paulo, no Corpo de Deus ou na rua do Alecrim sentiram-se privilegiadas. É que podiam espreitar das janelas o sucesso. Fizeram-se convites; receberam-se visitas; pensaram-se versos; gritaram-se brindes ao rei arcanjo; comeram-se farófias e fatias de pão-de-ló; trincaram-se tremoços, cuspiram-se cascas, beberam-se copinhos de vinho de Palmela e por fim, ao cair da tarde, com dichotes negros e tesos, de humor grosseiro e cru, bem ribatejano, espreitaram-se os infelizes a oscilarem de cabeça quebrada e pés encolhidos no patíbulo.

As prisões encheram-se num repente como colmeias de abelhas. Todos os dias se prendia gente. Fulano porque acompanhara em Junho de 1821 o cortejo do rei até às Necessidades com cartola de roseta azul e colarinhos altos, próprios dos democratas pé-de-boi; sicrano porque tocara fagote numa filarmónica constitucional nos bailinhos que se deram quando o rei jurou a Constituição; beltrano porque aplaudira a atitude do rei quando decretou o exílio do infante; geltrano porque fora visto de casaca de briche no Verão de 1827 quando Saldanha caiu do ministério. Improvisaram-se meirinhos e escrivães; arregimentaram-se carrascos prontos a esticarem as cordas das forcas e a torturarem nas salas; apareceram das profundas legiões de guardas dispostos a vigiarem esse novo inferno, que tinha duas estações principais, o Limoeiro, no coração das vielas lisboetas, com celas de pedra e grades de ferro, e a fortaleza de S. Julião, uma grande estrela de pedra, ziguezagueante, vazia, na barra do Tejo e na entrada do grande oceano, onde era possível armazenar milhares e milhares de presos. Surgiram então, saídos das fileiras do exército do arcanjo loiro, torcionários famosos, como Joaquim Teles Jordão, que assentara praça em 1796, fizera a guerra peninsular com Beresford, aderira entusiasticamente ao filho de Carlota Joaquina na poeirada de Vila Franca, chorara sangue com o exílio do infante, vivera depois a euforia do seu regresso e agarrava-se  agora à sua vitória.

Era uma figura atarracada e feia, com uns olhos tortos e assustadores, que fizera toda a sua carreira no meio da estupidez soez das casernas militares e que só sabia medir a vida pelas chacinas brutais dos campos de batalha.

– Não sobrará um mação para o obrigar a sofrer seja o que for – proclamava ele em diatribes inflamadas. – Está são e salvo no meio de nós.

A rainha percebeu naquela figura bruta um correligionário de confiança. Deu-lhe o comando da fortaleza da Barra, onde se acumulavam mais de dez mil presos, entre eles o célebre Borges Carneiro, um dos patriarcas da liberdade de 1820 e que lá ficou enterrado como tantos outros nas celas húmidas e miseráveis. Debaixo da sua orientação, o regime prisional fez-se abjecto. Os presos em vez de água bebiam uma zurrapa azeda, onde entrava vinagre e azeite, e em vez de comida comiam uma mixórdia de sangue e carne crua, a mais das vezes podre e esverdeada. Dormiam na pedra fria das celas, sem roupa, sem catre, sem balde sequer onde pudessem urinar e defecar. O chão onde se deitavam era uma lama asquerosa e mal cheirosa, que eles empurravam com os pés descalços para um ralo que havia no ângulo da parede como chão. Naquele estado, vinham buscá-los todas as tardes para irem ouvir missa, numa capela toda revestida de vermelho vivo e azul escuro, as cores do miguelismo. Davam-lhes um lençol para se limparem e lá iam em fila, com o lençol deitado nos ombros, pelos corredores intermináveis da fortaleza até chegarem ao átrio da capela, onde lhes davam um cobertor para se taparem. No fim da missa eram obrigados a dar vivas ao loiro arcanjo salvador, a cantar os hinos vários do movimento, sobretudo “O rei chegou”, a abjurar da filha do imperador. Os que recusavam eram separados da multidão e levados nús para as traseiras da fortaleza onde eram espancados a cacete e pontapé pelos homens de mão do brigadeiro Teles Jordão. E o que se passava em Oeiras, passava-se em Cascais, em Peniche, em Aveiro, na Foz do Porto, em Elvas ou em Faro, as principais enxovias onde se amontoavam em condições desumanas os presos acusados de não estarem com Miguel.

A violência portuguesa, pintada a vermelho e a azul escuro, não foi a obra dum Robespierre austero e rigoroso, castigador da corrupção e do vício, ou dum Napoleão vingativo e sanguinário, mas o resultado duma rainha tenebrosa, astuta, mais feia do que o Mafarrico, mais antiga do que as origens da vida, possuída pela sede do crime e da maldade, tocada por um instinto vital de destruição, um ser mitológico, uma deusa do outro mundo, uma quimera de asas e bico adunco, cabeça adornada de serpentes, que veio pousar nos ramos da História de Portugal. Adorava matar, destruir, estragar; tirar a vida era para ela a suprema delícia, o superior dom da sua vida. E tudo o que desejava era propagar em ondas contínuas esse seu modo de ser, pois quanto menos retraimento houvesse mais sangue corria. Viu no ardor prosélito que se desencadeou à volta do filho a possibilidade de excitar um banho de sangue colectivo. E decidiu não falhar o ensejo, tão sereno e lógico ele lhe pareceu.

– É agora ou nunca, João – dizia ela ao amante, com as serpentes do cabelo ondulantes, gulosas, viperinas, de língua de fora e olhos brilhantes.

O Ramalhão era uma brincadeira ao pé daquelas touradas. Todas as maldades do seu passado não passavam afinal dum Carnaval de trazer por casa, que assustava os saloios de Sintra ou de Cascais, os moleques do Corcovado, da Tijuca ou do Maracanã, mas que estava longe de lhe proporcionar o prazer máximo daquela histeria colectiva em que se estava a transformar o país. Que pássaro sinistro! Que megera desnalgada! Que piar tão tétrico! São tão arrepiantes os teus pios, ó deusa fraldiqueira, que com eles secaste para sempre os braços da História dos Braganças, trazendo tragédia atrás de tragédia. Foste tu, ó ser perverso e venenoso, a verdadeira responsável pela morte do neto da tua neta, Carlos de Bragança. E foste ainda tu a responsável pela morte em 1829 daquela pobre Maria Francisca Benedita, menina prendada e doce, que havia casado com o príncipe José, e que se afundou horrorizada no seu sonambulismo depois do regresso do sobrinho Miguel. Preferiu morrer num quarto da Ajuda a ter de viver a chacina de sangue que se avizinhava.

E no Brasil, o que se passava entretanto? O imperador assistira indiferente à queda de Saldanha no Verão de 1827. Aceitara a vinda do irmão para Portugal e o seu casamento com a filha Maria da Glória. Sabia que as potências continentais nunca aceitariam uma solução que não metesse o irmão, garante das boas relações de Portugal com a sua política, e desconfiava do espírito aventureiro dum Saldanha armado ao plebeu. Veio depois o regresso do irmão a Lisboa em Fevereiro de 1828 e a sedição absolutista de Abril e Maio. Foi o momento em que o imperador se viu apertado e sem saber o que fazer.

– Dizem por lá que eu sou o Napoleão novo ­– queixou-se ele com ar de troça ao Chalaça. – Que maluquice mais sem juízo.

– Se você é o Napoleão, eu sou o Soult, marechal de França. Ou serei antes o calunga do velho Hogendorp? – replicou o Chalaça com gosto.­

Depois os acontecimentos do Verão vieram confirmar em toda a linha a nova situação política do país, primeiro com a derrota da Junta constitucional do Porto, o fracasso da expedição dos emigrados, a aclamação do irmão diante dos três estados do reino, a prisão dos simpatizantes da causa da filha, o reconhecimento de Miguel pelas potências europeias. A Inglaterra, que fora até aí a principal interessada em garantir a situação de Maria da Glória, mudou de política com o governo conservador do duque de Wellington e reconheceu ela também o reizete absoluto. De todos os pontos do país que em Maio haviam aderido ao levantamento da Junta do Porto, sobrava apenas parte da ilha da Terceira, nos Açores, onde Diocleciano Cabreira, irmão de Sebastião Drago Cabreira, um dos protagonista da revolução de 1820, aguentara com os Caçadores 5 as investidas miguelistas. Tudo o resto se desmoronara. A Madeira, que fora uma esperança, até pela situação estratégica, a caminho do Brasil, restaurara o governo absolutista. Por seu lado, o exército de Sá Nogueira e do coronel Pizarro fora ficando pelo caminho, vítima do desânimo, da doença, das guerrilhas ultramontanas que o acossava com trabucada grossa. Sobraram apenas dois mil e quinhentos homens, que, depois de centenas e centenas de quilómetros a corta-mato, chegaram famélicos e esfarrapados à Corunha, onde conseguiram embarcar no fim de Agosto para Inglaterra em condições miseráveis.

– Que porcaria! ­– não pôde deixar de exclamar Palmela, lavado e perfumado, de lenço de renda encostado às narinas, quando viu desembarcar em Portsmouth as sobras do exército constitucional e lhes sentiu, sem se aproximar, o cheiro nauseabundo.

Tinham vindo entalados nos porões de barcos que transportavam vinho e cavalos, que era o que de mais barato se encontrara na Corunha. Pareciam um bando de mendigos, descarnados, quase nús, as barbas até à cintura, os cabelos desgrenhados e piolhosos, os olhos ramelosos e piscos de não verem luz há muitos dias. Palmela, gerindo a fortuna que o Brasil decidira aplicar na restauração da sua princesa, alugou-lhes com maus modos um velho e destelhado armazém em Plymouth e lá os arrumou como se fossem barricas de vinho. Até os cavalos com quem embarcaram na Corunha tiveram melhor sorte do que eles, com tratadores, banho, pêlo cortado e pasto fresco.

No meio deste descalabro, em que apenas se salvava o insignificante episódio da Terceira, o imperador só viu duas saídas. Por um lado enviar a filha à Europa, dando-a a conhecer às cortes europeias, e por outro procurar de imediato esposa numa das grandes famílias europeias, criando no velho continente apoios para as suas aspirações e para as da filha. Começava a levar a peito aquele braço de ferro com o irmão e a mãe. A vaidade, a prosápia, a autoridade teimosa do seu feitio ressentiam-se muito daquela desfeita. Ensaiara uma solução de compromisso, em que tanto estendia a mão ao irmão e à mãe como satisfazia o seu desejo de brilhar entre os homens de ideias avançadas. O irmão e a mãe infamavam-no, cuspiam-lhe na cara, humilhavam-no, riam-se dele, deixavam-no à beira duma crise de nervos.

– Safados! Cachorros! Meto o pau neles, ai meto! ­– exclamava zangado, furioso, fora de si, sempre que se lembrava do que se passava por Lisboa.

Seguiu Maria da Glória para o seu périplo europeu. Era uma menina de nove anos, cabelos claros, apanhados em rolos, que copiavam a moda francesa, pele adiposa, olhos cinzentos, muito límpidos e profundos, pescoço curto, braços roliços, ombros largos e cheios, mãozinhas curtas, gordas, quase balofas. Herdara o corpo desgracioso da mãe, a malograda Leopoldina, e recebera dela um costume calado e reservado, que contrastava mal com a  copiosa e quente exuberância da alma brasileira. A morte da mãe apanhou-a de surpresa, mas ainda assim não a tomou por inteiro como um desastre. O pai, depois da morte do avô, João VI, decidira abdicar da coroa de Portugal na sua pequenina cabeça e isso dera-lhe uma tranquilidade desconhecida, envaidecendo-a. Levou-se muito a sério no seu novo papel de minúscula rainha de Portugal. Ganhou novos hábitos, encenou poses diante do espelho, estimou-se muito acima de tudo o que a rodeava, e até do que realmente valia, sonhou sobranceira com a Europa e com a glória do seu alto destino. Se copiara da mãe as formas apagadas da natureza, tomara outrossim do pai alguma presunção mental e uma afectação interior que só esperava a ocasião para se desenvolver.

Quando chegou a Gibraltar, no princípio de Setembro de 1828, depois de três meses de mar, recebeu as notícias da aclamação do tio em Lisboa e  do início do seu reinado, com as forcas, a derrota de Sá Nogueira, a fuga da Junta, a perseguição feroz a todos os que mostravam sinal de simpatia pela sua causa. Desanimou. Ser rainha era afinal tarefa bem mais triste do que pensara no conforto do palácio imperial do Rio. Sentiu-se desconfortável, fria, perdida na solidão crua daquele penedo careca no meio do mar, com as velas brancas dos barcos ao longe a acenarem uma qualquer saudade magoada e impossível. Não tinha reino nem rota.

– Me estou danando aqui mais do que esperava e queria – exclamou a menina para o seu tutor, o marquês de Barbacena, com as lágrimas escorrendo pela face.

– Isto não vai lá sem briga séria – respondeu este, com ar fechado e colérico.

Barbacena foi obrigado a alterar as disposiçõs com que saíra do Rio. De início, o imperador, confiando à distância que os indícios do regresso do irmão se iriam modificar pela chegada da sobrinha, dispôs-se a enviar a menina para a corte do avô, Francisco I, em Viena. Esperava assim ganhar a confiança de Metternich, que tanto sorria como fazia negaças, e dar um primeiro polimento à filha, que crescera um pouco ao acaso, como já lhe ocorrera a ele e ao irmão Miguel. Agora, em Gibraltar, Barbacena dava-se conta que a Áustria trocava os interesses da princesinha brasileira pela estabilidade política que Miguel assegurava. Barbacena diante deste facto seguiu viagem para Inglaterra, onde estavam Palmela e os emigrados Portugueses que defendiam a coroa portuguesa da princesa brasileira.

Em Inglaterra mandavam os conservadores, capitaneados por Wellington, que conhecia por dentro as coisas portuguesas desde as campanhas das guerras peninsulares. Fora ele que no Congresso de Viena de 1815 falara em nome do rei português, esquecido que este estava num recanto distante do continente americano. Tinha além disso as altas insígnias das ordens militares portuguesas e continuava a ser marechal-general do exército português. Recebeu atenciosamente a jovem rainha portuguesa, acompanhado por Beresford, também ele condecorado com insígnias portuguesas. Instalou-a confortavelmente no centro de Londres e prometeu-lhe um encontro com a família real inglesa. Era um homem fino, educado, que sabia dissimular os propósitos com as boas maneiras. A jovem Maria da Glória, mimada por aquela distinção, encantou-se. Retomou os seus sonhos de menina prendada, reconciliou-se consigo, reencontrou confiança no destino e algum gosto e entusiasmo na vida. Entretinha os dias a receber lições de cortesia, a estudar acompanhada a língua inglesa, a passear nas margens melancólicas do Tamisa, a acolher os emigrados Portugueses, que vinham genuflectir diante da sua pessoa, beijando-lhe a mão e chamando-lhe majestade.

– É uma verdadeira rainha – exclamava Palmela embevecido, travesso, de língua afiada,  quando a via assim seráfica e distante, estendendo a mão pequenina e papuda para a fila de emigrados que genuflectia cheia de reverência a seus pés.

Dois meses depois, em Dezembro de 1828, foi finalmente recebida pela família real inglesa. O rei de Inglaterra, Jorge IV, convidou-a para uma pequena recepção familiar no castelo de Windsor. Ela apareceu acompanhada por Palmela e pelo tutor brasileiro. O rei veio em pessoa recebê-la e abraçá-la ao cimo da escadaria de mármore. Depois levou-a pela mão para a mesa, onde a sentou a seu lado. Ela comportou-se como uma menina europeia, contida, germânica, muito bem educada, de poucas falas e comentários, que impressionou favoravelmente a discreta e muito atenta corte inglesa. No fim do jantar, sob o olhar fino de Palmela, a filha do duque de Kent, Vitória, futura rainha de Inglaterra durante mais de sessenta anos, que tinha a mesma idade da menina portuguesa, levantou-se, pediu autorização a seu pai, Eduardo, irmão de Jorge IV, para se ausentar, atravessou a sala e foi pegar na mãozinha de Maria da Glória, dando uma pequena risada. Maria da Glória, incentivada pelo olhar risonho de Palmela, levantou-se e foi sentar-se com ela num amplo sofá de veludo vermelho que existia num dos recantos do salão. Ali passaram as duas o serão, falando das respectivas casas, do pessoal que as servia, das bonecas que guardavam nos armários ou enfeitavam os seus leitos, dos vestidos que usavam, dos sapatos que mais gostavam de calçar, enquanto os adultos brindavam ao pé do fogão com vinho do Porto e se entretinham a comer os primeiros confeitos de Natal.

– Que jeito tão gracioso tem essa menina – confessou ela essa noite ao tutor, enquanto regressavam ao apartamento do centro. – Papai não havia mais falado dela.

Voltou a menina ao seu dia a dia. Barbacena começava a impacientar-se. Queria uma resposta do governo inglês e um compromisso de Wellington para com a causa de Maria II.

– Se um dia salvou o avô, há-de agora salvar-lhe a neta ­– tinha ele por hábito dizer, fiado de que dali viria a restituição da coroa e da Carta.

Mas o ministro inglês, hábil em evasivas, não deu qualquer saída ao caso. Esquivou-se; por fim, quando percebeu que não podia adiar mais uma resposta, mostrou-se intransigente: defendia o direito divino, não tinha simpatias pela Carta, aceitava, plenamente aceitava, tal como a Áustria de resto, o reinado de Miguel. Quanto à menina brasileira que ali estava não lhe queria mal; antes se afeiçoara ao seu feitio reservado e frio. Estava de acordo que era preciso encontrar uma saída para a sua vida. Só via na verdade uma, o casamento com o tio, rei de Portugal, ficando ela rainha. Mas, e nisto não podia condescender, o casamento havia de se fazer sem a Carta.

Barbacena amedrontou-se; nunca o seu rei, lá no Rio, haveria de aceitar tal consórcio. Dava uma punhada na secretária, gritava que não e se pudesse armava um exército para desembarcar em Lisboa. Wellington, que era educado mas soberbo, e se punha como o homem mais importante da Europa de então, quando ouviu falar de punhada e de gritos, sorriu, voltou costas e foi à sua vida. Deixava aquela gente pulular por Londres, entretinha-os com pequenas entrevistas na sala de entrada do seu gabinete, levava-os até ao quintal, servia-lhes uma aguardente velha de cereais, mas não lhes dava qualquer importância.

Saldanha, que continuava a sonhar com proezas e feitos épicos, quando soube da posição do governo inglês enfureceu-se.

– Eu lhes direi. Vou eu mesmo a Portugal dar cabo daquilo tudo ­– exclamou ele para Barbacena.

Sentia-se em dívida para consigo mesmo. Não conseguia lembrar-se do Belfast sem um vómito, que tanto era a pituíta dos vinhos espirituosos e fortes dos armazéns de Gaia como a sua vergonha de homem de armas. Palmela, pelo seu lado, a braços sempre com as colossais despesas do seu conforto, aproveitou para se livrar dos miseráveis que se acumulavam no pavilhão de Plymouth e que estavam a seu cargo. Fretaram-se quatro barcos, meteram-se lá dentro parte dos esfrangalhados restos do exército da Junta do Porto, deu-se o comando a Saldanha e enviou-se a quixotesca expedição no meio das brumas cerradas do Inverno para a ilha da Terceira, onde entretanto se formara uma Junta revolucionária. Mas Wellington não era cego, quanto mais parvo. Quando os partidários da causa de Maria II se propunham desembarcar em Angra para alimentarem o único caroço de resistência ao miguelismo em território português encontraram pela frente um fero cruzador inglês que lhes deu ordem de retirada. A Inglaterra, reconhecendo o loiro arcanjo, não podia aceitar movimentações revolucionárias a partir do seu território. Saldanha, furioso, fez meia volta, e foi contra a vontade de Pizarro acostar a Brest, na costa continental francesa, indisposto com a Inglaterra e as ilhas.

No Brasil, o imperador punha em prática o seu segundo plano e procurava desesperadamente uma aliança matrimonial na Europa. Precisava de quem lhe valesse em transe tão baixo. A primeira parte do plano passava por se desprender de Domitila, a louca paixão da sua vida, a mulher que o ensinara a gozar como um deus, e que fora a causa da morte de Leopoldina e das suas actuais desgraças, pois tudo lhe fazia crer que a má sina da Áustria para com a causa da filha se devesse mais à morte inesperada da imperatriz do que ao direito divino dos reis. Arranjou assim outras amantes, como Joana Mosqueira, Carmen Garcia ou madame Saisset – Henriette Josephine Clémence –, uma francesinha que aparecera na baixa fluminense com vestidos escandalosos e chapéus floridos, casada com um comerciante francês de tecidos e papéis, com loja na rua do Ouvidor. Entreteve-se Pedro com os seus novos hábitos, dando renovado e mais forte trabalho à sua célebre máquina triforme, de disparo múltiplo e repetido. Amargurava-se ainda assim, e muito, com a ausência da marquesa de Santos, mulher soberba, escaldante como o Sol dos trópicos, insubstituível, que ele contrariado afastara para São Paulo. Suportava porém aquela saudade doida, de dentes cerrados, estômago revolvido, em nome dos seus novos interesses políticos.

Estes mostravam-se difíceis de satisfazer. O nome de Pedro andava maltratado pela Europa, quer pelas cartas azedas que Leopoldina escrevera nos últimos tempos de vida para a irmã Maria Luísa, sua confidente, e que corriam traduzidas em todas as cortes onde se falasse do caso português, quer pela fama de príncipe constitucional, de ideias avançadas, nada concordes com as orientações políticas da Santa Aliança, que pesava sobre o imperador. Assim depois de bater à porta de tudo o que era Casa Real na Europa, e tudo encontrar fechado, teve de se contentar com uma menina de dezasseis anos, Amélia Eugénia Napoleão de Beauharnais, filha de Eugénio de Beauharnais, duque de Leuchtenberg, enteado de Napoleão Bonaparte e um dos inimigos da política de Metternich na Europa central.

– Seu Plácido, minha nova esposa também é Napoleão – confidenciou  ele ao prático, quando teve nota da esposa.

– Um Napoleão de saias, tá visto ­– respondeu-lhe a brincar o barbeiro. – Napoleão nenhum, seu Pedro; ponha mas é no trono um pedaço gostoso de se ver.

– Vi pintura que me mandou o Barbacena. Acredite, é Sol de se ver e admirar. E diz lá o Barbacena na letra que escreveu – O natural é muito superior do representado.

Fez-se o casamento por procuração em Agosto de 1829 e chegou a menina ao Rio em Outubro do mesmo ano. Pedro, receoso e perturbado, lembrando-se dos dias da chegada de Leopoldina, esperava-a no cais. Quando a viu, descansou. Amélia não tinha qualquer parecença física com Leopoldina, que fora a sua maior desilusão feminina. Era uma menina desenvolvida, com uma pele fina e rosada, cabelos cor de mel, um corpo bem proporcionado, lindos e doces olhos verdes, lábios delicados e quentes, que apetecia roçagar e mordiscar ao de leve, respirando aquele hálito sensual e perfumado. Para lhe mostrar que sabia da poda, e quanto lhe agradava aquela compleição, o imperador suspirou de encanto antes de lhe tomar a mão direita nas suas, disposto a deixar nela um demorado beijo. Foi esse o único sucesso de valor naquele tempo negro e depressivo, com o irmão sentado no trono em Lisboa e a filha de regresso ao Rio, com o Barbacena cabisbaixo atrás, depois duma viagem quase falhada à Europa.

O ano de 1830 entrou porém com dois factos novos. Logo em Janeiro chegou ao Rio a notícia de que a rainha portuguesa, Carlota Joaquina, adoecera em Queluz com um tumor no útero e se encontrava agonizante no meio de dores cruciantes, sem que os médicos lhe pudessem valer. Todos a davam por perdida. Ao que se dizia perdera o tino e sossobrara na loucura mais destemperada, sem aceitar sequer confessar-se ou receber a extrema-unção. A todo o momento se esperava a sua morte. Era o seu destino de Locusta maldita, fadada a expiar uma pena eterna, a chamar por ela. Lá foi para o outro mundo, aos gritos, de mãos na cabeça, pernas abertas, atormentar as pobres almas dos defuntos como neste torturara a ferro e fogo a dos vivos. A notícia da sua morte foi recebida com alívio na corte do imperador. A ela se atribuía a responsabilidade directa da situação de calamidade que se vivia em Portugal.

­ – Sabe-se que sem essa cabra, que tinha parte com o Diabo, seu mano Miguel não teria deitado assim a mão ao ceptro ­– disse o Chalaça em conversa com Pedro. – Tudo o que sobra agora saber é se sem ela vai largar aquilo que tão danadamente roubou.

A segunda notícia foi ainda mais brilhante do que o desaparecimento de Carlota Joaquina. Corria que as ideias constitucionais estavam de novo a ganhar terreno na Europa e que se preparava um levantamento em França contra a ditadura feroz de Carlos X. Confirmaram-se os prognósticos e no fim do Verão chegaram ao Rio as primeiras notícias duma revolução em Paris, com forte participação popular. Carlos X, o irmão de Luís XVI, fora corrido e em seu lugar reinava agora um príncipe liberal, amigo das Cartas e das Constituições, o duque de Orleães, Luís Filipe, filho de Filipe Igualdade, o revolucionário que não se importou de votar na Convenção a morte do primo, Luís XVI. As potências europeias não se haviam atrevido a interferir nos acontecimentos, preferindo a distância e a cautela. Corria a ideia que qualquer precipitação atiçaria um fogo de grandes dimensões. A agitação revolucionária, que tivera por centro Paris, alastrara a partes importantes da Alemanha, dos Países Baixos e da própria Áustria, obrigando a um retraimento das políticas repressivas. Até a Inglaterra, muito ciosa do direito divino dos reis, sobretudo no que ao continente respeito dizia, mostrou-se, pela voz de Palmerston, benevolente para com a nova situação francesa.

No meio desse banzé, dormindo ao relento nas barricadas das ruas de Paris, brindando aos Orleães nos bistrots de Nantes, oferecendo-se para marchar para as Ardenas, mostrando-se camarada com Lafayette, estivera a bigodaça fera de Saldanha e a sua esfarrapada rapaziada portuguesa, que encontrara assim, mesmo a calhar, um modo de vida e, mais do que isso, um rendoso emprego ao serviço da nova casa reinante francesa.

– Olha lá – dizia Saldanha para o coronel Pizarro – o que perdíamos se tivéssemos caído na tolice de ir para a basbaqueira de Portsmouth beber cerveja e soprar no carvão o fumo espesso e melancólico dos charutos. ­

No Brasil, o acontecimento caiu a gosto. Um rei constitucional em Paris era um evento de monta, uma festa para todos aqueles que se opunham às doutrinas da Santa Aliança. O caso mudava a figura da política europeia, criando uma nova realidade. Aquilo que até aí fora adverso a Pedro, arriscava-se a partir de agora a sê-lo para Miguel. Ainda para mais, este perdera o apoio da mãe, uma bruxa capaz de virar de avesso o mundo e cujos poderes eram tão insuportáveis como insuperáveis. Sem os seus feitiços, sem o sopro diabólico e venenoso da sua boca, acreditava-se que o miguelismo ia murchar e começar a tremer.

– Seu mano amanhã será pior que retirante do Sertão, vadio e fedorento – dizia-lhe entusiasmado Francisco Gomes da Silva, o Chalaça.

– É, seu Gomes – respondia-lhe o imperador. – Lá pela Terceira aquilo começa a ficar ruim para ele.

Com efeito, a Terceira mostrava-se um foco de rebelião anti-miguelista inexpugnável. Na Primavera do ano anterior, quando as primeiras notícias da doença de Carlota Joaquina começaram a correr com preocupação na corte de Queluz, Miguel achara que o melhor remédio que podia dar à mãe era acabar de vez com esse ponto minúsculo da agitação constitucional em território português.

– Limpe-se a ilha de malhados, levantem-se forcas em Angra, como se fez na Cordoaria do Porto, abram-se covas para enterrar a malandragem da Junta e verá Vossa Majestade a rainha, retomar cores e gosto na vida – havia-lhe dito o Silveira, o marquês de Vila Real, em hora de inquietação.

Ele assim fizera. Armara uma esquadra com vinte e quatro navios, mais de trezentas peças de fogo, pusera lá dentro cerca de três mil e quinhentos soldados de infantaria para o desembarque e dera ordens para que limpassem de vez os magros e isolados domínios da sobrinha. Mas, ao arrepio de tudo o que se previra, a esquadra regressara em meados de Agosto descoroçoada e batida, de mastros partidos, velas rotas, quase sem peça de fogo, e com meio milhar de homens a menos. Nem um havia conseguido desembarcar na malfadada ilha. O artífice de tão desesperante derrota havia sido um Meneses e Noronha, conde de Vila Flor, que Palmela, o argentário de Londres, a raposa maldita, fizera capitão-general das forças fiéis à rainha e enviara à cabeça duma expedição que quase à socapa, iludindo a vigilância do inglês, havia conseguido desembarcar na ilha, preparando a sua defesa e reforçando com os seus homens e a sua experiência o improvisado e roto exército da Junta. E com ele vencera uma força muito superior em homens, armas e víveres.

Agora, com a revolução de Julho em andamento, uma situação europeia desafogada e favorável, a pender para a esquerda constitucional moderada, a Terceira mostrava-se uma poderosa atracção para todos os Portugueses que andavam desirmanados por Londres ou por Paris. E de repente, no segundo arco do ano, quando os Orleães consolidavam em França o trono, a ilha era já um vasto aquartelamento de milhares de homens dispostos a combater pela rainha, em nome das novas ideias constitucionais que varriam o continente de lés a lés, e que se chamavam desta vez liberais.

O centro das ideias avançadas portuguesas deixava de ser Londres, como fora até aí, para passar a ser essa minúscula cidadela de pedra no meio do Atlântico. O próprio Palmela, prevendo as mudanças que se anunciavam, dispôs-se a abandonar o seu luxuoso apartamento de Kensington, aceitando mudar-se para Angra. Lá chegou, desconfiado, inquieto, amofinado com as condições que o esperavam, mas ainda assim decidido a ficar por lá. A Junta Revolucionária, constituída em Angra nos finais de 1828, foi transformada na Regência do reino, governando em nome de Maria II. Os cargos foram partilhados sobretudo entre Palmela e Vila Flor, o artífice da vitória sobre a esquadra miguelista e capitão-general das forças da rainha. De fora, longe de tudo, cavalgando com esporas de oricalco a onda das revoluções, como duros mercenários da idade clássica, ficavam apenas Palmela, Pizarro e as companhias de Sá Nogueira que haviam ido para França em 1829 e de lá não pareciam querer sair.

No Brasil, o imperador, depois de confirmar a regência da Terceira em nome da filha, fazia planos. A relação com aquela menina bávara, Amélia, a quem se entregara com gula e expectativa não o desiludira, dando-lhe uma estabilidade emocional que nunca antes conhecera. Não sabia se era paixão para durar, mas pelo menos por agora ocupava-o, sossegava-o e quase lhe fazia esquecer Domitila. Era milagre, que não podia deixar de agradecer todos os dias aos orixás do Rio. A situação política da Europa evoluía a seu contento, mostrando-se indulgente  para com seus propósitos. Os emigrados Portugueses pareciam finalmente ter uma direcção, unidos e agrupados sob o mesmo comando. Havia uns doidos, como Palmela e Pizarro, que andavam perdidos e extraviados, sonhando quimeras loucas e doutorais, mas eram excepções, sem valor nem significado. O partido da rainha estava pela primeira vez disciplinado e seguro, aquartelado numa fortaleza inexpugnável, no meio do Atlântico, entre Lisboa e o Rio, debaixo do olho matreiro e sabido de Palmela.

No meio de tanta esperança e entusiasmo, até uma bandeira nova se criou, azul e branca, inspirada no pendão tricolor da revolução francesa de 1830, para pôr à frente dos exércitos da rainha, dando expressão ao novo impulso liberal.

– Desta vez eu lasco nele, cão safado ­– exclamou doido de alegria e fúria o imperador, quando recebeu o seu exemplar em seda da China da nova bandeira.

Ele, a quem tão iradamente o imperador ultrajava, era Miguel, o mano usurpador. E na primeira crise governamental que lhe apareceu pela frente, em finais de Março e princípios de Abril de 1831, não esteve com meias medidas, demitiu-se do lugar, abdicou da coroa do Brasil, indicou como sucessor o único varão que tinha de Leopoldina, Pedro Alcântara, um menino de seis anos, nascido em 1825, nomeou José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos patriarcas da liberdade brasileira, tutor dos seus filhos menores e decidiu tomar em mãos a crise portuguesa. Saldanhizava-se com as últimas notícias que lhe chegavam do rochedo açoriano, que eram positivas e animadoras. Os Açores inteiros estavam à beira de cair, ilha a ilha, nas mãos dos liberais da Terceira. Também ele começava a devanear quimeras e proezas heróicas; também ele começava a sonhar com campanhas épicas e batalhas formidáveis para do irmão libertar o país. Não podia esperar nem mais um instante para se pôr à frente das tropas fiéis à filha e erguer, no seu punho de cabra macho, aos céus tempestuosos do Atlântico norte, a bandeira bipartida, azul e branca.

Partiu, com a vaidade satisfeita, o peito inchado, as lágrimas de comoção a escorrerem-lhe pela cara. Era um emotivo, que deixava para trás um mundo louco e tórrido de paixões proibidas e avançava para outro igual. Enquanto velejava a toda a pressa para a Europa lembrou-se que já não era ninguém, nem imperador no novo mundo nem rei no velho. Acabara há pouco de fazer trinta anos e já abdicara de duas coroas, primeiro a de Portugal, na cabeça da filha Maria Glória, e agora a do Brasil, na cabeça do filho Pedro. Era apenas o duque de Bragança, talvez nem isso, um pobre diabo sem títulos, mas com muito entusiasmo, que embarcara para a Europa com a mulher e a filha, à procura daquela que considerava a verdadeira aventura da sua vida. Há mais de vinte anos que não punha pé na Europa e a urgência de lá chegar era agora muita.

Passeando da popa para a proa, e desta para aquela, olhando o horizonte das terras que deixava ou perscrutando aquele outro que demandava, debaixo da cintilação misteriosa das estrelas nocturnas ou de cara voltada para o Sol, sentia-se cheio de pressa de pressa de se promover pelos corredores do novo liberalismo.  Julgava-se um dos heróis grandes do seu tempo, o príncipe mais liberal de quantos havia, aquele que tivera duas coroas nas mãos e de forma magnânima, em nome do seu dever de pai e da sua obrigação de soldado, as duas oferecera. Napoleão fora grande em Toulon, não em Austerlitz, e Byron em Missolonghi valia como anónimo, não como o autor do Manfredo. Assim ele, a caminho da Europa.

Antes de ir para os Açores, colocar-se à frente das divisões azuis e brancas, não resistiu às mundanidades da nova Europa liberal. Quis ir conhecer Londres e Paris. Primeiro Londres, essa Londres de que Palmela e Barbacena tanto lhe haviam falado, onde se instalou com a filha e a mulher no Claredon Hotel. Nos vastos e luxuosos corredores do hotel, fazia vida de corte, fardado e de cálice na mão, engendrando planos, fazendo contas, recebendo ministros, banqueiros, generais, embaixadores. Brindava às recentes vitórias das tropas da filha, entretinha-se em longas conversas sobre política americana, devaneava as campanhas que estavam para chegar. Palmela veio propositadamente dos Açores reclamar a sua presença em Angra, à frente da Regência. Para lhe adular a vaidade, que sabiam a prioridade do carácter, ofereceram-lhe o lugar de regente em nome da filha e o de comandante-chefe do exército. Ele, que se pensava um generoso, capaz de baratear em nome do dever coroas e impérios, aceitou lisonjeado o presente. Na verdade, tanto se via soldado como legislador. Tanto lhe fazia puxar da coragem para dar uma espadeirada como ler proclamações para dar uma Constituição; o que na verdade não suportava era a indiferença fria para com a sua pessoa.

Saldanha e Pizarro, em França, quando souberam, através de Cândido José Xavier, que estivera em Londres, dos arranjos de Londres entre Palmela e o ex-imperador temeram que isso fosse o primeiro passo dum plano muito mais ambicioso e desmedido. Pizarro apressou-se a fazer sair em Paris um violento panfleto contra a regência de Pedro, a que se seguiram alguns outros dos irmãos Passos. Soltavam-se as línguas e os ventos; Pedro era acusado de ser um déspota e um aldabrão. Dava-se a si mesmo, como todos os trapalhões, como todos os tiranos, aquilo que só os representantes da nação reunidos em Cortes lhe podiam dar, a regência. Demais, cruzara o Atlântico, porque ninguém o queria no Brasil; era um banido, um fugitivo, um homiziado sem eira nem beira. A ruptura entre os homens de Saldanha e Pizarro e os de Palmela, que vinha tendo lugar desde o momento em que os dois desobedecendo às ordens daquele trocaram Portsmouth por Brest, consumou-se em definitivo nesse momento. Nunca mais se entenderam nem falaram, pelo menos enquanto a guerra durou. Depois, quando foi preciso repartir o bolo, voltaram naturalmente à fala e ao convívio, porque no fundo o interesse podia mais do que as ideias.

O regente em Londres ressentiu fundo as palavras de Pizarro e repetiu o que nessas ocasiões costumava dizer, colérico e vingativo, tanto lhe fazendo que fossem partidários do irmão ou da filha.

– Ai, safadeza dele! Eu lasco forte, eu lasco forte nele, até deixar ele a gritar.

Depois de Londres, o ex-imperador quis ir conhecer Paris, a pretexto de arranjar novos apoios para a causa da filha e abraçar Luís Filipe de Orleães, que chamara o cônsul francês em Lisboa, cortara relações com o usurpador e apresara com a sua esquadra navios Portugueses no Tejo, fiéis a Miguel. Era um aliado político, além de se mostrar um amigo que lhe punha à disposição uma das alas do seu palácio de Meudon, nos arredores de Paris. Amélia, com dezanove anos, estava grávida e queria ir para o continente dar à luz na companhia dos parentes.

Paris fervilhava de planos revolucionários; o velho jacobinismo de 1792, republicano e radical, coroara a sua República, comedira os seus impulsos mais sanguinários, aliara-se a sectores moderados e singrava rejuvenescido, estável, burguês. Ainda assim aspirava estender os propósitos do novo liberalismo a toda a Europa. As revoluções eram nesse tempo o preâmbulo dos parlamentos como estes eram o epílogo das conspirações armadas. A Península era parte da conjura e o ex-imperador, pela secessão do Brasil, pela dádiva da Carta portuguesa, pelas ligações que tivera com os velhos revolucionários Franceses exilados na América, era considerado um dos precursores do novo espírito liberal.

Não foi difícil pois ao novo regente preparar e armar a partir de Paris uma nova expedição. Juntando um punhado de homens experientes, pagando-lhes um soldo atraente, contava reforçar os aquartelados da Terceira, dando-lhes o alento decisivo para o derradeiro passo que faltava, a invasão do continente. Por ele chegaria à vitória, que esperava fácil e rápida. O seu espírito inquieto começava a cansar-se das arrastadas mundanidades dos hotéis de Londres ou Paris; a sua alma de aventureiro principiava a sonhar com a acção e com a aplicação prática dos seus planos; estava desejoso de se ver na Terceira, ao ar livre, na sua farda de generalíssimo, marchando à frente do exército, para libertar o país da tirania e agarrar o irmão pelos cueiros.

– Eu mostro a esses safados – dizia ele para Cândido José Xavier, que se tornou por esta altura um dos seus próximos, referindo-se tanto a Pizarro como ao irmão – se sou um ladão, um banido ou um valente.

Por isso entre escolher os homens de Saldanha ou os outros, os estrangeiros, que depois da separação da Bélgica haviam ficado desempregados, mostrando a sua ociosidade pelas ruas de Paris, o ex-imperador não hesitou e escolheu os Italianos, os Franceses, os Ingleses e os escoceses e com eles partiu em Fevereiro de 1832 para os Açores.

Deixava Saldanha em Paris, a contas com a tristeza, não sabia se para o humilhar de tanta dissidência e tanta inútil gritaria ou se para o substituir em tanto de quimérico como de extravagante. Também Amélia, que acabara de dar à luz uma menina, logo baptizada com o seu nome, ficou por Paris, na companhia da mãe, que acabara de enviuvar, e da enteada, a rainha de Portugal, menina de treze anos, cujo humor balançeava naqueles transes entre o pesado desânimo que sobre ela se abatera em Gibraltar e as coloridas esperanças que aereamente se lhe pintaram nas ruas e nos parques de Londres, quando foi recebida por Wellington e Jorge IV e dava a beijar a mão papuda aos emigrados políticos Portugueses. Assim como assim, a assistência pronta dos Orleães, a vida requintada e confortável de Meudon, as fábulas que lhe contavam dos soldados Portugueses que lá nuns ilhéus perdidos no Atlântico se dispunham a morrer de retrato seu na mão, despertavam nela uma euforia que tanto era a nostalgia da grandeza da sua pessoa como o despertar da vaidade antiga, que a acompanhava desde o instante em que o pai nela abdicara da coroa portuguesa. E as duas juntas, grandeza e vaidade, faziam dela uma pequena matrona mais segura que desconfiada.

– Daqui a três meses estamos em Lisboa – repetiu ela para a madrasta, quando o pai partiu na esquadra de Belle-Isle e dela se despediu com essa mesma rábula fera e leviana.

Nos Açores, Pedro foi recebido com alguma frieza. Aquela expedição de mercenários, tendo à cabeça um capitão da marinha inglesa, Sartorius, não excitava o entusiasmo. A sua opção de afastar Saldanha, Pizarro e os outros, trazendo com ele uma tropa de brigões estrangeiros, motivada menos pela rainha que pelo apetite da boa pinga portuguesa, tinha de provocar descontentamento entre as companhias portuguesas. Pedro, que se julgava um herói moderno, um homem superior, destinado a um destino excepcional, sofria mal estas manifestações de distância e crítica, caindo num abatimento asmático e ferino. Fechava-se, isolava-se, enfurecia-se, afastava-se, julgando o mundo indigno dele, das suas qualidades e do seu esforço. Assim se vingava daquilo que se lhe afigurava uma injustiça para com a sua pessoa, que não admitia ser contrariada, habituada que sempre andara a satisfazer todos os seus pequenos caprichos. Temeu-se pois que diante daquela frieza o ex-imperador amuasse e deitasse até a empresa ao diabo com modos desabridos. Palmela sabia-o vingativo e imprevisível. Mas não. Desta vez ele trazia menos orgulho que entusiasmo, mais lealdade que ódio. Tomou posse da regência, reuniu governo, distribuiu pastas e planeou para o fim da Primavera a libertadora expedição ao continente.

Estávamos em Março, no princípio da estação, e pela frente havia apenas três escassos meses para entrosar os mercenários estrangeiros nas tropas portuguesas, disciplinar o conjunto, preparar víveres e munições, e sobretudo mostrar ao país, por uma sábia legislação que lhe mudasse as estruturas e o rosto, as vantagens do novo liberalismo. Disto se encarregou um dos raros alentejanos que se embrenharam no curso das novas ideias, Mouzinho da Silveira. Olhando-lhe a máscara vemos um homem bom, inteligente, reflexivo, talvez um tudo ou nada irónico, ácido, misantropo. Se o compararmos com Palmela ou com os homens do seu círculo, como Cândido José Xavier, Vila Flor ou Rodrigo da Fonseca, beirões e cosmopolitas, percebemos a diferença que vai da inteligência verdadeira, servida pela bondade de sentimentos e o altruísmo de propósitos, à esperteza aguda e falsa, mesmo quando servida por uma verve apaladada, como era o caso de Rodrigo da Fonseca, ou por uma alma firme, como acontecia com Vila Flor, o futuro duque da Terceira.

Foi este homem simples, Mouzinho da Silveira, nascido no sossego de Castelo de Vide, longe do bulício das cidades, onde se aprendia desde cedo a faina dos interesses egoístas, que concebeu a obra mais duradoura do liberalismo e aquela que lhe deu a vitória. Valeram menos as baionetas de Vila Flor, e depois as de Saldanha, que os decretos do bom homem do Alentejo, que libertaram a terra, aboliram os morgadios, extinguiram ou prepararam a extinção das ordens religiosas. E por aí só se pode ver a superioridade moral do liberalismo. O que espanta é que esta obra foi toda feita de Maio a Agosto de 1832; os momentos genesíacos duma época histórica são tão curtos e instantâneos que nos surpreendem por serem despercebidos e na aparência insignificantes e nulos.

E o ex-imperador, o que fazia entretanto? Procedia como um sensível que era, vigiando com mania os mais pequenos pormenores da expedição e farejando mulher que lhe desse trabalho à máquina triforme. Vigiando, punha à prova a sua vaidade e dava saída ao seu carácter activo e autoritário; namorando, satisfazia ainda a estima que por si sentia e apaziguava a ansiedade nervosa em que andava. Demais, no seu caso, a guerra não pasava sem o amor; conquistar terras era o mesmo que cativar mulheres. A sua alma só se entusiasmava com uma causa política se o seu coração estivesse apaixonado por uma bela mulher. A beleza duma mulher era para ele a luz que lhe iluminava a justiça duma causa. E como a esposa estava longe, entretida em Paris com a recém-nascida Amélia e com a enteada, era preciso procurar mulher bonita e disponível por perto.

– A abolição dos conventos é indispensável para libertar a terra e o contribuinte, valorizar a propriedade e o trabalho – dizia-lhe por essa altura um Mouzinho visionário. – Sem frades haverá bens nacionais para distribuir riqueza pela nação que poderá enfim trabalhar e engrandecer.

Ele não se fez rogado e foi o primeiro a levar à letra as palavras do seu ministro. Planeou assaltar destemidamente esses terríveis falanstérios do Portugal histórico para libertar as pobres freiras e trazê-las para a vida civil. E a vida civil começava evidentemente para ele na sua tenda de soldado e continuava depois na sua cama de galante.

– Outros que carreguem os frades e a tonsura deles – dizia ele a brincar para Xavier – eu fico com o fardo das freiras a meu cargo e já faço boa fatia do trabalho. E é trabalho besta, não é seu Cândido?

Cândido José Xavier ria, assobiava, mostrava-se também ele folgazão e maroto.

– É preciso despir-lhes o hábito, soltar-lhes o cabelo, preparar-lhes o banho, cortar-lhes as unhas. É uma carga de trabalhos.

Era o ajudante de campo do ex-imperador e por isso aquele que melhor lhe conhecia as fraquezas e as vaidades. Era um cosmopolita, de origem escura e humilde, que se fizera alguém na Legião Portuguesa, ao lado do marquês de Alorna, Pedro de Almeida. Percebera há muito que aquilo que precisava para subir era de calar o que lhe ia por dentro e suportar sem desagrados as loucuras do amo, fosse ele quem fosse.

Nasceu assim a história de amor do príncipe com uma freirinha de pouco mais de vinte anos, Ana Augusto Peregrino Faleiro Toste, um mimo de menina, de coração exaltado e romântico, lida em Bernardin de Saint-Pierre, que ele libertou da pavorosa fortaleza freirática da ilha da Terceira, o convento da Esperança. Foi ela o azeite virgem e aveludado que posto a arder com brilho de oiro na lamparina do seu corpo lhe deu a ver o céu azul das reformas administrativas de Mouzinho e  o Sol quente e brilhante da vitória rápida dos seus exércitos.

Partiu a expedição dos Açores a 27 de Junho ao som do hino da Carta. Eram cerca de cinquenta navios, uma floresta de mastros e velas, com sete mil e quinhentos homens dentro, uma multidão de sanhosos barbudos, muitos deles recrutados nos bisonhos campos dos Açores, outros na Europa e o restante, era o que sobrava dos emigrados Constitucionais e Cartistas portugueses que depois das Archotadas ou da queda da Junta revolucionária do Porto haviam rumado para Londres. O comando estava nas mãos de Sartorius, o capitão da marinha inglesa que o acaso engrandecera, tornando-o almirante e quase rei, já que só devia obediência directa ao regente. Era beberrão e ruidoso, com fama de truculento e agora de chantagista, pois discutira nesta derradeira etapa condições tão vantajosas para si e para os seus homens que se arriscava a deixar na miséria a empresa caso fossem cumpridas todas as cláusulas.

Acima dele, sobranceiro e altivo, com a consciência segura do seu valor, indiferente a questões de dinheiro, que de todo desconsiderava, estava o regente. Ia na coberta do barco, de mão direita no peito, entre os botões do dólman, como Napoleão em Wagram, o espírito ainda absorto nos valentes e danados coitos com que se despedira da freira, o olhar ansioso e expectante, sondando a linha do nascente. Via-se a si mesmo como a peça decisiva daquele enredo. Com a mão esquerda na amurada da fragata-almirante, costas muito direitas, ar severo, antecipava para muito breve a sua glória e tomava-se já, ao rés das ondas, na monotonia do barco, por um César feliz participando aos senadores romanos a sua vitória sobre Fárnaces, rei do Ponto.

Dez dias depois, chegaram a terra. Pisaram as praias a sul de Vila do Conde, lisas, areentas, de médões baixos e longos, que entravam pelas terras de cultivo, com vinha e cercados de milho. O regente opusera-se a qualquer plano de desembarque em Lisboa ou no Algarve.

– É no Porto que nós havemos de meter a mão nos catingosos – dissera ele, inflexível e decidido.

Era de ideias fixas, não admitia que o contrariassem, e por isso ninguém pensou seriamente noutra solução. Em menos de dois dias estavam às portas do Porto. Não tinham visto uma única espingarda, um único soldado miguelista, como já antes não haviam visto no mar qualquer vela inimiga. Valha a verdade que no caminho do Pampelido para o Porto não haviam visto vivalma; o país parecia deserto e abandonado; três anos de miguelismo haviam bastado para evaporar a buliçosa vida de outrora. Desaparecera tudo sem deixar rasto. De qualquer modo, as previsões mais optimistas pareciam estar certas. O país caía aos pés do exército invasor sem disparar um tiro.

Quando se aproximaram pelo norte do Porto, vindos de Pedras Rubras, sempre surpresos pelo silêncio que iam encontrando, deram com os primeiros ajuntamentos de gente. Eram os populares da cidade, mulheres do peixe, rapazes do comércio, almocreves, homens de ofício, carregadores de navio, estafetas. Já sabiam do desembarque e adiantavam-se para receber os visitantes às portas da cidade. Estavam agitados e nervosos, desejosos de falar. Depressa se percebeu que tinham notícias importantes. No dia anterior um poderoso exército miguelista abandonara a cidade, comandado por Santa Marta e fora fortificar-se na margem sul, cortando a ponte.

– E a cidade? – perguntaram os capitães do regente.

– A cidade? Está pela rainha ­– responderam os do lado de lá.

Estava de facto. À medida que foram entrando à cautela pelas azinhagas da cidade, que levavam à rua da Cedofeita, perceberam que os populares haviam falado verdade. As janelas estavam abertas, enfeitadas com colchas azuis e brancas e as famílias espreitavam sorridentes e acenavam felizes à passagem do exército. Uns deitavam flores sobre os soldados, outros gritavam vivas ao ex-imperador e à sua filha, outros ainda cantavam o hino da Carta. Na Praça Nova juntou-se gente, vieram filarmónicas tocar modinhas constitucionais, distribuiram-se doces e copinhos de licor, reviveu-se por instantes o clima festivo de 1820 e 1826. O Porto era uma cidade libertada, eufórica, pronta aos excessos, depois de três anos de mordaça e forca. Assim como assim, não havia muito por onde escolher, pois os miguelistas mais evidentes haviam abandonado a cidade no exército de Santa Marta e o mesmo haviam feito os funcionários da Alçada e muitos dos frades dos conventos, amedrontados com as medidas de Mouzinho. Foram à cadeia da Relação, na Cordoaria, mas o que por lá encontraram foram bêbedos, prostitutas, bandidos, trafulhas, jogadores falidos. Os outros, os políticos, tinham sido limpos pelas forcas e pela fuzilaria da guarda.

Entrementes, o exército do regente foi tomando posse da cidade e ocupando os quartéis onde antes se aboletavam as companhias miguelistas. Foi então que surgiram da margem esquerda do rio as primeiras descargas de artilharia, potentes, regulares, destrutivas. Depressa se avistou o exército inimigo acastelado numa larga linha transversal, que ia desde Avintes até à Afurada. A serra do Pilar e os altos de Gaia mostravam-se os pontos mais perigosos, a partir dos quais era possível varrer com facilidade toda a linha litoral do Porto, desde Massarelos até à Ribeira. Foi preciso evacuar de imediato a população da borda rio, transferindo-a para o interior da cidade e fortificar a linha, que passou a servir de trincheira de guerra.

Nessa noite, o regente, Vila Flor, Palmela, Cândido José Xavier, Silva Carvalho, que sucedeu na Fazenda a Mouzinho, Agostinho José Freire, Sá Nogueira, reuniram-se no palácio das Carrancas, debruçado sobre a linha do rio, residência escolhida pelo ex-imperador. O desânimo era evidente. Todos haviam compreendido, depois das primeiras impressões positivas da manhã, que as facilidades com que contavam tomar posse do reino não passavam de erros de percepção; visto de perto o assunto afigurava-se muito mais complexo. O exército de Santa Marta era numericamente superior, estava melhor equipado, tinha o apoio das populações rurais que cercavam o Porto, que instigadas pelos frades estavam dispostas a torcer os liberais como se fossem soldados de Napoleão. Sobre isso, era preciso contar com outros dois poderosos exércitos que protegiam o norte de Lisboa, o do Póvoas e o de Morais Sarmento, que naquele momento já deviam estar a caminho do Porto, por ordem do marquês de Cadaval, ministro do arcanjo loiro.

Quando alguém perguntou, por que razão o exército de Santa Marta, que, soubera-se entretanto, tinha uma divisão destacada a norte, em Vila do Conde, lhes deixara o caminho livre até ao Porto, abrindo-lhes mesmo as portas da cidade, Freire, que tinha o humor carregado e a pasta da Guerra ao seu cuidado, alvitrou:

– Para nos exterminarem a todos, como uma matilha de lobos apanhada numa armadilha.

Palmela, que se lembrava dos medos em que andara metido naquele mesmo vespeiro quatro anos antes, começava a maldizer o momento em que dera a cara por tal trapalhada. Desta vez é que não fica pedra sobre pedra no Porto, pensava ele. Temia mais pela vida que pela causa. E, vamos lá, tinha umas tais saudades de fumar um charuto perfumado ao canto da lareira, no sossego do seu gabinete de Londres, enquanto lá fora se ouvia bater tranquilamente a chuva no empedrado silencioso das ruas, que até a alma se lhe danava. Demais, o Porto, em Julho, com os calores estivais, húmidos e viscosos, os cheiros da imundície a céu aberto, era desagradável em extremo. Estava desejoso de se pôr ao fresco.

– Estamos encarcerados, meus senhores. Amanhã nem a porta da prisão abriremos; hoje ainda podemos tranquilamente retirar pelas traseiras.

As traseiras eram os Açores, para onde Sartorius os levaria de volta em segurança. O regente porém nestas coisas da guerra não era assim tão mole. Habituara-se a mandar, a fazer a sua vontade, a dar ordens. Metera-se desde cedo em brigas valentes. Jogara o pau com o Chalaça nas tabernas do Rio, ao som do batuque, e chegara a apanhar tareias fortes dos moleques embriagados. Andara depois embrulhado nas ondas das revoltas contra as imposições dos Portugueses. Agora, estava ali, à frente de sete mil e quinhentos soldados, de bandeira bicolor na mão; demais, tinha uma disputa pessoal com o mano, que estava desejoso de filar na ponta da espada, para lhe dar um caldo bem dado, e a última coisa que pensava fazer era retirar. Retirar para ele sem combater era treta de jumenta ou de canário doente.

– Sei nada disso, seu Pedro ­Holstein – exclamou ele. – Fique quieto que amanhã caímos sobre Coimbra.

Ficaram pois. Mas em breve as perspectivas mais pessimistas de Freire se mostraram verdadeiras. Nos primeiros dias de Agosto estavam encurralados no Porto, sem saída por terra. Restava-lhes apenas o estreito cordão que os levava da Ribeira até à Foz, onde ao largo se encontravam, sempre prontos a bater em retirada, os navios do capitão inglês. Estavam cercados por cerca de trinta mil soldados inimigos e por uma população hostil que os rechaçava como desordeiros e os vituperava de facínoras e ladrões. Se pudessem eram esses mesmos campónios desamparados, carregados pelas sisas e empobrecidos pelos dízimos, que lhes deitavam a mão para os esfolarem vivos e os deitarem como adubo de carne na cozedura do caldo das couves como antes haviam feito aos Franceses nos meses de fome.

No Porto, Mouzinho continuava a sua obra de reformador, dando à estampa os seus decretos num jornal agora impresso, esperando que mais tarde ou mais cedo o país reconhecesse a justeza e a necessidade das suas reformas. Estava convencido que no dia em que o país lesse os seus decretos voltaria costas ao miguelismo e abandonaria os frades. Sentia-se capaz de parar uma guerra com as ideias da sua testa singular e de calar o barulho das armas com as  palavras sábias da sua boca. Porfiava pois.

Também o regente teimava. Estava disposto a pegar na espingarda, a investir com a baioneta, a cavar trincheiras. Numa situação de desespero, mostrava-se homem capaz de amarfanhar a vaidade e esquecer as ilusões, entregando-se ao trabalho.

Os soldados e os populares quando o viram assim decidido, mangas arregaçadas, passando longas horas no meio deles, comendo da mesma ração, rindo das mesmas piadas, incentivando-os com palavras generosas, ganharam ânimo e respeito. Até ao momento, não ia além do soberbo que lhes aparecera à frente dum pelotão de desdenhosos e arrogantes estrangeiros; a partir dali passou a ser o fetiche da campanha. Mal se anunciava a sua presença, sentinelas e populares perfilavam-se em sentido; o seu nome inspirava comoção e a sua pessoa confiança. Estranho destino o desse moço de trinta anos! Só quando se viu diante da morte certa, foi capaz de se esquecer das suas quimeras de vaidade e ter dois dedos de testa. Diante do inferno de Dante oferecera outrora, no cais de Belém, quando todos fugiam, o seu olhar perplexo; agora, diante das balas terríveis, dava o seu peito como escudo para morrer como um macho.

Este heroísmo estava porém longe de solucionar o problema da cidade. Fora de portas avolumava-se o perigo. Os sitiantes foram apertando o anel em torno do burgo. A desproporção entre os de dentro e os de fora era de tal ordem, a superioridade de equipamento tão significativa, que se temia que à primeira investida mais séria as trincheiras do Porto fossem levadas de roldão e nada delas sobrasse. Temia-se uma nova Alçada, muito mais rigorosa que a anterior, com fuzilamentos em massa e forcas na praia desde Matosinhos até à Póvoa. O pânico apossara-se da população civil e tirando a rapaziada que se habituara a viver paredes meias com o exército não se via ninguém nas ruas. Os comércios abriam apenas duas ou três horas por dia, o indispensável para se fazerem as compras e as vendas, reduzidas de resto ao mínimo, pois quase não circulava moeda dentro do burgo e os bens começavam a escassear.

Palmela, que não tinha vocação de soldado ou de herói, manifestava mal-estar crescente. O ambiente sinistro duma cidade sitiada, com cenas que  lembravam as descrições de Paris no início da Convenção, e que sempre lhe haviam repugnado ao espírito educado, fez-se-lhe insuportável. Arquitectou projectos para se escapar quanto antes dali. Estava à vista a desproporção de homens e de armamento dos dois lados. No meio do oceano de desespero em que andava, agarrou-se a essa evidência como a um destroço de cortiça. Foi ter com o ex-imperador à sua residência, no palácio das Carrancas.

– Esta guerra só se pode ganhar com dinheiro. Vencerá aquele que mais conseguir resistir – disse ele, espreitando a medo a linha do rio.

O regente mandou-o então para Londres como plenipotenciário à procura de fundos. Eram precisos homens, armas, mantimentos. Se a cidade durasse até ao fim do Outono, e resistisse aos avanços do exército inimigo, iria começar a faltar tudo na cidade sitiada. Previa-se então uma guerra de longa duração, cujo segredo estaria na persistência e na defesa. Depois, logo se veria. Partiu Palmela para Londres, aliviado e feliz, fumar o seu perfumado charuto em Kensington e tratar dos empréstimos com a canalha dos bancos. Era o homem mais fino e esperto do seu tempo português, que sabia aliar a paixão à prudência, sem nunca comprometer a vida pelas ideias. O seu tipo fez depois fortuna no Portugal novo que nasceu das ruínas destas guerras e está hoje por todo o lado.

Os que ficaram na cidade prepararam-se para a investida do exército inimigo, que não podia tardar. Acabou por chegar no final de Setembro, no dia de S. Miguel, a 29 de Setembro. Gaspar Teixeira, que viera do interior da Beira coordenar Póvoas e Santa Marta, deu ordem de avanço ao fim da madrugada a dez mil homens. Eram a vanguarda do exército, os batedores ferozes que iam abrir caminho à dentada no meio da floresta espessa para depois avançarem as levas ferozes da montaria geral. Dos porcos malhados não ficaria um só vivo. As trincheiras do lado oriental, nas Antas, e depois na Campanhã, foram espezinhadas pelos corpos miguelistas, que entraram num puxavante pelas ruas do Porto dispostos a cometer atrocidades. O único remédio foi o combate corpo a corpo nas ruas, para impedir o mais possível a liberdade de movimentos, retardando ao mesmo tempo o seu avanço em direcção do centro.

Valeu no aperto a requisição civil que compareceu em peso quando foi precisa. Para além dum corpo de três ou quatro mil milicianos que a cidade bem espremida dera, e que combatia ao lado do exército regular, desta vez os homens e as mulheres do Porto desceram à rua dispostos a não dar de barato a tomada da cidade.

– O tempo do Póvoas já lá bai, carago. É moer de porrada os de Miguel até lhes mandar a ialma de presente ao Diabo – despachavam as vivandeiras da Ribeira, que mais tarde, de tão aguerridas e severas, haviam mesmo de formar um corpo regular de armas.

Esses homens e essas mulheres eram os únicos que lutavam por desespero e por isso os únicos que me são simpáticos e aceitáveis. Os restantes combatiam por hábito ou por profissão. Uns, quase todos, entre Portugueses e estrangeiros, haviam feito as campanhas do tempo de Napoleão e viam naquela guerra uma oportunidade de regressarem ao activo; outros, como Miguel, eram grosseiros e violentos; outros ainda, como Pedro, queriam o heroísmo desumano dos campos de batalha. Estes não os compreendo e só me inspiram antipatia. São os carniceiros da humanidade e entre a alma deles e a de Carlota Joaquina a diferença é apenas de intensidade, não de grau.

Repelida a invasão, fechou-se a cidade dentro de portas, preparando-se para um longo e rijo cerco durante a estação fria. A batalha do dia de S. Miguel custara para cima de duas mil vidas; o invasor retirara, mas disposto a asfixiar logo de seguida a cidade pela fome. O balanço era cruel, mas aquilo que se avizinhava tinha pior aspecto. Assim como assim, o sucesso na defesa da cidade, o entusiasmo posto na participação colectiva, o sentido de que estavam resguardados numa fortaleza inexpugnável, que continuava a ter ligação segura com o mar, deu aos habitantes do burgo energia bastante para continuar. Aprisionados numa cidade sem víveres, rodeados por mais de cinquenta mil inimigos, com a dura estação do frio à perna, ninguém ainda assim se dispunha a aceitar a rendição. Demais, o rechaço fortalecera os laços de responsabilidade mútua entre os habitantes da cidade e as tropas invasoras

O regente, sempre acessível, cada vez mais prestável, era visto como um ícone que os protegia de todos os prejuízos. A enorme popularidade que grangeara entre Agosto e Setembro, fez que ganhasse gosto no convívio dos civis e se mudasse para um apartamento da rua da Cedofeita, no coração do Porto, abandonando o isolado palácio das Carrancas e deixando de aparecer escoltado pela sua guarda de dragões. Vestia como um burguês, usando a capa azul por cima da camisa de folhos e do jaquetão de fazenda e o chapéu de dois bicos com a roseta bicolor cosida a meio. Gostava de passear no Campo de Santo Ovídio com os seus sapatos de fivela e tacão raso, embuçado na capa, de chapéu puxado sobre os olhos, confundindo-se com qualquer outro rapaz galante. Depois ia ouvir missa à igreja da Lapa, sempre de capa puxada até ao nariz, mirando interessado os olhos das suas vizinhas por dentro das rendas escuras dos véus.

– Temos desta vez paixão – perguntava-lhe o Xavier, sempre videiro e garoto, nos seus bem puxados sessenta anos, mal o via regressar do passeio com ar de mistério.

Ele sorria, percebia a marotice, dava evasivas.

– No aperto destes negócios não penso nisso não, seu Cândido – replicava furtivo e falsamente modesto.

Mas no caso dele isso não podia ser verdade. A máquina triforme andava habituada à seda íntima da mulher desde há vinte anos e sentia-lhe por isso muito a falta. E lá agarrou para seu consolo uma daquelas puxadas vivandeiras que mandavam à força de punhada os soldados do irmão de presente ao Diabo. Era uma louceira da rua da Assunção, chamada Celeste; tinha olhos escuros, intensos, vivos, cabelos negros, soltos, escorridos, pescoço alto e delgado, lábios finos mas carnudos, corpo escultural, seios altos e resguardados, pele limpa, tão fina e sedosa que a mulher lhe lembrava uma índia guarani. Vinha dos lados do Tâmega, de Padronelo, nas abas da serra da Abobreira, e tanto lhe suspirou nos braços com um chorinho tenro de ribeiro acabado de fazer como com uma gritaria tempestuosa de enxurrada farta, potente, caudalosa. Enquanto isso assim acontecia no andar da Cedofeita, expiravam as tardes outonais do Porto para os lados da Foz em convulsivos poentes de névoa branca e hemoptises de sangue.

O mano Miguel quando soube em Lisboa da desfeita de finais de Setembro zangou-se. Sentiu-se um anjinho no meio daquela capela beata que era a Lisboa da época e enfureceu-se. Decidiu ele próprio bater a caminho do Porto, com as duas irmãs atrás, a primeira Isabel Maria, como prisioneira, presa valiosa, a segunda, Maria da Assunção, como dilecta e companheira. Parece que nessa menina, nascida como ele no estábulo do Ramalhão, sem pai nem outra mão, revia ele a cara e o espírito da mãe querida, de quem tanto sentia a ausência. Com ele, preparando a queda do Porto, iam novas divisões, desta vez comandadas por um dos piores facínoras do miguelismo, Teles Jordão, o torcionário da fortaleza de Oeiras. Chegou a Braga na segunda metade de Outubro, onde foi recebido em triunfo, como um vencedor. O Porto ainda não caíra, mas ninguém acreditava que durasse mais dois meses. Estava por um fio.

– Basta chegar o frio de Janeiro para a cidade escancarar as portas e começarem a sair lá de dentro como formigas atarantadas os caras de fome – diziam confiantes e pomposos os gordos abades de Braga. – Desta vez nem as tripas comem.

Mas na verdade com a entrada do ano de 1833 a cidade continuava inexpugnável e as suas portas permaneciam teimosamente fechadas. Miguel passara revista às tropas do cerco em Dezembro, repusera o comando nas mãos de Santa Marta, enviara o fiel e determinado Teles Jordão para Ocidente com a delicada missão de cortar de vez o cordão que ligava a cidade ao mar mas nada de concreto se conseguia. As baterias azougadas de Teles Jordão fustigavam todo o caminho que ia desde Custóias até à Infesta, mas não conseguiam evitar os desembarques pelas praias da Foz. Era esse o fio pelo qual a cidade ainda se conseguia alimentar. Em Dezembro Palmela enviara uma divisão de mercenários de cerca de milhar e meio de homens, armas, munições, víveres, cavalos. Era um reforço, mas insuficiente. O número dos sitiantes subia muito por esta altura, apostando os miguelistas tudo por tudo na asfixia da cidade com surriada de bala incessante; as chuvas, os ventos, os temporais dificultavam a aproximação dos batéis às praias; as discussões dentro do burgo sobre o curso da guerra e o valor dos capitães do regente minavam a confiança entre os parceiros da empresa. Na cidade passava-se fome e frio, disputava-se qualquer coisa e faltava tudo; o trigo, o arroz, o açúcar, o café, o azeite, o bacalhau há muito que ninguém lhes sentia o cheiro; a lenha e o carvão eram tão escassos que se queimavam portas e mobílias para cozinhar. Um guisado de gato, um cozido de cão, um churrasco de texugo ou de ouriço eram petiscos muito apreciados; a água para beber andava racionada e a higiene era esquecida, senão desprezada, como um luxo desnecessário. Apareciam febres e epidemias; a tuberculose, o tifo, a cólera vulgarizavam-se.

Nesta situação, houve quem se lembrasse dum homem que se mostrara sempre um fiel partidário da Carta e que emprestara o seu braço determinado em 1826 para a fazer jurar. Correu o nome de Saldanha de boca em boca como uma revelação. Estranhava-se muito a sua ausência, tanto mais que o caudilho militar tinha laços de parentesco com as melhores famílias da corte dos Braganças. O ministro da Guerra, o carregado e sombrio Freire, atreveu-se a falar nele ao regente, que entretanto por causa das dissensões afastara Vila Flor, chamara a si o comando das tropas e acabara de o passar a Solignac, um dos reforços que Palmela mandara da Europa e que não passava de mais um dos reformados dos exércitos Franceses do princípio do século.

O regente reflectiu. Saldanha era lembrado com carinho pelos civis que o rodeavam; fora comandante militar da cidade, deixara boas recordações, fizera jurar a Carta. Naquela aflição era natural que se lembrassem dele, estranhando a ausência. Sentiu-se infeliz com o destino. Ele que prometera a si mesmo humilhar Saldanha depois da desfeita dos panfletos de Paris via-se na obrigação de o mandar vir a suas expensas. E, o que lhe era de todo insuportável, chamava-o para o salvar. Necessitava daquele plantígrado que não tinha com que pagar um jantar luxuoso em Paris para o tirar das aflições em que andava. Era a suprema afronta que o destino lhe podia fazer, mas naquele transe, com uma cidade esfomeada às costas, uma população doente sobre os ombros, estava por tudo. A sua vaidade desde Agosto emagrecera o seu tanto.

– Que venha ele – acabou por dizer. – Mas Pizarro não. Nem que me dê a bunda velha e mal cheirosa para comer quero ver ele à frente.

A sua humildade não chegava ainda a Pizarro, como depois, em 1834, quando se quis mostrar magnânimo com os vencidos, amnistiando os crimes políticos, não chegou até ele o seu perdão. Pizarro, cioso e teatral, foi a sua sombra negra,  a sua aversão visceral até ao momento da morte. Nunca se libertou dele e o morreu como o seu nome atravessado na boca.

Veio Saldanha no fim de Janeiro com os restos das divisões de Sá Nogueira. A esperteza e a frescura das suas ideias fizeram bem aos sitiados. Demais, sem Pizarro, vinha cordato, liberto de saídas radicais, cortesão, pronto a contemporizar com os conservadores. Depressa foi ganhando prestígio e simpatia entre o povo. Não perdia ocasião para as suas grandes tiradas, mas ao mesmo tempo mostrava-se útil e prático. Destacaram-no para o lado ocidental, onde se jogava a sobrevivência da cidade. Depressa percebeu a situação e lhe encontrou saída, obrigando Teles Jordão a recuar. Bastou-lhe avançar um tudo ou nada as suas baterias em Serralves e na Ervilha, criando entre as duas um novo reduto, o do Pasteleiro, ameaçador e fatal. Apesar desse golpe favorável, as suas relações com o regente continuaram frias e distantes; Saldanha evitava o partido palmelista e dava-se apenas com os seus homens, aqueles que haviam estado com ele em Paris, Stubbs, os irmãos Passos, sempre feéricos e inteligentes, e o seu tanto com Mouzinho, que acabada a sua obra fora substituído por Silva Carvalho, um pragmático, agente de Palmela, que pirateara em tempos o tesouro brasileiro de Plymouth. Fora isso, Saldanha dedicava-se ao seu trabalho com obstinação, passando aos olhos dos soldados por modelo de dedicação.

E nisto chegou a Primavera, com dias abertos e grandes, céu azul, Sol brilhante a jorros e águas calmas. O arcanjo loiro continuava em Braga, que era a sua capital de guerra, a poucos léguas ao norte do teatro de operações.

– Chupam as tripas dos ratos mortos, mas ainda lá estão dentro – dizia-se com surpresa na cidade dos arcebispos.

Os maus resultados da campanha de Inverno levaram Miguel a substituir Santa Marta pelo conde de S. Lourenço, António José de Melo da Silva e Meneses, outra viciosa sobra das guerras peninsulares. A estratégia passava por encurralar o Porto num anel de artilharia feroz que levasse finalmente à queda da cidade insurrecta. O miguelismo jogava tudo por tudo naquele derrube para breve, mostrando uma ansiedade cada vez mais desesperada. Caso a cidade continuasse sem capitular, o rei de Queluz requisitava para os arrabaldes do Porto todas as divisões importantes que estavam espalhadas pelo país, projectando para o fim da Primavera e inícios do Verão uma nova tentativa de invasão massiva, com combates corpo a corpo nas ruas.

Dentro da cidade, vivia-se uma situação desesperada, com o aumento crescente das epidemias, a sobrelotação dos hospitais e dos cemitérios, o esgotamento da pólvora e das granadas. Ainda assim, a chegada do bom tempo, com multiplicação das frutas e dos legumes frescos e os sucessos de Saldanha no Pasteleiro, animavam de esperanças o ambiente da cidade. Acrescia que os efectivos militares dentro do Porto iam aumentando o seu tanto; dos sete mil iniciais que haviam desembarcado a sul de Vila do Conde haviam passado nessa altura a mais do dobro, aproximando-se timidamente dos vinte mil. Parece que Mouzinho, publicando os seus decretos, ia fazendo pouco a pouco o seu trabalho oculto, sapando a confiança dos soldados inimigos no seu sistema. Alguns começavam a questionar-se se não ganhariam mais desafogo com a abolição dos dízimos, dos bens da coroa, das ordens religiosas ou do morgadio que com o miguelismo. Tudo o que este tinha para lhes oferecer era a perpetuação da velha ordem, segura, cómoda, sagrada,  mas desfavorável afinal aos seus interesses. Noticiavam-se as primeiras deserções a favor do regente. Dizia-se ainda que Palmela, sempre esperto e oportuno, arregimentava em Londres com o apoio do governo inglês uma grande expedição de mercenários e que chegaria em breve à Foz com muitos víveres e munições.

E mal Junho despontou, chegou Palmela à Foz, vestido à inglesa, muito janota, de chapéu branco, paletó no braço, luvas verdes de camurça a saírem do bolso da jaqueta larga e leve e sapatos amarelos envernizados. Oh, os sapatos amarelos de Palmela! Que espanto e que tragédia tão cómica! Ficaram tão célebres, tão célebres que três ou quatro gerações depois ainda deles se falava com surpresa e admiração. Trazia com ele quinhentos homens, munições e alguns víveres. O comandante da esquadra portuguesa, Sartorius, foi substituído por Napier, outro oficial que fizera a guerra peninsular com Beresford e que passava por mais dedicado à causa. Também Solignac por incompetente foi mandado para casa.

Napier lembrou-se então de propor ao mecenas que o trouxera de Londres um plano. Conhecia do tempo dos Franceses a configuração da costa portuguesa e lembrava-se bem da exploração que então fizera dela. A sua ideia era em segredo expedir uma divisão de cinco mil homens para o Tejo, nas costas do inimigo, tomando de imprevisto Lisboa e deslocando o teatro das operações para o sul.

Palmela sentiu nesse plano a derradeira oportunidade da trapalhada em que andava metido e levou-o ao regente. Não desejava de modo nenhum regressar ao Porto para continuar fechado dentro das muralhas da cidade, cercado por mais de sessenta mil soldados inimigos. A recordação pavorosa dos dias que por ali vivera no Verão anterior e a visão duma cidade a braços com epidemias mortais, onde até os ratos serviam de pitéu, eram mais do que suficientes para se agarrar com desespero salvador a qualquer plano que passasse por abandonar o Porto.

– Se não saímos da cidade, desta vez não escapamos. O plano de Napier é o único que nos pode salvar – disse ele ao regente.

Este estava por tudo, mas ainda assim mantinha um resto de orgulho e de teima. Mostrara-se um homem decisivo nas duras horas do Outono anterior e ganhara uma reputação de herói nos combates corpo a corpo que se travaram na parte oriental da cidade no dia de S. Miguel. Depois, durante os longos dias de Inverno, quando a cidade não tinha nada para comer e se caía a cada instante de tuberculose ou de cólera, ele passara boa parte do seu tempo a consolar os doentes, de lágrimas nos olhos, num desvelo que a todos comovera. Gestos como esse fizeram dele um camarada, um irmão, que todos punham por invencível. Percebeu que a sua pessoa naquele pequeno círculo do Porto ainda tinha valor e isso envaideceu-o. Quis por isso fazer durar aquela graça. Valeu-se da sua palavra, não porque tivesse ideias certas sobre o assunto, mas porque lhe custava que um plano com aquela importância não fosse seu. Era o amuo vulgar de quem estava habituado a ser obedecido, nunca a obedecer.

– Esperamos. Depois se verá – ordenou ele.

Palmela, que se via oprimido com a chegada dos dias de calor ao Porto, desesperou, mas não teve outro remédio senão esperar. Ensaiou uma aproximação estratégica com o chefe da facção radical. Detestava Saldanha e o seu estilo populista e aventureiro mas não via agora outra saída senão pedir o seu apoio para o plano de Napier, que era também o seu. Saldanha, por sua vez, desconfiava das intenções Palmela, em quem tanto via um cobarde como um tartufo, mas como militar percebia que a situação do Porto era desesperada e se fazia urgente uma acção audaz que desse ao inimigo um golpe decisivo e libertasse o Porto. Também ele lamentava que o plano não fosse seu, mas o seu feitio era mais lhano e prático que o do regente. Pôs-se assim de acordo com Palmela na necessidade de darem saída à expedição ao sul. Napier, quando percebeu que era preciso esperar, e que tinha o apoio dos dois partidos que se disputavam no interior do Porto, não esteve com ilusões e ameaçou voltar para Inglaterra caso Pedro não se decidisse.

O regente, diante de tanta pressão, não teve outro remédio senão aceitar a expedição. Limitou-se a impor novas condições, de modo a que o plano aparecesse como sendo do seu fabrico. Em vez dos cinco mil homens falados iriam apenas dois mil e quinhentos e em lugar do Tejo a expedição demandaria o rio Asseca, no Algarve, para ocupar Tavira, iniciando a partir daí a ocupação de toda a província, que seria a mais desguarnecida de militares miguelistas por ser também a mais distante do Porto. Vila Flor, feito já duque da Terceira, ia como general, com ordens militares; Palmela, com ordens civis, seguia como governador de todos os territórios conquistados em nome do regente; Napier, por fim, surgia como almirante da esquadra em que todos se acomodavam e onde flutuava a bandeira bicolor dos liberais Portugueses. Saldanha ficava sozinho, fechado no Porto, à testa da defesa militar da cidade, sem Palmela, sem Vila Flor, sem Napier. Era o tudo por tudo, o derradeiro esforço. Se perdesse, só lhe restava dar à perna ou espernear na forca.

Partiram a 21 de Junho de 1833. Passou a esquadra, aos olhos dos espias da margem esquerda do rio, como mais uma daquelas que ligava regularmente o Porto com a Inglaterra. Ninguém lhe prestou singular importância. Com a calmaria de Junho depressa chegaram à foz do rio Asseca, onde foram ocupar Cacela e Tavira. Como se previa, os militares miguelistas na província eram raros, apenas três ou quatro batalhões. Estavam sob as ordens do general Molelos, que mal soube da invasão tratou de avisar Lisboa, pedindo reforços e retirando para o lado norte da serra do Caldeirão. As tropas do duque da Terceira avançaram e em menos de dez dias dias ocupavam a província sem disparar um tiro. Mas as adesões eram tímidas, a população retraía-se, as famílias escondiam-se receosas, as ruas estavam desertas e sem sinais de proselitismo. Longe ia o entusiasmo que antes se encontrara no Porto. Aqui a desconfiança, o silêncio, a reserva pareciam dominar, o que era para estranhar em província tão calorosa e extrospectiva.

– São Franceses e ladrões – diziam a medo os civis.

– E para mais vêm esfomeados ­– acrescentavam outros, sussurrando, para não serem ouvidos.

Ainda assim Palmela sorria de contente. Ficara-lhe do rei anterior, com quem se fizera, o desgosto dos tiros e do sangue. Era um homem de gabinete, com o gosto dos contratos e dos acordos; nunca comprometia a sua segurança por princípios, que para ele valiam muito menos que as circunstâncias. Só se encontrava num dos lados da trincheira daquela guerra por causa dos acontecimentos tristes de 1824 que o haviam levado às masmorras da Torre de Belém e depois pelo ódio que se seguira à morte do rei e que o apanhara desprevenido em Londres. Por ele, tudo se tinha arrumado com o casamento do tio com a sobrinha. Demais, o Algarve lembrava-lhe a Itália, que era o seu berço, ele que nascera em Turim e vivera em Roma. Fumar um charuto perfumado no meio daquela luz diáfana, em cima duma açoteia branca, com a linha muito azul do mar ao fundo, era um prazer que o reconciliava com a vida e até com a guerra.

– Que aroma! Que luz! – exclamava encantado, pensando como lhe ficavam bem naquela brancura os sapatos amarelos envernizados, que eram o seu orgulho de janota.

As comunicações eram lentas e até que Lisboa tomasse nota da invasão do Algarve demorou o seu tanto. No entrementes, a província do sul estava ocupada e Molelos no Alentejo. Quando o governador militar de Lisboa, o duque de Cadaval, teve notícia da invasão, destacou de imedato divisões por terra para ajudar os batalhões de Molelos e enviou por mar a esquadra miguelista ao encontro de Napier. O reencontro teve lugar ao largo do cabo de S. Vicente num mar sossegado e debaixo dum céu azul. Era a tarde do dia 5 de Julho. A batalha durou se tanto duas horas. Às seis horas da tarde estava tudo terminado. Dos dez navios que constituíam a esquadra miguelista sete foram tomados por Napier; os outros três, miúdos e atarantados, fugiram para Lisboa, levando a notícia da derrota.

Entretanto Molelos, com os reforços que recebera de Lisboa, recuou para Beja na certeza de que o duque da Terceira se lembraria de tomar a cidade caso decidisse avançar para norte. Terceira, que acabara de tomar nota da derrota da esquadra miguelista, resolveu de feito avançar para norte, mas pelo litoral, fugindo de Beja para não encontrar Molelos. Também ele queria forçar a sorte. Por isso, desta vez, investia directamente para Lisboa, sem perder tempo e forças com desvios. Atalhou a Grândola, Alcácer e Setúbal, que lhe caíram nas mãos sem quase disparar um tiro e lhe engrossaram a coluna com uns voluntários mais.

Em Lisboa o duque de Cadaval, quando tomou notícia desta avançada fulminante, que em três ou quatro dias transpunha a distância que ia da serra algarvia à capital, o único recurso que encontrou para travar este corta-mato imparável foi chamar Teles Jordão, que entretanto regressara do Porto a Oeiras. Era feroz, determinado, experiente. O duque deu-lhe três mil homens escolhidos a dedo e mandou-o para Almada com a tarefa de defender a capital pelo lado sul. Estava Teles Jordão a espalhar os seus homens do Seixal à Piedade quando as suas guardas avançadas deram com a vanguarda dos liberais a avançar em passo largo de Azeitão a Coina. Vinham azougados e eufóricos. Era o fim da tarde do dia 23 de Julho; começava a escurecer e as cores do céu, pálidas e vagas, não deixavam ver com nitidez a coluna liberal, que tanto parecia um fio azul e branco a esfumar-se na terra, insignificante como um carreiro de formigas, como um leito caudaloso, uma torrente escura, grossa e ameaçadora, pronta a engolir tudo o que lhe aparecesse pela frente.

Teles Jordão, sem saber que forças trazia o inimigo, não se atreveu a avançar; decidiu antes, por prudência, reunir as suas forças entre Almada e o Seixal e esperar aí pela chegada do duque da Terceira. Caía a noite quando os dois exércitos chocaram um com o outro. O embate foi tão violento que os homens de Teles Jordão vendo-se perdidos recuaram precipitadamente para Almada, à procura dos botes que estavam em Cacilhas. Na precipitação muitos perderam as armas, outros a mochila e outros até o uniforme, todos na esperança de poderem escapar às mãos dos liberais, que os enlaçavam e chacinavam. O morticínio continuou na praia de Cacilhas, onde os cacilheiros nem sequer conseguiram largar para Lisboa. Foi aí, no meio do clamor dos que agonizavam nas areias lodosas do rio e dos que enfurecidos pelo sangue uivavam de embriaguez, que alguém filou pela gola do capote o torcionário da fortaleza da barra do Tejo e o reconheceu.

– É o Teles Jordão! É o Teles Jordão! ­– gritou-se de imediato por todo o lado.

Precipitaram-se todos. Eram lobos na noite escura, com os olhos enfurecidos a luzir, a boca seca, os dentes de fora, magros, esfomeados, desapiedados. No meio do silêncio, ouvia-se apenas, de instante a instante, o rosnar feroz daquela horda selvagem. Derrubaram-no com uma pancada seca, pontapearam-no, apedrejaram-no, insultaram-no, picaram-no com a ponta afiada dos sabres e por fim, aos urros e aos risos grotescos, arrastaram-no aos baldões nas pedras do rio, até que por fim cansados da chacota o deixaram no chão como um farrapo ensanguentado. Um deles acocorou-se e rugiu arrastadamente ao ouvido do moribundo, enquanto se preparava para lhe apontar aos miolos o cano frio duma pistola.

– Vais morrer como um cão raivoso.

Mas outro, que estava a seu lado, afastou-lhe a arma e pausadamente adiantou, com o aplauso de todos.

– Vais antes rebentar como uma noz chocha.

Pegou-lhe então nos cabelos molhados e estalou-lhe com um puxão forte os ossos da cabeça contra uma pedra quinada que por ali estava. Aquele cérebro medonho, que concebera nas suas sinuosas circunvoluções as atrocidades monstruosas de S. Julião da Barra, escorreu para o chão como uma lama suja e podre à procura dum esgosto. Por fim, foi desfazer-se na babugem do Tejo que se espalhava perto, inofensiva e indiferente à onda sanguinária dos homens. Era a mesma babugem que do outro lado do rio, nas celas baixas da fortaleza de Oeiras, vinha ao de cima das pequenas ondas lamber e lavar a porcaria dos presos que estavam à guarda de quem tão escuramente ali morria.

Em Lisboa, de Belém ao Terreiro do Paço, na noite escura, milhares de olhos espiavam em silêncio, com preocupada atenção, o que se passava do outro lado do rio. O céu estava limpo, brilhavam as estrelas, não corria vento e quase que se ouviam, trazidos na viração quente do sul, os gritos destemperados dos que se batiam nas pedras do cais de Cacilhas. Ouviam-se com nitidez os estampidos secos das balas varar o silêncio e viam-se os seus clarões riscar o ar como foguetes, iluminando nesse trânsito as sombras negras dos que se apunhalavam sem dó na refrega. Era um baile macabro, uma dança infernal, de esqueletos vestidos de dólmans, que se abraçavam e repeliam, movidos por poderosas e desconhecidas descargas eléctricas. No outro mundo, a alma da defunta rainha Carlota Joaquina apadrinhava com uma música de traques ruidosos e sapateados a valsa sinistra daqueles corpos que cegamente chocalhavam uns contra os outros. Era ela a dona do guinhol onde aqueles títeres jogavam forte à cacetada e era ela que aos risos lhes manobrava os cordelinhos com os dedos esqueléticos de bruxa cega, sedenta apenas de sangue e sofrimento.

Os raros que conseguiram escapar da chacina e velejaram para Lisboa trouxeram a notícia da derrota e os pormenores da chacina. Instalou-se de imediato o medo na cidade. Corriam rumores de que a coluna de liberais estava disposta a passar à faca toda a população, considerada beata e traidora à rainha. Espalhou-se a ideia de que traziam ideias vingativas e forças poderosas, irresistíveis, que haviam aniquilado as divisões do Molelos e os colossos do Teles Jordão. Todo o sul do país caíra nas suas mãos, sem qualquer resistência. Era o pânico. E pela segunda vez se ouviu gritar do fundo da alma colectiva aquele grito apavorado que trinta e cinco anos antes saíra das escancaradas e amedrontadas goelas dos lisboetas e correra de boca em boca toda a cidade.

– Fujam! Fujam! Vêm aí os Franceses! Vêm aí os Franceses! São as tropas do Anticristo! Fujam! Fujam!

E pela segunda vez fugiu tudo. Fugiram os soldados medrosos dos regimentos, fugiram os frades apavorados dos conventos, fugiu o comando militar da cidade com o duque de Cadaval à frente, fugiram os magistrados e os funcionários das secretarias, fugiram os nobres e as famílias, ao todo cerca de trinta mil pessoas que se foram aboletar para os lados de Loures, bem depois das encostas do Lumiar. Só ficaram os pedintes, os pobres, os velhos, as vivandeiras, os comerciantes, os homens de ofício, os estalajadeiros, quer dizer, os burgueses e os plebeus, que não tinham para onde ir e não podiam sequer sair da cidade numa caleche, porque a não tinham.

E no dia seguinte, 24 de Julho, quando o duque da Terceira à frente da coluna militar entrou pela parte ocidental da cidade, depois de desembarcar perto de Alcântara, deparou com uma cidade risonha, festiva, engalanada de colchas azuis e brancas nas varandas, com gente nas ruas aos vivas à rainha e ao regente, lacinhos constitucionais nas lapelas e improvisadas bandeirinhas bicolores nas mãos. O ladrão do Brasil, o Anticristo de ontem, rejeitado e cuspido, passava a ser o herói de hoje.

Aqueles bons burgueses que tinham passado anos a beber copinhos de jeropiga em honra do arcanjo loiro que viera salvá-los do ladrão do Brasil, aquelas mesmas meninas, sectárias histéricas de Carlota Joaquina, que haviam assistido às forcas do Cais do Sodré do alto das suas varandas como se assistissem num camarote do São Carlos, ao Chiado, a um singular espectáculo de teatro cantado,  nem sequer se tinham esquecido de ir ao castelo de S. Jorge arrear a bandeira vermelha do miguelismo, substituindo-a pelo pendão azul e branco da rainha. Lá estava ele no alto da cidade, sedutor, jovem, vitoriado.

– Não falte por ora a ração e ninguém se­ lembrará mais de Dom Miguel – comentou um Palmela céptico e manhoso, para quem a alma humana não guardava segredos.

Miguel enquanto se davam estes factos, apertava o Porto na força do seu desespero. O Porto, com Saldanha à frente, teimava em não cair e o arcanjo loiro ordenou o assalto final à cidade no dia mesmo em que Terceira e Palmela tomavam posse da capital. E no dia seguinte, a 25 de Julho, sem saber ainda do desaire de Lisboa, cerca de cinquenta mil soldados, comandados por um absolutista francês que a revolução de 1830 atirara para o exílio ensaiavam de novo um assalto à capital do liberalismo português. Mas Saldanha, prevenido e ardente, ajudado em força pela população da cidade, varejou as ondas inimigas, não as deixando sequer pisar o terreno próximo das trincheiras. Logo depois chegaram as notícias de Lisboa e da fuga do exército primeiro para os arredores de Lisboa e de seguida, já com as divisões de Molelos incorporadas, para Coimbra. Foi o desnorte entre as hostes do arcanjo loiro. Ninguém conseguia acreditar no volta face da Fortuna. O rei, quando percebeu a dimensão do desastre em que estava metido, deu em desesperar.

– Está tudo perdido! ­– exclamou ele, tão desasado como os seus capitães.

Estava, mas ainda faltava o episódio final, porventura o mais digno e o mais caricato, aquele em que os dois irmãos haviam de vir cara a cara. Não restou nos primeiros dias de Agosto ao pobre e abandonado Miguel senão retirar ele também. Deixou o Porto para trás, em cima da montada, cabisbaixo e absorto, à frente do exército, com o objectivo de se reunir em Coimbra ao esfrangalhado resto das suas forças. Não sei se ia digno, nobre, honrado como quer um historiador do passo, mas decerto que ia magoado e infeliz.

No Porto, mal se soube da queda de Lisboa, foi uma explosão de euforia. A cabeça do regente fervilhou de planos e de grandezas. Não descansou enquanto não embarcou na Foz para o Tejo e quando o irmão começava a pensar retirar para Coimbra chegava ele a Lisboa do alto da sua soberba. Convencia-se que se aquela vitória se obtivera a ele se devera. Ele é que aguentara firme o interior do Porto, quando Saldanha ainda mendigava a côdea pelas ruas de Paris e Palmela andava desejoso de ir fumar em Londres o seu charuto preferido; ele é que puxara pelo Porto nas horas cruas e feias do Outono de 1833; ele é que estivera à cabeceira dos feridos e dos doentes no Inverno seguinte; ele é que enterrara os mortos; ele é que teimara e ele é que por fim decidira que a expedição havia de ir ao Algarve e não a Lisboa. Era ele o homem do momento, mais ninguém.

  • Palmela percebeu tudo, quando o avistou na amurada do barco onde acabara de chegar do Porto. Palmela, Terceira e Napier, num escaler com seis remadores, iam ao seu encontro. Ele vinha fardado a rigor, mão direita ao peito, entre os botões de oiro do paletó, sonhador e altaneiro, contemplando interessadamente o casario de Lisboa, que ele não via há mais de vinte e cinco anos, uma eternidade num homem com pouco mais de trinta anos.

– Quer honras e mariolices – segredou velhacamente Palmela ao ouvido de Terceira.

Levaram-no a ver os palácios onde passara a sua primeira infância. Lá estava em Queluz a sala ampla e luxuosa em que havia nascido, com chão de embutidos de madeira e quixotescos frescos nas paredes e no tecto; lá estava nas Necessidades a capela, onde um dia se lembrava de ter ouvido missa na companhia da tia Maria Francisca; lá estava o palácio da Ajuda, muito mudado, ele que ainda se lembrava dos restos da Real Barraca onde vivera o avô depois do grande terramoto de 1755; lá estava a matinha de Belém onde merendara pêssegos e pão-de-ló com as irmãs nos longos e quentes dias de Verão, enquanto o rapazio blasfemava aos berros no cais; e lá estava a Bemposta, com o quarto ao cimo das escadas, onde se lembrava de ver pela primeira vez a avô rainha, a Doida, que morrera depois, já no seu tempo de adulto, no Rio de Janeiro. Depois foram à igreja de S. Vicente, no alto de Alfama, perto da rechã da Graça, ver o panteão onde repousavam os Braganças, seus antepassados. Lá se viam, na ampla e fria galeria mortuária, as arcas nuas e clássicas, onde se deitavam os seus mortos, o último dos quais o pai. Ajoelhou-se por um momento na laje do chão, aos pés dos seus restos.

– Louvado seja Deus – disse ele, benzendo-se.

Palmela e Terceira recuaram para a porta, apertados por aquele encontro. Pelo espírito do regente passavam as imagens antigas do pai no paço de S. Cristovão, na Guanabara, onde ele fazia de pacato hortelão. Ouvia-lhe ainda no morro a voz grossa a cantar uma modinha em contraponto com o Lobato. Eram recordações azedas, porque nunca aprovara nem simpatizara com o feitio desleixado e desprendido do pai. Mas não era por isso que agora genuflectia diante da sua lousa; estava ali, de cabeça baixa, joelhos na pedra fria, cismando no escuro, por causa dos eventos em que andara metido, abdicação, Carta, casamento da filha com o irmão e por aí fora até à confortável situação daquele momento. Era por isso natural que ali passasse para lhe render homenagem. Também esse facto lhe enchia de ar a cabeça estouvada. Sentia-se vaidoso por ali estar. A derradeira vez que vira o pai fora na despedida do Rio, em Abril de 1821, quando se desencadeavam os motins por causa da Constituinte portuguesa. Era então um velho de cinquenta e poucos anos, amargurado e infeliz, que dava o braço à tia triste e escura, Maria Francisca Benedita. Aquela vitória que acabava de obter em Lisboa era a sua vingança. Sentia pois que o seu braço redimira as tristezas e as misérias do pai.

– Um filho te sujou, outro te limpou; um te assassinou e outro te vingará ­– assim jurou, estrondoso e nítido, de modo a que os seus dois capitães o pudessem ouvir, quando se levantou e voltou costas à arca onde jaziam os restos do pai.

Estava convicto numa vitória rápida e fulminante que aniquilasse o irmão em poucos meses. Confiava na seriedade do duque da Terceira, na oportunidade da ajuda de Saldanha e sobretudo valorizava a sua disposição para vencer. Palmela, mais prudente, mais matreiro, esfriava-o com profecias, em que não acreditava porque era um céptico formado na escola de Voltaire, mas que lhe davam a vantagem de se fazer notado, de se tornar interessante ou de fazer escola junto dos rapazes mais novos.

– A vitória virá daqui a dois anos, no ano de 1835, numa grande batalha, no pino do Verão – dizia ele assertivo e misterioso. – Os algarismos do ano de 1835 são os mesmos que existem no ano de 1385, que representou para Portugal a arrancada da sua grandeza.

Pedro, romântico e sonhador, perturbava-se com estes cálculos. Primeiro pensava-se destinado a fundar uma nova dinastia e a abrir um novo mundo, a viver um reinado tão venturoso, tão produtivo e tão longo como o do mestre de Avis. Lembrava-se do ano de 1833, em que chegara ao Porto, e fazia contas também ele. Palmela, videiro, ajudava.

– É verdade. O ano de 1833, em que Sua Alteza tomou nas mãos a defesa do Porto, levantando a cidade contra o usurpador, escreve-se com os mesmos algarismos do ano de 1383, em que o mestre vingou a honra do irmão e matou o conde de Andeiro, levantando o povo de Lisboa contra a Aleivosa.

Pedro delirava com estas associações, que se popularizavam no seu estado-maior. Era ele o novo mestre de Avis. Mas, depois, pensando na filha e nos insultos de Pizarro, julgava-se antes o Condestável, o Nuno Álvares do novo regime. Preparava-se por isso para a grande Aljubarrota que lá vinha, fazendo do seu exército uma máquina trituradora dos traidores do irmão.

Pensou de imediato mandar vir as filhas e a esposa da França, onde as deixara ao cuidado dos Orleães. Encarregou da viagem o duque de Loulé, Nuno Rolim de Moura Barreto, seu ajudante de campo e seu cunhado, filho do marquês velho, que o irmão e a mãe mandaram matar nas primeiras desordens de 1824, e esposo da sua irmã mais nova, Ana de Jesus Maria. Vieram as meninas e a esposa nos finais de Setembro pela mão de Nuno Rolim. Lisboa recebeu com novas festas azuis e brancas a rainha. Vinha mais gorda, mais distante, mais polida. Era uma menina de quatorze anos, que ganhava um jeito sério de matrona europeia, sempre alheia ao mundo comezinho e miúdo que a rodeava. Vivia num pedestal de vidro ou num trono de cristal, convencida de que tudo o que tinha a fazer era estender a mãozinho branca de loiça e dar os seus dedos gordos, curtos e perfumados a beijar, afastando o olhar, demasiado elevado, demasiado divino, para poder poisar nas coisas escuras e plebeias deste mundo.

Que pensaria ela, aos quatorze anos, daquela guerra fraticida entre os partidários do tio e os do pai? O que podia ela pensar, a não ser que os reis existiam para reinar, quer dizer, para mandar, e os súbditos para obedecer?! A guerra era uma dispusta de família, um desentendimento no seio dos que mandavam, não uma contenda de ideias. Mandava quem ganhasse e pudera que fosse ela, porque desde que viera a primeira vez à Europa e fora recebida em Windsor que se sentia rainha a valer. Que apetite imenso tinha de o provar! A Carta? A Carta era uma excentricidade de quem mandava, porventura uma generosidade, nunca uma faculdade natural dos que obedeciam.

Saldanha, no Porto, libertava-se das divisões miguelistas que o arcanjo loiro decidira deixar na sua retirada, levantando assim o cerco da cidade, sitiada há mais de treze longos meses. Livre de pressões, desejoso de se cobrir de glória nos campos de batalha, sedento de acção, veio ele também açodado e guloso para Lisboa. Ansiava por apanhar pela frente os restos do exército miguelista, que tinha agora ao comando o velho Póvoas e se acantonava no centro do país, em volta de Santarém, baluarte final do miguelismo, onde tudo o que restava do velho Portugal, amedrontado e pressuroso, se tinha vindo fortificar. Santarém era agora o Porto do miguelismo.

No princípio do ano de 1834 Póvoas foi batido por Saldanha em Leiria, Pernes e Almoster. A situação ficou tão negra para Miguel que a Inglaterra no mês de Março se apiedou e lhe propôs um medianeiro para capitular com negociações. Ele, picado pelo brio, puxado pelas recordações da mãe, chorando lágrimas de raiva, recusou. Não esperava nada, não podia querer nada; sabia-se desde Julho perdido, mas ainda assim teimava. Preferia morrer num charco de sangue, que render-se. Santarém estava num estado lastimável, com as três saídas por terra cortadas. A leste espreitavam os exércitos de Terceira, a norte os de Napier e a ocidente os de Saldanha. Restava apenas a saída do sul, a travessia do rio e a vasta charneca alentejana com a sua desolação silenciosa e o desafogo da sua infinita lonjura.

Não hesitou e no meado de Maio, com os poucos fiéis que lhe restavam, Miguel atravessou o Tejo e foi perder-se na campina rasa e solitária. Dos oitenta mil soldados que em tempos estavam ao seu serviço sobravam-lhe agora pouco mais do que quinze mil; as deserções depois da queda de Lisboa haviam sangrado sem remédio o seu exército. Era menos uma coluna militar que um bando de sujos e esfomeados maltrapidos, com as armas encravadas, as espadas partidas, os sapatos rotos. Ele próprio, o chefe dos retirantes, não tinha mais que o seu velho capote, as botas empoeiradas e a espada de cortiça, que a ninguém inspirava já respeito. A província era despovoada e solitária e as almas vivas que se avistavam com regularidade naquela aflição eram os peneireiros que os espreitavam desconfiados, com assobios zangados, penas eriçadas, garras afiadas e nervosas, do cocuruto das pedras. Os campónios, imundos, grosseiros, infelizes, sabendo dos seus desaires, desentocavam e vinham ainda assim ao caminho beijar-lhe a ponta empoeirada da bota.

– Sua Majestade el-rei ­– exclamavam rendidos e deslumbrados quando o viam aparecer com o seu ar angélico de rapazito loiro e magro.

Outros, com os filhos pequenos ao colo, ajoelhavam, de olhos fechados, cerviz dobrada quase até o chão.

– A real benção, a real benção – imploravam submissos e dedicados.

Ele, ridículo e enxovalhado, de capote gasto, boné sujo empoleirado na cabeça, barba por fazer, cabelo por cortar, ia demasiado absorvido nos seus problemas para se dar conta de que tinha ali à mão um motivo de alegria. À sua volta, tudo se desmoronava. Nem casa tinha; Queluz já lá ia e nem Santarém, com os restos do convento de S. Francisco, lhe restava. A bem dizer, tudo o que sobrava de seu era aquele velho capote, aquelas botas empoeiradas, o boné amolgado e curto, devido às chuvas, e o puro sangue em que montava. Nem uma muda de roupa decente tinha. Olhava o céu enlameado do entardecer e percebia bem o que o esperava lá longe; tinha consciência que cada passo que dava encurtava a distância que ia de si à sua perdição. De espaço a espaço, repetia para dentro o seu soluço, o único que no meio da sua infelicidade conseguia soltar.

– Está tudo perdido!

Nunca como naquela estrada o azul dos seus olhos se fez frio, apagado, triste, dissolvido que era por chuvas e mágoas, e nunca como naquele momento a saudade da mãe lhe sufocou tanto o coração porque nunca como então se sentiu o mais infeliz dos infelizes, o mais miserável dos miseráveis, o último dos últimos. Bem mereces, no momento da tua perdição, ó Miguel, uma palavra de compaixão. Como eu neste transe compreendo esses pobres e andrajosos labregos transtaganos que acorriam à beira dos caminhos para te saudar e beijar de lágrimas nos olhos a ponta da bota. Foste um menino banal, um queque loiro, com açúcar brasileiro e ovos minhotos, roubados à beata Braga dos arcebispos, mas a desgraça deu-te luz e grandeza. Triste de quem é feliz, disse o poeta. Louvado pois o miserável que, como tu, perdeu tudo.

Miguel resistiu porém ao desânimo. A atmosfera infernal da planície transtagana, com os diabos emplumados no alto das pedras a olharem para eles com ar de desafio, acordou nele uma lembrança de sonhos sublimes e um desejo de factos notáveis e impossíveis. As suas pulsações aceleraram e o seu sangue correu mais depressa nas artérias. Essa ânsia incendiária de heroísmo louco era porventura o que de melhor se aproveitava da sua alma de toureiro, porque era sincera e porque mostrava um ser cujas qualidades transcendiam os seus interesses imediatos.

– Meus senhores, façamos juntos desta charneca outra Alcácer Quibir. Morramos todos aqui, mão na mão, na boca dos chacais que aí vêm – pediu ele, hirto e firme, aos seus capitães.

Mas naquele pobre ermo de pedras e chaparros ninguém estava nessa disposição. Dois anos de campanha bruta haviam chegado para mostrar a impossibilidade de se vencer os partidários da Carta. Não era agora, acossados por um exército quatro ou cinco vezes superior, que iam bater o pé com insistência ou continuar a escapar como salteadores. Tinham-se batido adrede para que o seu modo de vida vencesse, não para morrer ao desbarato, como insensatos ou formigas. O que havia a fazer, enquanto estavam juntos e impunham pelo número algum respeito, era negociar uma rendição que fosse o mais honrosa possível, salvando-lhes vida, bens e famílias.

E poucos dias depois, a 26 de Maio, estavam os dois exércitos reunidos em volta da elevação de Évora Monte, onde no castelo os dois irmãos e os seus próceres negociavam. Era assim, em águas mansas e turvas, que acabava aquela dura campanha, que uns, como Miguel, desejavam finalizar com uma nova Alcácer Quibir e outros, como Pedro, esperavam fechar com uma nova Aljubarrota. Afinal, nem uma nem outra, mas apenas um negócio desconfiado, com os dois exércitos olhando-se à distância, no sopé do castelo, a ver quem mais podia ganhar. Portugal, gasto por uma longa vida, humilhado pela Europa, esgostado pela descrença, de alma vazia, sem miolo, voltado todo para a França ou para a Inglaterra, já não tinha energias para uma vitória que tanto tinha de épico como de solitário nem forças para uma derrota tão estrondosa como uma vitória. Ficava-se antes por aquela negociata monótona e insípida.

Negociavam o quê? Nada, porque nada havia para comerciar ou ajustar. Os capitães do regente haviam simplesmente exigido a rendição, sem mais; diante de tal exigência os capitães do arcanjo anuíram, posto que contra a vontade deste. Por isso, lá em cima, numa rua do interior do castelo, o que se fazia era estipular as cláusulas da Convenção, que uns ditavam e outros aceitavam e assinavam para não serem passados pelas armas ali mesmo.

– Lucramos a vida, que é aquilo que mais importa – dizia um Póvoas velho, desanimado mas ainda prático.

Era esta a filosofia geral que grassava nos homens do exército absolutista. Tinham como única exigência que lhes poupassem a vida, nada mais. A este estado de miséria chegara o miguelismo, ele que ainda à morte de Carlota Joaquina era um paquiderme ameaçador e invencível, que punha em respeito as próprias potências europeias.

A princípio, o regente ia feroz e determinado a deitar a mão aos gorgomilos do irmão. Andara a barafustar aqueles anos todos para poder saborear aquele momento solene, dando um valente pontapé no rabo do mano desobediente e pedindo-lhe o pescoço para lhe passar a corda. Depois, quando o viu, pálido, loiro, acabrunhado, quase um pirralho insignificante, sentiu-o o mais miserável de todos os homens. Numa poça de sangue, Miguel teria morrido sorridente e entusiasta, quem sabe se com um dito sábio e proverbial na boca; assim, entreportas, com os capitães sentados numa mesa, atarefados em salvar a carcassa roída, morria cheio de vergonha. E essa desonra pintava-se-lhe no rosto como uma sombra medonha e infamante. Pedro na sua vida de homem vivido nunca havia visto uma tal expressão de infelicidade.

– A vida lhe ensinou a lição. Eu saio fora deste jogo ­– disse ele, quase agoniado, quando assim o viu.

E poupou-lhe mais humilhações, mandando-o apenas para o exílio com uma pensão anual e a proibição de regressar a Portugal. Não lhe dirigiu sequer uma recriminação, ele que tivera a brutal saída de S. Vicente, em Lisboa, uns meses antes, frente aos restos mortais do pai.

Nesse impulso de fraterna generosidade, abraçou também os soldados vencidos do irmão, permitindo-lhes regressar em liberdade a casa, ao seio das famílias, não lhes tirando sequer os postos militares. Assistia-lhes ainda a possibilidade de emigrarem para onde bem entendessem, caso não quisessem reconhecer o novo regime político. E de liberalidade em liberalidade, o regente amnistiou os crimes políticos, salvaguardou os bens dos vencidos, facultou-lhes em larga escala a integração na nova sociedade com incentivos e benesses, recusou-se a criar tribunais especiais para julgar crimes políticos ou de guerra. Ele, que se gabava de ser macho fero, de teima rija, teve afinal nesse momento de fraqueza, em que estendeu a mão piedosa aos inimigos ferozes, mostrando-se uma alma vacilante e generosa, o seu verdadeiro relâmpago de génio. A grandeza não está em vencer, pois até os que odeiam são capazes de vitórias, mas em ser magnânimo com os vencidos.

E assim se separaram os dois irmãos. Não se viam há mais de treze anos e nunca mais se veriam depois disso. Nem uma palavra trocaram. É porventura esse o momento mais triste de toda a História de Portugal, mas duma tristeza mansa e branda, nada encarniçada, a lembrar o mavioso soneto de Camões que começa Aquela triste e leda madrugada/ Cheia toda de mágoa e piedade. Chove lá fora neste momento em que escrevo estas palavras e tenho a certeza que nessa chuva ainda hoje escorre no céu uma lágrima por aquela separação tão cinzenta e tão magoada. É que este mesmo céu que eu hoje vejo é o mesmo que outrora viu aquela cena tão triste entre os dois irmãos. Um foi dali para a praia de Sines, embarcar no vapor que o levaria para o exílio negro e amargo, e para longe desta minha história, onde nada mais tem a fazer, e o outro foi para os paços de Lisboa, saborear no seio dos seus o doce e alvo sabor da vitória.

O primeiro teve na estrada que ia de Évora até Sines o epílogo cruel da tragédia que começara com a retirada do Porto e tivera o seu último acto na fuga de Santarém. Era um infeliz, abandonado pela sorte, com o rosto pintado pelo opróbrio, que todos desejavam ver depressa pelas costas e esquecer para sempre. Esse pedaço de estrada foi o derradeiro troço do seu calvário, o mais duro e o mais aflitivo. Ia de braços a abanar, sem levar nada com ele, a não ser a roupa velha e suada que vestia e com que fizera as últimas campanhas. Em Sines não encontrou urubus emplumados, rabugentos e insociáveis nem campónios de presépio, humildes e ajoelhados, mas uma multidão enfurecida e insultuosa, que pedia aos berros, de braços erguidos, baraços e cutelos nas mãos, o seu linchamento. Já todos conheciam a notícia da sua derrota e humilhação. E todos pareciam agora dispostos a fazer dele o bode expiatório dum país que perdera o Brasil e a vergonha numa guerra inútil e afrontosa.

– Que me enforquem! E depressa ­– respondeu-lhes ele, sincero e rábido, fechado entre os cabos da escolta, de mãos atadas, o rosto molhado pelo suor.

Mas não, nem isso lhe permitiram. A guarda protegeu-o, afastou com a coronha das armas os populares, esses mesmos que ontem o vinham idolatrar aos caminhos, chamando-lhe salvador e outros epítetos assim sonoros, e meteu-o dentro do vapor inglês que o levou para um longo exílio de mais de trinta anos. Levou-o e não o trouxe mais. Morreu longe e deixa por isso esta história. Os seus descendentes são outra família e pertencem a outra história e a outro livro.

Pedro por seu lado julgou ter no poeirento caminho que o levava de Évora a Lisboa uma passadeira anil de veludo. Como se enganava, vida minha! Quando chegou  à capital e foi com a esposa ao lado, todo inchado da beleza dela e da firmeza dele, fardado de generalíssimo, ao São Carlos para um espectáculo de teatro cantado perdeu as miseráveis ilusões que trazia. Primeiro, quando apareceu no camarote real de braço dado na esposa, contando com uma recepção truinfal, foi apupado e pateado. Ficou interdito. Em baixo, na plateia, uma multidão enfurecida levantava-se, de braços no ar, aos gritos. Um, exaltado e impertinente, por baixo dele, de punho levantado, ameaçador, barba talhada à passa-piolho, gritava.

– És tão bom como o teu irmão. Ó alma do diabo, bem podes ir com ele para o inferno.

Ele, assomadiço que era, esteve para pegar nas cadeiras do camarote e desancar com elas a multidão que em baixo o apupava. Estava cego, perdido, raivoso. Nem ouvia o que lhe diziam, mas ainda assim percebia que a multidão reclamava vingança contra os vencidos e a morte do usurpador. Acusavam-no de pusilânime e de traidor, ele que tivera no momento da sua generosidade o seu talvez único rasgo de talento.

Depois, quando decidiu sair do teatro, dando de barato o espectáculo a que viera assistir, decidido a poupar a esposa à triste visão da sua humilhação, sentiu tosse, uma tosse funda, áspera, dolorosa, que lhe arrancou uma golfada vermelha e lhe deixou o lenço todo ensopado de sangue. Foram dali a toda a pressa consultar os médicos que o deram por perdido. Contraíra o vírus da tuberculose no cerco do Porto, nos duros dias de Inverno, em que teimosamente velara à cabeceira dos doentes, e estava condenado como os mais. Tanto morria ele, ex-imperador e regente, como as prostitutas que rondavam vestidas de negro o jardim da Cordoaria. A morte ceifava às cegas e ele expusera-se sem precauções nem cuidado ao traço da afiada lâmina da sua gadanha. Deram-lhe no máximo três ou quatro meses de vida.

Eis o lance mais caricato da vida deste homem. Vitorioso, magnânimo, heróico… e condenado, aos trinta e cinco anos, a morrer num prazo de três meses. Estranho e desconcertante o destino de quem vencendo acabou no dia da vitória por invejar aquele que fora vencido. É que a vida importa mais do que as vitórias e ele se pudesse bem teria trocado os loiros pela vida. Também tu, Pedro, vais desaparecer desta história para nunca mais voltares. Estranho destino o teu; vences e vais-te embora, como o teu desgraçado irmão que perdeu a guerra e o país. Só uma diferença mínima te separa afinal dele, mínima e máxima no mesmo lance: a tua descendência directa é que continua a dar sangue e cor aos painéis deste livro, enquanto a descendência do teu irmão pertence em definitivo a outro livro e nada tem para fazer aqui. Sê pois humilde, melhor, sede ambos, tu e o teu irmão, e aceitai o vosso destino de desgraçados, ou tão-só de homens, um porque vai morrer e outro porque vai embora. A mesma escuridão para os dois, a do excídio e a do exílio, duas palavras irmãs no som, na dor e na solidão, como Pedro e Miguel são irmãos no sangue e no sentimento, o do ódio mais aceso e o do perdão mais magoado.

Consciente do seu estado que se agravava de dia para dia, decidido a aproveitar o tempo que lhe restava, disposto até a reagir e a inverter o destino que lhe vaticinavam, como não podia deixar de ser em compleição de tão grande presunção, pensou pelo sim, pelo não entregar-se a duas tarefas. Desfazer-se da regência, transferindo o poder para a filha, e regressar ao Porto.

– O Porto é a minha coroa de loiros mas também o meu vício – dizia ele nessa época à esposa, não sabemos se só com amargura ou se também com alguma ponta de humor.

Começou pela viagem, pois as Cortes constitucionais só seriam convocadas no meio de Agosto e o Porto estava sempre lá, na foz do Douro, na margem direita do rio, em frente de Gaia, à sua espera. Havia abandonado a cidade na noite de 26 para 27 de Julho do ano anterior e escolheu essa mesma data para sair de Lisboa na companhia da esposa e da rainha. Festejavam-se os restos do S. João e o nascimento da Liberdade quando ele e a família desembarcaram na Foz e foram levados por uma multidão eufórica para a Praça Nova. Fazia um ano que partira e a cidade consciente do papel que havia tido na vitória sobre as legiões do loiro arcanjo explodia de alegria diante do regresso do seu protector. Protector ou protegido? Protegido, porque foi a cidade que lhe deu o momento triunfal da sua vida, não o contrário. O Porto para ser invicto tanto precisou dele como daquelas vivandeiras que viraram à lambada uns tantos soldados do Santa Marta na luta corpo a corpo. Ele é que, para virar o destino, só teve aquele porto de abrigo.

Tentou aparentar ânimo rijo, não arredando pé dos saraus e dos festejos que foram organizados em honra sua e da rainha. Revisitou com gosto o palácio das Carrancas onde havia começado por viver no Verão de 1832 e o apartamento da rua de Cedofeita onde havia sonhado depois como um jovem burguês romântico apaixonado com os poentes da Foz; voltou a frequentar a igrejinha da Lapa, onde tantas vezes estivera anónimo, embuçado na grande capa de lã que lhe escondia a cara e foi passear com a mulher e a filha ao campo de Santo Ovídio. Atrás deles, uma multidão permanente vitoriava a jovem rainha, empunhando o seu retrato, batendo bombos e lançando foguetes que rebentavam numa estrondo de efeitos azuis e brancos.

A filha empertigava com todas aquelas galas, que eram para ela o epílogo natural e esperado da sua vida. Salvando o seu momento de desânimo, sabia-se fadada para rainha, quer dizer, para viver acima do comum dos mortais, muito perto dos deuses, num limbo de silêncio e solenidade. Olhava os rostos turbulentos daquela gente que batia forte com as baquetas de madeira na pele esticada das zabumbas, cheirando a vinho azedo de Rio Tinto e a sardinha gorda de Matosinhos. Eram brutos, idiotas, burlescos mas eram os seus súbditos.

– Serão estes os soldados de que vós me faláveis nas vossas cartas? ­– perguntava ela com ar desinteressado.

O desinteresse era tudo o que ela podia sentir por aquela gente. Eram sobejamente soezes para merecerem da sua parte qualquer coisa que se assemelhasse a deferência; por outro lado, devia-lhes tanto que não lhes podia querer mal ou sentir por eles repugnância consciente. O pai fazia-lhe um sinal afirmativo com a cabeça, mas estava demasiado absorvido com as mazelas do corpo para lhe prestar atenção segura.

Ela não notava, mas ele respirava com cada vez mais dificuldade e esforço. Passava as noites acordado, sentado num divã, afundado em dois ou três almofadões, muito incomodado com a molesta urgência que tinha de pôr no sorver do ar. De dia, as dificuldades cresciam, já que tinha de se levantar, vestir, sair, compor um rosto bravo, andar, ficar de pé. Tinha as pernas e os pés repletos de edemas, tumefacções que acabavam por rebentar, criando feridas dolorosas, que dificilmente saravam. Perdia cor e apetite, acinzentava e emagrecia. Nu, depois de despir a espessa plumagem do seu uniforme de comandante, ficava reduzido a uma espinha fina, descarnada, amarelecida, murcha. O cabra macho de outrora, enfatuado e musculado, esvaziava-se como um balão de ar furado. Deixara crescer a barba, que era negra e espessa, idêntica à dos seus antepassados Italianos; procurava assim tapar a magreza macilenta do rosto, disfarçando os traços da doença e iludindo aqueles que o viam.

Quando regressou a Lisboa para a abertura das Cortes, sentiu-se melhor. A viagem por mar, com brisa favorável e bom tempo, picara-lhe o apetite, sarara alguns dos edemas, pacificara o seu tanto as noites. Renovavam-se as esperanças, apesar da opinião prudente e desconfiada dos médicos, que ali não viam mais do que um engano passageiro. Decidiu adiar a maioridade da filha e a transferência de poder; compareceu na abertura das Cortes, disposto a aceitar a regência, sem confessar sequer o estado em que se encontrava. Andava cheio de vontade de ser oficialmente empossado no cargo. Era o seu momento vitorioso depois das festas do Porto, ele que ainda o não havia tido na capital. A vaidade ainda não se fora de todo com a doença e a aproximação da morte. Até ao fim lhe ficava aquela necessidade de atenção e reconhecimento, que foi nele a peculiar amolgadela da sua índole. Tinha bossa solipsista de menina ou de vitral gótico e nunca a perdeu até à despedida.

No fim de Agosto, os deputados, muito divididos agora entre a facção moderada, cartista, e a radical, de passado e herança vintista, acordaram entregar-lhe a regência, enquanto a filha, a rainha, não atingisse a maioridade. Ele recebeu no palácio da Ajuda, onde se encontrava a viver com a esposa e as filhas, o encargo da regência. Mas não pôde gozá-lo; logo depois da notícia sobrevieram-lhe hemoptises violentíssimas que o prostraram, não lhe deixando mais quaisquer ilusões sobre o que o esperava. Reabriram-se os edemas, desta vez mais fundos e largos, e voltaram os esforços dolorosos para sorver o ar, as noites mal dormidas, o fastio absoluto. Estava perdido. Os médicos deram-lhe a vida por dias.

– Estou sem jeito – disse ele desta vez para a ex-imperatriz.

Sabia que não tinha remédio. Sentiu saudades de Queluz, onde passara os primeiros anos de vida e se lembrava da vida da corte tal como ela fora vivida no tempo da avó doida. Recordou-se com alguma nostalgia do quarto onde nascera e que só vira no ano anterior, no regresso a Lisboa. As cenas que ilustravam os frescos, nos tectos e nos umbráculos das portas, diziam respeito a episódios famosos de Dom Quixote. Fora debaixo dessas cenas que ele nascera. Viu nisso um sinal e um vaticínio, um sinal da sua vida e um vaticínio do seu idealismo. Encontrava naquelas cenas a explicação da sua paixão pelo amor e pela liberdade. Fora aquele cavaleiro, magro e místico, que lhe vazara na alma os ingredientes do seu sonho. Também ele, à imagem do manchego, era um exaltado e um paladino do sublime. Se fora debaixo dessas cenas que nascera, e se nelas se encontrava a secreta combinação da sua alma, era agora debaixo delas que queria partir deste mundo.

Era teatral, grandiloquente e sempre muito cioso das coisas que diziam respeito ao destino da sua pessoa. Se não pudera ter a sua tão desejada Aljubarrota, naquele afortunado mês de Verão do ano que Palmela lhe avançara como seu, e que ele já nem sequer veria, ainda assim não se dava por vencido. Valia-lhe no transe Dom Quixote, o cavaleiro andante. O nobre e generoso aventureiro estava no lugar do seu nascimento, como uma estrela original e de primeira grandeza.

– É ele, esse quarto, com seus tectos pintados, que salva o meu horóscopo, sabe ­– respondeu ele, quando a esposa lhe perguntou porque insistia tanto naquela mudança.

As profecias de Palmela podiam estar trocadas, mas aquela estrela quixotesca era demasiado real para não ser apreciada. Fizeram-lhe a vontade e mudaram-se para Queluz. Todos os seus próximos se apercebiam  agora do seu estado. Já nem a barba lhe escondia a magreza e a palidez cadavérica do rosto. Demais, com as feridas aceradas, fundas, irreversíveis, já nem conseguia sequer deslocar-se pelo seu pé; precisava de ser transportado, ao colo para pequenas distâncias, de cadeira ou de coche para longe.

A jovem rainha, Maria II, sua filha, dando-se conta com surpresa do estado do pai, sentiu-se dividida entre a ansiedade de cingir a coroa na sua real cabecinha e o horror de perder assim de repente o pai. Ele, Pedro, passava os dias sem se levantar, recostado nos almofadões, em pijama de seda, todo concentrado no esforço de sorver o ar, incomodado com dores e picadas. Levaram-no às Cortes onde ele, torturado e revoltado, confessou o seu estado. Decretou-se a maioridade da rainha e o fim da sua regência. Ela tinha quinze anos e ele trinta cinco; vinte anos os separavam mas eram duas crianças, uma porque nada conhecia ainda da vida, o outro porque nunca se emancipou do seu modo pueril, gratuito, sonhador.

Quando regressou das Cortes, pensou no casamento da filha. A rainha era uma criançola coroada, mas sem herdeiros directos; caso lhe acontecesse alguma coisa, o irmão Miguel saltava de novo para a ordem de trabalhos. A esposa, a ex-imperatriz, inclinou-se para o irmão e soprou-lhe ao ouvido o seu nome, Augusto de Leuchtenberg. Pedro aceitou a sugestão; conhecia o cunhado e gostava dele. Era um moço bonito, bem educado, de grandes olhos claros e caracóis loiros, que um dia lhe aparecera no Brasil para coleccionar búzios e vegetais. Fizera dele então duque de Santa Cruz; não se importava agora de o fazer rei. Como prova de reconhecimento, como forma de selar o enlace, Pedro deixou-lhe em testamento a durindana que usara nas batalhas do Porto para defender o trono da filha e que seria também o dele.

– Posso ir embora – exclamou ele, de lágrimas nos olhos, depois daquele assunto tratado.

Desenhava-se esse caso como o derradeiro da sua vida. Mas não. Faltava-lhe ainda tecer a fábula mais espectacular da sua fulgurante passagem pela Terra. Agonizava momento a momento, sem ar, sem forças, sem nada. Ainda assim, estimulada pela febre, a imaginação trabalhava, em segredo, na escuridão cerrada da sua alma de moribundo. A máquina triforme que tanto havia trabalhado no passado jazia agora para sempre esquecida e inutilizada entre as suas magras e trémulas pernas, qual círio de todo consumido pela chama do pavio, farrapo sem utilidade ou derretida cera. Não assim o pensamento. Quando todos pensavam que ele ia expirar, ergeu-se da sua pesada sonolência e do seu alheamento silencioso e pediu com os dedos aos presentes para se aproximarem. Precisava de lhes falar. E nesse pedido, muita urgência se sentia.

– Quando eu morrer – sussurrou ele – quero que meu coração seja separado do corpo e entregue na igreja da Lapa, no Porto, onde deve ficar conservado para sempre.

Assim mesmo, tão real como o seu coração ainda hoje se guardar num relicário de cristal e prata da invicta, à Lapa, e tão cru como ser essa sua vontade o desígnio mais chocante e impressivo da lenda que dele ficou. Um coração oferecido a uma cidade como se fosse um pedaço de oiro ou de céu, uma jóia inalienável que tivesse para sempre a adoração do mundo inteiro. Que delírio e que lenda! E esse coração, oferecido por um moribundo a uma cidade num distante dia do ano de 1834, ainda hoje lá está, tantos anos depois, num cofre da igreja da Lapa. Só um santo ou um soldado, mas um soldado mártir, se atreveria a tanto. Estes Braganções tiveram as suas tragédias tristes mas conseguiram também amealhar o seu quê de insólito e de heroísmo.

Morreu Pedro pouco depois, a 24 de Setembro de 1834, afundado nos seus almofadões, com a tez amarelada, quase transparente, ar infeliz, barba crescida, esgostado por esse último esforço da imaginação e do delírio. O povo de Lisboa, que o julgou até tarde de boa saúde, e acreditou depois quando o soube doente na sua cura, compareceu em peso nas cerimónias de S. Vicente. O corpo chegou ao entardecer, numa longa procissão de coches, para ser depositado no mausoléu do panteão da família, e encontrou na praça um ambiente fúnebre e respeitoso, com as altas janelas de vidro da igreja incendiadas por milhares de velas acesas e uma multidão pesarosa, vestida de preto, concentrada, que se lamentava arrastadamente, em coro, de quando em quando.

­– Está ali o colosso que venceu as legiões do céu – ouviu-se dizer na rua defronte, com deferência, quase com assombro, quando o seu vaso mortuário saiu do coche funerário e começou a subir lentamente aos ombros dos gatos-pingados a alta escadaria que levava à igreja.

– Sim, está ali o portento que venceu o céu, mas vai sem coração – replicou alguém, não sei se por má-vontade política ou se pela víscera do ex-imperador ter ficado a cargo dos médicos da corte para depois seguir para o Porto.

Aquele Pedro era o herói, o vencedor, o mártir, mas fora em tempos ainda próximos o ladrão do Brasil, o perjuro, o avatar do Anticristo francês; sobre a sua urna, coberta por uma mortalha negra de veludo, brilhante e fina, adensava-se a sombra de sangue do Apocalipse.

 


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A MATRONA E O MÁGICO

(1834-1853)


Nova página, novo painel. Não mudamos de lugar, mas mudamos de idade; não trocamos a foz do Tejo pela baía da Guanabara, mas permutamos a Lisboa dos frades, dos conventos e dos aristocratas pela Lisboa dos burgueses, das indústrias e dos partidos. Fechou-se um ciclo, o do antigo regime; abre-se outro, o do novo, o do moderno, o do contemporâneo. É preciso limpar os restos da Viradeira e do miguelismo, soprar os cheiros do passado, esvaziar os conventos, enterrar os hábitos dos frades que povoavam as ruas da Lisboa castiça, esconder os castrados da Patriarcal, os anões que tocavam harpa em S. Domingos, os caceteiros do Loreto e de Santos, os saloios da Palhavã ou de Benfica. De seguida, depois desta limpeza, com o palco vazio, é necessário trazer um novo cenário para repovoar depressa o mundo. Em vez dos palácios hão-de vir prédios e apartamentos; em vez dos conventos tragam-se armazéns e fábricas; em vez de frades, anões e castrados ponham-se nas ruas famílias burguesas, com ar de hipópotamo pasmado ou de crocodilo feroz; em vez dos caceteiros chamem-se os chefes dos partidos constitucionais. É a nova Lisboa, a do dinheiro, a da miséria, a dos transportes, a do comboio, a do telégrafo, a do telefone, a das sombras do gás, a da electricidade, a das multidões anónimas, a dos compadrios, a dos ataques dos chefes dos partidos que se insultam nas Cortes, ferozes, bélicos, mal-educados, e se visitam depois em família para fumarem charuto, beberem café e licor, partilharem as pastas do governo, comentarem os jornais com cepticismo e decidirem com o rei quem ganha as eleições. É a Lisboa da tragédia do Terreiro do Paço, a Lisboa do regicídio, a Lisboa dos Braganças e do seu fim, a Lisboa de hoje e deste livro, a Lisboa mansa e branca, com horas horríveis e negras.

A primeira medida da rainha Maria II, aos quinze anos, quando lhe deram a maioridade, foi conceder ao pai a Ordem de Torre e Espada. Ela mesma foi nesse dia ao quarto de Queluz onde ele agonizava para lhe passar ao pescoço o colar da grã-cruz e lhe colocar na lapela do pijama o laço azul da banda.

– Meu pai, você é um herói ­– disse ela, com um sorriso brando, quando lhe acabou de colocar o laço da banda.

Disse-o com uma entoação segura, nada turvada pela emoção. Era como se estivesse numa cerimónia oficial, fria e formal, condecorando por dever velhos e estropiados soldados que lhe haviam prestado um serviço fiel e precioso.

Esse seu primeiro gesto marcou o seu reinado e o seu modo de rainha. Por ele se limpou do terror que aquela doença começara por lhe inspirar, ameaçando a tranquilidade do seu pensamento, demasiado parado para ser inquieto, e a paz do seu sono, demasiado pesado para não ser pacífico.

Logo depois da morte do pai não se ficou pela modorra da tristeza; mostrou determinação na escolha dos seus aposentos como se a todos quisesse mostrar que não se amedrontava com as armadilhas do destino. Não queria Queluz, nem Bemposta. Inclinava-se antes para as salas das Necessidades, que evocavam para ela os familiares e açucarados salões da Baixa fluminense. Demais, as Necessidades haviam sido o ninho onde chocara a Carta. Aí estavam reunidas as Cortes quando o seu avô, João VI, chegara do Brasil; aí se demitiram elas na poeirada de 1823; aí  prometera o rei, avisado por Palmela, a Carta. Não hesitava pois, as Necessidades haviam de ser o seu paço. A Bemposta parecia-lhe destestável no meio do buliço sujo da cidade antiga e Queluz era o passado odioso. Quando a madrasta, a ex-imperatriz, ciente de razões, lhe perguntou porque não ficavam em Queluz, onde o pai rendera a alma no meio de tanto luxo, ela respondeu sem enfado mas com determinação.

– Queluz? Queluz é o passado que acabou com esta guerra. Ninguém mais o quer. Queluz é o tio Miguel, que anda às voltas no alto mar para nunca mais voltar.

Estava determinada a fazer das Necessidades a sede da monarquia com Carta. As Necessidades, com Belém por cerca e a Ajuda por perto, haveriam então de ser o espaço privilegiado da nova idade do país e o território de eleição dos novos Braganças brasileiros em Lisboa.

Veio de seguida o assunto do seu casamento, que mais uma vez era para ela um caso de família. Quando passara ao pescoço do pai o colar da grã-cruz, tivera presente a necessidade de lhe dar avanço. Lembrava-se bem do príncipe Augusto, com os seus bigodes mefistofélicos e os seus olhos vivos, travessos, miúdos. Viajara com ele de regresso ao Brasil no Verão de 1829 e avistara depois disso o seu aprumado e magro corpo no palácio da Baixa fluminense. Ficara-lhe desse tempo um pormenor curioso na memória, o príncipe nunca se desfazia das suas impecáveis luvas de pele, nem mesmo para as suas excursões botânicas e zoológicas. Via bem o irmão da madrasta nas salas das Necessidades espreitando com o seu ar irónico os longes do oceano ou recebendo com o seu aprumo germânico a corte e os diplomatas para os bailes de Inverno.

Mal tomou a decisão de se instalar nas Necessidades, enviou para Munique um emissário com as primeiras notícias. Seguia a espada que o ex-imperador lhe deixava e as palavras que conseguira ditar no meio da sua dolorosa agonia. Depois, andava o caso do coração do pai a comover o país de lés a lés, deu em nomear o feliz Augusto coronel do exército português e comandante honorário dos Caçadores 5, o batalhão que o pai comandara durante a guerra.

Para a rainha, aquele casamento era um caso de família que ela tratava do alto do seu poder, indiferente ao que por fora se pudesse dizer. Mas pondo de lado esta prosápia, muito própria do capricho daquela jovem de 15 anos, o país aceitava bem o casamento. Augusto de Leuchtenberg era filho dum enteado de Napoleão, advogava publicamente as ideias liberais, era tido como um adversário intransigente da política de Metternich. Mostrava-se por isso aos olhos dum país radical, acabado de sair pelo lado esquerdino duma guerra civil, a figura indicada para consolidar as novas instituições liberais.

Sonhou a rainha com aquele casamento? Sonhou. Era tão feia como a mãe, mas tinha um trono a oferecer. Acreditava que podia ser feliz, mesmo feia e sem formas. Augusto, em Munique, aceitou o enlace, que lhe pareceu a consequência directa do seu passado. Conhecera o cunhado quando estivera no Brasil. Recordava os arroubos da sua generosidade e a gabarolice destemperada da sua virilidade. Devia-lhe tratamento e título. Acompanhara depois emocionado a saga da sua vinda para a Europa com o fim de defender os direitos da filha. Encontrara-se com ele nos hotéis de Paris, quando a irmã, a ex-imperatriz, dera à luz. Estivera até para vir como voluntário para os exércitos do cunhado, quando este deixou o Porto e se dirigiu pressuroso para Lisboa. Não viera, já nem se lembrava por quê, mas logo soubera que mais tarde ou mais cedo a sua hora havia de chegar. Em Paris, a irmã soprara-lhe ao ouvido aquele casamento, mas ele percebera a deferência, a inclinação do cunhado para com os Orleães e dera o caso por tremido. Agora, com a inesperada notícia daquela morte, chegavam-lhe as palavras do ex-imperador chamando-lhe genro e as súplicas da irmã para que ele viesse depressa.

A 2 de Janeiro de 1835 partiu de Munique para Lisboa o jovem príncipe, com passagem por Bruxelas, Ostende e Londres. Vinha já casado por procuração com a rainha portuguesa, que o esperava em Lisboa com um ar falsamente tímido de menina inexperiente, a que os bandós inocentes do cabelo emprestavam um tom excessivo, infantil e ingénuo. Ocupava-se do seu enxoval de noiva e dos aposentos nas Necessidades. Via nessa afluência de afazeres um sinal premonitório da sua felicidade próxima. Casara antes com o tio Miguel mas esse enlace pertencia ao passado e não fazia parte da fortuna daquela hora.

Augusto chegou a Lisboa no fim do mês. Vinha acompanhado por Sá Nogueira, transformado agora em visconde Sá da Bandeira. Este mantinha a secura e a determinação nervosa com que aguentara a fuga de milhares de homens pelos trilhos selvagens do norte nos duros tempos do Belfast, em que Póvoas batera os exércitos da Junta, mas acentuara a severidade do olhar, que fora sempre a marca distintiva do seu rosto miúdo. Perdera entretanto no cerco do Porto o braço direito, ganhando com isso fama de herói ou de fantasma descarnado, pois passou a aparecer na praça pública e no paço de manga vazia presa ao peito.

– É o maneta! É o maneta! – exclamava o povo quando o via passar a caminho de Belém, no alto da caleche descoberta, muito magro e direito, de bigode cheio, teso como arame, encavalitado no lábio superior, olhar áspero e manga da casaca escura a esvoaçar ao peito.

Augusto, que era superiormente teatral, pretendeu surpreender e combinou com o português apresentar-se no Terreiro do Paço vestido com o uniforme dos Caçadores 5, de que era comandante honorário, e a espada do sogro à cinta. A irmã, que viera a bordo abraçá-lo, impaciente por tê-lo a seu lado, nem sequer percebeu o ardil e quando o viu descer assim vestido para a galeota que os ia levar ao Arsenal soltou um pequeno grito de susto. Amélia, ao contrário da enteada, que era feia mas brava, suportara mal o desaparecimento de Pedro. Tinha um feitio menos voluntarioso e mais assustadiço; o futuro do país era-lhe de todo indiferente e aquela guerra, mais do que uma razão de optimismo, era para ela motivo de desconfiança e horror. Tanto lhe subia ao espírito a trupe dos estropiados arrastando-se nas ruas e nas estradas, pedindo esmola aos uivos com o coto dos braços, como a palidez mortal do marido, pedindo uma gota de água com que acudisse à secura escaldante da febre. Também ela, essa pobre Amélia, se preparava para ser, ao lado da cunhada Isabel Maria, a pobre mãe solteira que o pai encarregara da regência nos negros dias da sua agonia, uma nova Maria Francisca Benedita, a poeirenta teia-de-aranha, a viúva tétrica, a princesa carunchosa que o terror incendiário da guerra devorara no seu seio.

O encontro dos esposos nas Necessidades foi o que deveu ser. Augusto, bom actor, muito dentro do seu papel de revolucionário constitucional, desfazia-se à mesa em cumprimentos e sorrisos para o corpo diplomático que lhe estava diante, reservando para a irmã um olhar envolvente de comiseração e para a esposa um silêncio aprovativo, que se queria briosamente digno mas que não estava isento de galanteio. Maria, discretamente atenta a todos esses imperceptíveis movimentos, sorria e comportava-se como uma rainha. Mostrava-se distante, inacessível, presumida e lassa. Possuía prerrogativas únicas. Podia arrotar à mesa, lamber os dedos, meter garfadas de comida à boca enquanto falava, sorver a água, deixar cair o guardanapo, refastelar-se na cadeira no fim do pudim, satisfeita e cheia. Era o caprichoso modo de reinar duma menina de quinze anos. Tinha da função real uma ideia primitiva, quase vulgar, que nenhuma educação clássica ou aristocrática, e muito menos constitucional, polira e civilizara. Fizera-se rainha por um acaso e fora essa a sua única forma de emancipação. Aprendera com o pai que ser rei era poder gritar uma palavra grossa no meio dum sarau onde se tocava cravo e ouvia no mais absoluto silêncio canto, sem com isso perder a aprovação da assembleia. E assim o praticava, a seu modo, sem distinguir entre privilégio e má-educação.

No dia seguinte foram os esposos à Sé de Lisboa ratificar o casamento. No caminho, entre as Necessidades e a igreja, uma multidão de bandeirinhas azuis e brancas saudou o cortejo real. A rainha, altiva e obstinada, não se mostrou. O príncipe, que por sua vez regressara a bordo depois da recepção da tarde anterior, desceu no Arsenal, passeou no Terreiro do Paço e subiu à Sé num coche acompanhado pela irmã. No momento em que os esposos subiram os dois lances de escadas que levavam às grades de entrada da igreja, foi dado um sinal na praça e logo de seguida rebentou em vários pontos da cidade estrondoso foguetório.

Depois do enlace, o casal tomou o caminho das Necessidades, sendo saudado no caminho por uma nova enchente de gente, que acenava com as cores da bandeira bicolor, gritava o hino da Carta, grunhia, cuspia e batia palmas com euforia. À medida que o cortejo se afastou para ocidente, deixando atrás uma nuvem de poeira e ruído, a multidão avançou a pé no seu rasto. Quando os populares se concentraram no extenso terreiro de entrada das Necessidades, o casal mostrou-se a uma das varandas do palácio; Maria, de bandós escondidos num chapéu de aba larga, capa de lã escura pelos ombros, com a covinha do queixo a tremer, e Augusto com um capote militar, de botões de oiro e gola de arminho. À noite, houve sarau, baile e por fim beija-mão na sala do trono, onde a rainha, de barriga a rebentar de doces, se estirou, com os pés poisados numa banqueta, dando a mão a beijar aos monsenhores, aos legados, aos pares, aos ministros, aos parentes da corte.

Logo depois veio um acontecimento marcante. O coração de Pedro estava pronto para ser depositado na igreja da Lapa, cumprindo o pedido que o ex-imperador fizera à hora da morte. Era assunto tocante que comovia o país e se mostrou suficientemente excêntrico para cativar o interesse dum jovem e frio germânico muito lido em Voltaire e no Humboldt botânico. Ouviu-o pela primeira vez na boca da irmã, no dia seguinte ao enlace da Sé. Exprimiu-se ela com horror, puxando nervosamente os fios da touca com as mãos trémulas. Os médicos davam o trabalho como pronto e o cofre com a víscera íntima do regente podia seguir para o Porto. Amélia tremia falando no caso; era como se um abismo se abrisse diante dela e a deixasse diante de cenas pavorosas. Escondia a cara redonda e delicada entre as mãos finas e longas e vertia, na escuridão da alma, duas lágrimas de desespero e dor.

O irmão, cuja consciência se ressentia agora de não haver feito a guerra ao lado do sogro, dispôs-se a presidir ao cortejo que atravessaria a cidade para depositar a pequena urna na fragata que a levaria por mar ao Porto. E no dia 4 de Fevereiro lá se passeou, de luto rigoroso, à frente da guarda de honra que transportava em silêncio a pesada víscera do ex-imperador.

– Ai, o século dos românticos, que é tão pródigo em enganos; até é capaz de  levar aos ombros as entranhas dum espectaculoso pecador como se transportasse a relíquia veneranda e incorruptível dum santo ­– comentou alguém quando Augusto, no cais do Arsenal, à passagem da urna, de olhos molhados pelas lágrimas, desembainhou a espada do sogro e levou galhardamente o punho aos lábios.

Depois disso os dias correram esquecidos e tristes. A Primavera estava ainda distante e o tempo mostrava-se fechado e feio. Dias cinzentos, frios, viscosos, vítreos, parados e nulos sucediam-se uns aos outros. Maria fechou-se nos seus aposentos, onde recebia de tempos a tempos Palmela e os velhos amigos do pai, que lhe vinham dar conta do que se passava nas Cortes, no antigo convento de S. Bento, no sopé da Calçada da Estrela, e que fora escolhido ainda pelo pai para abrir o novo ciclo da política do país com as duas Câmaras sempre reunidas, a dos pares, vitalícia, nomeada pelo rei, e a dos deputados, eleita pelos partidos. Sentia-se tímida e reservada, com uma vida inteira, sem tempo contado, quase infinita, para dedicar ao marido. E era o que intimamente mais ansiava. Trocava sem pestanejar o país pela felicidade da sua casa. Nessa parcela, a rainha tinha o feitio matrimonial dos Habsburgos maternos; herdava a vocação segura da mãe, toda devotada ao esposo, e não o feitio sensualão e desbragado do pai.

– Padre, rezai muito pela felicidade do meu lar ­– pedia ela ao padre Marcos Vaz Preto, um tronchudo borrachão, que vinha dos tempos do pai e que era agora confessor da rainha e seu esmoler-mor depois de ter sido nomeado bispo pelo regente, quando este andava de costas voltadas à Santa Sé por causa da guerra com o irmão.

Mas por agora, queria apenas despedir-se da sua infância, ela que tinha tão-só quinze anos, e deixar algum tempo a Augusto. A vida conjugal ficaria para mais tarde, depois da Primavera, quando passasse o seu aniversário e o príncipe começasse a dar mostras de adaptação. Olhava da varanda do seu quarto a foz do rio e sentia que, tal como o rio tinha ali a largueza do oceano, também ela tinha diante de si o mar largo da vida para viver. Augusto, por seu lado, percebeu os propósitos da esposa e nada fez para os contrariar. Era um homem garboso de vinte e cinco anos, vivido e experimentado, mas ela era uma criança pueril e receosa de iniciativas e novidades. Entreteve-se por isso a aprender a língua portuguesa, a satisfazer a esposa com bilhetes, a estudar a História do país, a acompanhar a irmã nos seus passeios, a participar nos saraus do paço ao lado da esposa e a esperar. Era um feitio viril, frio, cáustico até, mas calmo e sem pressa.

A roda da fortuna gira porém de forma tão cega que qualquer plano não passa de ilusão. Quando o equinócio chegou e os dias roubaram espaço à noite, Augusto, numa das varandas do paço voltadas a norte, sentiu um incómodo de garganta. Custava-lhe ensalivar e engolir. Fez a experiência vezes várias, sempre de modo diferente, a húmido ou a seco, e deu-se conta que nada lhe escorregava sem dor pela laringe. O seu modo humorado e distante fez com que arrumasse qualquer queixa. Nessa noite, ao jantar, brincou distraído como os talheres, desculpando-se de não comer com uma ligeira indisposição. Mas na manhã seguinte, depois duma noite febril e agitada, não conseguiu levantar-se. Tinha a boca inchada e custava-lhe respirar. A irmã veio vê-lo com um médico.

– Resfriado! – disse assertivo o facultativo da corte, quando Augusto lhe explicou a custo a cena da varanda voltada ao ziguezague da nortada cortante e fria que por essa época assobiava nas traseiras do palácio.

Receitou-lhe caldos quentes e resguardo, nada mais. À noite, quando a rainha soube que o esposo estava abrigado na cama, com a garganta inflamada e um princípio de tosse, foi visitá-lo com a cunhada. Encontrou-o bem disposto, recostado nos almofadões da cama, com um velho cimélio na mão. Soletrou algumas palavras em português e prometeu estar a pé no Domingo para vestir o seu novo uniforme.

À despedida, já no corredor, Maria riu-se sem preocupação. Deu a mão à cunhada e zombou.

– Ele que se cuide, que para semana é o meu aniversário e vou precisar dele. – E acrecentou, sorrindo com fina malícia – Vamos dançar a valsa os dois.

Dois dias depois, o príncipe não dava acordo de si. A inflamação da garganta alastrara a todo o sistema respiratório, roubando-lhe as forças. Nem as pálpebras já levantava. Ouvia-se o estertor esforçado da sua respiração e percebia-se o cansaço extremo do seu desmaio. Os médicos deram-no como perdido. Morria algumas horas depois, no sábado, ao princípio da tarde, nos braços da irmã, que de tão estupefacta nem conseguia arrancar o choro.

Uma onda de pavor correu de imediato pela corte. Despacharam-se a esconder aquele morto inesperado numa arca fechada do panteão da família, em S. Vicente. O povo acorreu mais uma vez aos altos da cidade, enchendo o terreiro da igreja e as ruas próximas. Desta vez ia tão-só curioso diante do destino que atirava para a cova ao fim de dois meses de casamento um jovem de vinte e cinco anos.

– Querem coisa mais liberal que a morte? – perguntou alguém, quando o cortejo chegou com o coche real coberto de luto – Entra sem ser convidada e manda de pé descalço.

No regresso, a ex-imperatriz explodiu em lágrimas que lhe queimavam a face. Olhou-se no espelho do seu toucador e percebeu que a sua beleza delicada e fina de porcelana, que outrora lhe valera epítetos ardentes, não servia para nada. Dava-se conta naquele dia frio do final de Março que estava com pouco mais de trinta anos e tudo o que lhe restava era uma criança de três anos, de saúde frágil e futuro incerto. Não tinha, e nunca mais teria, pais, irmão, marido. Estava a um passo de ser a Maria Francisca do presente, esse caruncho que viera dos tempos do grande terramoto e que desaparecera nesse outro tremor de terra que fora a guerra civil. Sobrava-lhe, além do rebento débil que Pedro lhe deixara nos braços, amortalhar-se numa montanha de crepe preta e esconder para sempre os seus lindíssimos caracóis de oiro numa touca discreta e disforme.

Maria, a rainha, não andava melhor. Em seis meses perdia primeiro o pai e depois o marido. Não tinha ainda dezasseis anos e já enterrara, além de mãe e pai, dois casamentos. Ela, que era a confiança em pessoa, habituada que sempre andara a ser tratada como uma rainha dos contos de fada, teve uma crise de estima. Achou-se fadada para as desgraças e julgou-se sem remédio para a vida. Descreu de tudo, inclusive das fofas profecias do Palmela. O presente era um absurdo e o futuro uma loucura. Quando a cunhada, lhe veio com a filha nos braços chorar aflita a sorte, sem irmão, sem marido, sem nação, ela não se conteve, que não lhe dissesse secamente, com uma ponta de ciúme, quase lhe voltando costas.

– Olhe, sossegue, eu nem uma filha tenho nos braços para embalar.

Mas aquele morto não foi só inesperado e absurdo, foi também incómodo e inoportuno. Logo no dia do seu passamento surgiram papéis escritos nas paredes, levantando a suspeita que o filho do enteado de Napoleão fora envenenado dentro do paço. No dia seguinte, quando as janelas das Necessidades já estavam adornadas de grandes panos pretos e os sinos por toda a cidade repicavam sem interrupção a finados, dando notícia contínua da desgraça, correu nas ruas que Palmela era o responsável pelo crime.

– Detesta Napoleão e quer casar o filho com a rainha – dizia-se com azedume. – Não descansa enquanto não se tornar regente. É um desalmado sem pinta de benignidade.

Eram os sectores mais esquerdinos do exército que fomentavam o banzé. Agrupavam-se em volta da Guarda Nacional, um corpo militar que fizera em adiantado lugar a guerra contra o miguelismo. Fora imolado em ocasiões decisivas e havia muitos estropiados entre eles. Punham orgulho naqueles feridos e viviam da certeza de que o novo regime lhes devia a existência. Não estavam contentes com Palmela e com os amigos íntimos do imperador que se haviam tornado governo depois da sua morte. Acusavam-nos de devorar os bens que Mouzinho pensara dispensar à nação e de empalmarem a revolução em seu benefício privado. Demais, contendiam com a Carta e punham em seu lugar a Constituição; não queriam direitos dados pela magnanimidade dum rei qualquer mas direitos assentes no princípio da soberania da nação.  Era a guerra civil dentro da guerra civil. Aproveitavam agora a morte do príncipe para forçar o regime a virar à esquerda. Eram eles que gritavam contra Palmela, desbarretando-se, espingarda a tiracolo, fero ar de truculência, com as volumosas e sujas suíças a perderem-se no pescoço.

À noite os ânimos exaltaram-se. Gritara-se muito, bebera-se ainda mais. A multidão juntava-se no Rossio. Estavam ainda muito vivas as cenas do São Carlos depois do regresso do Alentejo do ex-imperador, no fim da guerra. A notícia da doença de Pedro, a sua inesperada agonia, a tragédia da sua morte, a oferta do seu coração à cidade do Porto, os decretos abolindo as ordens religiosas, haviam desviado por momentos as atenções, dando a errónea ideia duma reconciliação entre as duas facções liberais, a radical, dos democratas pé-de-boi, defensora da soberania do povo, e a moderada, cartista, defensora das prerrogativas reais e das regalias dos pares do reino. Agora, com a viuvez da rainha, a partida do coração do imperador para o Porto, as diferenças vinham de novo ao de cima, com os radicais a exigirem a demissão de Palmela do lugar de primeiro-ministro.

Quando se ouviram as nove amarrotadas badaladas em S. Domingos, alguém adiantou que se queriam deitar fora Palmela do lugar o melhor era fazer-lhe pagar ali mesmo, numa improvisada forca, o seu mais recente crime, a morte do príncipe Augusto de Leuchtenberg.

– Velhaco! Palmela à forca! – ouviu-se logo a turba uivar raivosamente.

Subiram o Carmo e dirigiram-se ao Loreto, onde o primeiro-ministro tinha palácio. O duque e a mulher, avisados no momento em que o magote, alumiado a archotes, chegava defronte dos degraus da igreja, fugiu pelas traseiras do palácio, indo refugiar-se em casa do cônsul britânico.

No paço, todos estes incidentes foram lastimados como exageros. Esperava-se que casos destes, que lembravam os desacatos afrontosos do São Carlos, desaparecessem da vida do país. Assim como assim, a carga fúnebre do momento, pesada como um daqueles excessos de electricidade que rebentam em estrondosas trovoadas, parecia justificar alguns excessos. Saldanha, que nos tempos das archotadas fora dos radicais o indígena idolatrado, e era agora um dos pares nomeados pelo paço, foi sondado para substituir Palmela e acalmar a onda que ameaçava levantar. Ainda assim, nas Cortes, vociferou-se contra a situação e o menos que se exigiu foi que a rainha se casasse de imediato.

No paço, a rainha, que era ladina e dominadora, quase despótica, desgostou-se daquela pressão. Não era tanto a frieza dos deputados diante  da viuvez do coração que a magoava; o que de verdade a afrontava era a exigência que lhe davam em fazer sobre a sua vida pública e privada. Mas esse encontrão obrigou-a a reagir contra o negro desespero em que se deixara cair logo a seguir à morte de Augusto. Em vez do absurdo, sentiu a necessidade de afirmação, que é apelo à vida, ainda que defensivo; em vez da loucura, anteviu o porvir como um combate em que podia empenhar a firmeza e teimosia da sua alma. Deixou-se então embalar por uma onda de esperança. Acreditou que valia a pena tentar mais uma vez. E creu no seu novo casamento, não por obediência, nem mesmo por felicidade, mas tão-só para fugir ao papel submisso em que a queriam prender.

– Antes que me casem, caso-me eu – exclamou para a cunhada.

Estava disposta a casar em França, com um dos filhos do rei Luís Filipe, que conhecera no exílio, ou o duque de Nemours ou o príncipe de Joinvillle, tanto lhe fazia, mas Palmerston, o primeiro ministro inglês, não deixou. E a Inglaterra era o único limite que a soberba da rainha portuguesa conhecia; era brava com os pequenos homens da política portuguesa, mas muito submissa quando se tratava da vontade de Albião. Ela, a pobre rainha de Portugal, devia duas vezes o trono à Inglaterra, primeiro por causa das convulsões territoriais do tempo do avô, depois porque no golpe de Estado do tio, em 1828, fora Jorge IV que recolhera os emigrados e permitira a Palmela organizar a expedição dos Açores.

Demais, fora educada no Brasil, na corte do avô e do pai, com o eco das vozes do Angeja e do conde de Linhares, casacas vermelhas sem acanhamento.

– É a toda poderosa Inglaterra – dizia um. – São os bravos filhos de Albião ­– acrescentava o outro.

Deu em procurar marido por tudo o que era Europa. Por fim, o conde do Lavradio, um dos primeiros pares do reino, que fora encarregado de vasculhar cortes e traseiras à procura dum partido para a rainha, lá descobriu num lugar de bom arranjo, entre os velhos principados alemães, um candidato muito aceitável. Era Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, filho do duque de Saxe-Coburgo, sobrinho do rei Leopoldo da Bélgica e da duquesa de Kent, irmãos do pai. Tratava-se de família muito culta e liberal, que colaborara na onda revolucionária de 1830, oferecendo à Bélgica o fundador da sua monarquia constitucional, ainda por cima por eleição, e emprestando à família real inglesa alguns dos seus mais proveitosos enlaces. O casamento foi bem visto nas hostes liberais portuguesas e o papel de Leopoldo I da Bélgica na nova ordem liberal europeia fez esquecer, sem desacatos maiores, a desfeita de Palmerston aos Orleães.

A rainha aceitou o casamento, mas por outros motivos. Se a sua altivez se encolhia diante da Inglaterra, o seu liberalismo não punha nem tirava em questões destas. Era mais fútil que autêntica e o interesse que a política lhe podia despertar não ia além dos arranjos que planeava fazer para tudo se manter debaixo da sua mão taluda.

– Sinto-me feliz por estabelecer parentesco com a princesa Vitória – declarou ela ao confessor, o padre Marcos, outro Tessalónica, desta vez liberalão, mas não menos azevieiro e amigo do perú, do colares fresquinho e das grandes e demoradas digestões feitas à mesa da jogatana.

No casamento com o Coburgo o que interessava pois à rainha portuguesa era o parentesco inglês. Vitória era aquela menina inglesa, nascida no mesmo ano que ela, com quem passara um serão no Natal de 1828, no castelo de Windsor. Era filha da duquesa de Kent, irmã do pai de Fernando. Com o enlace, Maria entrava na família dessa menina, a quem se prometia um futuro cada vez mais brilhante e que devia de casar com um Saxe-Coburgo-Gotha, primo-irmão de Fernando.

Quem era este Fernando? O resultado do esforço do iluminismo do século XVIII, com muita leitura do Humboldt naturalista e do Goethe clássico e muitos dias vividos numa Viena tocada pela Santa Aliança mas também pela música de Schubert, o aparecimento da valsa, os passeios burgueses, os opulentos interiores renascentistas, entulhados de pintura, cerâmica, escultura e música de câmara. Era um rapaz alto, magro, muito branco, filho duma princesa húngara, com ligações a Liszt, que fizera a sua educação em Viena com um preceptor exigente, Carl Dietz; falava e escrevia o alemão, o húngaro, o francês, o inglês e o italiano, tocava cravo e piano, praticava com método o desenho e a pintura, contracenava em dramas, cultivava a ópera e o canto com uma bela e bem trabalhada voz de barítono. Era ainda um curioso de astronomia e de arquitectura e cultivava desde criança o seu próprio talhão de terra com novidades hortícolas e flores de jardim. Nascera em 1816, quando a Europa se libertava dos sobressaltos napoleónicos, tão trémulos como os clássicos, e um vento ardente de nostalgia e ânsia, pronto a renovar a pele da terra, começava a soprar nos espíritos, afastando-os da fria e geométrica ideia de Império.

Por tudo isto, quando foi abordado pelo Lavradio, o príncipe Fernando hesitou. Tinha dezanove anos e nenhuns planos para o futuro. Vivia com cem mil réis de rendimento, uma fortuna colossal, e uma dedicação exclusiva à arte e ao estudo. Era um diletante, mas também um aplicado e um imaginativo. Ser rei num país distante não era de molde a entusiasmá-lo; não aspirava ao poder e tinha do liberalismo uma visão larga e generosa, que esbatia em muito a distinção entre governantes e governados. Trocava qualquer cargo público por uma ária de ópera e detestava a guerra e a violência. Acreditava que o movimento íntimo da História e da cultura se encaminhava para uma época de paz, em que os homens, gozando dos benefícios da educação, se entregariam a um convívio plenamente civilizado, voltado para o bem-estar material e a criação artística. A si próprio se via, quando arregaçava as mangas e sachava o cebolal, na primeira linha deste movimento; não precisava para nada duma coroa de oiro ou de latão para se sentir um dos sócios honorários deste novo clube.

Foi Carl Dietz, o preceptor, que o desinquietou para a aventura do casamento nesse país distante de que nem um nem outro tinham notícia bastante. Sabia-se que chegara por mar à Índia no século XV, que andara depois metido em desordens com a Espanha, que desbravara parte da América e acabara há meses de sair dum prolongado e sangrento enfrentamento civil. Ficava na ponta mais ocidental do continente, configurava uma estreita varanda debruçada sobre o Atlântico, e dera em arte um poema épico, que merecera a atenção de Schlegel e de Humboldt. Era um enigma, mas um enigma claro, marinho, que atraía um homem seguro como Dietz.

Fernando aceitou o desafio de se intrometer na vida do pequeno país do ocidente. Lera o poema de Camões e simpatizara com a epopeia do mar, ligando a Europa com o exotismo distante do Oriente. Pareceu-lhe vislumbrar à diastância em Portugal um laço entre os dois hemisférios da cultura humana. Desta vez a Inglaterra aprovava com sorrisos o casamento da rainha de Portugal na família dos Coburgos. O enlace era visto como uma forma nada dispendiosa de reforçar o laço entre Portugal e a Inglaterra. Também cá dentro, o país, com as suas pulsões radicais vivas, tolerava bem a ligação da rainha com um Coburgo. Leopoldo da Bélgica, que Napoleão elogiara nos seus tempos de juventude e que casara em primeiras núpcias com a filha do príncipe de Gales, era naquele transe caução suficiente para pôr benevolente sorriso na boca dos radicais portugueses.

Assim, no meio do consentimento geral, partiu de Coburgo o príncipe Fernando, acompanhado pelo preceptor e uma pequena comitiva de gente próxima. Passou por Paris e Londres, onde se deu a conhecer à prima Vitória, que o achou um primor de educação e ingenuidade política. Vinha já casado por procuração com a rainha portuguesa, que o esperava em Lisboa desta vez com uma determinação rigorosa e um plano nada acanhado. Afastara para Santa Marta a ex-imperatriz, cansada das suas queixas e indisposta com os seus avisos contra a família dos Coburgos. Amélia, que planeara casá-la com outro irmão seu, Maximiliano, quando ouvira a recusa da enteada deu em amuar. Começara com queixas e acabara com ameaças.

Santa Marta ficava no termo norte de Lisboa, a quase duas léguas de Alcântara, e havia por lá um palácio que pertencera ao pai e ficara para a madrasta. Maria riu-se para dentro. Achava muito bem que Amélia lhe desamparasse as Necessidades. Quando não, ela própria a empurrava para fora. Mandou fazer obras nos antigos aposentos da madrasta, alargou os seus, renovou os estuques das salas e a decoração dos espaços. Ao mesmo tempo encomendou vestidos em Paris e roupa interior em Londres, comprou jóias, informou-se dos gostos do futuro marido. Queria tudo preparado ao pormenor para o receber sem desagrados, numa intimidade desde o primeiro momento calorosa e familiar. Desta vez, ansiava por uma adaptação rápida, se possível instantânea. A sua infância, com os absurdos em que andara depois da morte de Augusto, passara em definitivo e não mais precisava de despedidas. Crescera, ganhara corpo, fortalecera a vontade.

Tinha receios, os receios naturais de quem enviuvara de surpresa aos quinze anos, mas resistia. As adversidades, depois de vencidas as primeiras torturas, haviam mesmo servido de tempero ao seu pulso forte. Estava no seu feitio pensar que a vida lhe obedecia e mesmo depois dos desaires recentes não perdia o rumo.

– Padre, oiça-me, peça lá a Deus nas suas orações que desta vez não me desampare – requeria ela, no confessionário, ao padre Marcos.

O confessor dizia-lhe que sim e pensava no capão farto que o esperava na câmara. Era um misto de Tessalónica e de José Maria de Melo; guardava do primeiro a fúria bonacheirona de viver e do segundo os arroubos epilépticos do discurso. Lambia de olhos arregalados, como o Tessalónica, os beiços grossos, quer dizer, trocava Jesus por uma boa pinga e uma mesa farta de petiscos, com jogatana para digestão, mas vibrava, numa retórica empolgada que lembrava o Melo, com as quimeras macabras da guerra, onde ele próprio andara ao lado do ex-imperador de arrocho cru e fulminante na mão.

Fernando chegou a Lisboa a 8 de Abril de 1836. Impressionou pouco os ardilosos políticos e os vistosos militares que o aguardavam. Esperavam um germânico garboso, soberbo, prussiano, e viram um menino imberbe, loiro, cor de leite, à espera ainda de fazer vinte anos e que olhava para tudo com os seus olhos transparentes de cristal e um ar de surpresa assustadiça de quem vinha doutro mundo. Comparado com Augusto, muito mais teatral, muito mais sabido, produziu fraco efeito. Não tinha desenvoltura, não mostrava malícia, não procurava abalar; ao invés, o que nele transparecia era aquela doce ingenuidade que já fizera sorrir de surpresa e encanto a sua prima inglesa, Vitória. Maldosos, cáusticos, frios, lá o levaram às Necessidade a cear na companhia da rainha e da corte.

No dia seguinte ratificou-se o casamento na Sé, repetindo os passos que em época anterior se deram com Augusto. Nessa mesma noite, a rainha mostrou-se inquieta e sobressaltada; estava ansiosa por aparecer nos aposentos do esposo. Um laço de simpatia a prendera a Fernando mal o vira entrar nas Necessidades pela mão esperta do Lavradio. Era um menino assustado, de olhos azuis, muito abertos, que esverdeavam com a luz e punham na pele um tom misterioso e fundo. Parecia sair dum conto fantástico ou do interior enfeitiçado da Floresta Negra. Nada nele condizia com a baixa atmosfera duma sociedade cediça onde se acomodara e fizera furor de planta genuína e graúda uma Carlota Joaquina, a que se juntava o filho dum quebra-esquinas puxado a rei e a arcanjo. Mesmo o ambiente cosmopolita das Necessidades, com as suas salas decoradas ao estilo francês, primeiro império, contrastava mal com o ar de eterno forasteiro daquele príncipe. Era um alienígena, assustado com tudo o que o rodeava, mas também um ente curioso, vivo, interessado, atento, habilidoso e disponível a tudo o que por ele passava.

A rainha, que fora educada num meio desbocado e não estava habituada a pôr bridão, deixou cair para a camareira que nessa noite a aliviou da pesada armação do vestido.

– Desta vez há-de ser já. Não vá ele desaparecer de hoje para amanhã, como o outro.

Foi bem sucedida a rainha nessa noite. Era o seu terceiro casamento, mas estava intacta como uma flor acabada de nascer. Primava por ser feia, mostrando-se um pequeno estafermo adiposo e disforme, mas tinha a álacre excentricidade dos animais trópicos. Fernando, que procurava menos um corpo escultural que a poesia da paisagem, aspirou o seu perfume e sentiu-se inebriado com a seiva daquela Primavera em carne. Lá fora as laranjeiras estavam em flor, com os grandes e carnudos botões brancos abertos, de estames agudos e carregados de pólen. Um olor doce, cálido, carregado de fragrâncias raras e oleosas, corria pelos ares e fazia da natureza uma grande e colorida câmara nupcial. As andorinhas, aos bandos, riscavam de madrugada o ar com silvos eléctricos e agudos. As pereiras mostravam as suas delicadas e finas flores brancas, que pareciam preparadas para uma recepção do paço. Tudo florescia e cantava o Amor. Fernando lembrou-se dos versos de Goethe e de Heine que celebravam o país meridional e sentiu-se dentro duma aventura fantástica Estava num quartinho das Necessidades, que cheirava a canela, em Lisboa, junto do Tejo, no fim do mundo, com a flor do limão e da laranja por baixo das janelas, uma mulher que parecia um peixe de prata a derreter nos braços, e todos os seus amigos em Coburgo, Weimar e Viena. Mal sabiam eles, os pobres, que davam passos em volta, debaixo dum céu de cinza, o que por ali corria de feérico e transcendente Sentiu-se feliz, sozinho, ele mesmo, apertando nos braços a carne virgem daquela criança de olhos acesos, que era a sua esposa, e sentindo no ar os perfumes tenros da sua carne de ovelha mansa e os olores sensuais da natureza primaveril.

Maria percebeu a alma amorosa de Fernando, que parecia votado a cobrir de beleza aquilo que via, e sentiu-se a mais afortunada das mulheres. Por ela, deixaria para sempre a cabeça poisada no peito muito branco daquele gentil e surpreso rapaz. Respirou de alívio. Aos dezasseis anos tinha tudo o que queria da vida: uma coroa, um reino, uma Carta e um esposo que a amava. De manhã, correu para os aposentos do padre Marcos.

– Deus ouviu os seus pedidos e desta vez fez-me feliz – disse-lhe ela, com a face banhada de lágrimas, quando viu os braços abertos do confessor.

Depois dessa noite, a relação dos dois fortaleceu-se. Maria, que a princípio se entregara por descaso, confirmou a primeira simpatia e o primeiro encanto. Olhou-o dentro dos olhos e viu lá dentro todo o garbo que aquele menino escondia. Era um ser inocente, imaculado, perdido e desprotegido num mundo que não conhecia. À simpatia inicial, juntou uma desmedida necessidade de protecção. Foi essa a forma elementar, mas também duradoira, que aquela caprichosa e soberba menina encontrou de amar.

Fernando por sua vez viveu em estado de graça nas semanas e nos meses que se seguiram. A Primavera desabrochou num esplendor de luz e cor, envolvendo os seus sentidos num luxo novo. Os olhos abriram-se-lhe mais; o sorriso alargou-se-lhe na boca; a pele distendeu. O Tejo estilhaçava-se de manhã numa luz irreal e desfazia-se ao fim da tarde num lago de sangue, cujo rasto se perdia a Ocidente, na mancha infinita do oceano. Os dias tornaram-se quentes, abafando as cruas fragrâncias aprilinas numa explosão de aromas doces, maduros, fortes, suculentos. Vieram as frutas novas, a ameixa, o pêssego, o figo temporão, o damasco, a nêspera. Chegaram os braçados novos de flores, os cravos, as rosas, as papoilas, os malmequeres, os lírios, as íris, as petúnias.

A princípio o Coburgo viveu quase recolhido nos aposentos das Necessidades, mas depois deu em passear pelas matas da Ajuda e pelas areias de Belém. Descobriu encantado a Torre de S. Vicente mandada construir por Manuel I na prainha donde haviam partido os navegadores que foram a vez primeira à Índia e depois a igreja dos Jerónimos com o seu claustro misterioso, cheio duma profusão de figuras fantásticas em pedra. A igreja, panteão tumular da família de Manuel I, era local dalgum conceito, mas a Torre nem os ratos a queriam por causa do sal e da humidade. Ele, que no tempo dum gesto aprendera o português, perguntava, tomava notas, tirava medidas e passava longos bocados contemplando em êxtase aqueles pedaços de pedra.

– É doido varrido, o homem – diziam as azougadas varinas que o viam especado ao longe, de sorriso aberto, com o olhar mergulhado nas pedras.

O rapazio deu em observá-lo. Achava-lhe graça ao estilo do vestuário, quase alpestre, e ao modo como o seu corpo magro cortava o espaço. Parecia uma figura de ópera, musical, encantada, retocada a cores extravagantes. Continuava muito branco, cor de leite, sempre protegido por um chapelão largo de pele. Quando, de vez em vez, tirava o chapéu, para chupar o suor da testa com a manga do casaco branco de algodão ou um lenço interminável que trazia para o efeito, a pele parecia reverberar, ao Sol forte do equinócio, como a cal. O cabelo, ao invés, num loiro acastanhado, esverdinhava quando se misturava com as incidências azuladas do rio. O rapazio ria, quando o via assim, de chapelão de couro na mão, caracóis do cabelo a esvoaçar na brisa, rosto limpo, muito bem barbeado, e a pele húmida, molhada pelo suor, a reflectir a luz e o calor do Sol.

Ele não dava por nada. Lembrava-se do seu Schlegel e da importância do gótico. Sonhava, tomava notas, lembrava-se dos seus amigos em Viena, no mês de Maio, nas esquinas da praça Michaelertor, a fazer tempo para assistirem ao serão no Burgtheater. Mal sabiam eles que tirando o quadrado da praça havia mais mundo. Olhava com mais gosto ainda para as estranhas decorações em pedra que tinha à sua frente e que a teoria da arte europeia romântica não chegava para explicar. Aquilo parecia-lhe a epopeia de Camões talhada em pedra. Pensava na família reunida nos salões do castelo de Ehrenburgo, em Coburgo e sonhava nesse transe acrescentar a sua nota discrepante ao seu Schlegel. Voltava a sentir-se um ser especial, um viajante cujo destino era decifrar aqueles enigmas de pedra e amar uma princesinha que vivia, por entre enfeites de espuma, à beira mar.

O encanto que tinha nos olhos era tanto que nem a fealdade da esposa ele via. Só tinha olhos para a beleza. Maria era para ele o verde do mar ou do olhar. Gostava de pensar nos seus olhos cada vez mais límpidos e verdes, que o fitavam na intimidade como se lhe implorassem mais e mais amor. Aqueles olhos eram duas pedras verdes no fundo dum aquário. Imaginava a esposa como uma mulher de rabo de peixe, uma sereia que o esperava numa gruta de pedra, recostada numa concha por trono, entre algas, cordas, estrelas-do-mar, búzios, conchas e peixes de reluzentes escamas. Para bem dizer, misturava-a com os arabescos de pedra que se entrosavam nas colunas dos Jerónimos.

Outras vezes vinha para estes passeios acompanhado pelo preceptor. Nessas alturas, o rapazio, que o seguia à distância, ficava ainda mais curioso. Aquele par de sábios exóticos, que se encasacavam para se protegerem do Sol, duplicava-lhes a curiosidade. Quando os viam gesticular diante do porte náutico daquele barco de pedra que era a Torre, percebiam que ali entre os dois se passava qualquer coisa de marcante, que não percebiam mas que também não lhes interessava perceber. Aquilo que valia para eles era o momento em que o príncipe, com ar surpreso, como se tivesse tocado com a mente em alguma região ignota do saber, puxava do comprido lenço que não parecia ter fim, tirava do chapelão e mostrava em todo o seu esplendor, coroada pela pequena floresta verde dos seus cabelos, a coloração branca da pele que reverberava como um espelho a luz inclemente do céu. Era um superior momento de revelação, aquele em que esses pobres diabos entendiam, por uma manifestação física palpável e evidente, todo o exotismo daquele ser que viera para os governar dum lugar para eles inimaginável.

Ao mesmo tempo, Dietz, apoquentado também pela canícula, tirava por sua vez o chapelão que o protegia e deixava tristemente ver o que restava da sua arruivada e revolta cabeleira.

Dietz e Fernando, imersos que ficavam no debate daquela arquitectura, não percebiam sequer que estavam a ser observados e, de lenços na testa, chapelões na mão, continuavam amigavelmente a discutir, por entre o marulhar brando da maresia, oferecendo o rosto molhado à consoladora brisa que vinha de ocidente, os pormenores estranhos daquela pedra.

De seguida, chegou o Verão, com os seus calores fortes, prolongados, sufocantes. Há três meses que o príncipe chegara a Portugal e pouco se dera por ele. Tirando as tensões em torno das nomeações militares que lhe cabiam, e que pouco o tocaram, dado o seu desinteresse sem excepção por questões militares, o itinerário do príncipe fora todo pessoal. Fizera uma visita ao Alfeite, outra a Cascais e outra a Sintra; passeara muito pelos aterros de Belém, pelos altos da Ajuda e começara a planear a instalação de novas peças nos aposentos das Necessidades. De resto, fora algumas vezes a Lisboa, para tomar o pulso da cidade, e frequentara com a rainha o fim da temporada no São Carlos.

Saldanha e Terceira, os dois marechais do novo regime, o primeiro dos quais ajudante-de-campo do marido da rainha, planearam alterar a situação. Decidiram começar pelo Porto, o coração do liberalismo português, onde se haviam definido os destinos do Portugal novo. Era preciso que o príncipe se desse a conhecer aos veteranos da guerra, se fizesse amar pelo povo que lutara contra os soldados de Miguel, fosse em romagem à igreja da Lapa, onde estava a urna com as vísceras do imperador, seu sogro e pai do novo Portugal. Depois iriam a Braga e a Coimbra. Ele, o príncipe, hesitava; não sabia decidir entre o dever que lhe apresentavam e o gosto que punha no recato da sua vida privada. E este gosto era o que melhor lhe ia com a reserva, a timidez absoluta do carácter.

– Vai – pediu-lhe a esposa. – Precisas de te dar a conhecer aos soldados de meu pai e que são agora teus.

Maria continuava a crer nas predições de Palmela e numa idade próxima de grandeza para o país. Não sabia como isso havia de ser, tirando o fim dos frades e dos conventos, mas sonhava-se a reinar numa época nova, de plena prosperidade. Ele, para lhe fazer a vontade, foi. Havia já percebido que Maria era rainha e que esse estado lhe entrava pela casa dentro. Percebia a satisfação que ela punha na sua presença, a ilimitada dedicação que lhe devotava, mas entendia também que não admitia ser contrariada. Ele foi, mas ela sofreu. A rainha deu-se então conta que a vida de família lhe convinha mais que a vida do reino, se isso se concebia em menina que se via nas sedas do trono desde a idade tenra das bonecas. Escreveu-lhe em francês aquelas palavras expressivas, apaixonadas, que ainda hoje nos tocam pela audácia com que foram ditas e que são o modelo do afecto que uniu estes dois seres: je vous aime plus que moi-même.

Fernando respondeu em português, menos agradado que incomodado por tanta afeição, ele que era discreto, comedido, modesto, muito metido consigo próprio e com as suas fantasias de artista. Saudade, dizia-lhe a sorrir o seu ajudante-de-campo e ele respondia que sim, já ilustrado pela leitura do Camões de Garrett, um dos soldados do sogro que vivera o exílio de Londres e Paris.

Em Lisboa a abertura das Cortes foi adiada do meado de Agosto para os primeiros dias de Setembro. A dissolução tivera lugar no início de Junho por decisão da rainha, que não estava  feita, nem se queria fazer, às tensões entre Câmaras e governo. Queria uma câmara de deputados composta a seu modo, de maneira a não perturbar o trabalho dos ministros. Era ela que formava e nomeava o governo e por isso lhe parecia de todo desejável que fosse ela também a compor as Câmaras, a dos pares, por prerrogativa constitucional, a dos deputados, pelas eleições. As eleições cozinhavam-se no paço com os próceres das facções parlamentares; por sua vez estes tinham na mão os caciques locais que organizavam o recenseamento, arrebanhavam os votos, fiscalizavam as urnas. Para a oposição ficavam umas tantas migalhas que as malhas deixavam condescentemente passar. Eis a tradição eleitoral que se iniciou ainda em vida de Pedro e se continuou no reinado de sua filha, Maria II.

As escolhas da rainha iam naturalmente para os homens do pai, à direita, conservadores, fiéis à Carta e adversos aos velhos plebeus, os democratas pé-de-boi, com quem o pai andara sempre às teimas. Eles lhe haviam feito as desfeitas dos panfletos de Paris e eles lhe haviam dado a humilhante espera do São Carlos depois do fim da guerra. As eleições de Julho desse ano – andava Fernando pelo norte do país – favoreceram pois os aristocratas em detrimento dos radicais, que só conseguiram ganhar em três distritos, Porto, Viseu e Faro. A Guarda Nacional, que andara nas desordens que se seguiram à morte do príncipe Augusto, e que estivera quase a deitar a mão a Palmela, metia-se agora nos clubes radicais que agitavam a Baixa lisboeta, sobretudo na zona do Arsenal, onde funcionava o clube dos Camilos e gritava ruidosamente, de armas na mão, contra os camareiros da rainha. Com o desaire das eleições, a sua ousadia cresceu. Falavam já abertamente, com o apoio dos oradores mais inflamados, numa revolução que restituísse a soberania ao povo. O governo era ilegítimo, filho da corrupção eleitoral, logo a revolução era a lei.

Quando Fernando regressou a Lisboa estavam as coisas neste pé. Ele nem se deu conta da tempestade que se formava no horizonte. Estava empenhadíssimo em tomar nos braços a sua Maria e anotar as impressões de viagem. Maria, por sua vez, melhor informada, julgou que tudo resolvia reforçando a polícia, mandando fechar os Camilos, vigiando os outros clubes, ocupando Lisboa com forças fiéis de cavalaria. Tomava o assunto ao de leve, não lhe dando qualquer importância. Assim, foram os dois para Sintra, para o paço da Vila, gozar o fresco da região, os passeios de burrico pelas aldeias saloias, as merendas ao entardecer nas varandas altas do palácio, as noites serenas e azuis da serra.

Foram porém obrigados a voltar às Necessidades para a abertura das Câmaras no Palácio das Cortes, a S. Bento. Na tarde de 9 de Setembro chegaram ao Tejo os deputados da oposição do Porto, capitaneados por Manuel Passos, também conhecido por Passos Manuel, o mais novo dos dois irmãos. Foram recebidos por uma multidão eufórica, onde se viam muito militares da Guarda Nacional, que os arrastou em cortejo até às Cortes, no meio de vivas à Liberdade e à Constituição, à oposição e à rainha. Às janelas, alertadas por tanta e tão ruidosa algazarra, vinham as famílias, com as senhoras de crianças ao colo, e logo ali se estendiam colchas azuis e se faziam alegres acenos para o cortejo com lenços alvos e sorrisos de apoio. Eram os mesmos que uns anos antes se vestiam de negro e vermelho em homenagem à rainha de Queluz e do Ramalhão mas isso agora não contava. Todos eram liberais e disputavam mesmo em ser radicais. Ao anoitecer, depois de muita confraternização, os batalhões da Guarda Nacional ocuparam o Rossio e aclamaram a Constituição democrática de 1822.

– A Carta caiu! Viva a Constituição! – gritou-se logo depois, como num eco, por toda a cidade.

Terceira, que estava nessa época à frente do Ministério, correu ao paço a dar o aviso do que se passava. Foi a estupefacção. Maria, que era muito senhora da sua autoridade, apesar da idade, recusava-se a acreditar no que ouvia.

– Uma revolução? É impossível. Você não se dá conta do que está a dizer – respondeu ela, muito ciente do que sabia, no meio da atrapalhação geral, a um Terceira incrédulo.

Fernando, muito inexperiente, com uma aversão visceral por toda a violência, quando ouviu os relatos do que acontecera na cidade, com uma multidão descontrolada e armada a correr as ruas e a gritar que a Carta caíra, entrou em pânico.

– Refugia-te, por favor, num navio inglês – pediu ele aflito e trémulo à esposa.

Ela, que tinha do poder e da violência ideias mais práticas, recusou. Mandou reunir o ministério, que deliberou enviar para o Rossio, com ordens de fuzilada, a tropa fiel. Depois, a meio da noite, quando esperavam ver regressar os soldados vitoriosos, viram antes, à luz temível dos archotes, uma multidão enfurecida aproximar-se das Necessidades. Eram os insurrectos da Guarda Nacional que haviam conferenciado e depois confraternizado com a tropa enviada pela rainha e aí vinham zangados com a desfeita que o paço lhes acabara de fazer. Atrás deles, o rapazio, a fadistagem dos botequins e as vivandeiras que faziam horas para irem ao aterro do cais-do-sodré esperar o peixe batiam em paus no meio de muitos vivas e morras.

Diante da deserção da tropa, os ânimos no paço amedrontaram-se. O príncipe Coburgo, que se abeirara duma das varandas do salão superior, e dera de frente com a pavorosa cara dos insurrectos da Guarda e os risos da fadistagem lisboeta que se rebolara ao vê-lo assim todo enfiado, mais branco que um morto, chorava a um canto. De quando em quando, tomado por um acesso de lucidez repentina, puxava do lenço, enxugava as lágrimas, levantava-se, aproximava-se da esposa, tocava-lhe no braço e implorava com uma voz de miserável.

– Peço-te, por Deus, vamos embora. Não é razoável ficarmos aqui nem mais um minuto.

A rainha olhava para ele com um ar de comiseração e não se atrevia, diante de tanta aflição, a dizer-lhe fosse o que fosse. Ainda assim, o seu ar exaltado e varonil dava bem a entender que por nada deste mundo estaria disposta a abondonar o paço. Por fim, quando o marido se fez insistente, deixou cair.

– Sair daqui, equivalia a deitar fora a coroa que tanto custou a ganhar a meu pai.

No meio dos lampejos dos brandões que ardiam na mão dos criados, os seus olhos brilhavam, mais cinzentos, mais limpos, mais cruéis. Aceitou assim, cheia de sangue-frio, receber a comissão que os insurrectos lhe enviavam. Pediam-lhe que reconhecesse de imediato a Constituição de 1822 com os naturais ajustamentos que as novas Constituintes decidissem fazer e que se desfizesse de imediato do ministério e dos conselheiros. A rainha, sem guarda, sem soldados, sem polícia, com o marido arrumado a um canto, não teve outro remédio senão aceitar tudo. Saiu a comissão e com ela a multidão dos Guardas e dos populares, que se dirigiram para o Rossio. Entretanto, para não se sentir prisioneira das suas atitudes, engendrando já na sua real cabecinha um plano de desforra, mandou vir o corpo diplomático e declarou-se coacta nas decisões acabadas de tomar.

Acabava ela de fazer a declaração, e de novo a multidão a chegar ao pátio das Necessidades numa grande algazarra. Amanhecia, ninguém pregara olho mas a paródia era para durar. À frente, vinham os batalhões da Guarda Nacional com as espingardas enfeitadas de flores e ramos verdes, sinal de vitória, e logo depois os corpos militares que haviam aderido à revolução durante a confraternização da noite, entre eles os Caçadores 5, o regimento que fora comandado pelo ex-imperador durante a guerra e que estivera na origem da resistência militar ao miguelismo. Vinham buscar a rainha, enquanto a agitação estava ao rubro, para a levar aos paços do concelho, onde ela devia jurar a Constituição e reconhecer o fim da Carta.

O príncipe, quando viu, na luz pálida da manhã, a farsa ruidosa dos corpos militares, distinguindo entre eles, enfeitado a grandes e carnudas folhas de parra, o uniforme dos Caçadores 5, ficou interdito. Esperava tudo, mas não aquilo. Passara uma noite pavorosa, de inquietação e medo, mas aquela visão sinistra da tropa portuguesa a ondular na luz fria e espectral da primeira manhã, gelou-o.

– E sou eu o coronel deste regimento… E eu o comandante-em-chefe de todos estes corpos ­– exclamou ele, trucidado, com as mãos à cabeça, quando se recolheu ao salão.

A rainha não esteve com hesitações. Pegou no marido e nas camareiras próximas e partiu de coche para a Câmara municipal. Escoltou-a um esquadrão de cavalaria, muito soberbo no seu papel, espada na mão, trejeito zangado nos lábios, cavalos nervosos, de freios apertados. Fernando tremia, sem pinga de sangue, mas a rainha, indiferente àquele espectáculo, sorria. Nos paços de concelho assinou e jurou tudo o que lhe pediram. Mas no regresso às Necessidades, com a vazante da maré a correr na foz do Tejo, a carga daquela noite de vigília pesou-lhe duramente nos nervos. Não se conteve. Suspirou magoadamente, arrepelou a boca, teve no nariz um tique irritado e furioso, sentiu dentro de si subir um irreprimível desejo de punir aquele desacato que tanto a ofendera. Era uma borrasca interior, que a incitava a prosseguir, a exigir ao destino e à vontade dos homens um desagravo.

– Isto não fica por aqui. Vereis que não – rematou ela, já nos aposentos do paço, quando se viu sozinha.

Os dias que se seguiram não deixaram perceber o que depois veio a suceder. Fernando descartou-se dos seus cargos e achou por bem esquecer o incidente. Tinha uma cultura constitucional numa alma de artista, com um total desinteresse pela manifestação prática da vida política. Aquela crise, vivida de modo tão intenso e de forma tão adversa à sua natureza, mostrava-lhe que esse desinteresse estava a ponto de se tornar desprezo. Maria, ao invés, não queria esquecer e esperava com denodo a ocasião de tirar desforra do caso. A Carta valia tudo, a Constituição nada; assim fora educada pelo pai e assim queria teimosamente continuar. No código genético do novo Portugal liberal estava, misturada à magnanimidade do rei, a sua autoridade, não a soberania da nação. Ansiava pois pela ocasião de repor a sua força e de mostrar ao povo a sua ordem.

– A Carta reentra até ao Natal – dizia ela em privado a Terceira.

Não fazia por menos o plano. Começou de imediato a conspirar em segredo, à margem do novo governo, que tinha sido entregue a Sá da Bandeira, o mutilado da guerra que tinha a confiança dos radicais e se entendia com os irmãos Passos.

O mês de Outubro foi para montar e afinar o plano; arranjou uma ou  duas centenas de soldados dispostos a acompanhá-la do princípio ao fim e escolheu dois ou três conselheiros políticos entre os legados estrangeiros em Lisboa. A intenção lembrava à distância aquilo que se passara em Abril de 1824 com o avô, mas o quadro contitucional em que se vivia, a obediência que a rainha devia às leis do país, dava àquela prova de força outro ângulo, mais arbitrário e mais escuro. O legado belga, Van der Weyer, tornou-se o interlocutor mais próximo da rainha e com ele planeou ao pormenor o contra-golpe para apear a Constituição. Uma esquadra inglesa viria fundear no Tejo com tropas belgas prontas a desembarcar.

Fernando foi deixado na sombra. Tinha o seu aniversário no fim do mês e a rainha quis poupá-lo. Sabia-o muito dado às artes e falou-lhe por isso em quadros e exposições. Ele entusiasmado propôs-lhe uma Academia Real de Belas-Artes, patrocinada com dinheiro da sua dotação. Fundou-se a Academia, mas a rainha estava demasiada ocupada com o golpe contra os radicais para se dedicar com atenção ao assunto. Por fim, já a festa do aniversário do príncipe passara, já a esquadra inglesa e belga fundeava no Tejo, em frente de Caxias, a rainha apareceu-lhe pela frente com o plano. Fazia-se acompanhar pelo legado belga, que era o seu capitão de operações. Ele teve um sobressalto.

–  Tudo acabará como desejamos. Não te faças preocupações ­– pediu-lhe ela, a sorrir, como se aquilo fosse um passeio às traseiras do palácio.

Ele, atemorizado ainda com as cenas do Verão, sentia-se inseguro, mas queria confiar no legado do tio Leopoldo, que lhe afiançava sucesso rápido e seguro. Demais, sabia que não valia a pena tentar contrariar as intenções da rainha. Ideia sua, era prescrição certa.

A 2 de Novembro começaram as primeiras movimentações. No dia seguinte, pela manhã, a rainha ordenou que deixassem as Necessidade e se entrincheirassem no palácio de Belém, ao pé da Matinha.

– Ficamos assim ao abrigo das movimentações que venham a ter lugar no centro da cidade – justificou-se ela ao marido.

Na verdade, faltou-lhe dizer que assim estavam mais perto do cais e de embarcar nas corvetas inglesas caso as operações não corressem tão bem como o legado belga previa. E das corvetas, com  o apoio das guarnições belgas, restaria ainda muito papel para gastar. Isso percebeu o governo de Sá da Bandeira, que logo nesse dia mandou aviso a Belém por um estafeta.

– Se a rainha recolher aos navios Ingleses, isso para o governo equivale a perder o trono.

As posições extremaram-se. A rainha, impulsiva, indignada, cheia de vontade de castigar os insurrectos, apressou-se a demitir o governo, nomeando outro da sua confiança. Por sua vez, os radicais agruparam-se à volta da Guarda Nacional, que se reuniu de emergência em Campo de Ourique e saiu para a rua em força, ocupando o centro de Lisboa e espalhando-se a partir dele por todos os bairros da cidade. Manuel Passos foi destacado como emissário junto da corte mas a rainha recusou-se a recebê-lo. Sentia-se forte e não queria deixar passar o mais pequeno sinal de fraqueza. Deu antes em chamar Agostinho José Freire, o carregado e sombrio Freire, que fora ministro da Guerra do pai e fizera profissão-de-fé na Carta. Servia-lhe agora à maravilha para o novo governo. Veio Agostinho José Freire a Belém na manhã do dia 4 de Novembro e quando descia a calçada da Pampulha foi detido por um grupo de guardas nacionais, que custaram a reconhecê-lo. Ele, fiado nos cargos que ocupara no tempo do ex-imperador, incapaz de distinguir o passado do presente, insultou os militares.

– Tu que queres, ó patola? – perguntou-lhe desconfiado o cabo que tinha a cargo o grupo que ocupava a Pampulha.

Freire era homem de cinquenta e seis anos, ainda entroncado, que andara metido em rijas bulhas desde os tempos do Junot. Passava por prudente e por pessimista, mas também por convencido. Era do partido dos matreiros, e ainda dos vaidosos, com certeza os mais gordos de sempre. Julgou que um antigo ministro do ex-imperador não precisava de responder a um cabo da Guarda. Cuspiu com desprezo para o lado e fez menção de avançar. Foi filado pela aba do casaco, que logo se descoseu, e socado. Defendeu-se à bruta, mas de pouco lhe valeu. Passado uns minutos jazia no chão morto.

A novidade chegou pouco depois ao paço de Belém. A confusão instalou-se. Maria estava como nos momentos em que lhe chegara a notícia do levantamento constitucional de Setembro.

– Mataram o Freire? Pode lá ser. Nós é que matamos, não eles – dizia ela incrédula para os colaboradores.

Estavam lá Palmela, Lavradio, Terceira, Saldanha e outros. Fernando, quando se apercebeu da tragédia, reviveu o pavor das horas passadas em Setembro nas Necessidades.

– Isto já tem um morto. Daqui um pouco é o Terror – exclamava ele, exaltado e fora de si.

Van der Weyer tentava acalmá-lo, mas sem resultado. Estavam todos desnorteados, se não perdidos. Contaram espingardas, mas as forças dos amotinados, mesmo entrando em conta com os belgas que estavam no Tejo, eram superiores. Se os belgas desembarcassem, explodia a carnificina. Ainda pensaram refugiar-se nas corvetas inglesas, mas a rainha estava absolutamente contra.

– Prefiro morrer a fugir ­– dizia ela, com o semblante muito varonil e os lábios trémulos.

Não tiveram outro remédio senão mandar vir o Passos a Belém. O príncipe, quando o viu, julgando-o a cabeça da revolta, dirigiu-se a ele. No desnorte que o tomava, passava por ter graça e na excitação em que estava, chegava a ser corajoso.

– El-rei Passos… – exclamou ele, adiantando-se, com uma vénia profunda, espectacular, como se estivesse em cena, no palco, representando um dos seus dramas preferidos.

Manuel Passos era um burguês de trinta e cinco anos, de estatura mediana, olhar vivo e sincero. Sentia-se na sua carnadura rija e vermelha o milho loiro de Guinfães e da Infesta, o centeio escuro e nutritivo de Avintes, a pinga colorida e ácida de Rio Tinto. Era um produto da lavoura e do comércio, antes de ser um tribuno e um bacharel despachado por Coimbra. Nunca perdera o acento original do norte, trocando os vês pelos bês, como de resto nunca alienara em tantas e desencontradas andanças a seca broa molhada nas borras do café da sua doce e rural meninice. Sorriu abertamente diante da cena teatral do príncipe e adiantou que estava ali por imperativos de consciência, para salvar a nação e o trono.

– O trono? – perguntou indignada a rainha.

Ele, que era paciente como um desses bois largos que no norte lavravam nessa época as leiras, explicou. Sim, o trono. Era preciso apenas que Sua Majestade se deixasse salvar e não fosse contra a vontade do seu povo. Depois, tudo se arranjaria, se houvesse compreensão de ambas as partes. Segundo ele, era fácil chegar a um compromisso que interessasse os dois lados.

– Compromisso? – perguntou Palmela, que andava naquilo desde o tempo dos Franceses.

Sim, compromisso, respondeu ele. Bastava que a rainha nomeasse um novo governo do agrado da revolução, dando seguimento ao que vinha de 10 de Setembro, e se cozinhassem datas e modos para novas eleições, que deviam ser constituintes.

– Constituintes? E fala o senhor em compromisso com a coroa? – perguntou, em voz alta, com tom histérico de reprovação, a rainha.

Ele não se irritou e continuou. Tudo lhe parecia fácil de resolver. Bastava que as futuras Constituintes tomassem como base de trabalho a Constituição de 1822 e a Carta de 1826. O novo texto seria o resultado da fusão das duas. Nada de impossível. Quanto ao resto, tudo seria depressa esquecido, voltando o trono a brilhar em todo o seu esplendor.

– Não se inquiete Sua Majestade. Lá iremos, o mais tardar no ano nobo, à sala do trono, beijar a Sua augustíssima mão ­ – concluiu ele, conciliador, pacato, risonho, bom burguês.

Não houve expediente senão aceitar. Do golpe de Belém não ficou nada, a não ser esse pobre e inútil cadáver da calçada da Pampulha. A rainha e o príncipe regressaram às Necessidades, os aristocratas como Palmela e Lavradio arredaram-se para a sombra, insultando finamente a situação na Câmara dos pares, os marechais ficaram a aguardar a sua hora, as corvetas inglesas retiraram do Tejo sem terem visto do país muito mais do que as águas e o céu, os legados foram para os seus gabinetes deferir os vistos de entrada dos seus concidadãos. A rainha, que não era fácil de convencer, e toda a vida acreditou que a autoridade era dela, ficou a remoer vinganças. Calava em público, ou até em privado, as suas mágoas mas fazia os seus secretos conciliábulos com os dois astros militares do novo regime, Saldanha e Terceira. Tinha um sangue-frio temível, pois à noite, depois de conspirar ao serão com os marechais, era capaz de se deitar inocentemente com Fernando, aos mimos, tudo escondendo dele. Parecia uma criança inocente, capaz de suspirar de preocupação com os trabalhos do dia seguinte.

– Imagina, marido, amanhã tenho de ir às Cortes ler o discurso do trono – dizia ela, quando se deitava, com a maior indiferença e frieza, depois de ter avaliado com Saldanha o número de tropas que havia no centro do país para quebrar os Setembristas.

Cozinhou assim, neste regime de duplicidade, mais umas eleições, que desta vez foram empalmadas na quase totalidade pelos radicais de Setembro. Assentiu na ditadura de Passos e na sua prolixa obra legislativa, com o novo código administrativo, a reforma do ensino, a nova pauta alfandegária, o teatro nacional, a criação dos liceus. Assistiu bravamente à abertura das novas Cortes constituintes, acenou com um sorriso à Guarda Nacional que enchia soberbamente as galerias do palácio de S. Bento, cumprimentou com o seu ar angélico de menina de dezassete primaveras os deputados vestidos a rigor com o uniforme da Guarda Nacional e por fim convidou para o paço os novos ministros, vestidos à moda plebeia, com luvas brancas de algodão, gravatas de pano e coletes de cotim.

– Um horror, esta gente que vem das hortas e que limpa os beiços com as mãos e assoa o nariz com os dedos – disse ela, com ar de verdadeira comiseração, depois da recepção em que lhes deu de jantar. – Mas é preciso sofrê-los, com paciência e complacência.

Sim, sofrê-los, mas só a fazer de conta, porque no íntimo odiava essa gente que tresandava a lavoura e a estrume e estava desejosa de desagravo. Passou o seu curto reinado a tramar revoltas e desforras contra os políticos que lhe haviam roubado a Carta e os aristocratas e viu-se por vezes metida num autêntico braseiro de chamas. Não lhe serviu de nada, porque até ao fim perseguiu sempre teimosamente o mesmo termo incendiário e punitivo.

Fernando, por seu lado, depois da aventura de Novembro, não se imaginava mais metido em desordens públicas. A esposa, conhecedora da sua natureza, poupava-lhe qualquer alusão ao género. Dava-lhe a entender que estava resignada com a nova situação política e que não lhe passava pelo espírito promover a sua alteração. Ele, confiado nas palavras sensatas da mulher, e na intransigente dedicação caseira que ela manifestava em todas as situações, aliviava-se e dizia-se a si próprio que tudo aquilo fora um pesadelo, mau mas passageiro, que já lá ia. Pôde então dedicar-se com alguma tranquilidade à sua vida de artista e de estudioso. Continuou os seus animados debates com Dietz, viajou ao centro do país, deu-se conta da arquitectura da Batalha e de Alcobaça, visitou Tomar, admirou a igreja de S. João Baptista e ficou estupefacto com o Convento de Cristo. Tirou medidas, tomou notas e apontamentos, fez esquissos e recolheu às Necessidades com um vasto material de trabalho. Concebeu por essa altura um plano de reparação e salvaguarda dos monumentos medievais Portugueses, muito esquecidos e maltratados por então.

Em finais de Fevereiro uma notícia alvoroçou a corte e o país; a rainha estava grávida. O príncipe viveu a notícia no seio daquela felicidade doméstica que era o seu ideal de pessoa e o país respirou de alívio. A dinastia mostrava futuro e deixava descendência. Palmela, sempre oportuno, não quis perder a graça, nem o fundo ar de vate, quando deu os parabéns à rainha.

–  Ínclita geração, altos infantes. Eis o que aí está para nos chegar… Sei-o eu de livro muito certo e antigo.

Ainda assim, no meio de tanta tolice e de tanto fraseado pequenino, Maria não se esqueceu do sentido dos negócios públicos. E para ela, sumiam-se estes na reparação que interiormente exigia dos que haviam tripudiado as letras da Carta. Enquanto as Cortes andavam entretidas na discussão do novo texto constitucional, ela, às escondidas, nos momentos de alívio da gravidez, alinhava os espingardeiros que iam entrar no pronunciamento Cartista e dava ordens severas aos dois marechais. Tinha dezoito anos, mas um espírito despótico e varonil, de quem tivera de disputar rijamente, à dentada, a coroa com o tio, um bruto imundo que pegava toiros pelos cornos dentro dos corredores do palácio de Queluz e mandava a rir para a forca um pelotão de homens. E vencera. Também desta, contra facínoras mais medrosos, havia de triunfar.

A 12 de Julho rebentou o pronunciamento Cartista. Cinco dias antes, Saldanha, atarantado, quisera adiar tudo por causa da rainha, que tivera uma indisposição ligeira de grávida. Ela enfureceu-se, quando viu o marechal titubear.

– Não sei se o considere pusilânime ou traidor – disse ela, quando depois de muitas vacilações o percebeu disposto a recuar. – Escolha o senhor o que melhor lhe convém.

Saldanha enfiou-se diante daquela mulher avantajada, que escaldava como labareda quando se enervava, e não respondeu sequer. Brioso como era em coisas militares, mandou avançar o pronunciamento e cinco dias depois o Minho aclamava a Carta. O governo respondeu de imediato, radicalizando medidas e dividindo o país em duas zonas de operações, a região a Norte, entregue a Sá da Bandeira e a José Passos, o mais velho dos irmãos, e a região Sul, a cargo de Bonfim e Costa Cabral, um arsenalista radical, saído dos clubes políticos da Baixa lisboeta e que pedia sangue, muito sangue, sempre sangue, para dar cabo dos contra-revolucionários. Entretanto, Saldanha, com as suas lunetas de hervanário, as suíças tojudas, o bigode ameaçador, galopava como um Quixote pelo centro do país chamando à sublevação os regimentos de Abrantes, Castelo Branco, Coimbra. As adesões eram curtas e hesitantes e o desenlace da sedição via-se adiado, se não tremido.

Na corte, a rainha fazia de conta que tudo aquilo para ela era uma surpresa nova. Quando Dias de Oliveira, o chefe de governo, lhe vinha trazer notícias do pronunciamento, ela levava as mãos à boca numa grande tirada de espanto.

– Não me diga, custa a crer. Então o Saldanha anda por aí como um guerrilha a apelar à sedição… – exclamava ela com um toque estudado de reprovação no olhar e na voz.

Por trás, às escondidas, tinha os seus informadores e sabia tudo o que se passava no país. Estava a par de todas as movimentações e chegava mesmo a passar bilhetinhos com as suas ordens. Por menos do que isso, podia ter sido enforcada, pois o governo, diante daquela ameaça, arreganhara os dentes e tornara-se feroz. Surgiram de repente, da noite para o dia, como cogumelos venenosos, os Dantons, os Saint-Just, os Robespierres da revolução portuguesa. Nos clubes pedia-se a cabeça dos sediciosos e medidas enérgicas para acalmar a situação. Homens como Costa Cabral, vindos de Fornos de Algodres, anónimos e rudes, que nunca ninguém vira até aí, ou em quem ninguém reparara, assenhoreavam-se da situação, ultrapassando pela esquerda com o apoio da Guarda Nacional os chefes históricos radicais, como Estevão, Pizarro, feito agora por fim barão, barão de Ribeira de Sabrosa, ou os Passos. As Cortes, pressionadas pelo clamor da agitação, suspenderam as liberdades e as garantias, encerraram jornais, autorizaram prisões arbitrárias, decretaram degredos. Mas a rainha tinha escola farta, além de boa estrela; aprendera a arte da dissimulação desde os tempos de Londres, com os grandes mestres que tinham em Palmela a sua referência mor. Nem o confessor, que lhe lavava os pecados, nem o marido, que se deitava com ela todas as noites, lhe topavam os segredos, quanto mais o governo, que lhe andava arredado da cama e longe do confessionário.

Nos finais de Agosto, Saldanha e Terceira apareceram às portas de Lisboa, no Lumiar. Vinham dispostos a tomar a cidade com mil homens. Dois dias antes, em Torres Vedras, haviam nomeado uma Junta Provisória do Reino e estava tudo projectado para a queda da capital e a restauração da Carta. Do interior, a rainha garantira a adesão das tropas regulares. Quando chegassem ao Campo Grande encontrariam todos os regimentos da cidade, dispostos a secundá-los. Ninguém se atreveria a levantar um dedo contra a Carta. Mas quando os marechais chegaram ao Campo Grande perceberam que a adesão não passara de entusiasmo da rainha. O que os esperava eram dez mil guardas nacionais, fardados a rigor, entrincheirados em fundas valas e de espingarda apontada, pronta a disparar, caso eles dessem um passo mais. Da tropa regular, nem uma ponta de baioneta se via. Decidiram pois os marechais retirar com o seu triste milheiro de homens. Antes de partirem, mandaram um estafeta às trincheiras com uma declaração que mais parecia uma paródia de comediantes, ou uma partida de miúdos, que uma desfeita de gente grada, batida em armas e revoluções.

– Somos cavalheiros. Poupamos Sua Majestade, em adiantado estado de gestação, a uma fuzilaria inútil. Mais tarde se verá quem manda, se a Carta ou a Constituição.

A rainha, quando soube do incidente, não achou graça.

– Parvos os dois, que voltaram costas ao dever ­– concluiu ela, algo desmoralizada com a evolução do caso.

Com a impossibilidade de entrarem em Lisboa, os dois marechais andaram por aí perdidos, como outrora, no tempo de Godoy, acontecera ao pobre e velho duque de Lafões. Perto de Rio Maior foram interceptados pelas tropas do governo e levaram com o cacete. Ainda assim, marcharam para Trás-os-Montes, a província mais distante, para se porem ao abrigo dos regimentos de Sá da Bandeira e repensarem a acção. Andavam há dois meses naquilo, dormindo e comendo ao ar livre, sem proveito nenhum. Os primeiros vendavais do Outono não tardavam aí e era imperioso encontrar um desfecho digno para a movimentação. Os marechais das forças armadas, os dois lustres militares do novo regime, os primeiros pares do reino, cuja farda não tinha mais espaço para colares, laços, insígnias ou placas, tantas eram as condecorações que lá se colavam, arriscavam-se em breve a andar acossados pelos lobos e pela fome, ao frio, esfarrapados e fugitivos, como os últimos abencerragens do miguelismo.

Entretanto, em Lisboa, cada vez mais desalentada com o rumo da sua revolta, a rainha entregava-se ao parto do seu primeiro rebento. Estávamos a 16 de Setembro de 1837. Tinha três casamentos feitos, um ex-marido no exílio, outro enterrado em S. Vicente, meio mundo andado, um trono duramente conquistado à custa duma guerra civil que demorara mais dum lustro, amontoara milhares de mortos e deixara milhares e milhares de estropiados, quer dizer, um currículo de arregalar os olhos de susto para uma megera velha e de má índole, quanto mais para uma menina de dezoito anos, que nascera no berço de oiro da filha de Francisco I, imperador da Áustria. A isto era preciso juntar ainda o sobressalto de Setembro, o golpe falhado de Belém, o triste e feio cadáver de Freire a apodrecer na Pampulha, e por fim, não menos preocupante, a revolta dos dois marechais, que se arriscava a ser um fracasso rotundo, de consequências ainda imprevisíveis.

– E logo um menino, que benção ­– exclamou ela, quando o médico lhe pôs nos braços, enrolado num pano branco de linho, o rolinho de carne acabado de nascer.

Era de feito. Aquele menino permitia-lhe esquecer o sentido público dos seus negócios, que tão fundas mágoas lhe traziam, e concentrar-se toda na vida de família, onde tantas e tão grandes eram as suas consolações. Fernando, cada vez mais exótico, proporcionava-lhe horas de encanto, com os seus mimos, as suas leituras em voz alta, a sua voz de barítono, as suas conversas pausadas e finas sobre o papel do canto na ópera ou o sinal cenográfico no teatro. Começara a coleccionar cerâmicas, loiças, porcelanas, pintura, instrumentos musicais e outras bugigangas. Criara a sua oficina de trabalho e entregava-se ele próprio à pintura, à modelagem, à escultura e à gravura. Por fim, aproveitando aquilo que lhe parecia a definitiva tranquilidade da sua família, com Maria toda devotada à criança anunciada,  bordando ao serão camisinhas e lençóis, começou a cultivar o seu talhão de novidades e flores no jardim do paço.

Foi por todo o lado um burburinho de espanto e simpatia, quando se soube que o príncipe, que seria em breve el-rei Fernando II pelo nascimento da criança, despia o dólman, arregaçava as mangas da camisa, calçava uns sapatões velhos e rotos, pegava no forte sacho e saltava em terra mole a mondar ervas daninhas e outro matagal como qualquer mortal de mãos calosas e corpo feito à bambúrria do trabalho do campo.

– Tem uma horta? Não pode ser – exclamou estupefacto e incrédulo o rapazio da cidade, quando a notícia correu.

Sá da Bandeira e Bonfim chegavam por essa altura a Trás-os-Montes, obrigando os marechais a vir a terreiro, em Ruivães. A derrota foi tão estrondosa que não restou a estes senão negociar um armistício com as tropas do governo. A notícia do nascimento do infante, que iria ser baptizado com o nome do avô português, Pedro, acabara de chegar e foi de molde a impressionar os dois lados. Bateram nas costas uns dos outros, dando-se os parabéns. Afinal, haviam feito a guerra juntos e todos haviam desejado muito aquele momento.

– Um novo Pedro, meus senhores. É caso para brinde e dança. Para quê aguçar divergências? – perguntava o conde das Antas, que acabara a pedido do governo de regressar de Espanha, por onde andara a dar batida aos miguelistas foragidos, e sempre tivera jeito para a convivência e sobretudo disposição de pândego.

Sá da Bandeira, mais circunspecto e frio, todo engenharia mental, mas com responsabilidades nos equilíbrios da governação, acabou por aceitar o desfecho. A tropa sublevada submetia-se sem mais ao governo, os marechais saíam uns tempos do país, continuando a receber o soldo pela metade, e daí a pouco, quando tudo estivesse esquecido, quando todos andassem entretidos com o príncipe herdeiro, regressavam para as suas famílias e para a corte. Ninguém levaria a peito o caso e tudo ficaria para sempre esquecido. A rainha, nas Necessidades, quando recebeu o chefe do governo, Sá da Bandeira, e soube deste cozinhado, mostrou-se simpática  e agradada. Mas em privado amargou.

– Está visto, mais que visto – exclamou ela em privado, para o padre Marcos, que, não lhe ouvindo os segredos, lhe aparava as saídas e os vitupérios – não há um único homem sério neste país.

Restava-lhe nos braços aquela criança, que se apresentava robusta, viva, saudável, esperta. O novo Pedro era um encanto, com lábios mais delicados e frescos que pétala de rosa, faces coradas e lavadas, carne rija, olhos limpos e mexidos. Ao fim de pouco tempo, a criança dava mostras de reconhecer os pais e de responder a indicações precisas da mãe. Foi o suficiente para a rainha explodir de alegria, apagando os desencantos recentes. Não esquecia as horas cruéis de Setembro, mas dissimulava. Era o que mais lhe convinha, enquanto esperava para ver o que o futuro trazia. E nada tão indicado como a novidade daquela criança luminosa para esquecer por momentos o negro mundo dos ódios e ressentimentos. Salvando o filho, restava-lhe a correspondência com Vitória, a prima de Fernando, que acabara de subir os degraus do trono inglês, sucedendo a Jorge IV e a Guilherme IV, e que era um dos troféus do seu casamento. E mesma essa, não versava outra matéria que não fosse o nascimento daquela prenda.

Palmela, vendo-a tão enlevada no recém-nascido, insistia nas suas charadas.

– Eu bem afiançava. Que feitos extraordinários, que lances inéditos, que fabulosas façanhas vão lavrar nas páginas da História os descendentes de Sua Majestade.

Ai, as profecias de Palmela! São piores que as fífias da rabeca do miúdo do primeiro esquerdo! Estava mais velho, muitíssimo mais rico, o cabelo ralo, a encanecer de dia para dia, mas nem por isso menos bajoujo e videiro. A sua riqueza diante da família real só era comparável à que outrora o Condestável Nuno Álvares tivera diante do primeiro João. Recebera chorudas heranças, arranjara modo de deitar mão, como devorista, a uma parte importante dos bens dos vencidos, arrecadara a seu favor terra que andava ao Deus-dará, arrematara muita dos bens imóveis, de mão-morta, dos conventos. E de novo Condestável se jactava agora Palmela.

Ia a caminho dos sessenta; mostrava, de tanto charuto chupado, de tanto porto e uísque beberricado ao pé do fogão, um ar cansado, a pele amarelada e gasta, os olhos amorfos e baços, mas compensava o envelhecimento com uma cuidada maquilhagem. Retocava de preto o cabelo, envernizava as unhas, escurecia a pele dessorada, enchia os ombros de chumaços para encorpar o tronco miúdo. Continuava a ser um dandi, produto da mais extravagante moda inglesa, mas agora sem préstimo natural. Queria dar a impressão que a política não lhe interessava e por isso dedicava-se com estudada paixão às colecções, aos leilões de arte, às antiguidades. Durindanas, estava fácil de ver, só mesmo nas salas de armas dos seus palácios, fantasistas e decorativas. Seguia ostentosamente em público o gosto ardente e delirante que o rei Fernando II mostrava em privado.

Este, que era uma alma original, cujo impulso criador não conhecia limites, encolhia os ombros. O mimetismo de Palmela deixava-o frio; era uma questão de oportunidade, quanto muito de ociosidade, não de inventiva, que era, com o génio, o que lhe podia interessar.

De qualquer modo, o círculo dos convivas Portugueses de Fernando alargou-se por volta desta época. Deve ter sido nesta altura que apareceu, trazido por Dietz, Guilherme Luís von Eschwege, um engenheiro militar renano, muito versado em mineralogia e botânica, que era da mesma idade de Palmela e um velho estudioso de Portugal. Conhecia o país desde o tempo da regência de João VI e andara depois pelo Brasil. Em 1833, quando o imperador desembarcava no Pampelido, dava ele à estampa em Hamburgo uma síntese original sobre Portugal. Quando se viu na iminência de vir casar a Portugal, foi esse volume que serviu ao futuro rei português de introdução ao conhecimento do país.

Von Eschwege trouxe com ele um luso-alemão, Francisco Adolfo Varnhagen, que ainda fizera com o imperador as últimas campanhas da guerra civil. Tinha a mesma idade de Fernando e depressa se tornou um dos seus íntimos. Também ele reflectia sobre os temas que mais interessavam o rei, em particular a singular arquitectura que dava corpo aos monumentos de Belém e ao convento de Cristo de Tomar. Desse cenáculo, saíram pouco depois os artigos de História de Arte, assinados por Varnhagen, publicados na revista Panorama, onde se cunhou a designação de ‘manuelino’, que prevaleceu até hoje, para designar esse tipo de arquitectura. E com Varnhagen chegou Alexandre Herculano, um jovem que começara nesse ano a publicar a erudita revista onde os apontamentos de Varnhagen vieram à luz e que acabara de dar à estampa um singular e inspirado panfleto contra a revolução de Setembro, A Voz do Profeta, que muito tocou e interessou o rei.

O ano de 1838 entrou conturbado. O trabalho das Cortes constituintes chegava ao fim e o compromisso prometido por Passos à rainha estava a ponto de se cumprir. A nova lei não levava os privilégios régios, nomeadamente o poder de nomear e demitir governos, o de vetar as leis e o direito de dissolução do Parlamento e convocar eleições. Nem lhe roubava a lista civil, que era a avultada prestação que a nação pagava à família real. A forma que a Constituição ia tomando, aproximando-se em muitos aspectos da Carta de 1826, desagradou à fauna recente que aparecera nos clubes políticos da Baixa lisboeta no calor da revolta cartista do ano de 1837 e que exigira a suspensão das liberdades. Voltou-se a pedir a mobilização da Guarda Nacional para as ruas, de modo a pressionar o governo e as Cortes. O pretexto surgiu em Março, com uma remodelação governamental, que fazia entrar um governo moderado, sem cor. A Guarda Nacional dirigiu de imediato um pedido à rainha para nomear ministros que não ofendessem a vontade popular e cercou, numa atitude inédita, que era também uma prova de força espectacular, o palácio das Cortes.

Sá da Bandeira, entalado entre as obrigações da governação e a turbulência da rua, não encontrou melhor senão demitir o governador-civil de Lisboa, um homem mancomunado com a agitação, e pôr em seu lugar António Bernardo da Costa Cabral, um radical cioso de promoção, que lhe pareceu capaz de fazer a política de compromisso que lhe interessava. Por um lado, sabia que a Guarda era a força que guardava o pretório do novo regime setembrista, a que ele devia a governação, mas por outro mostrava-se um poder de coacção perigoso, cada vez mais autónomo e incontrovertível, sem fiscalização possível. Nesse sentido, Costa Cabral, que tinha a confiança dos clubes radicais e se mostrava dialogante e cordato com o governo, pareceu-lhe o homem certo para chegar a um compromisso, regrando, disciplinando, submetendo a Guarda Nacional aos desígnios da lei. Sá da Bandeira acreditava que com Cabral na administração de Lisboa o governo e as Cortes voltariam a ter os movimentos livres.

Os acontecimentos que se seguiram surpreenderam o velho Sá Nogueira, que, apesar de toda a matemática mental e de toda a comprida experiência que tinha, era um visionário ingénuo e bem-intencionado. Em Costa Cabral a ambição dominava sobre os princípios e a sua acção não conhecia outro limite que o benefício pessoal. Era por isso tão enérgico como imprevisível. Surgiu no clima escaldante da revolta dos marechais, já que a mobilização       que se lhe seguiu lhe pareceu um terreno extraordinário para medrar, mas a sua primeira ocasião só chegou com a administração de Lisboa. O governo, fiando-se nas anteriores ligações de Cabral aos clubes radicais, pediu-lhe que moderasse os ímpetos dos pretorianos; ele, calculando os efeitos que podia tirar do lugar, optou por uma acção espectacular, cujo resultado criasse uma surpresa e uma rotação. Como bom beirão, mordia-se de inveja pelos altos destinos que via em seu redor e estava disposto a não deixar por mãos alheias o seu futuro.

Não hesitou por isso em se desligar das orientações do governo, gizando o seu próprio plano. Durante dois dias assegurou-se que a tropa regular da cidade estaria disposta a seguir as suas ordens. Valeu-se para isso dos ressentimentos que o exército nutria para com a Guarda Nacional, por causa das prerrogativas que esta passara a gozar com a revolução de Setembro. E valeu-se ainda das relações que tinha com Bonfim, comandante militar de Lisboa. Quando percebeu que tinha consigo a tropa, atraiu manhosamente ao Rossio os batalhões da Guarda Nacional e sem se fazer esperar, com os olhos frios, sem uma palavra de hesitação, mandou-os chacinar no dia 13 de Março como cães raivosos. O balanço foi dramático:  dezenas de mortos e centenas de feridos. O perfil de Costa Cabral, que nos dias do Verão de 1837 se desenhara seco, puritano, exaltado, lembrando um Robespierre incorruptível, de casaca coçada, que tivesse chegado de Fornos de Algodres, mostrava-se agora videiro, ardiloso, cheio de manhas, disposto a vender por um título qualquer primogenitura, como se tivesse jogado desde sempre a vida e a palavra nos salões estouvados do paço. Estava irreconhecível.

A rainha, nas Necessidades, quando soube da novidade, levou incrédula as mãos à boca. Não cria que fosse verdade uma tal história. Podia lá ser  que a Guarda Nacional houvesse baqueado nas pedras do Rossio. Costa Cabral era um arsenalista radical, de quem só esperava notícias vulgares, desagradáveis, que não lhe podiam interessar. Sabia que estava coacta, com os marechais no exílio, a Constituição pronta, a Guarda na rua. Restava-lhe tão-só a família, cada vez mais unida e firme em torno de si. Fernando era um exemplo de dedicação; Pedro, o filho, uma criança saudável e duma atenção invulgar; agora, para mais sublinhar os gozos daquela existência, estava de novo grávida. Não acreditava que para além destes deleites houvesse novidade credível. Mas depois, quando lhe confirmaram a derrota da Guarda Nacional, e ela se deu conta da extensão irreversível daquela queda, encheu-se de surpresa e alegria. Apressou-se a comentar em privado, referindo-se ao novo governador-civil de Lisboa.

– Temos homem. Temos homem.

A sua satisfação foi tão grande que no dia seguinte mandou aparelhar a sua carruagem e convidou Fernando a passear pela cidade. O marido escusou-se, agoniado pelo sangue fresco que sentia ondular pelo ar, mas ela não desistiu e foi mostrar-se triunfante e fria, numa carruagem aberta, pelas ruas da Baixa. Quando entrou no Rossio, pela rua Augusta, na parte oriental sul, teve um pequeno gesto facial de comoção e receio. A praça fora mandada limpar pelo administrador da cidade, mas ainda se viam as manchas de sangue seco no empedrado, nos lugares em que fuzilaria tivera lugar. Depressa a rainha recompôs o seu ar varonil, abrindo o seu sorriso de satisfação e triunfo e dando ordens aos boleeiros para que passassem por cima das manchas escuras.

Quando as rodas da carruagem riscaram aquela pasta a caminho de secar, uma exclamação de surpresa e terror correu na boca dos lisboetas que por ali estavam à porta dos botequins a comentar os acontecimentos do dia anterior.

– Aquela que vai ali também não leva coração – comentou alguém, com tristeza.

– E não precisou de morrer para lho tirarem – replicou o que lhe estava ao lado, com frieza e azedume.

De regresso às Necessidades, a rainha não descansou enquanto não chamou o homem do momento, Costa Cabral. Sem se perceber muito bem como nem por quê, esse homem quase desconhecido dera cabo em dois tempos da força mais temível do país, que nem dois marechais juntos, durante uma estação inteira, haviam sido capazes de vergar. Queria pois ver o homem, sentir-lhe as ideias, dar-lhe os parabéns, cheirar-lhe de perto os propósitos.

Recebeu-o na sala dos embaixadores, que era uma das mais formais e raras do paço, com a riquíssima porcelana oriental que lá estanciava. Pensou em sentá-lo na sala de fumar, onde estavam as mesas familiares de jogo e o fogão, mas não se sentiu à vontade para isso. Cabral brilhou, mostrando-se modesto, obediente, disponível, cortesão, enérgico. Era surpreendente o que aquele homem mudara em nove ou dez meses. Ele, que arrasara os clubes com o discurso incendiário da pureza da revolução e das delícias da soberania popular, perfilhava agora a Carta, dando a entender que estava ao seu alcance restaurá-la. Tal como aniquilara a Guarda Nacional, reporia sem dificuldade a Carta. Era conveniente, onde cabia sê-lo, mas se quisessem saber o que ele pensava, olhassem por cima das conveniências e percebessem que ele tinha um plano pertinaz de governo. E era um programa simples, cortante, oportuno, cheio de futuro: construir estradas e restaurar a Carta

– Este é o único homem que em Portugal tem um projecto para o país – comentou a rainha depois da entrevista, rendida e entusiasmada. – Merece que o sustentem.

Fernando não se impressionou assim tanto, mas deixou correr. Percebeu, debaixo daquela capa de entusiasmo e energia, o beirão fura-vidas. Raspassem-lhe a secura do rosto, que lhe dava uma aparência de frieza e sobriedade, e o que lá encontrariam era a ambição desmedida, a ganância sôfrega que não olhava a modos para atingir os seus fins egoístas. E uma alegria ingente de se ver assim da noite para o dia atirado para as primeiras páginas dos pasquins e para os braços do paço. As estradas eram a nova demagogia, que substituía a anterior, a da revolução, a da soberania popular, a dos clubes; e a Carta, percebia-se bem, era tão-só o cartão de entrada no paço, que lhe permitia sentar-se junto da rainha. Antes Manuel Passos, el-rei Passos como ele teatralmente lhe chamara nos dias do golpe de Belém, sincero, idealista, radical, bom burguês, do que aquele camaleão ardiloso, cheio de visco, capaz de encharcar as mãos de sangue e encher os bolsos de cadáveres para obter a atenção do paço. Cheiravam os dois à lavoura de origem, mas Passos era autêntico nos entusiasmos e honrado nas tiradas enquanto Cabral era falso nas ideias e obsceno nas acções.

A 4 de Abril foi a rainha a S. Bento jurar a Constituição. Festejava nesse dia o seu aniversário e foi esse o modo que os deputados encontraram de lhe mostrarem que a nova lei não a beliscava. O fim da Guarda Nacional significara a decapitação da ala radical do Setembrismo e tudo o que sobrava deste era a vontade ou a precisão dum pacto de regime com o cartismo, que criasse um centro robusto, largo, consolidando de vez, sem mais divisões, o novo regime. A rainha era uma criança que fazia dezanove anos, mas só ela podia ser o eixo em volta do qual se grudariam as partes. Como sinal de boa vontade, Sá da Bandeira deu luz para o regresso dos marechais a Portugal e indultou qualquer outro crime decorrente da revolta do Verão de 1837.

A rainha percebia que o Setembrismo inflectia para a direita, à procura duma bóia para não naufragar. Lembrou-lhe Costa Cabral e pareceu-lhe aquele homem providencial. Dera o golpe no sítio certeiro, desmoronando quase por completo a revolução. Demais, possuía o que era necessário para alterar o que ainda ficava. Tinha um plano certeiro para o país, estradas, e um regalo saboroso e caro para ela, a Carta.

–Estradas, estradas, é verdade estradas – repetia de si para si, de olhos muito abertos, surpresa e maravilhada.

Como é que ela ou Palmela nunca se haviam lembrado de tal milagre, é que não sabia explicar. Andava o Sá Maneta, como o povo chamava a Sá da Bandeira, à procura de fazer um Brasil na África, na esperança de encontrar um novo entusiasmo para o Portugal saído da guerra, e ele ali tão perto. As estradas iam encher-se de tráfico, o tráfico ia trazer muito dinheiro, o dinheiro ia satisfazer o povo, a satisfação do povo ia estabilizar o governo. Enriquecer, depressa e bem, sem precisar de sair de casa, como queria o velho Mouzinho, era com certeza o plano mais ajustado ao país. As dívidas do governo continuavam a ser imensas e o país parecia um pano preto de luto, com uma multidão de estropiados de guerra nas ruas das duas grandes cidades do litoral, vivendo quase da mendicidade. A riqueza pagava dívidas e iluminava os espíritos. O próprio Sá da Bandeira não desejava outra coisa, só que de forma muito mais complicada e distante. A África era uma incógnita desconhecida, cuja única fonte de receita continuava a ser a escravatura, cada vez mais incerta e duvidosa devido à política anti-esclavagista da Inglaterra de Palmerston e dos próprios Setembristas que logo em 1836 haviam proibido a importação e a exportação de escravos a sul do equador.

Podia por isso a rainha descansar, que o tempo corria a seu favor. Os radicais, pela humilhação puxada, pela extensão da derrota sofrida, não existiam; só o centro podia sobreviver ao cataclismo. E salvar-se-ia, caso se encostasse à direita, nessa zona de influência que fora desde sempre a da família real, a quem o futuro, estava bem de ver, pertencia. Bastava pois esperar.

E esperar foi o que a rainha fez a partir da entrada em vigor da nova Constituição, não por desencanto ou embaraço, como lhe acontecera depois do golpe de Belém, mas desta vez por desafogo ou alívio. A família continuava a ser para ela um refúgio de eleição, com os doces e pacatos serões passados na companhia do filho e do marido. Bordava, cosia, tricotava, somava contas e fazia encomendas, preparando o enxoval do próximo nascimento, nisso se assemelhando a qualquer burguesinha rica das ruas da Baixa. A seu lado, Pedro gatinhava nos tapetes das salas familiares, olhando com ingente curiosidade para as porcelanas, e Fernando cinzelava, pintava, esculpia, ensaiava, modelava ou falava com o círculo dos seus convidados.

Quando assim acontecia, Varnhagen lia as suas notas, à espera de opinião, Herculano, que estava prestes a tomar conta da biblioteca do rei, na Ajuda, opinava e reconstituía cenas do passado que a todos interessavam, von Eschwege, bem humorado, decidia pôr ali um intervalo de teatro e extravagância. Sacava então do bolso da casaca os seus óculos de mineralogista, de lentes muito negras, lapidadas a fumo, e encavalitava-os no nariz, mostrando um todo estranho e feroz, um ar alucinado e lunar, quase psicadélico. Riam todos, industriados já nos labirintos daquela fantasia, e retomavam depois as eruditas conferências em que deliam as horas do serão.

O rei começou a acalentar por essa altura o vasto desejo de criar uma obra viva, que fundisse numa única peça de grandes dimensões todas essas elocubrações em volta do passado português ou da quimera que vivia enrolada nas raízes mais profundas do espírito humano universal. Era uma necessidade de criar, de observar novos materiais, de amalgamar experiências várias, mas era ao mesmo tempo uma ânsia nova de modelar no presente, numa obra animada e tangível, os arcanos do Portugal de sempre. Sentia-os pulsar dentro de si, vivos e inteiros, prontos a saltar para uma criação forte e ardente, depois de os vislumbrar, em relâmpagos fugidios mas vibrantes, nos monumentos da arquitectura do passado, nas páginas da História, nas ondas das dunas, nos movimentos do mar e até nos exórdios íntimos dos amigos.

No último dia de Outubro deu a rainha à luz mais um rapaz, que nasceu tão robusto e saudável como o primeiro e que foi baptizado com o nome de Luís. Palmela, sempre idêntico, aproveitou para vaticínios e novas e babosas comparações. A rainha não hesitou desta vez em subscrever o discurso do velho cortesão e menos por ironia que por convicção. Costa Cabral era um veneno novo e letal, que escorregava como licor, embriagava como aguardente, queimava como fogo.

– Você tem carradas de razão, meu rico duque; tem até muito mais razão do que pensa – disse-lhe a rainha, com o pensamento no novo administrador de Lisboa.

Dois ou três dias depois do nascimento do infante, arrematava o rei por setecentos mil réis o mosteiro de Nossa Senhora da Pena, em Sintra. Há muito que se enamorara do lugar e da ruína que por lá se encontrava. Conhecera o velho mosteiro, alcandorado num dos picotos da serra, na primeira estação que passara na região, no Verão do ano sua chegada a Portugal. Era um conjunto abandonado, com uma capela que tinha um retábulo admirável em pedra, cuja atmosfera fazia lembrar a arquitectura quinhentista portuguesa e cujo autor faria parte decerto do escol artístico da época. Demais, dizia-se, do pátio das traseiras do mosteiro, voltado a ocidente, avistara o rei Manuel as naus de Vasco da Gama de regresso da Índia. Desde o fim da guerra que o mosteiro se encontrava encerrado. Haviam então sido leiloados os bens do seu interior, com a promessa de que o edifício seria depois vendido em hasta pública. E no fim de Setembro de 1838 lá aparecia em Diário de Governo a sua venda, cabendo ao rei a compra. Tinha agora a certeza que era ali que ia erguer a síntese artística do seu espírito.

O que restava do Setembrismo desmoronou-se pouco depois, entre Março e Setembro de 1839. A Inglaterra, preocupada pelo projecto africano de Sá da Bandeira, pressionada pelos seus próprios interesses coloniais, decidiu fazer política de bloqueio ao governo português. Primeiro, exigiu o pagamento das avultadas dívidas de guerra que o país ainda devia em Inglaterra e depois decidiu tratar directamente do caso como se Portugal fosse um pupilo mal comportado com necessidade dum correctivo. Era o regresso do complexo de Beresford, em que Portugal era tratado a puxão de orelhas, por um mestre-escola trombudo e sem paciência.

Sá da Bandeira, para abrandar por momentos a pressão, desviando as atenções, demitiu-se em Abril, passando a pasta a Pizarro. O gabinete de Londres não se iludiu e aumentou o nível das suas exigências. Caso as dívidas não fossem satisfeitas, a Inglaterra dava-se o direito de ocupar Goa e outras partes da Índia portuguesa. Mais do que o dinheiro, que não era vital para o corpo financeiro da ilha, ou mais do que a Índia portuguesa, que era irrelevante de tão minúscula, o que de verdade preocupava a Inglaterra era a política africana dos gabinetes setembristas e a concorrência que o açúcar brasileiro, por intermédio de Portugal, fazia ao açúcar das suas colónias. Por isso, diante das pequenas e envergonhadas desculpas de Pizarro para não pagar, Palmerston não hesitou em tomar uma posição de força. Ou Portugal punha mão nos negreiros, acabando com o comércio da carne humana, e pagava o que devia, ou a Inglaterra autorizava-se, sem consentimento de Lisboa, a interceptar e inspeccionar os navios portugueses que navegassem no Atlântico.

– A toda poderosa Inglaterra procede sem maneiras ­– comentou alguém, desconsolado.

– Pior, trata-nos ao bofetão –­ replicou outro, indignado.

Mas desconsolo e indignação de nada serviram. A rainha não estava na disposição de afrontar Palmerston e, o que é supino, estava farta de Pizarro. Farta de Pizarro? Sim, lembrava-se bem da aversão que o pai lhe votava e por cima disso tinha Costa Cabral à espera. Chegava enfim a altura de acabar com o Setembrismo, iniciando o processo de reconstituição do cartismo e dando ao país o que lhe faltava. A Inglaterra que ficalizasse os navios Portugueses que bem entendesse, que isso com ela não mexia. Por isso, não vacilou e demitiu o gabinete do velho Pizarro durante o encerramento das Cortes, mostrando assim como era efectivo o seu poder de intervenção, sem se atrever porém desde logo a chamar para a presidência do ministério Costa Cabral. Preferiu Bonfim, um homem que havia prestado serviços ao Setembrismo, mas que nos últimos tempos, por causa de Costa Cabral, virara à direita. Fora ele o militar que dera a cara pela chacina da Guarda Nacional no Rossio. Demais, Bonfim comprometia-se a governar com dois homens, Rodrigo da Fonseca e Costa Cabral, dois vivazes e espertos vozeirões, capazes de sossegarem por um lado os Ingleses e calarem por outro os Portugueses. Um tinha nome e passado; outro mostrava plano e futuro. Ambos, como bons beirões, queriam ordem e dinheirame.

Estávamos em finais de Novembro de 1839 e quando as Cortes abriram, em Maio seguinte, o que por lá se sentou foi uma maioria Cartista. As eleições cozinhavam-se como sempre numa salinha do paço, de acordo com as necessidades do chefe do gabinete. E desta vez o governo pediu uma maioria Cartista. As eleições eram a grande novidade do Portugal novo, mas em vez duma consciência cívica honesta o que delas aparecia era uma rede de caciques, como esses trauliteiros que serviam Rodrigo da Fonseca no coração da Beira, com o clã dos Brandões, e que pareciam menos um sinal  dos novos tempos do que a reciclagem dos caceteiros miguelistas. Os Setembristas estavam acabados, com Manuel Passos retirado na lavoura ribatejana, Sá da Bandeira perdido algures no país, Pizarro fugido em Chaves, no Tâmega, pronto a render a alma ao Criador, todos desiludidos, todos desenganados, todos convencidos da funda verdade que havia no derradeiro profeta vivo do liberalismo português, Mouzinho da Silveira, que acabara de se refugiar em Castelo de Vide, com as seguintes palavras.

– Um homem que plante árvores serve melhor a humanidade que um homem de Estado que ocupe uma pasta num ministério ou se sente numa Câmara de representantes.

A vida corria pois lindamente à rainha. Bastava-lhe deixar correr o tempo, que a Carta aí se instalaria de novo. Entretanto, estava de novo grávida e entregava-se por isso às delícias da vida de família. Dava ordens às criadas, encomendava pano e camurça para a roupa dos pequenos, consultava a lista dos grandes armazéns de Paris e Londres, aparecia nas cozinhas para vigiar o trabalho das cozinheiras, passava os dedos no pó dos contadores, chamava as criadas, sentava-se com Fernando por um momento a bordar, dedicava-se às crianças. As sortes que deitara na afortunada noite do seu casamento saíam certas; tinha paz em casa e um lar cheio de carinho e de filhos.

Pedro, a caminho dos dois anos, era uma criança precoce, que compreendia tudo aquilo que lhe diziam e que começava a soletrar com uma limpidez que surpreendia e chegava a enternecer as primeiras frases. Herdava as feições do pai e decerto a sua vasta habilidade para as línguas. Mostrava siso e interesse, num corpo mimoso e direito. A tudo isto juntava uma ponta de tristeza inexplicável, como se aquela precoce ciência que mostrava lhe fosse já motivo bastante para se desenganar do destino dos homens e do mundo.

– Que Majestade este menino um dia nos dará. Nem o melhor dos seus antepassados – diziam as aias da rainha, enlevadas e aduladoras, quando o viam assim responsável, fazendo.

Ao invés, Luís mostrava-se uma criança diferente. O seu ar anafado, repolhudo, transformava-o  numa flor de vidro, ao mesmo tempo delicada e grossa. Tinha lábios de refinadas curvas e olhos alegres e despreocupados. A mãe gostava de meter as mãos naquele rolo de carne, cocegando-o com a ponta dos dedos; ficava-se depois a admirar os arabescos que de imediato se contorciam nos lábios da criança, e que tanto podiam ser de gozo como de desconsolo. A mãe diante daquelas manifestações, onde reconhecia tanto do seu próprio temperamento, apertava-o com força e delírio nos braços.

­– Lipipi, meu Lipipi! – exclamava ela, arrebatada pela situação.

A expressão era de afecto mas ficou como diminutivo e Luís passou a ser tratado na intimidade daquele modo tolo e vazio. Lipipi mostrava-se em tudo uma indolência preguiçosa, uma natureza fácil e despreocupada que contrastava com o espírito vivaz e triste do irmão mais velho. A julgar pelas aparências, quer dizer, pelos ondulantes movimentos do seu beiço, tudo lhe dava gosto. Virar-se no berço, provocava-lhe de imediato um olhar de alívio; ser acarinhado nos braços da mãe levava-o a uma contorsão de satisfação nos lábios. Mas quando lhe pediam o mais leve esforço, aqueles mesmo beiço descaía de desolação, como se a vida fosse para ele um incómodo trambolhão.

– De quem será um beiço assim caprichoso e sensível? – perguntava-se a mãe – Tão caprichoso e sensível que acusa como um higroscópio a mais pequena variação do tempo.

Uma manhã, passando num dos corredores das Necessidades, deu a rainha de caras com o retrato do avô João, esse que estivera na origem da guerra entre o pai e o tio e de quem não recordava sequer a silhueta, mas de quem muito ouvira falar. Ficou abismada com a parecença. Lipipi tinha o seu beiço, não havia dúvida; até os seus olhos mortiços e aborridos, numa feição branda e indolente, sem fogo nem vitalidade, pareciam os mesmos. Estava explicada aquela singularidade.

Estava. Também este Lipipi era filho segundo, destinado a viver na sombra dos seus maiores e a contentar-se com um lugar nas traseiras da corte. Também ele não tinha especial apetência por nada, a não ser ficar esquecido numa solitária banqueta a ver passar o tempo, sem  desinquietações desnecessárias, numa chateza vulgar e sonolenta. Se João tinha um irmão chamado José que, pela constituição da inteligência e pela vantagem do destino, estava determinado a ocupar toda a cena, também este tinha o mano Pedro, que mostrava olhos de águia e figura de estrela, cuja luz fulgurante apagava tudo o que estava por perto.

A História repete-se? Parece que sim, como aquela borboleta repete outra muito mais antiga e este dia molhado de Abril reflecte um outro do meu passado. Os malmequeres que nasceram esta Primavera não são iguais àqueles que eu vi pela primeira vez na minha infância? São e os da minha infância são por sua vez exactamente iguais aos que o meu tetravô, quatro gerações antes de mim, conheceu. Por isso, a história deste Lipipi, desde o nascimento até à morte, se parece tanto com a do seu desconsolado bisavô, a quem lá para trás chamei desditoso. E se os filhos de Lipipi não se chamaram Pedro e Miguel nem se andaram a fuzilar em volta do rio Douro, como aconteceu aos de João, chamaram-se Carlos e Afonso e um deles caiu no Terreiro do Paço com duas balas de ferro e o outro foi morrer longe, no exílio, num quarto pobre e esquecido.

Fernando, por esta época, enquanto Pedro e Luís despontavam para a vida, entregava-se todo ao seu sonho artístico. Também ele julgava o Setembrismo enterrado e o país na disposição de seguir os apelos de ordem da nova maioria. Não simpatizava com Cabral, que lhe parecia um aventureiro perigoso, um furão sem escrúpulos, acabado de chegar à política, mas confiava em Rodrigo, um maciço de experiência e dureza, tão dissimulado como um lince e tão matreiro como uma raposa. Acreditava que o sentido prático de Rodrigo iria dominar o governo e impor na nova década uma orientação prudente, que levaria vantagem a qualquer iniciativa mais ousada e capciosa de Cabral. Ainda assim, deixava em aberto a possibilidade de surpresas.

– A arte não depende de circunstâncias – dizia ele nesses momentos, quando sopesava as perturbações que poderiam ocorrer nos bastidores.

Herculano tratava-lhe da biblioteca, Dietz ocupava-se das contas e von Eschwege discutia com ele a concretização dos seus sonhos. Ele sonhava na forma de transformar uma ruína genuína, romântica, como só as ruínas naturais o podiam ser, num monumento capital do país. Sonhou assim, enquanto o governo e as Câmaras se entretinham com palavras mesquinhas e intenções pouco mais do que miseráveis, com uma obra completa que fosse uma homenagem ao passado e ao mesmo tempo um testemunho perene do presente. Queria juntar o passado e o presente num todo original, actualizando os arcanos que haviam feito a grandeza do país. Enquanto os outros mergulhavam as mãos num tremedal de lama e sangue, que era o produto de almas roídas pelo egoísmo e pela inveja, ele elevava ao céu as linhas luminosas do seu sonho, que eram o resultado da sua alma de artista visionário. Foi assim que nasceu essa maravilha da arte portuguesa que é o palácio da Pena, porventura o único momento da história portuguesa do século que o viu nascer onde se vislumbra uma ideia de renascimento, um ímpeto de novidade e de grandeza, um raio original de vida e de beleza.

Na entrada do mês de Outubro sentiu a rainha as dores de parto. Era o terceiro e pensava ela que o corpo se começava a habituar à função. Estava com vinte e um anos mas parecia ter muito mais. A sua fealdade era pavorosa como horrível era a sua disformidade. Para sua tranquilidade, tinha um marido que era mágico e transformava tudo o que tocava em beleza. Assim ela era uma sereia encantada, numa lapa de pedra, com dois olhos de esmeralda marinha e rabo cintilante de peixe. Nos últimos dois anos alargara muito, ganhando uma figura desproporcionada, que figurava mais larga que alta. Sentia-se um fruto maduro, com muita vida descascada. Sempre comera bem, mas agora estava com um apetite descomedido e pantagruélico. Era capaz de passar tardes inteiras à mesa, ligando a refeição do meio-dia com a ceia da noite. Fazia apenas uma ligeira pausa de conversa entre as duas.

– É o melhor que daqui se tira – exclamava ela, de olhos gulosos, quando lhe tocavam na necessidade de se moderar mais.

Desta vez, devido ao peso que entretanto adquirira, o parto foi muito mais custoso e demorado que os anteriores. Finalmente, quando conseguiu expulsar de si aquilo que tanto a pressionava, o recém-nascido, uma menina, a quem chamaram Maria, não sobreviveu. Parecia um rato achatado,  comprimido e balanceado que andara eternidades entre a opressão das suas carnes. Ela, a rainha, estava exausta do esforço, mas dava excelente nota de si. Tudo o que pedia era que a deixassem dormir. Dormiu quase vinte e quatro horas seguidas, vigiada atentamente pelo olhar dos médicos, pelas orações do confessor e pela aflição do marido. Quando despertou, tinha o rosto desafogado, o sobrolho aliviado, o olhar vivo.

– Quereis que morra à fome? – perguntou ela, abrindo muito os olhos para aquela nuvem de gente que se encavalitava sobre a armação da cama com ar preocupado. – Estou pronta a devorar um leitão.

O confessor, o padre Marcos, riu a bom rir, bateu palmas e mandou vir uma bandeja cheia de vitualhas para Sua Majestade. E tudo acabou com uma alegre e demorada refeição tomada na cama pela rainha, tendo ao lado o esposo e no corredor, à espera, em fila, a corte, que lhe vinha dar os pêsames e beijar a mão.

Em Abril do ano seguinte, o conselho de ministros despachou para o Porto José Bernardo da Silva Cabral, irmão de Costa Cabral e seu fiel sectário. O pretexto eram problemas irrisórios, que nem paga o espaço aqui lembrar, mas a questão crucial eram as eleições municipais do final do ano. Costa Cabral acabara de ser eleito grão-mestre do Grande Oriente Lusitano, cargo muito disputado pela preponderância política a que de imediato conduzia. Tudo apontava para uma ascensão fulgurante e sem escolhos do homem de Fornos de Algodres. O ponto de arranque seria a Câmara da cidade do Douro nas mãos do partido Cartista. Silva Cabral desembaraçou-se da missão e nos dias finais do ano os Cartistas ganharam a Câmara, sendo a Carta aclamada nessa noite com grande ruído no Teatro de São João e na Praça Nova. O Porto, venerando  a  memória do imperador, guardando-lhe até as vísceras num relicário de igreja,  parecia a Costa Cabral o cenário certo para a restauração da Carta. O caso foi cozinhado à distância, entre os dois manos, já em dissidência profunda com Rodrigo da Fonseca, que dezasseis anos mais velho que Costa Cabral não era personagem que aceitasse figurar naquela peça como figura decorativa ou de segunda ordem.

A rainha entretanto dava o beija-mão da véspera do Natal e do ano novo, especialmente dedicado aos legados estrangeiros, e iniciava no palácio de Belém o conjunto de bailes de Inverno. Estes mostravam-se cada vez mais requintados e ricos, com jantares esmerados e orquestras que tocavam as valsas que estavam na moda nas outras cortes europeias. A época das recepções aos Setembristas já lá ia, com gente ordinária a limpar os beiços com as mãos e a assoar o nariz com os dedos, como se queixava a rainha a Fernando. Agora viam-se apenas as altas patentes do exército, o alto clero, os embaixadores, os ministros Cartistas, os deputados da maioria, a corte, todos eles caprichando na moda aristocrata e disputando entre si a elegância ostentosa, importada de Paris ou de Londres. Regressavam em força as luvas de pele e as gravatas impecáveis de seda. A palavra em voga era dinheiro; enriquecer, de preferência depressa, estava na ordem do dia. Faziam muito furor as fortunas que se conquistavam no jogo ou na bolsa, da noite para o dia.

A nova sociedade acabada de sair da guerra, mergulhada ainda na névoa da pólvora, não soubera até aí discernir o seu caminho. Cabral dissipara com a sua esperteza os fumos da guerra e ajudara a ver claro o futuro desta gente. Fazer fortuna passara de repente a ser a mais cobiçada das actividades. Nos novos tempos, ganhar dinheiro, muito dinheiro, afigurava-se o único feito digno de registo. Outrora acedera-se à aristocracia mediante feitos cavaleirescos; agora, chegava-se lá através da capacidade de construir uma grande fortuna, amealhando dinheiro. A narta era o novo feito histórico dos novos barões. Só histórico? Não, é preciso juntar-lhe o épico e até o religioso.

– A moeda faz mais pelo Bem no mundo do que qualquer regra moral. Sem bagalhoça não há Caridade – replicava o padre Marcos, o mais convicto e fanático cabralista da corte portuguesa, quando lhe falavam da imoralidade do dinheiro.

Nem sequer era isto uma singularidade portuguesa. A Europa que vivera a convulsão revolucionária de 1830 estafava-se toda ela, não sei se por capricho ou se por necessidade, nesta louca e desenfreada corrida ao dinheiro. Essa França, que desde Cartésio funcionava como modelo de Portugueses e Espanhóis, tinha um ministro azevieiro, François Guizot, cujo lema em 1840 não podia ser mais prosaico e preciso.

– Enrichissez-vous – tonitruava ele, fero e seco.

O Cabral português tinha pois com quem aprender a lição. Bastava-lhe seguir com os olhos a França para ter uma direcção. Não precisava sequer de fatigar a sua pobre cabeça para descobrir uma solução para o caso português. A França estava ali ao lado para lhe dar todas as indicações de que precisava.

Mas, a par deste pensamento anémico e insonso, que se impunha como indispensável à boa figura, Costa Cabral mostrava determinação e firmeza, pondo em marcha a primeira parte da sua obra legislativa, refazendo em bases autocráticas e centralizadoras, quase pombalinas, a anterior legislação administrativa de Manuel Passos. Normalizara nos meses anteriores as relações com a Santa Sé, pondo cobro à situação de conflito que vinha do tempo do imperador. Os bailes de Sua Majestade em Belém, as recepções na sala do trono nas Necessidades voltaram a contar com a encantadora presença da sotaina preta bordada a púrpura do núncio apostólico romano, nomeado pelo papa. Até o povo, aquele mesmo povo que três ou quatro anos antes tanta questão fizera em roubar ao Porto a pureza dos ideais da revolução liberal, vinha de lencinho branco na mão à rua de Santos acenar à passagem da luxuosa carruagem de monsenhor.

Cabral era por tudo isto o homem do momento, de quem todos esperavam uma obra pública tendente à afirmação dos novos valores e dos novos talentos, todos eles agiotas, todos eles usurários. Em apartes maliciosos, dizia-se que ele próprio, o ministro, estava pelos mesmos processos e cálculos a acumular uma fortuna colossal. Demais, anunciava nos bailes da corte, de forma discreta mas vaidosa, que o Porto o aguardava para um grande empreendimento nacional. Esperassem e veriam. Guardava segredo, não pronunciando nunca a palavra decisiva. Desejava assim cativar de vez aquele meio galante e vaziamente curioso, fazendo-se passar por um sujeito misterioso que tinha guardado a sete chaves no cofre da sua mente o futuro do país.

– É a Carta que vai ser restaurada – dizia-se porém à boca cheia na esfera da corte.

E a 19 de Janeiro de 1842 partiu Cabral para o Porto para se reunir ao irmão e se pôr à testa das hostes. Logo no dia seguinte cantou-se no Teatro de São João o hino da Carta. E na semana seguinte deu-se o golpe de misericórdia na Constituição setembrista, criando-se uma Junta do Governo Provisório que revogava a lei em vigor e fazia entrar de novo a Carta constitucional. Em menos de quinze dias, em conciliábulo com Palmela e Terceira, decretava a rainha a reposição da Carta e o fim da Constituição. Terceira estava um entusiasta da nova situação e do novo homem, que obtinha num golpe de teatro espectacular, sem disparar um tiro, aquilo que nem ele nem Saldanha, os dois heróis da guerra contra o miguelismo, haviam conseguido com prolongada e esforçada campanha militar. O herói dos Açores, vencendo as derradeiras resistências que ainda se faziam sentir aqui e ali contra o homem de Fornos de Algodres, conseguiu pouco depois, quando Costa Cabral chegou a Lisboa e foi entusiasticamente recebido por uma massa entusiástica de gente no Terreiro do Paço, torná-lo na chave do novo governo, dando-lhe o ministério do Reino num governo presidido por si.

A rainha respirava de alívio. Tinha a situação política que sempre desejara, a Carta restaurada, o general mais querido do pai na presidência do governo, um ministro que a tratava como Pombal tratara um seu avô antigo. As obras públicas vinham aí para trazerem riqueza aos cidadãos e mostrar ao país a força do governo e da corte. A rainha podia entregar-se à sua vida privada e mundana, num desafogo muito do seu agrado, ela que julgava a política uma maçada e um baile de máscaras um evento muito mais crucial na sua vida que uma crise ministerial. Uma batida em Mafra ao veado com os parentes tinha para ela mais solenidade que uma ida às Cortes. O que lhe agradava em Costa Cabral era a mão firme e dura que o ministro mostrava, deixando-a a ela e à família numa redoma segura, prestigiada e – avaliava ela – poderosa.

Continuava a cartear-se com a sua prima Vitória, desabafando de forma diletante e espirituosa sobre a sua vida pública e privada. Vitória acabara de casar com um Saxe-Coburgo-Gotha, primo direito de Fernando, o príncipe Alberto, e ela não podia deixar passar a ocasião para se dar o aparato de cavaquear com a primeira família reinante da Europa. Estava de novo grávida e desta vez seguira mais de perto as indicações dos médicos e perdera algum peso, preparando-se para um parto mais fácil. No meado de Março o papa, para selar a reconciliação entre o Vaticano e Portugal, enviou-lhe a ‘Rosa de Oiro’ e dois dias depois dava ela à luz, desta vez com sucesso, um novo rapaz, rijo, robusto, saudável, que foi baptizado com o nome do bisavô materno, João.

Para a presentear, Costa Cabral não quis protelar a publicação do novo código administrativo. Era quase o regresso ao absolutismo, recordando os bons tempos anteriores ao João-dos-anzóis, quando o rei e o seu ministro eram todo-poderosos e o Terreiro do Paço fazia a vez de vontade de ferro do país.

– É o melhor regalo que o país lhe pode pôr aos pés numa hora em que Sua Majestade se faz nossa credora – disse o ministro com ar pomposo, quando foi dar os parabéns à rainha pelo nascimento do filho e lhe falou na publicação em Diário de Governo do novo código.

Fernando via as coisas de modo diferente, mas deixava fazer. Não estava no seu feitio fazer pressão, menos ainda patentear oposição; tinha um modo reservado e prudente de se apresentar, que nada mais era que a forma discreta que ele encontrava de se proteger num meio muito mais emotivo e vibrante que o seu. Vivia para a arte e para o espírito e não contava aos vinte e cinco anos mudar essa disposição. Contava tão-só em pouco tempo dedicar-se à educação dos filhos, dentro das suas responsabilidades de pai e duma consciência que lhe indicava que os reis não eram perdulários inúteis, fadados por destino à opulência e ao fausto, mas cidadãos ilustrados e activos que, gozando de condições excepcionais, deviam dar um exemplo aos conterrâneos de educação e trabalho. Reconhecia as faltas da mulher, mas calava-as. Desagradara-lhe a queda de Rodrigo e a ascenção rápida e sem obstáculo do homem de Fornos de Algodres, mas nada adiantara sobre o assunto. Calava tudo por amor e respeito. Recebeu-o ao lado da mulher no paço das Necessidades sem lhe dizer uma frieza calculada ou lhe manifestar uma ponta de antipatia.

Nesse tempo andava o rei ocupado a sonhar com a reconstrução da ruína da Pena. Era uma forma de se retirar da vida pública que tão poucas atracções tinha para ele. A estrada de acesso em macadame ao cocuruto da serra onde se encavalitava a ruína do antigo mosteiro estava desde há muito concluída e o arranjo dos espaços exteriores, com a arborização da encosta e a criação de amplos e caprichosos jardins, ia já adiantada. O rei passava os dias a desenhar, a tirar medidas, a cismar na obra e no todo. Fazia duas vezes na semana viagens de ida e volta a Sintra para visitar o local com von Eschwege, que por lá estanciava a tempo inteiro, vigiando a construção. No lugar, depois de se cruzar com um par de saloios, rodeado pelo silêncio da serra, com os horiontes abertos diante de si até ao mar, cerúleo ou não, Fernando encontrava a atmosfera necessária para conceber a obra viva que desejava criar. Sabia que a base de inspiração seria a arte mudéjar medieval, que deixara o traço da sua originalidade no paço da Vila. Era essa arte que constituía a base daquilo que Varnaghen acabara de chamar manuelino. Ora o este era o desenvolvimento caprichoso, num quadro de cruzamentos ainda mais largo, desse mesmo mudéjar medieval. Assim sendo, o que interessava ao rei era a essência anterior em que ele via o verdadeiro génio de toda a arquitectura portuguesa mais genuína e até de todas as manifestações artísticas portuguesas mais originais. Que era afinal o poema de Camões senão o frontão de pedra dos Jerónimos voltado a sul posto em ondulante ritmo verbal?

Iniciara com essa orientação a recuperação da fachada do edifício, montara o pórtico medieval que dava entrada no primeiro átrio, finalizara o túnel de acesso à construção, com os contrafortes mudéjares e o coroamento ameado. E estava em vias de acabar aquilo que lhe parecia o torrão de açúcar da reconstrução: a torrinha, que tomava como modelo, a de Belém. Era um barco ancorado num terraço de pedra, no alto duma serra, pronto a largar nos céus, numa nova aventura de além e desconhecido, com as quatro torrinhas desfraldadas no pátio superior como lábaros aprumados nos oceanos cósmicos das estrelas e nas ventanias velozes dos cometas. E já nessa época, Fernando, depois de muito meditar diante do conjunto, concebia a construção dum novo edifício, revestido a azulejo, onde renovaria a homenagem à antiga arquitectura portuguesa com o pórtico do Tritão e a janela e o óculo do pátio dos Arcos.

Os três anos seguintes foram decisivos na consolidação do cabralismo e dos seus processos. Já ninguém duvidava que era nesse sistema que finalmente o Portugal novo encontrava o seu caminho, a cristalização do seu futuro. Tinham sido precisos tantos anos de luta, tantas aspirações sonhadas, tantos e tão nobres princípios erguidos, tantos mortos e tantos estropiados, tantas reformas e tantos debates, para se reconhecer que a única novidade que existia ao de cimo da terra portuguesa era o dinheiro. A agiotagem, a cerrada e larga especulação sobre fundos financeiros e fundos públicos era tudo o que em Portugal, ao cabo duma guerra que durara seis anos e em que aqueles que ganharam prometeram aos Portugueses um mundo equânime, se encontrava de novo. E novidade que muito fazia sonhar, como se tira pelo fantasia final que o protagonista dos itinerários do livro de Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (1842-44) teve na benévola e hospitaleira casa de Luís Sampaio no Cartaxo. Aí se vê, como numa ópera negra do São Carlos, um céu de papel lustroso, donde chovem, numa noite luminosa e boreal, como levíssimos flocos de neve a esvoaçar na aragem fria do norte, milhões e milhões de coloridas notas de banco, que eram a riqueza democratizada, em papel, ao alcance fácil de qualquer um. Para ser rico na nova idade já não era preciso ter arcas de oiro nem baús de prata; bastava tão-só a circulação fiduciária.

No ano de 1843 gizou Cabral o seu plano final de governo. Em primeiro lugar, desejava manter a ordem, governar com pulso duro, fazer cumprir as leis, se necessário fosse com ferro, afastar de vez o espectro da instabilidade e da revolução. Depois, queria dar continuidade a uma obra legislativa que permitisse sanar definitivamente as dívidas de guerra, iniciar as obras públicas, estender a influência do governo a parcelas da vida privada dos cidadãos. Preparou assim as leis de saúde pública, que proibiam os enterros nas igrejas, a reforma do ensino secundário, que centralizava os liceus, a reforma do sistema fiscal, que inventava novas tributações, e as bases do primeiro contrato sobre os tabacos em regime de monopólio privado, que cedia direitos do Estado durante mais duma década a troco de grandes somas de dinheiro imediato.

Qualquer discórdia era vista como ruim para o bom funcionamento das instituições. Por isso, quando o ministro do reino levou a família real ao Alentejo no Outono desse ano, para lhe mostrar a sua obra de pacificação e lhe explicar o seu plano de estradas para a província, e os vereadores da Câmara da capital da região, Évora, manifestaram ruidosamente à rainha o seu desagrado pelas coacções eleitorais do ano anterior, as piores de sempre em termos de arbitrariedades e violências eleitorais, o beirão não vacilou nem se encolheu. Mostrou zangada catadura e disparou.

– Ninguém me faz o ninho atrás da orelha.

E ali mesmo, nos paços do Concelho, na esquina sul da praça do Giraldo, diante dos velhos zagais da planície que, enfiados nos seus pelicos, lá haviam comparecido para espreitar o jeito de Sua Majestade, demitiu a vereação da cidade, substituindo-a mais tarde por uma outra afecta ao governo. Era assim, de arrocho na mão, palavras ferozes, sobrolho carregado, que Cabral governava.

Estava riquíssimo. Percebera antes dos outros os meios de fazer fortuna no novo Portugal; juntava o cálculo à esperteza e encontrava além disso nos interstícios da legislação que ele próprio produzia os trilhos para fazer gordos contratos com empresas privadas e públicas, acumulando uma fortuna pessoal descomunal. E quanto mais dinheiro tinha, mais este se reproduzia, num princípio basilar do livre-cambismo dos novos tempos utilitários. Eram os milhões de que Garrett falara no seu livro; milhões e milhões de notas de banco a esvoaçarem por todos os lados, com asinhas seráficas e carimbos coloridos. Ao fim dalgum tempo, esta chuva de papel, numa atmosfera explosiva de lava, metamorfoseou-se numa chuva de feras, que infernalizou até hoje a nossa vida.

Assim, por essa altura, Costa Cabral arrematou em hasta pública a cerca do convento de Cristo de Tomar. Fez do caso uma questão pessoal. A cerca, sede outrora das grandes empresas portuguesas no mundo, tinha para Costa Cabral um valor simbólico. Ter à sua disposição uma ala do antigo convento dava-lhe um prestígio emblemático, nada mais. Era uma forma de dizer aos contemporâneos que era ele o herdeiro da grandeza do passado e que só ele tinha consigo a chave da grandeza do presente. Demais, com aquela cerca na sua posse ele mostrava ao país que a fortuna e o dinheiro valiam hoje tanto como no passado as cavaleirosas e ousadas acções da Ordem do Templo ou da Ordem de Cristo. Tomar ficava longe, quase às portas da Beira natal, perdida no deserto dos campos que se seguiam aos campos, e só lhe podia servir de estância de férias. Para o resto, para os combates políticos, para a extraordinária actividade que estoicamente suportava durante mais de dezasseis horas por dia, tinha Lisboa. Arranjou um aparatoso palacete na Estrela, sobranceiro às Câmaras, a que ele chamava depreciativamente circo de cães e hienas, e tratou de fazer dele uma residência luxuosa e vasta que concorresse em riqueza e em grandeza com os melhores e os mais antigos palácios de Lisboa. Em pouco tempo, passou a oferecer os melhores bailes de Lisboa, os únicos que disputavam às recepções da rainha o luxo e o estadão, com cerca de dois mil convidados e mais de quinhentas carruagens.

No fim do ano, a rainha nomeou-o para o seu primeiro cargo vitalício, conselheiro de Estado. E no ano seguinte, depois da legislação em catarata que ele deu ao país, elevou-o a par do reino, outro cargo vitalício. Ele começava nesse momento a preparar as eleições que se avizinhavam para renovar a confortável maioria que tinha nas Cortes. Tinha terminado a recuperação da sua propriedade em Tomar e a partir daí cerrara ainda mais a rede de caciques de que dispunha no populoso centro do país. Era o homem mais destro do Portugal de então na preparação dos actos eleitorais. Nem Rodrigo da Fonseca era capaz de concorrer com ele. Valia tudo. Começava nas fraudes de recenseamento e acabava no incêndio das urnas dos votos. Pelo meio ficavam os espancamentos, a pressão sobre o poder público, as batalhas campais nos dias de eleições, o assalto à mão armada das urnas. O seu irmão, Silva Cabral, que fora nomeado governador civil do Porto e se preparava para ser ministro da justiça, era o maioral destes negócios. Por isso as eleições de Agosto de 1845 trouxeram ao ministro do reino uma nova e confortável maioria de deputados, dando-lhe a possibilidade de governar sem um beliscão das Câmaras; a oposição, que unia os velhos Setembristas e a dissidência cartista que se agrupara em volta de Rodrigo da Fonseca, não conseguiu eleger mais do que seis deputados numa Câmara com mais de cem deputados. E Cabral ria destas atrocidades.

– Essa gente tem de ser tratada assim. De outro modo, morde a mão que lhe dá de comer – comentava ele com a rainha, compondo o seu ar severo e compenetrado.

Começavam a cair no paço as queixas. O próprio Lavradio, um dos primeiros pares do reino, muito bem relacionado em Londres, queixava-se à soberana que o país só estava bom para os ladrões e para os agiotas. Choviam as reclamações, mas a rainha não ligava.

– São vozes de invejosos, nada mais – censurava a rainha, quando os queixosos voltavam costas.

Acreditava cegamente na obra do ministro e que era aquela a situação que mais lhe convinha e mais interessava ao país. Terceira continuava na presidência do governo, Saldanha andava sossegado a tratar do seu jardim ou a passear pela Europa, Palmela estava em Londres a acalmar os Ingleses e a matar saudades dum charuto fumado nos teatros, o povo não dava pelos políticos e não se interessava pelas Câmaras, as impugnações ficavam pois pelo caminho.

Ela, por sua vez, acabara de ter nesses últimos anos duas meninas, Maria Ana, em Julho de 1843, e Antónia, em Fevereiro de 1845, que lhe proporcionavam horas novas de delícia, tanto mais que os dois filhos mais velhos estavam já debaixo da orientação de Fernando, com um programa de formação. Cultivavam a leitura e a escrita, aprendiam línguas, praticavam o desenho e a gravura, cultivavam um talhão de terra ao lado pai, iniciavam com ele um pedagógico museu de animais vivos nos jardins das Necessidades. Dietz, antigo mestre do pai, ocupava-se agora dos filhos e supervisionava o pelotão de mestres que vinha todos os dias ao paço trabalhar com os jovens príncipes. Aquilo que desde o princípio se via, confirmava-se agora. Pedro era um sobredotado, sério e responsável, desejoso de beber aos largos haustos o conhecimento, ao contrário de Lipipi que se mostrava retardado, indolente, preguiçoso, e a quem todos os estrategemas serviam para fugir dos livros. A mãe ria-se e defendia Lipipi. Além disso, lembrando-se da sua própria infância, tão bolineira e ventosa, começava a mostrar cautelas em relação ao filho mais velho. A inteligência deste podia passar por sorumbática casmurrice.

– Oxalá que tanta erudição não o estrague – dizia ela, quando os mestres lhe vinham elogiar a inteligência, o trabalho, a responsabilidade do herdeiro. – Detesto pedantes.

Fernando avaliava os filhos a seu modo. Reconhecia em Pedro uma mente brilhante, um espírito disciplinado, uma alma delicada, um coração devotado e sensível, que tinha condições para ser na Europa modelo de monarcas, mas isso não o fazia desistir de Luís. Percebia no filho uma mente embotada, mas ainda assim distinguia nele uma alma boa e modesta, bem humorada e sem presunções nefastas. A reconstrução da Pena estava no fim e eram agora mais raras as suas visitas a Sintra, onde antes desembarcava todas as semanas, quando não de três em três dias. Passava o seu tempo nas Necessidades, entregue à educação dos filhos mais velhos, à companhia da esposa e ao convívio com os amigos.

– Estou como o Herculano – dizia o rei por graça nessa época, para significar o seu modo de vida. – Ele escreve Eurico, o Presbítero, eu sou Fernando, o eremita.

Amadurecera o seu tanto. Já não era o encantado rapazinho de vinte anos, quase imberbe, que chegara a Lisboa em 1836. Passara já a adiantada fronteira dos trinta e entrava no mar largo da vida, para se fazer aos anos cheios. Deixara crescer bigode e pêra, fazendo-se um homem apetecível aos olhos das senhoras. A rainha mantinha por ele uma admiração cheia de enlevo e ele pagava-lhe inventando subtilezas e ardis capazes de tornarem mais apetecível e feliz o convívio familiar

Depois das eleições de Agosto de 1845, nas quais o cabralismo humilhou a oposição, afirmando risonhamente ter diante de si uma longa e remansosa existência, a rainha quis fazer uma surpresa ao ministro do reino, honrando-o com uma visita a Tomar, para onde ele se retirara para tirar vilegiatura de Setembro.

Fernando, muito mais céptico para com os resultados duma política que tinha tudo para lhe ser antipática, aceitou a custo a visita, mas não andava no seu feitio discutir as decisões da mulher. Acompanhou-a a Tomar e instalou-se com ela na casa do ministro, que os recebeu principescamente. A sua fortuna crescera tanto por essa altura que a baixela em que servia o casal real era em oiro. A rainha, à despedida, talvez para provar o valor do papel-moeda, fê-lo conde de Tomar.

O feio plebeu de Fornos de Algodres, filho dum humilde rendeiro, que estudara a custo leis na universidade de Coimbra, o advogado de Celorico da Beira que ainda no tempo da revolta dos marechais nada tinha de seu a não ser uma fraca figura tapada por uma casaca desbotada, a que só podia juntar uma oratória radical inflamada, habitava agora nas férias o vetusto paço do velho e mui nobre Gualdim Gomes, vivia durante o ano num dos mais ricos palácios de Lisboa, tinha uma das quintas agrícolas mais rendáveis do país, recebia na sua casa a família real. A ascenção de Costa Cabral parecia não conhecer limite. O seu poder era tão grande que precisava de se mancomunar com o irmão para o gerir e distribuir. Silva Cabral era ministro efectivo da Justiça e preparava-se para ocupar outros cargos que o irmão lhe punha à disposição.

Em Lisboa aquela bazófia caía mal.

– Que morcão. Conde? Não se sabe por onde. E de Tomar? Lá isso. Antes de tomar, do que de dar… – brincavam malévolos os antigos camaradas do orador radical do Verão de 1837.

O ano de 1846 entrou com mais uma reforma fiscal por parte do governo. A política de centralização administrativa e educativa de Costa Cabral, com delegados nomeados pelo governo em cada capital de distrito, e os seus projectos de obras públicas, sempre prometidas mas nunca começadas, tinham custos onerosos que nenhum Brasil suportava. A única injecção de dinheiro vinha agora do papel-moeda dos centros financeiros europeus. Além dele, só havia o que saía dos bolsos rotos dos famélicos contribuintes portugueses. Manuel Passos tivera uma administração magra e discreta, centrada na ideia duma repartição do poder, da propriedade e da iniciativa, como se o Estado central estivesse para desaparecer no dia seguinte e o governo fosse, sem prebendas especiais por isso, nem sequer vencimento, a sua comissão liquidatária. Pelo contrário, o cabralismo, mesmo com a retórica liberal feroz que apresentava nas Cortes,  queria um Estado pomposo e forte, com uma vasta rede de funcionários fiéis, pagos com latão vistoso.

Os Cabrais apertavam no fisco, afligindo com os seus dedos musculados as magras e espremidas carnes do país.

O descontentamento cresceu. E em Abril desse ano, sem ser esperada, rebentou no Minho a revolta da Maria da Fonte. Esta Maria da Fonte era mulher despachada, que resolveu não calar o desagrado que as leis de saúde pública do ano anterior, com a proibição de enterrar os mortos nas igrejas, estavam a criar por todo o país. A revolta rebentou no centro do Minho, numa aldeia de Póvoa de Lanhoso, e depressa tocou a rebate nos grandes centros que lhe estavam próximos, Guimarães, Braga e Barcelos. O facto da imensa nuvem de funcionários públicos que haviam sido enviados para o interior do país pelo governo para fiscalizar as leis de saúde pública e obrigar as autoridades locais a rasgar cemitérios terem sido reaproveitados para fiscalizar a reforma fiscal da décima do início do ano fez com que a revolta contra os cemitérios depressa se tornasse uma revolta aberta contra a nova lei fiscal do governo, alastrando mais e mais e ganhando tonalidades ferozes de sedição violenta. Tocou-se a rebate nas igrejas e arregimentou-se o povo; de seguida, invadiram-se repartições, maltrataram-se funcionários e administradores, queimaram-se os papéis da nova reforma fiscal, deram-se morras aos Cabrais.

O país assistia atónito aos acontecimentos. O cabralismo vencera em toda a linha nos anos anteriores e nada faria prever um incêndio tão violento numa província que ainda uns meses antes votara ordeiramente no partido de Costa Cabral. Agora em menos duma semana estava tudo a ferro e fogo, com multidões de labregos enfurecidos, armados de chuços e foices, prontos a matar os funcionários do governo e a destruir todos os sinais do seu poder. Falava-se de concentrações massivas por toda a província, que chegavam a reunir mais de dez mil pessoas destemidas e decididas a tudo.  A tropa, que a princípio assistira aos acontecimentos sem intervir, acabou diante do alastramento das desordens às cidades, por tomar partido contra os sublevados. Ainda assim, depois das primeiras fuzilarias, as violências não diminuíram e ganharam mesmo novo fôlego com o aparecimento de emboscadas contra os tropas onde se davam vivas ao arcanjo loiro. O país, cada vez mais espantado, não queria crer no que lhe dava em tão pouco tempo o distante Minho.

O governo não tardou a tomar a iniciativa diante das primeiras notícias que lhe chegaram. Quatro ou cinco dias depois do primeiro grito da Maria da Fonte numa aldeia do concelho de Póvoa de Lanhoso, Costa Cabral enviou para o Porto, com poderes especiais sobre todas as autoridades civis e militares, o ministro da justiça, o seu irmão, Silva Cabral. Este valera já ao irmão em situações difíceis anteriores. Era ele que tinha no partido a tarefa de organizar e vencer as eleições. Tinha por isso uma rede de influentes locais ao seu serviço, que se mostrava um precioso auxiliar nestes casos.

A rainha nas Necessidades acreditava que tudo aquilo eram episódios sem importância, que a pequena opinião pública de Lisboa, por motivos políticos egoístas, exagerava. A reforma fiscal  e as leis de saúde pública eram indispensáveis para o bem do país e decerto que este não tardaria a reconhecê-lo. Para ela tudo se resumia a um caso de polícia.

– São distúrbios pagos para manchar a acção do governo. Basta que apareça mais tropa e os agitadores evaporam-se – dizia ela, sempre que lhe falavam do que se passava pelo Minho. – Dentro de dois dias ninguém mais recordará o assunto.

Silva Cabral no Porto tomou logo de entrada medidas duras. Levava seiscentos militares com ele e deu ordens decididas de repressão. Houve novas chacinas mas a revolta cresceu, alimentando-se do sangue dos seus mártires. A presença dum dos Cabrais no Porto, próximo do coração da rebelião, e a sanha sanguinária de que deu provas nos primeiros dias da sua chegada fizeram medrar os sentimentos de indignação. E com eles cresceu a ideia de que a justiça estava com os insurrectos e o abuso do poder do lado do governo. A revolta fez-se mais determinada, disposta a combater o governo até à sua queda. Uma simples rebelião contra o fim dum hábito ancestral, os enterros nas igrejas, tornava-se numa revolução que só teria termo com o fim do regime. A sedição alastrou à outra margem do Tâmega, incendiando todo o norte do país e daí galgou o Douro e atingiu num relâmpago as Beiras. Em menos de quinze dias uma parte importante do país estava implicada numa revolta genuinamente popular que parecia incontroversa. Os processos repetiam-se: os sinos tocavam, o povo reunia-se, os funcionários do governo eram expulsos, os seus papéis confiscados e destruídos. Deste chão de revolta, brotavam  juntas populares, que se substituíam às autoridades em fuga, designadas pelo Terreiro do Paço, e que se davam como tarefa a manutenção da ordem e a vigilância contra o governo.

Os seiscentos soldados de Silva Cabral mostravam-se impotentes diante duma frente de tal extensão. O ministro da justiça viu-se obrigado a requisitar toda a tropa estacionada no norte do país para tentar abafar a revolta, em especial aquela que estacionava em Trás-os-Montes e era comandada pelo visconde de Vinhais. Em breve, já não eram apenas as províncias do norte que estavam em rebelião contra as leis do governo, mas  o país de lés a lés. Nos primeiros dias de Maio, quer o Alentejo, quer o Algarve, aderiam à sublevação, recusavam-se a obedecer às leis do governo, expulsavam os seus representantes, destruíam papéis e registos e criavam novas juntas populares. Lisboa, a Lisboa dos Cabrais, estava rodeada por altas e perigosas chamas.

A rainha ficou assombrada diante da extensão da revolta. Ainda assim, depreciava o facto. Recusava-se a aceitar que aquilo que estava a acontecer fosse mais do que um episódio triste mas passageiro. Tudo voltaria em breve à normalidade. Na verdade, aquilo que a preocupava não eram os camponeses fuzilados pelas balas da tropa; aquilo que na verdade enfastiava o seu pobre e acanhado espírito era o termo da sua tranquilidade. Deixara de lado a época dos teatros, sobressaltara o seu sossego de mulher grávida com conversas perturbadoras, pusera em causa uma estadia de repoiso no novo palácio da Pena, que era para ela a novidade grande da sua vida. E coisas de natureza assim turva e agitada, que cortassem tão a direito na sua vida privada e na dos seus, eram para ela um preço que não estava na disposição de pagar.

Deu em culpar o Setembrismo daquela desordem em que o país se metera. Mas o Setembrismo nada tinha a ver com a sedição popular. Pizarro já não era deste mundo, Sá da Bandeira ainda não reaparecera, Manuel Passos dedicava-se à lavoura ribatejana, Oliveira Marreca estava fechado em casa a estudar o seu Adam Smith. Restava talvez José Estevão e Rodrigues Sampaio, que não chegavam para mobilizar um bairro, quanto mais o país de lado a lado.

Silva Cabral no Porto viu-se em apuros no Porto. O comandante militar de Trás-os-Montes, o visconde de Vinhais, não dava sinais de si, fechado que estava em Chaves. A situação era desesperada com as autoridades locais em fuga e um número cada vez mais limitado de soldados para repor a ordem. Silva Cabral insistiu com Vinhais, mas a resposta deste não vinha. Finalmente, já Maio ia a caminho do seu meio, Vinhais mandou-lhe dizer que não estava na disposição de pôr as suas tropas ao serviço do governo de Lisboa. Mais, era do parecer que era obrigação de todos dar ouvidos ao que diziam os revoltosos dos campos. Era o fim de tudo. Restou a Costa Cabral embarcar pouco depois para Lisboa, descoroçoado e vencido com os esfarrapados restos do seu batalhão.

Em Lisboa foi o alvoroço quando se soube que as tropas não obedeciam mais ao governo e se bandeavam com os revoltosos. O próprio Terceira, presidente do ministério, e que até aí acreditara que se poderia ainda superar a crise, viu nisso um prenúncio de mudança. Dirigiu-se à rainha em termos que não deixaram dúvida.

– Dizia Vossa Majestade que em dois dias não ficaria memória dos desacatos do Minho. Na verdade, dois dias passados, a situação piorou tanto que já não está na nossa mão vencê-la.

Estava na disposição de se demitir. Os restos do Setembrismo pareciam acordar da sua inércia, vendo na revolta uma saída para a sua apatia. Estavam ansiosos de voltarem a ter uma voz activa junto da rainha. Em Lisboa só eles, os derrotados de 1840, podiam levantar a cabeça e fazer exigências políticas, aproveitando o furacão que varria o país e a todos apanhara de surpresa. Eles próprios estavam dispostos a ser moderados, não explorando de forma exaustiva a ocasião. Pediam apenas a revogação das leis que haviam levado à revolta popular, a dissolução das Cortes e a queda do ministério, tudo certezas inevitáveis no meio daquela violenta convulsão que prometia só por si não deixar nada de pé.

E a 20 de Maio a rainha foi obrigada pelos acontecimentos que o país vivia a demitir o ministério e a prometer para os dias seguintes a revogação das leis sobre a saúde e o fisco, seguida da dissolução das Cortes. O Setembrismo percebendo a fraqueza do paço e do partido Cartista começava a deitar a cabeça de fora e a fazer exigências mais custosas, por exemplo, a reorganização da Guarda Nacional e a eleição de Cortes constituintes. A rainha não teve outro remédio senão em menos de três dias revogar todas as mais importantes leis do cabralismo, dissolver as Cortes e formar um governo cartista, presidido pelo velho Palmela, que fosse capaz de não desagradar de todo ao Setembrismo renascido, com Luís Mouzinho de Albuquerque como ministro do reino e Saldanha na pasta da Guerra.

– No meio deste vendaval é uma aberta de tempo seco – disse Terceira, quando explicou à rainha as combinações para a formação do novo governo.

Ele, Terceira, ficava de fora. Estava a par de tudo, tinha a confiança do cínico Palmela, mas preferia assim. O seu nome andava associado aos dois ministros que estavam na origem da sublevação e por isso preferia ficar na sombra. Era preciso que o novo governo não aparecesse enfeudado ao passado recente.

E os Cabrais, eles, os causadores daquela balbúrdia que tirara à família real o sumo prazer duma vilegiatura de sonho na Pena, por onde andavam eles? Por onde costumam andar em hora de aperto todos os videirinhos, mesmo os que parecem esculpidos na pedra dura da severidade, como era o caso dos dois irmãos. Estavam em casa, calados e discretos, a fazer as malas, empacotando o mais possível e preparando a partida para o estrangeiro. Se não podiam salvar todo o oiro que tinham, queriam ao menos salvar a pele, decerto o mais precioso capital que possuíam. E, mal a rainha anunciou o novo governo, embarcaram eles de forma discreta para Espanha, para se porem a salvo da situação e esperarem sem suores excessivos a propícia ocasião de regressar. Não desistiam, mas preferiam por ora assistir de longe ao desenrolar de tão caricato drama.

E pelo país o povo continuava em guerra. As leis dos Cabrais haviam sido apenas a válvula de escape para a pressão em que a vida o aperreava desde há décadas. A partir do tempo dos Franceses que não se via uma revolta popular tão extensa, tão funda, tão aguerrida. Mesmo as guerras liberais não haviam assistido a nada de semelhante. Os episódios entre os dois irmãos haviam sido, com as raras excepções do cerco do Porto, em que o povo surgira na primeira linha da defesa da cidade, uma questão entre fidalgos. O povo ou assistiu à distância aos acontecimentos, ou, quando foi arregimentado por um dos lados, era contabilizado ao lado dos mantimentos, das munições e das bestas de carga. Não tinha existência própria.

A revolta da Maria da Fonte soou pois de modo diferente e foi vivida como uma explosão genuína de alegria que mais parecia uma velha festa em honra de Ceres, com um arraial de gente espalhada pelos campos à procura de espigas e papoilas, que um grito de insubordinação contra o Terreiro do Paço, com intenção política. Enquanto durasse o bom tempo, a revolta duraria. Talvez depois, quando os dias encurtassem e a temperatura esfriasse, quando nada houvesse nos campos para comer, o povo regressasse cabisbaixo aos seus casebres miseráveis, esquecendo para sempre aquele estranho e incaracterístico episódio. Por agora, com sol grado no céu, com árvores fartas na terra, a pingar de doces frutos suculentos, a revolta continuava, mesmo com os Cabrais longe, homiziados, como uma festa sem termo, que já tinha um hino e uma heroína que valia nada menos que um exército em movimento.

O Setembrismo radical percebeu finalmente que tinha nas mãos uma ocasião única de desforra das humilhações que sofrera depois da chacina da Guarda Nacional no Rossio. Subiram as exigências, quanto à Guarda Nacional e às Cortes constituintes. As juntas populares continuavam a governar o país de alto a baixo, constituindo um poder paralelo ao do novo governo, que não tivera nem força nem ocasião para reorganizar a administração do país a partir do Terreiro do Paço. Depressa os Setembristas mais activos pretenderam influir nestas juntas, dando-lhes um sentido organizativo e orientando-as de acordo com as suas exigências. Em alguns lugares, visto que as juntas tinham a seu cargo a ordem pública, os Setembristas criaram guardas cívicas, possível embrião, segundo eles, da nova organização da Guarda Nacional. Eram os patuleias, populares de pé descalço, barbas riçadas coladas ao peito, arcabuzes velhos ao ombro, roçadoira na mão e chapelão de coiro encortiçado na grenha suja. Estes patuleias, ou patas ao léu, foram entre nós os equivalentes dos ‘sans-culottes’ da revolução francesa e os descendentes dos guerrilhas que lutaram no interior do país contra os granadeiros de Junot e Massena.

A par deste açodado trabalho da esquerda liberal, também o que restava do miguelismo não quis deixar escapar a circunstância. Nas primeiras cenas que se viram deste drama, assistiu-se a uma nuvem de labregos em revolta no Minho contra os enterros nos cemitérios e os funcionários que vinham cobrar o novo imposto. No meio da balbúrdia, depois das primeiras intervenções da tropa, ouviram-se vivas ao arcanjo loiro. Este partira há pouco mais duma década e não perdera ainda a esperança de regressar em força, para vingar a humilhação de Santarém. Os seus partidários no país – restos do velho e fanático clero dos conventos e alguns poucos mas influentes fidalgos de província – aproveitaram pois a revolta da Maria da Fonte para se juntar aos populares em fúria, embalando a rebelião com os seus propósitos partidários. Muitas juntas, sobretudo do norte do país, entre o Minho e Trás-os-Montes, eram enquadradas por rijos facciosos do filho querido de Carlota Joaquina.

Em Lisboa a desorientação do governo diante deste panorama era grande. Tentava negociar com as juntas populares, sobretudo as constitucionalistas, mas deparava com um muro intransponível de exigências. Por exemplo, a junta de Santarém, com centenas de homens armados ao seu dispor, mesmo às portas de Lisboa, recusava-se a permitir a intervenção do governo no desarmamento dos seus homens. Tinha à testa Manuel Passos, que deixara a sua propriedade de Almeirim para se juntar à revolta popular e organizar os patuleias.

Parecia claro que o novo governo não tinha capacidade de resolver uma crise tão vasta como delicada. Palmela tentou no princípio de Julho uma remodelação governamental, fazendo entrar no governo uma das autoridades do Setembrismo, Sá da Bandeira. Mas a rebelião que incendiava o país não se podia controverter com um simples ministro, por muito valor que ele tivesse.

Na verdade, os pontos eram variados e até contraditórios. Dum lado estavam os Setembristas com a reclamação de Cortes constituintes e por outro os miguelistas procurando reatar as guerras da década anterior. O governo, por conhecimento de vida e afinidade de princípios, procurava o diálogo com as juntas Setembristas, deixando de lado as miguelista, como se não contassem. Estas, comandadas por padres localmente muito influentes, estavam porém muito activas. No início do Verão, Miguel fora aclamado rei absoluto em Montalegre e em Agosto um dos últimos generais do arcanjo loiro, Mac Donell, desembarcou no Porto para dar moldura militar ao novo fôlego do miguelismo. Por fim, era preciso não esquecer o partido cabralista, muito creditado ainda em Lisboa, com dinheiro à disposição, por onde corriam muitos e persistentes interesses, e que só esperava a ocasião para regressar ao poder.

Isabel Maria, a filha dilecta de João VI, que fora regente do reino depois da morte do pai e fizera jurar em 1826 a Carta constitucional, estava aterrada com a situação. Vivia retirada na Ajuda, num isolamento culposo, entregue às aflitivas recordações da guerra. Os seus quarenta e seis anos faziam a vez do dobro, com um rosto disforme e enrugado, onde se vincavam fundo os recentes desaires da História do país, que se pareciam contar todos eles a partir do nefasto ano do seu nascimento. Procurou a sobrinha para lhe expressar a sua aflição.

– Que horror! A guerra ainda não terminou – exclamou ela com ar apavorado. – Que pensa fazer, menina?

A rainha não partilhava daquele pessimismo e a única coisa que pensava fazer era mandá-la regressar à Ajuda ou então, caso a tia barafustasse de medo, enviá-la uns tempos para a madrasta, Maria Amélia, que vivia retirada, ora em Santos, ora em Santa Marta. Acabara de ter um novo filho, o infante Fernando, e o que mais lamentava naquilo tudo era como sempre a quebra do seu sossego privado. Assim o dizia à sua prima inglesa, ao mesmo tempo que lhe expressava a sua fé numa resolução rápida e favorável daquela assombrosa e inesperada crise.

Palmela, o frio, o calculista, mostrava-se porém incapaz de pôr ordem na confusão. O miguelismo estava cada vez mais ousado; às portas de Lisboa, dizia-se, havia juntas a governar em nome do rei proscrito. Por sua vez, as outras juntas não obedeciam ao governo e recusavam entregar armas. As eleições estavam marcadas para os primeiros dias de Outubro e era previsível uma enchente setembrista, pois só estes punham mão nas listas eleitorais e na administração local onde se ganhavam as eleições. A rainha sabia de tudo, mas também sabia muito bem o que lhe interessava. E se não soubesse tinha lá o padre Marcos para chorar no seu ombro o regresso dos Cabrais. Abominava de igual modo miguelistas e Setembristas. Acreditava que homens como Palmela ou Rodrigo, com a sua dose de cinismo ou de entusiasmo, só serviam para enganar o tempo. Continuava a julgar os Cabrais, como o padre Marcos, ou até Dietz, os únicos capazes de governarem com ordem e plano o país. Como isso não podia acontecer de momento, e muito menos naquele quadro de rebelião, voltou-se para Saldanha, o marechal, e pediu-lhe que substituísse Palmela e governasse com o partido Cartista que vinha de Costa Cabral. Os Cabrais ficariam de fora, mas a sua gente, que era a mais qualificada para formar governos, devia discretamente voltar às secretarias.

– E as eleições – perguntou-lhe Saldanha.

As eleições ficavam adiadas. Só lhe interessavam eleições, quando as pudesse cozinhar. Estas assim, sem ela, dava-as de barato. Antes desordens nas ruas que uma maioria nas Cortes que lhe fugisse e a insultasse, recusando-lhe recepções e bailes e limitando-lhe a lista civil.

– É preciso conter os Setembristas e liquidar de vez os partidários do tio Miguel – disse-lhe a rainha, em jeito de conclusão. – E olhe, marechal, se preciso for, encontra-me na disposição de montar a cavalo e aparecer pelos quartéis.

Saldanha, que gostava de se fazer notado e de abraçar causas perdidas, e que deixara há muito de lado os loiros de radical, aceitou. A sua vaidade de caudilho falou nesse momento mais alto que a sua prudência de estratego. Revelara-se um militar audacioso, capaz de ganhar batalhas sem sequer contar espingardas ou olhar a munições, mas tinha o defeito de medir a política com os óculos ásperos de soldado. Pensava ganhar os desafios civis como ganhava os militares, sem recurso a meios e acreditando apenas na sua boa estrela. Por isso, tanto lhe faziam ministros cabralistas como Setembristas. Aceitava tudo e depois logo se via. Na verdade, o que o levou a aceitar a doida proposta da rainha não foi nenhum plano concreto para governar o país, nem tão-pouco a peregrina ideia de salvar o centro, que era para ele uma coisa tão vaga como as fumarolas da Islândia, mas a certeza de que tanto Palmela como Terceira, os seus mais directos rivais, tinham tido os favores do governo muito mais vezes do que ele. Palmela presidira aos primeiros governos parlamentares, os mais honrosos; Terceira fizera durante anos a restauração da Carta; ele quase nada dera, a não ser substituir Palmela, pouco mais que umas semanas logo depois da morte do imperador, quando o povo se revoltou por causa da morte do marido da rainha. A sua leitura não ia muito além deste horizonte, mas tanto lhe bastava para não se recusar aos planos da rainha.

Os Setembristas quando tiveram notícia da demissão de Palmela e do governo de Saldanha receberam o caso como uma declaração de guerra.

– A rainha tripudia as eleições – disse o mais velho dos irmãos Passos no Porto.

– É um golpe de Estado – gritou em Santarém o outro.

E a 9 de Outubro as juntas setembristas, com a do Porto à frente, encabeçada por José Passos, declaravam guerra ao governo de Lisboa. E, sem se perceber como, o país estava em guerra. O duque de Loulé, o homem mais belo do seu tempo, que casara com a filha mais nova de Carlota Joaquina e aderira depois ao cartismo do ramo brasileiro da dinastia, reconstituiu em Coimbra o batalhão académico e pôs-se ao dispor da Junta do Porto. A divisão do conde das Antas fez o mesmo. Sá da Bandeira e os seus homens outro tanto. E outro tanto fizeram Bonfim, Luís Mouzinho da Silveira e ainda as divisões e guerrilhas miguelistas no Minho e em Trás-os-Montes.

No paço, quando estas notícias chegaram, temeu-se o pior. Uma coligação de Setembristas e miguelistas arriscava-se a ser uma tenaz feroz que tudo trituraria entre as suas duas peças cruzadas. Dietz, que instara antes com a rainha ao arrepio da vontade de Fernando para chamar Saldanha, quis recuar. A rainha espantou-se.

– Nem pense. Antes as barricadas – replicou ela, exaltada.

Estava disposta a tudo, menos a transigir. Preferia desaparecer deste mundo, a ver os Passos entrar triunfantes em Lisboa, cantando pimpões e felizes o hino da Maria da Fonte, com aquele irritante eia avante, eia avante, não temer, pela santa liberdade, pelejar até morrer. Se havia cena que esperava nunca ver, nem em sonhos, era o Passos gordo e rubicundo, muito sorridente e virtuoso, à porta das Necessidades com o seu ruidoso batalhão de patuleias. Contava agora com a boa estrela militar do seu atrevido marechal.

– Se não serve como político, vai prestar como soldado – afiançava a rainha.

Mas Saldanha, se era audaz e até aventureiro, não era pateta, e menos ainda suicida. Preferiu por isso apelar à Inglaterra, confiado nas relações de parentesco entre as Necessidades e Windsor. Tinha um pretexto forte: o regresso do rei proscrito e dos seus generais, entre eles um britânico. Mas a Inglaterra, pela boca de Palmerston, não estava interessada no assunto. Queria lá saber dum velho bêbado, todo ruço, que viera por sua conta e risco gastar o que lhe restava de solas nos maus e pedregosos caminhos da Península. Portugal servia-lhe como ponto de acesso ao Mediterrâneo e interessava-lhe sobretudo para pôr alguma desordem na Península, quebrando a espinha duma Espanha sempre arrogante e assomadiça. Salvando estes dois proveitos, Portugal não existia. Ora os Cabrais tinham o apoio da Espanha e isso era horrendous no entendimento inglês. O gabinete britânico só podia apoiar entre nós quem estivesse de mal com Madrid. Logo, naquele conflito, a Junta do Porto era o seu aliado natural, a sua justa preferência.

Bateu pois a Inglaterra com a porta. Saldanha não teve outro remédio senão preparar-se para sair a campo. A rainha andava entusiasmada com as perspectivas duma boa e disputada luta. Tinha o espírito combativo do pai e desafios daquele tipo estimulavam nela um apetite escondido pela vida. Demais, era confiante por natureza e segura por educação.

– Se eu não estivesse fadada para bordar camisas e calções para os meninos, era eu mesmo que me punha à frente do exército – dizia a rainha para o esposo, muito animada pela situação.

Fernando olhava para ela com ar de surpresa. Custava-lhe crer que aquela mulher que em casa se desfazia em quietação, lembrando as frutas doces e carnudas dos trópicos, se fizesse na rua assim sanhuda e feroz, quase cínica. Conhecia o seu género viril na política e o seu feitio autoritário no mando, mas escandalizava-se sempre quando, em vários e inesperados episódios, deparava com ele.

– Não dizem que esta desordem começou com uma mulher de génio – perguntava ela diante do silêncio embrulhado do marido. – Pois bem, acabava agora com outra.

Fernando via-se metido no meio daquela desordem sem perceber o motivo. Detestara desde o princípio Costa Cabral e obrigara-se a aguentá-lo durante anos sem lhe manifestar aversão. Até as escadas de mármore da sua casa tivera de subir em Tomar, reprimindo dentro de si um grito de repulsa. A pomposa recuperação daquele antigo monumento medieval, onde tudo estava feito para fazer sobressair o imenso rio de dinheiro ali gasto, dizia, para o rei, tudo sobre o seu dono. Um homem frio, bruto, insensível, acintoso, sem arte, sem gosto, sem escrúpulo, sem humanidade. E agora, se quisesse preservar o sossego da sua vida familiar, via-se na obrigação de o defender nos detestáveis campos de batalha, pois a rainha, atendendo à tensa situação de guerra em que se vivia, acabara de o fazer nada menos do que comandante-em-chefe do exército.

E começou a guerra entre os militares da Junta do Porto e os do governo. Em Dezembro os exércitos da Junta aproximaram-se perigosamente de Lisboa, ocupando todo o centro do país, incluindo Santarém, mas Saldanha, numa manobra de aparente distracção, derrotou-os na batalha de Torres Vedras, onde morreu Luís Mouzinho da Silveira e Bonfim foi aprisionado. Só Antas conseguiu escapar. A rainha, ao ter notícia da derrota dos exércitos da Junta, riu, feroz e vingativa.

– Só lastimo que Torres Vedras seja um pouco mais longe do que o Rossio – disse ela, negra, grosseira, eufórica, nessa noite, enquanto desfazia os bandós do cabelo.

O seu desejo era pegar na carruagem e pôr os boleeiros a chicotear os cavalos por cima das manchas frescas daquele sangue novo, como fizera oito anos antes quando o seu querido Costa Cabral lhe trouxera a notícia da chacina da Guarda Nacional. Mesmo assim a sua fúria não teve limites. Deu ordens para que os prisioneiros fossem maltratados e enviados em processos sumários para o degredo da África. Aristocratas como o conde de Vila Real foram atirados para Luanda, perante o espanto e a indignação das famílias, muito próximas do paço.

– Não era a África a preocupação do marquês de Sá da Bandeira – perguntou ela à condessa de Vila Real e à condessa de Rio Maior, que lhe foram pedir de joelhos, lavadas em lágrimas, clemência para os familiares – Pois aí têm a África. Contentem-se com ela e com os cafres que por lá há.

E voltou costas às duas senhoras, que foram retiradas em braços da sala de paço.

Antas escapou para o norte, iniciando desde logo a reorganização do debilitado exército da Junta e fortificando-se na cidade, onde pontificava José Passos. Mac Donell acabara de morrer às mãos do visconde de Vinhais, que estava ao serviço de Saldanha, morrendo a parte mais buliçosa e encarniçada do miguelismo. Restava o velho Póvoas, o general miguelista a quem Carlota Joaquina confiara a chacina do Porto no tempo do Belfast, que continuava activo e se mostrava disposto a servir a Junta. Saldanha tentou no Inverno de 1847 um cerco ao Porto. Era ele agora o sitiante, repetindo o papel que outrora coubera ao arcanjo loiro. A cidade mostrou-se mais uma vez inexpugnável e Saldanha não se aborreceu de negociar. Não estava ali em nome dos Cabrais, mas em seu próprio. Era a rainha, muito dada aos Cabrais, que queria uma vingança sobre a Junta; ele queria apenas um acordo de cavalheiros, como aquele que se fizera em Chaves, no Verão de 37, quando os Cartistas andavam perdidos por Trás-os-Montes. Parecia-lhe de todo aceitável.

Apelou de novo para Inglaterra, desta vez como força de mediação entre os dois lados. Palmerston não hesitou; apressou-se neste caso a aceitar o papel de mediador, até porque Costa Cabral conseguira ser nomeado embaixador português em Madrid e defendia uma dura intervenção militar espanhola contra a Junta.

Enquanto, os Ingleses preparavam a proposta de mediação, Sá da Bandeira aproveitou para repetir o feito de Terceira no primeiro cerco do Porto, no tempo do ex-imperador. Embarcou discretamente com duas ou três divisões nas praias da Foz, dirigiu-se para o Algarve, desembarcou na costa quase sem se fazer notado, arregimentou alguns homens em Faro e Loulé, que estavam pelos Passos, e disparou para a capital, com a intenção de repetir a façanha de Vila Flor. Quando a notícia chegou a Lisboa, a cidade amedrontou-se. O fantasma do Teles Jordão a cair de borco, à luz dos archotes, nas pedras da ponta de Cacilhas, regressou. E todos viam, quando se debruçavam para sul, a perscrutar os pulverulentos horizontes da Outra-Banda por onde devia aparecer o braço erguido do Sá Maneta, as postas vermelhas do sangue a boiar nas águas do rio. Mas a rainha não se deixava impressionar assim; tinha estômago rijo e fibra grossa.

– Se não andasse de barriga gorda punha-me em cima dum cavalo e ia esperá-lo a Almada para lhe dar uma descompostura do tamanho do Arco da rua Augusta – exclamou ela para o padre Marcos.

Riu o padre, que continuava a ser o mais feroz cabralista da corte e adorava o mau génio público da rainha. Saldanha mandara já o Vinhais para sul e era de esperar que os dois se encontrassem na extrema do Alentejo. Veio depois a notícia de que Sá da Bandeira tomara Setúbal e se acantonara lá dentro. Não lhe interessava afinal chegar a Lisboa mas apenas tomar posição favorável para ganhar espaço e fazer exigências na mediação inglesa. Tanto a Junta como Saldanha sabiam que não tinham outra saída para além da negociação. Só a rainha e o paço resistiam.

– Estou contra e enquanto eu assim estiver não se faz – dizia a rainha em privado, referindo-se ao acordo.

Vinhais foi encontrar Sá da Bandeira em Setúbal. Tinha cinco mil homens armados lá dentro, todos patuleias e brigões. Vinhais teria outros tantos, mais disciplinados e obedientes, tropas regulares, que cercaram a cidade. A rainha pediu ao marido que, enquanto comandante-em-chefe do exército, levasse o recado a Vinhais de que a guerra continuava. Queria sangue. Era a alma de Carlota Joaquina, a mãe do seu pai, a falar bem alto dentro de si.

Partiu Fernando e quando todos pensavam que ele já estaria em Setúbal, no acampamento de Vinhais, chegou a notícia de que ninguém sabia do rei. Foi a consternação no paço. Trataram imediatamente de lhe seguir o rasto e foram dar com ele numa dependência anexa do São Carlos a trautear umas árias de ópera com um bando de actores. Tinha o dólman e o cinturão da espada esquecidos nas costas duma cadeira, o colarinho da camisa branca desafogado no pescoço, os olhos a brilharem de entusiasmo e um copo de água com açúcar na mão para limpar a voz. Querido Fernando, meu artista do outro mundo, cheio de sonhos e de quimeras! Não és o único ser desta estranha família a merecer a minha admiração, mas foste porém o único que teve saídas assim cheias de graça e humanidade. No meio dos homens que se matavam com a paixão ardente da Ibéria na alma, tu com a tua elegância fria de Coburgo sonhaste deixar um exemplo de alívio. E o que mais me espanta no teu caso é que de todos os membros desta família, tu foste o único que percebeu até ao fundo a alma atlântica e sonhadora deste país.

A mediação inglesa chegou pouco depois, com base em quatro pontos. Primeiro, amnistia geral; segundo, revogação dos decretos inconstitucionais; terceiro, eleições e convocação de Cortes ordinárias; quarto, formação dum governo neutro, com participação de cabralistas e Setembristas. Somava-se uma adenda: Dietz, o preceptor que Fernando trouxera de Viena, devia carregar sobre si as iniquidades da rainha, deixando a corte e Portugal. Ninguém estava em condições de recusar. O paço e a rainha, porque não tinham força para continuar a guerra nem para aceitar, em oposição à Inglaterra, uma intervenção militar espanhola a seu lado, contra a Junta; Saldanha, porque queria governar e não lhe interessava uma restauração inteira dos Cabrais; a Junta do Porto, porque percebia que nunca conseguiria tomar Lisboa, única forma de obrigar a rainha a aceitar eleições para Cortes constituintes, e tomava consciência que os patuleias estavam desejosos de regressar às aldeias, onde há muito andava já sossegada a Maria da Fonte; finalmente os miguelistas, porque na verdade já não existiam. Como se apagam as brasas mortas, também o miguelismo, no meio daquele espantoso incêndio, se extinguira em nada e se afundara em cinza; para  ele, a Maria da Fonte e a Patuleia foram a derradeira faúlha da sua existência, uma espécie pouco vulgar de canto de cisne, estrondoso mas sem génio particular.

Assinaram então a 28 de Junho as partes a Convenção do Gramido. Regressaram todos a casa, com a impressão de que deixavam tudo na mesma e que adiavam para mais tarde o derradeiro assalto. Também Costa Cabral, como quem não tinha especial interesse no que estava a fazer, voltou ao país no Verão desse ano. Vinha mais dissimulado, menos ostensivo, mas com os mesmos planos de mando e autoridade. Tinha dinheiro e trazia ainda mais influência. Não perdera o apoio da rainha e por isso limpou as eleições desse mês de Novembro, que coincidiram com o nascimento do infante Augusto. A rainha estava com vinte e oito anos, sete filhos vivos e um na tumba; aceitara a contra-gosto a mediação da Inglaterra, mas teimava agora num desforço, procurando deitar fora Saldanha, que se mostrara afinal menos dócil do que ela esperava e menos obediente do que ela queria. O  génio da rainha era menos astuto que pertinaz; insistia, insistia, sem nunca esconder que desistia.

Nas cortes da Europa, onde a situação de Portugal era tema obrigatório, apresentava-se Maria de Portugal como exemplo acabado de imprudência constitucional. A frase era fácil, o pensamento diletante, mas punha a descoberto o jeito mais grosso que ladino da filha do primeiro imperador do Brasil.

O ano de 1848 entrou com um novo terramoto, desta vez no coração da Europa. Barricadas levantadas nas ruas, operários enfurecidos de bandeira vermelha na mão, mulheres a pedirem pão, crianças perdidas e famintas de pistolas fumegantes nas mãos a cantarem os hinos da nova revolução popular. Era uma cena desconhecida que vinha ocupar o espaço dos novos bairros industriais das cidades antigas, uma situação inédita, saída da recente revolução mecânica aplicada à indústria e aos novos meios de transporte, mas que reeditava, agora numa escala muito mais assustadora, os momentos mais inflamados e escaldantes da primeira revolução francesa. A Europa estava outra vez, dezoito anos depois da última vaga liberal, em revolução. Primeiro, foi Palermo, Roma e Veneza, a seguir Paris, Lião, Francoforte e Berlim, depois Viena, Praga, Budapeste e Cracóvia. O resultado deste vendaval foi desastroso para as casas reinantes europeias. Em França, Luís Filipe de Orleães foi derrubado e a segunda República proclamada; em Viena, Metternich caiu e com ele se varreu o que restava da Santa Aliança; em Roma, o papa teve de fugir.

Quando estas notícias chegaram a Portugal, a rainha apanhou um choque. Conhecia Luís Filipe desde os tempos do exílio de Paris, habitara um dos seus palácios, estivera depois para casar com um dos seus filhos; ademais, um dos irmãos de Fernando casara com uma das filhas de Luís Filipe, Clementina de Orleães, que ela tratava desde a infância por Clem, e uma irmã, Vicky, com um filho, o duque de Nemours; havia ainda uma irmã sua, a querida Chica, que se matrimoniara com um filho do ex-rei francês, o príncipe de Joinville. Já o seu pai, o imperador, se batera o seu tanto por uma aliança com os Orleães. Chocaram-na por isso até à nevrose os relatos de Paris. Não conseguia perceber como um rei forte e liberal, filho de Filipe Igualdade, do próspero país de Guizot, modelo de todos os outros, podia ser obrigado a abdicar, fugindo à pressa das Tulherias, enquanto uma multidão enlouquecida, sem freio, disposta a tirar-lhe a cabeça, lhe saqueava e incendiava as aristocratas residências dos arredores de Paris.

– Os nossos patuleias ao pé do que se passa em Paris são anjinhos de igreja – exclamava ela, incrédula e satisfeita.

Era a consolação que lhe restava, comparar a recente Maria da Fonte com a revolução de Paris. E do confronto das duas situações, Portugal saía a ganhar. Ao pé daquela desordem, a Maria da Fonte fazia vez de sossego. O padre Marcos, o gordo arcebispo de Lacedemónia, que elogiava a boa mesa para contrariar as influências do fanatismo absolutista e do austero radicalismo republicano, anuía.

– É aproveitar o que por aqui vai havendo – dizia ele, esfregando as mãos de satisfeito. – Não há nada como o céu azulinho e a mansidão do ar para pôr o dente no lombo tenro do bacorinho e dar graças ao Senhor.

A rainha seguia-lhe o conselho. Estava outra vez descomunal. Voltara a comer como o filho de Gargântua e como ele se fazia descuidada e alegre. A vida, no fundo, corria-lhe de feição. Tinha tudo para ser voluptuosa e feliz,  entretendo as tardes em volta das bandejas das iguarias. Adorava Fernando, que lhe cumpria todas as vontades, ou assim lho fazia crer, nunca contraditando a sua palavra; tinha sete filhos que lhe enchiam a casa de vida e lhe proporcionavam o efeito de viver num grande e afortunado lar burguês; fazia a política que queria, elegendo as Cortes que bem entendia, e quando assim não era pegava do arrocho e só parava quando lhe seguiam a vontade. Estava certa que não tardava muito a livrar-se de Saldanha e a meter de novo Costa Cabral como ministro do reino.

E a oportunidade de se livrar do marechal surgiu na Primavera do ano de 1849 com uma altercação entre o barão de Ourém, ministro da guerra de Saldanha, e o marquês da Fronteira, um fiel de Costa Cabral. Demitiu o barão, com a certeza que Saldanha não era homem para ficar sem o ministro. Assim foi. E quando o marechal lhe veio pedir a demissão, ela meteu na presidência do governo Costa Cabral. Acabara de perder o nono filho nas mesmas condições em que nove anos antes perdera a sua primeira menina. Mas estava lá o velho padre Marcos para lhe sorrir de novo ao seu apetite e lhe lembrar que Costa Cabral era mais do que um nome, ou mesmo mais do que um homem, era uma ideia, a única ideia de governo e de progresso para o país.

– É o homem providencial. Sem ele, o país não prospera – insistia o confessor, junto da rainha.

Mas a impopularidade de Cabral era grande e irremediável; nada o podia salvar. Só a rainha, no seu capricho desusado, se recusava a entendê-lo. Ela e o seu padre privado, brigão e bebedolas, que fazia do báculo um estadulho e do cálice um bom copo. O próprio Silva Cabral, seu irmão, se afastava agora, percebendo que o governo do mano não podia trilhar vida fácil. O exército conspirava, desagradado com a demissão do marechal. A oposição apelava à revolta, incriminando o presidente do governo do vitupério de peculato, concussão de dinheiros públicos e corrupção junto de companhias privadas. Saldanha, por seu lado, não era sujeito que se ficasse depois duma desfeita. Aguentara a Maria da Fonte, dera de presente a vitória de Torres Vedras à rainha, negociara com os Ingleses um acordo que permitira o regresso dos Cabrais, calara e desarmara os patuleias. Governara durante um par de meses, sempre numa afluência de crises, e agora, por causa dum mal-entendido, via-se na rua, demitido de todos os seus cargos, incluindo os que tinha na corte e no Supremo Tribunal de Justiça Militar, substituído no governo e na corte pelo Chibo de Algodres, como chamavam os pasquins da oposição ao mais influente dos Cabrais, lembrando a sua pobre e pedregosa terra de origem e o casaco surrado, de magra e estafada pele de cabra no colarinho, com que se fizera conhecido em Lisboa nos primeiros tempos da sua chegada.

– Avonda! Avonda! – dizia ele, de si para si, cada vez mais impaciente por tirar vingança daquele vexame.

E a 7 de Abril de 1851, Saldanha, à frente de dois regimentos de infantaria, pronunciou-se contra o governo de Costa Cabral. Queria uma revolução militar, sem patuleias, sem civis, sem partidos. Tinha contas só suas para ajustar com o chefe de governo; fora humilhado na sua vaidade de grande personagem como nunca lhe acontecera até então. Na verdade tinha quase idade para ser pai de Costa Cabral; merecia e exigia respeito. Não descansaria enquanto não desse uma lição ao Chibo, pondo-o de vez a andar do governo. A conjuntura não lhe podia ser mais favorável; os partidos, tirando o cabralista, continuavam em pé de guerra contra o ministro da rainha; os influentes, como Herculano e Garrett, alguns com entrada no paço, protestavam nos jornais contra a política de censura do governo, a chamada lei das rolhas; o exército mostrava-se desagradado e dividido. Ideias não as tinha Saldanha, nem as queria. Ele era o homem dos momentos, o estratego que sabia aproveitar as ocasiões para dobrar os inimigos. Fizera jurar outrora a Carta, defendera o Porto das baterias do Teles Jordão, vencera a Junta do Porto em Torres Vedras e agora, não sobrava dúvida, ia bater Costa Cabral. O resto, já não era com ele. Estaria por tudo, desde que lhe afagassem o amor-próprio, tão maltratado pela requentada besta de Fornos de Algodres, e não se esquecessem, claro, de todos os seus cargos.

A rainha, que acabara de perder mais uma criança, quando soube do pronunciamento de Saldanha, enfureceu-se. O homem ousava desafiá-la de maneira indecorosa.

– O louco! Terá o que merece. Vai apodrecer em África como todos os criminosos que se metem em revoluções contra o paço – disse a rainha ao chefe do governo, quando este assustado e pressuroso veio comentar com ela os acontecimentos.

Não era menos megalómana que o marechal; estavam afinal bem um para o outro. Ela queria uma lição; ele tirar uma desforra. No fundo eram iguais. Um queria que o lembrassem e a outra que lhe realizassem as fantasias. Dois meninos que viviam da autoridade e da lisonja.

Pediu de novo a Fernando que se apertasse na sua farda de comandante-em-chefe do exército e se pusesse à frente das divisões leais e batesse para o norte onde Saldanha andava a levantar homens. Queria sangue. Fernando disse-lhe que sim, que desta vez não se iria perder a ensaiar a Semíramis de Rossini, que deixaria isso para mais tarde, que iria de imediato à procura de Saldanha, que lho traria pela gola. Chegou a Coimbra poucos dias depois e quando os populares que o esperavam lhe pediram que desse morras ao Cabral, ele deu.

Querido Fernando, querido Fernando, é o que apetece dizer. Tu és um caso sério de simpatia nesta família que nos governou no século XIX. Ainda há quem te veja como um inútil ou como um estrangeiro, mas se não fosses tu não se entendia como hoje se entende a grandeza dos Jerónimos, da Torre de Belém ou da janela do Convento de Cristo de Tomar, nem se restaurariam estes monumentos como logo no teu tempo se restauraram e outros ainda como a Batalha, Alcobaça ou o Templo romano de Évora, quase a morrer, quando tu lhe deitaste a mão e decidiste a sua limpeza e conservação. Foste tu ainda que salvaste a Custódia de oiro de Belém de ser derretida na Casa da Moeda e tu ainda que à tua custa enviaste para Paris Columbano e Viana da Mota. E já não falo da Pena, que é porventura o único monumento de valor que o século XIX nos deixou em Portugal.  Mas a tua grande obra são as tuas graças de opereta no meio das guerras em que os portugueses se meteram no teu tempo, primeiro com o Sá Maneta e depois com o Saldanha. Salvavam a tua vida no meio deste pedregal, se mais não houvesse.

A tropa que se encontrava com o rei bandeou-se logo com Saldanha e o rei regressou a Lisboa, desta vez cabisbaixo e sozinho. Cabisbaixo por ter perdido a tropa e deixado escapar Saldanha? Não. Vinha cheio de saudades, triste de morrer, com os olhos a borbulhar poesia amorosa e a alma cheia de árias novas, ardentes, apaixonadas, para cantar debaixo da janela da sua saudosa amada, de quem andara duas infinitas semanas afastado; a rainha, diante de tanta alma, desculpou-o. Costa Cabral é que se viu perdido e mais não teve para salvar a pele que fugir.

Saldanha regressou em triunfo a Lisboa; o pronunciamento não chegara a durar um mês. Nos primeiros dias de Maio estava reintegrado em todos os seus cargos públicos e de volta ao paço. Pouco depois tinha a honra de presidir ao primeiro ministério Regenerador.

Era o que aí vinha, a Regeneração. E o que era a Regeneração? Nada mais do que o resultado do derradeiro assalto que a convenção do Gramido protaíra, o novo pacto entre Rodrigo, Estevão, Sá da Bandeira, Herculano, Garrett, Lavradio, Loulé, Aguiar, Rodrigues Sampaio, o Setembrista feroz da Revolução de Setembro, e todos quase sem excepção. Palmela já cá não estava, porque senão também ele, o cínico e adulador Pedro de Sousa Holstein, teria sido regenerador. Mesmo o Póvoas deu o seu assentimento ao novo pacto e até o arcanjo loiro pareceu dar de vez o país, casando aos cinquenta anos com uma princesa alemã. Foram todos regeneradores. Na base, tratava-se do entendimento entre Cartistas e Setembristas num plano que satisfizesse ambos os partidos. Nem Carta, nem Constituição, mas uma fusão das duas; fim dos pronunciamentos militares e regresso definitivo dos militares aos quartéis; dois agrupamentos políticos distintos que mediante regras se pudessem alternar no poder; uma política de fomento, assente nos melhoramentos materiais, tal como Cabral a quisera, só que desta vez em lugar de estradas eram vias férreas que se haveriam de assentar.

– Que se entendam. Tanto me faz macadame ou chulipas. Eu, por mim, só quero é que o Chibo nunca mais ponha os pés no governo – disse o novo chefe do ministério, quando soube das estradas de ferro.

Um ano depois estava a rainha outra vez grávida. O padre Marcos falecera pouco antes de embolia, no seguimento duma digestão de chouriças, mas nem por isso a rainha teve emenda. Continuava a tratar-se com o mesmo desplante epicurista do filho de Gargântua. Não queria saber de prescrições médicas e as cautelas do marido eram recebidas sempre com muitos mimos mas sem qualquer atenção.

– Já que querem os militares nos quartéis e os políticos a governarem, que me deixem a mim ao menos a cozinha e os acepipes – dizia ela zombateira, quando lhe falavam do Acto Adicional à Carta ou de outros enredos do momento.

Era o modo que ela tinha de folgar o seu tanto, mas era também o trilho que ela descobria para se adaptar, num meio que a tinha por arrogante e mal-educada, ao pretenso civismo novo da Regeneração. Outros o faziam ingressando nos dois partidos que prometiam empregos e deputados, o Regenerador, com Cartistas de renome, e o Histórico, com os principais radicais; ela preferia a cozinha, as iguarias, os bailes e evidentemente a má-língua, em que conseguia, como a avó paterna, ser quase genial.

Chegou a altura do parto, no mês de Novembro, e ela sentiu incómodos ainda mais fundos que os dois anteriores. De repente abateu muito, numa exaustão invulgar e apática, que foi vista como mau prenúncio pelos médicos. Era bem possível que a criança jazesse dentro dela morta. Depois, pouco a pouco percebeu-se lá dentro um volume descomunal, um peso sem reacção, inerte, que precisava de ser removido. Não houve outro remédio senão, ao princípio da manhã, abrir a rainha para lhe extrair o filho morto. Quatro ou cinco médicos debruçaram-se sobre o seu ventre para o retalharem a bisturi, pondo-lhe à mostra as vísceras. Fernando, o marido, dava-lhe a mão debulhado em lágrimas, com sonoros soluços e uma expressão horrível de susto e sofrimento. Por trás dele, a ex-imperatriz, Amélia, a madrasta, chorava em silêncio, amarfanhando um lenço entre as mãos. A seu lado, soluçando alto, estava a infanta Isabel Maria, a envelhecida tia da rainha, e o patriarca, que fora chamado para a confessar e que, enquanto soletrava as suas lúgubres orações, não conseguia também reter as lágrimas, que lhe escorriam abundantes pela cara.

– Então, meus amigos, coragem! – exclamou a rainha, recostada nas almofadas, enquanto os médicos lhe metiam a faca nas gordas carnes. – Isto não custa assim tanto e dentro de pouco está acabado.

Mostrava a virilidade de sempre. Aquele parto era o seu cerco do Porto, o momento decisivo da sua vida, aquele em que transcendia a vulgaridade irrisória da sua vida. Os outros choravam e arfavam; ela, que estava na berlinda, a seco, cheirando apenas de quando em quando o seu pouco de clorofórmio num pano branco, aguentava-se, sem se lhe ver um repelão de dor no rosto e sem se lhe ouvir um grito de medo ou de pavor. Ali estava, com as suadas mãos agarradas aos lençóis, as pernas nuas abertas, o rotundo ventre ao léu, a escorrer sangue, como um porco escorchado. E assim ficou durante horas, sem uma lágrima, sem um verdadeiro arranque de dor, enquanto os médicos lhe metiam dentro das vísceras as mãos para lhe arrancarem o filho morto, limpando-lhe as carnes do sangue e da porcaria e cosendo-lhas de seguida com agulha e linha. No fim, estava exausta, as mãos geladas, a carne dura como mármore, as unhas roxas, os lábios brancos. Deram-lhe vinho para a reanimar. Fernando chorava, com o horror estampado na cara. Ela, ao ouvir os gemidos do maridinho, que tantas noites haviam cantado palavras de paixão aos seus ouvidos, ainda sorriu, para depois fechar os olhos e morrer.

O funeral teve lugar três dias depois, a 19 de Novembro. A cidade comovera-se com a sua morte, lembrando a do imperador, seu pai, vinte anos antes. Este morrera aos trinta e seis anos, doando o coração, depois de ter doado uma Carta que, afiançava ele, valia tanto como um coração; ela morria aos trinta e quatro, doando os filhos e um exemplo de coragem. Desapareceram os episódios do Rossio e de Torres Vedras, varreram-se os ditos de autoridade, a má-educação da rainha nos teatros e nas ruas, quando atirava do alto do seu luxuoso coche as mais desconcertantes e vingativas frases; esqueceram-se os Cabrais, esqueceu-se o golpe de Belém, esqueceu-se tudo para só sobrar, qual estrela pura e brilhante, a mulher heróica que dera ao marido onze filhos em pouco mais duma década e morrera de exaustão, sem um grito, quando procurava dar à luz o último. Compareceu o povo em força nas ruas de Lisboa para chorar a rainha e a mulher. A sua morte foi decerto um dos pontos fortes do seu reinado e um dos momentos favoráveis da sua vida, tantas vezes grosseira e ordinária.

Falou-se duma pomba branca a esvoaçar sobre o seu coche funerário. Verdade ou não, esse vislumbre é hoje o emblema que os poetas nos legaram para lhe perdoar a vida e louvar a morte. Soube morrer e isso iluminou de repente com uma luz fulgurante e alta toda uma vida anterior apagada e baça. Já o seu pai tivera a mesma ciência da morte. Um, o pai, teve no cerco do Porto o parto da sua verdadeira fortuna; a outra, a filha, teve no parto o seu heróico cerco do Porto. A dinastia destes Braganças habituava-se a assegurar o seu futuro, a redimir os seus erros, a limpar sorte e memória, pela morte dos seus monarcas. E quando assim é, o fim deve rondar próximo, porque a morte deixa de ser desaparecimento para passar a ser suicídio.


2

O METEORO E O SONGAMONGA

(1853-1889)


Com a morte de Maria II desapareceram as últimas imagens da guerra civil ou do Portugal antigo. À saída de cena da rainha, somou-se o nascimento dum Portugal diferente, com carvão, ferro e velocidade. Foi um Portugal mais escuro, mais sujo, e sobretudo mais feio que surgiu. As imagens tornaram-se utilitárias e as formas passaram a ser validadas pelo crivo da técnica. A Beleza deixou de ser um critério público e o mundo fez-se uma estatística. O fundador deste Portugal, Pedro V, foi porém um sonhador ou uma excepção, que não se percebe bem se passou por este mundo para nele deixar obra ou para dele fugir. À morte da mãe ficou rei, mas com quinze anos estava ainda no termo da sua exigente formação. A regência foi para Fernando até o rei embolsar a sua maioridade, adiantada excepcionalmente para os dezoito anos.

Pedro aplicara-se até aí em matérias tão diversas como o latim, o alemão, o francês, o inglês, o grego, o alemão, a música, a ginástica, a esgrima, a equitação, a caligrafia, a leitura, a gramática, o desenho, o português, a história, as ciências da natureza, a física ou a matemática. Mostrara-se sempre um pupilo aplicado e duma inteligência excepcional, capaz de saturar com rapidez complicados problemas de matemática ou de beber quase dum dia para o outro a estrutura gramatical duma língua. Aprendera a escrever muito cedo e as suas composições em língua portuguesa passavam por modelares, na expressão, na clareza do pensamento, nos recursos. Muito cedo, aos dez anos, escreveu a sua primeira peça mais desenvolvida, um fragmento teatral, Jacó de Berinhão, de colorido sopro e de divertida imaginação, que encenou com os três manos mais velhos, Luís, João e Maria Ana, assumindo ele o papel de marquês de Trucutchim. Começou a estudar latim por volta dessa altura e dois anos depois estava em condições de traduzir qualquer texto, dispensando quase o dicionário.

Mas, em paralelo, desenvolvera aquele caroço inicial de tristeza, mostrando-se um ser solitário, misantropo, incapaz de convívio humano, muito propenso aos presságios funestos e aos pressentimentos trágicos. Quando começou com o latim, não sei se tocado pelo seu Ovídio, contou ao seu mestre um sonho de desgraça. Uma águia pegava nele, elevava-o aos céus, deixando-o de seguida cair com estrondo no lugar, onde de seguida se levantava o mano Luís. Outras vezes, quando estudava História de Portugal, punha-se a fazer contas aos reis, contabilizando-lhes os anos de reinado e tentando perceber através dos números uma lei geral para cada uma das dinastias portuguesas. Quando chegava à sua, a dos Braganças, deparava-se com um caso, que se repetia à letra, de geração em geração e que muito o intrigava. O primogénito, o herdeiro da coroa, quando varão, morria sempre antes do pai, deixando a sucessão do trono para um irmão seguinte. Na geração do fundador, Teodósio, morrera aos dezanove anos; na seguinte, João, morreu pouco depois de nascer; de seguida, morreu Pedro aos dois anos; depois veio a geração de Maria I, a rainha doida; seguiu-se o caso de José, que o leitor conhece e que deixou já casado com a tia a coroa para o João-dos-anzóis; por fim António, que morreu aos seis anos, deixando a coroa ao cabra macho e ao arcanjo loiro, que a disputaram à dentada como o leitor também sabe. Tirou desta constante, que ele estudou com minúcia, a ideia de que nunca viria a reinar. Mais do que um medo ou um pressentimento, era uma convicção, melhor, uma certeza que o cálculo confirmava e a que ele certamente não escaparia.

– Não serei rei, mas o meu mano João fará um bom reinado – dizia ele repetidas vezes, com sombrio ar, aos mestres, que o ouviam estupefactos e apreensivos.

Esquecia deliberadamente Lipipi, que se lhe seguia em idade, mas com o qual ele tinha desde que se conhecia uma disputa séria. Luís era o oposto daquilo em que se reconhecia e que com tanta seriedade e concentração procurava cumprir; onde ele punha a inteligência para deslindar uma situação, punha Lipipi a indiferença; onde ele se mostrava aplicado e intrépido, apresentava-se o irmão indolente e preguiçoso; onde ele pedia reserva, distância, silêncio, dava Luís indiscrição, vulgaridade, ruído. Para bem dizer, detestava-o  e via nele o símbolo de tudo o que lhe era odiento. Era glutão, desleixado, brincão; estudava a custo, raramente lia um livro, comia sem medida, deleitava-se por uma anedota porca e estúpida, ria desbocadamente por tudo e por nada. O pai nomeara-o aos oito anos guarda-marinha e cinco anos depois, quase sem haver metido pé numa galera, já era segundo-tenente, o topo às vezes duma vida dedicada ao mar. Pedro por sua vez era cadete dos granadeiros da rainha e levava muito a sério o seu papel, interessando-se por assuntos militares e procurando cingir os problemas do exército português, na mira de lhes dar mais tarde uma solução.

Um dos primeiros actos que ele teve depois da morte da mãe foi um exercício de cultura clássica. Era prova esperada desde o Verão e não quis desmarcá-la depois do infortúnio de Novembro. Teve lugar no fecho do ano. Era prova que mais parecia dissertação académica, com semanas de estudo prévio, e defesa diante de júri, que exercício improvisado no momento. A prova vinha sendo preparada desde há meses, com leituras, apontamentos e redacção de períodos e capítulos. O sobressalto do parto, da despedida, da morte e do funeral da mãe foi um interregno mas depressa Pedro retomou. O pai jurou a Carta a 19 de Dezembro e ele defendeu quatro dias depois a sua dissertação escrita, chamada “A Grécia e Roma”. Lendo os seus parágrafos ficamos defronte dum erudito e talentoso rapaz de dezasseis anos que nos consegue interessar pela sua expressão e prender pelo que nos conta, mas cujo ânimo parece muito pouco ufano com o mundo ou satisfeito consigo próprio.

Ninguém nesse ano se atreveu a falar nas festividades do mês de Dezembro antes de Pedro passar diante do júri da prova. O paço girou em silêncio, com as crianças cumprindo os seus horários quase sem ruído, vestidas de preto, os olhos ainda molhados de lágrimas, um ar machucado e triste.  Só na véspera do dia de Natal Fernando foi com os quatro filhos mais novos montar a árvore do Natal, de que fora uns anos antes o introdutor entre nós. Os três mais velhos dedicaram-se aos presentes. Fernando não quis privar os filhos das alegrias do Natal e tudo decorreu muito próximo do habitual. Mascarou-se de Pai Natal e apareceu com o saco das prendas no meio dos filhos mais novos. Os outros, por indicação de Pedro, estiveram ausentes por respeito com o luto da mãe. Pedro tinha uma estrela fúnebre, disse Oliveira Martins. Teria, mas o seu brilho só se começou a notar depois da morte da mãe. Foi esta a escuridão que caiu naquele lugar e revelou a luz funesta dessa estrela que havia na alma de Pedro.

Os anos seguintes, 1854 e 1855, foram os anos da formação final do futuro governante. O pai não lhe quis entregar o ceptro sem o enviar por duas vezes à Europa, na companhia do irmão Luís e dos mestres, em duas longas viagens, a primeira pelo norte e centro da Europa, a conhecer a família inglesa e a alemã, a segunda pelo sul, para estudar as ruínas de Roma. Não se tratava de passear, no sentido turístico de hoje, mas de ir ao encontro da família espalhada por Inglaterra e pela Alemanha meridional, aproveitando para estudar ao vivo, desta vez através do contacto com a realidade do presente ou com as ruínas do passado, matérias até aí fechadas nas salas das Necessidades, ao pé do Tejo. Viagens como essas duas, tão extensas no espaço e tão concentradas no tempo, só se imaginam depois de Napoleão ou da chegada dos caminhos de ferro. Era um hábito recente e moderno, que dataria dos finais do século XVIII, quando o empirismo se enraizou de todo na mentalidade europeia e as famílias aristocratas aderiram à formação racionalista e se passaram a visitar entre si, primeiro nos fluxos dos comboios Franceses de Napoleão e depois nos de ferro, batidos pelos novos fornos do carvão de coque.

A primeira viagem começou no Tejo, a bordo dum vapor, Mindelo, a 28 de Maio e terminou a 15 de Setembro no mesmo lugar. Pedro e Luís saíram de Lisboa por mar e chegaram pouco depois a Southampton, no sul de Inglaterra, donde foram para o Buckingham palace, em Londres, aí sendo recebidos pela família real inglesa. O parentesco que ligava os dois rapazes Portugueses a esta família era rijo. Os Braganças haviam começado por ter a protecção dos Stuarts e depois na hecatombe de Napoleão a dos Hânover; davam-se conta que não podiam reinar senão com a benevolência da Inglaterra. Eis um dos grandes dramas desta família reinante do século XIX, depender mais da Inglaterra do que da sua própria força. O ramo brasileiro dos Braganças só sossegou quando se viu finalmente ligado por laços de parentesco com a Casa Real inglesa, o que aconteceu com os Saxe-Coburgos. A rainha Vitória era filha duma irmã do pai de Fernando e o seu esposo, o príncipe Alberto, era também ele filho dum irmão do pai de Fernando e da mãe de Vitória. Logo, os reis de Inglaterra eram ambos primos-irmãos do regente português e segundos primos de Pedro e Luís.

Vitória e Alberto, que tinham um rapaz, Bertie, o futuro Eduardo VII, quase da mesma idade dos parentes Portugueses, ficaram estupefactos diante da inteligência prática e conceptual de Pedro. Luís era o vulgar e apatetado estoira-vergas das grandes famílias aristocratas, tratado com um misto de benevolência e encanto, ou no pior dos casos com um encolher de ombros e um bilhete de comboio para uma longa viagem para as praias de Itália ou as ilhas gregas; Pedro ao invés fugia ao tipo vulgaríssimo do irmão, que se decalcava sem alterações no Bertie inglês, e apresentava um génio invulgar, cujo brilho era o resultado duma mente poderosíssima e dum agudo sentido das formas sociais, não isento duma desenganada melancolia. Alberto de Inglaterra, cerca de vinte anos mais velho, viu nele o mais apurado resultado humano a que os Saxe-Coburgo podiam aspirar neste rincão do universo e adoptou-o por inteiro como seu. Trocou com ele a partir daí uma correspondência que tem mais o enlevo do amor, quer dizer, o entusiasmo dum pai e dum filho que se adoram e reconhecem, que a de dois monarcas desconhecidos que por um acaso da política ou da família se avistaram uns dias no mês de Junho do ano de 1854, em Londres.

Pedro e Luís estiveram mais dum mês em Inglaterra. Visitaram Birmingham, Sheffield, Manchester, Liverpool e passaram pelo menos duas ou três semanas em Londres, onde o dissídio entre os dois irmãos se agravou. Num meio buliçoso e enérgico, acelerado pelo desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação, multiplicado pela aplicação da revolução técnica à produção e pelo exôdo rural, Pedro despertou para um conjunto de projectos portugueses de reforma, em primeiro lugar as vias férreas, que lhe entusiasmaram a alma e o empurraram a planear um programa severo e continuado de visitas a universidades, escolas, hospitais, fábricas de fundição de ferro, parques, museus, jardins, minas de carvão, gares de caminhos de ferro, gabinetes de obras públicas. Divorciou-se Pedro neste momento de Portugal. Pensou no país rural que existia lá longe, debruçado sobre o mar, com hábitos de entretém e ociosidade, e comparou-o com aquela locomotiva potente em que a Inglaterra se tornara. Primeiro envergonhou-se; depois revoltou-se contra o destino que lhe deitara em mãos um país tão vulgar como porcino. O reino que era a contragosto o seu só se salvaria se adaptasse um estilo laborioso e utilitário, semelhante ao inglês, estrangeirando-se.

Quando Luís percebeu o alucinante trabalho em que o irmão pusera mão, amedrontou-se com tanto enfado e visita. E como não era de esforços nem de sacrifícios, não hesitou em deixar-se ficar para trás.

– O mano vai fazer essas visitas, que eu fico no quarto a descansar e a folhear os jornais.

Pedro ainda pensou replicar, mas depois achou desnecessário. Desconsiderava-o desde criança e encontrava afinal uma coerência esperada entre a atitude que ele ali mostrava em Londres e aquilo que ele pensava do irmão desde criança. Apercebeu-se de seguida que Lipipi aproveitava as suas ausências para sair para os teatros e para as casas de fumo de Londres, donde regressava às vezes de madrugada. Pedro ficou escandalizado e anotou o seu caderno de castigadoras considerações sobre o irmão.

Uma tarde em que se encontraram, Lipipi teve o descuido de fazer confidências sobre a noitada anterior. Estivera no teatro e depois, por interferência dum criado do príncipe Alberto que lhe percebera a tineta, fora para um quarto com uma das jovens do coro do teatro. Estava eufórico e desejoso de entrar em pormenores. Tinha quinze anos e fora com uma mulher pela primeira vez. Descobria uma nova página cheia de bem-estar; era o próprio céu que lhe entrava pela porta da vida.

– É uma vergonha o que me conta. Pense na alma da nossa querida mãe olhando do céu os nossos gestos e lendo nas nossas mentes os nossos pensamentos – recriminou-o friamente Pedro. – Não sei como consegue fazer o que faz.

Luís percebeu aí tudo o que o separava do mano; nem sequer contava com ele para confidente. Era o silêncio, mas não o ressentimento. O seu feitio era bom ou, calhando, nem isso, mas indiferente o suficiente para não se incomodar com as repreensões e os rebaixos. Era duro de cabeça mas mole de feitio; raramente se irritava, menos ainda gritava, não havia fúrias nem tempestades naquela alma morna e embotada, enevoada por um fumo esparso e contínuo, que tudo o que pedia da vida era um bom prato de comida e um perfumado cigarro no fim. Tinha porém consciência do seu fraco valor, pois desde criança que tinha à sua frente como termo de comparação a grande estrela irradiante do mano Pedro. Assim sendo não se escamava quando lhe apontavam os defeitos e lhe pediam contas dos desvios. Calava-se e aceitava, de olhos gelatinosos e dormentes no chão.

Depois de Inglaterra os dois irmãos seguiram para a Bélgica, onde reinava o tio Leopoldo, e daí seguiram para Roterdão, Haia e Amesterdão, onde Pedro insistiu em visitar um jardim botânico, um jardim zoológico e um estaleiro naval. No fim de Julho chegaram ao ducado de Coburgo, onde foram recebidos pelo duque reinante, Ernesto, pai do príncipe da Inglaterra e tio de Fernando de Portugal, e duas semanas depois estavam de partida para Leipzig, Dresden e Praga, onde os rapazes tiveram o gosto de encontrar Carl Dietz, o preceptor que acompanhara Fernando a Portugal e que a convenção do Gramido, cansada das doidas tropelias da rainha, atirara para fora do país. Daí seguiram para Viena e logo de seguida para o Danúbio. Nos primeiros dias de Setembro estavam de regresso, atravessando a França, sem poderem aportar a Paris, com muita pena de Lipipi, devido a uma epidemia de cólera que varrera a cidade. Ainda assim, o homem que empalmara os distúrbios republicanos de 1848, Napoleão III, fazendo regressar a fancaria do império, foi a Boulogne-sur-Mer, no mar da Mancha, despedir-se dos dois Portugueses, que seguiam para Ostende, onde os esperava o velho Mindelo, para os trazer de volta a Lisboa.

Em Lisboa, Pedro estranhou a cidade. Quando pisou o Terreiro do Paço e cumprimentou a família, a corte, o governo e o corpo diplomático a cidade pareceu-lhe mais acanhada. As arcadas da praça haviam encolhido como se as tivessem refeito de novo numa dimensão muito mais pequena. Também a distância entre o Terreiro do Paço e as Necessidades, que outrora lhe parecera um infinito, desta vez se lhe afigurou um instante. Mas o que mais estranhou no seu regresso foi o pai. Fernando fora para ele até aí a estrela da sua existência. Amara a mãe com aquele amor cheio de gratidão que se dá aos seres que nos satisfazem os instintos basilares, mas votara ao pai o respeito sincero que se dá aos entes que pelo brilho que irradiam ou pelas acções que praticam tomamos ou elegemos como modelos do espírito. Fernando, com o impulso criador que espalhava, o sestro de grande imaginativo que mostrava, a habilidade manual que apurava até ao pormenor, fora desde sempre a referência de Pedro e o exemplo que este se propunha imitar.

Agora, depois do regresso das terras distantes, sentia esfriar dentro de si essa proximidade. Estranhou com desagrado as recepções que ele dava nos salões das Necessidades. Pedro não conseguiu ver nos convidados do pai mais do que uma multidão delirante e estúpida. Fernando deixara entretanto crescer uma barba espessa e escura que o tornava quase irreconhecível aos olhos do filho. Mas pior do que essa barba que se intrometera na figura do pai era o seu comportamento. Passava horas na companhia do velho von Eschwege a falar com os seus convidados e agora que estava viúvo mas ainda frescal mostrava uma inclinação para o galanteio das senhoras bonitas que escandalizou o filho. Pareceu-lhe aquilo frouxo e inútil. A ele o que lhe interessava era a transcendência prática dos transportes ou da produção e circulação das mercadorias; os serões do pai, com poetas de melena escorrida e alcaiotas de cara empoada, eram para ele sessões odiosas de inutilidade. Ele, que depois de ver os sucessos da Londres industrial vinha estrangeirado de todo, deu em abominar o pai. A sua estrela passou a ser Alberto, o primo-irmão do pai. Pedro V, ao permutar Portugal pela Inglaterra, acabou por  trocar o pai pelo primo. O fosso entre os dois era agora irremediável.

Lipipi pelo contrário aproximou-se muito do pai no regresso a Lisboa. Adorava misturar-se na multidão das recepções que o regente dava, aproveitando para comer muito pão com manteiga e distender umas horas sentado na mesa de jogo com os parceiros da bisca. Foi nessa época que ganhou o hábito de tocar violoncelo, mais para imitar as poses do pai quando a sala se calava para ouvir a sua voz de barítono que por verdadeira vocação para o instrumento. Para um ouvido hábil e treinado eram evidentes as facilidades e as desafinações de Luís. Havia ainda uma razão forte para esse hábito: o magnetismo que irradiava do grosso instrumento e que atraía sobretudo as delicadas senhoras do salão, que o mimavam de olhares lúbricos sempre que ele tirava das cordas um som mais grave ou melancólico. Ele dava tudo por um desses olhares, que lhe fazia vir ao pensamento a inglesinha que cantava nos coros dos teatros de Londres e lhe dera momentos dum prazer tão sublime que todos os dias se masturbava a pensar na liga preta que lhe vira na perna firme e bem desenhada quando ela deixara cair aos pés as saias.

Veio de seguida a segunda viagem à Europa dos dois irmãos, desta vez rumo a França e a Itália. Partiram a 20 de Maio e poucos dias desembarcavam em Bordéus, donde seguiram para Paris, onde foram recebidos por Napoleão III. Paris vivia os dias negros e as noites doiradas do segundo império, com uma multidão de pedintes vivendo debaixo das pontes do Sena e uma segunda multidão de elegantes e de ricaços nos teatros, nos hipódromos, nas apostas e nas recepções das Tulherias. A única ponte entre estes dois mundos eram as vistosas obras públicas, os caminhos de ferro, as pontes de aço, as estradas de macadame, as fábricas de fundição de ferro que se viam nas periferias das grandes metrópoles francesas. E foram estas obras que motivaram Pedro a ficar em Paris. Mostrava curiosidade em conhecer com pormenor o modelo de desenvolvimento francês, que lhe parecia à superfície mais carregado e dispendioso que o inglês. Depressa criou um calendário de visitas sociais que repetia aquilo que se passara um ano antes em Londres. E também Luís bisou na sua recusa de o acompanhar. Esses passeios, que o irmão considerava sumamente didácticos, ele os julgava a pior seca que se inventara até então.

– O mano é que precisa dessas visitas para fazer o lugar de rei. Eu não sou nada e por isso deixo de lado essas inspecções.

Pedro não se surpreendeu com a atitude do irmão nem perdeu tempo a convencê-lo fosse do que fosse. Andava muito entretido a tirar as medidas da França do segundo império, comparando-a com a Inglaterra da primeira parte do reinado da prima Vitória. Enchia cadernos com apontamentos sobre o que via nas suas visitas e sobre os livros que lhe passavam pelas mãos. Proudhon, Blanqui ou Ledru-Rollin estiveram nessa época na sua secretária e passaram pelo crivo da sua consciência e da sua análise. É crítico, violentamente crítico, mas deixa-se seduzir pelos nomes dos autores; recusa o comunismo, mas procura-lhe as ideias. O rei era um aristocrata, logo um reactivo em termos sociais, mas era também um ilustrado, preocupado com a questão social e a distribuição da riqueza, que, na linha do pai e do primo inglês, defendia a democratização da sociedade através da educação e do auto-governo progressivo de cada cidadão.

Não sei o que disse o rei de Henriques Nogueira (1823-1858), um seu concidadão, que viveu e morreu no seu reinado, e do seu livro Estudos sobre a Reforma em Portugal (1851), tão próximo do comunismo federalista de Proudhon, mas tenho a certeza de que no seu íntimo sonhou por um breve instante ser rei dessa confederação de municípios Portugueses independentes e activos de que fala o torresão. Quatorze anos separam o nascimento de Henriques Nogueira do de Pedro V. É um pestanejar de olhos na História da humanidade, um nada irrelevante na História da vida, mas é também um sorvedoiro infinito de carne e alma no presente, no momento em que tudo é vivido. Em 1823, quando Nogueira nasceu, ainda estava viva Carlota Joaquina; quatorze anos depois, em 1837, com o futuro rei, nasceu mais um bisneto de Carlota Joaquina. E apesar daquele sair de todo contrário ao sangue perdulário desta, este facto, que podia bastar para tornar irreconhecíveis dois contemporâneos como Henriques Nogueira e Pedro V, acaba afinal por os unir.

Deixemos Nogueira e regressemos a Luís. Este não surpreendeu o irmão com a má cara que deitou aos passeios ilustrados, mas acabou por apanhá-lo em flagrante com a vida que fez em Paris. Estava mais ousado. A antiga timidez, que se devia ao meio quase burguês em que crescera, com uma mãe protectora e doméstica, que punha todo o seu resguardo na vida em família, desaparecera e em seu lugar surgira uma desenvoltura, que fazia lembrar, com menos impulso e mais sorna, a lascívia destravada dos seus avôs, dos desvarios sanguinários daquela estranha e agoirenta Carlota Joaquina ao marialvismo vigoroso e macho do homem da máquina triforme, de tiro repetido e continuado. A família tinha taras sexuais suficientes para se reproduzirem até à décima geração, quanto mais para fazer daquele Luís um exemplar de homem vulgar, queimando o seu pauzinho de incenso ao mais tirânico dos instintos. Não hesitava por isso em pedir o que queria, comprando com o seu muito dinheiro a conivência dos criados dos hotéis ou dos empregados do teatro do vaudeville. Eram estes que lhe arranjavam a troco de boas moedas de oiro a carne fresca e tenra com que ele prometera aos camaradas dos barcos deliciar as suas noites de Paris.

– A cidade luz? – perguntava-se ele, entre o maravilhado e o patético, ao regressar de madrugada das orgias em que se metia. – Qual luz! Esta é a cidade dos gozos intensos, a cidade dos vícios adorados, mas tudo negro e nocturno, à luz de muitas velas.

O irmão quando o viu assim desmedido e frenético, exalando o perfume picante das coristas que se alimentavam dos arrabaldes do segundo império e baforando o champanha azedo dos brindes, enojou-se dele. A lubricidade era o que mais detestava nos homens e nas mulheres e desta vez não se impediu de reprovar Lipipi com rara violência.

– Estou escandalizado com o seu comportamento. Não o desejo por perto; afaste-se por favor, para eu não dar pelos seus passos nem pela sua flatulência. – E acrescentou ainda, severo e cortante – E menos ainda pelo seu horrível pivete a água-de-colónia.

Luís limitou-se a pôr os olhos no chão, fechando o rosto e mostrando-se culpado. Aceitava sem resistência as recriminações, mesmo as mais duras, daquele irmão que ele se acostumara a ver como um ser invulgar, destinado a uma nobilíssima missão, a de orientar os homens, e que por isso Deus fadara decerto com as mais elevadas virtudes. Ele, Lipipi, era um pobre diabo, filho segundo, a quem Deus não prestara qualquer atenção no fabrico e que ficara por isso cheio de defeitos e de desiquilíbrios. Era bom para acamaradar com os cadetes nas farras da marinha portuguesa e agora, que dera com a cobrição, para se meter nas carnes suculentas das raparigas que apanhava por perto. Era um grosseiro do prato e da fornicação, mas não se importava assim tanto com o assunto, pois agora que a mãe se fora não tinha a bem dizer contas a fazer com ninguém.

Pedro, na sua íntima constituição, mostrava-se o absoluto contrário desta sensual inclinação do irmão. Desde criança que se habituara a olhar o mundo através da pureza duma mente toda votada ao estudo. Os sentidos, que eram a forma única de contacto de Lipipi com o mundo, funcionavam para ele como uma ante-câmara do pensamento; a atenção que lhes dava era fria, objectiva, distante e mais parecia aquela que um homem de ciência prestava aos seus fenómenos de trabalho que a dum homem que punha gosto em viver. Antepunha aos sentidos e às sensações um critério moral, que era o verdadeiro estalão da sua vida. Comia e bebia o estritamente necessário para sobreviver, numa austeridade privada muito severa, que pretendia pôr o corpo ao serviço da mente. Por isso, quando sentiu na entrada da adolescência as primeiras sacudidelas do apertão sexual, opôs-lhe de imediato uma barreira de ferro, feita de disciplina e trabalho. Era incapaz de se entregar ao prazer desenfreado da masturbação por ver nele uma forma grosseira de manifestação, imprópria duma mente destinada à meditação interrogativa dos grandes enigmas da existência. E nisso foi excepcional como um santo, pois o comum do homem é submeter-se às exigências do instinto genital.

Por outro lado, repugnava-lhe baixar à caricatura da carne a relação do homem com a mulher, que ele via à luz dos grandes clarões de alma, numa ânsia de transcendência e infinito; toda a mulher era para ele uma Beatriz intangível, descarnada e angélica, uma virgem imaculada e intemporal, cuja missão era aproximar os homens de Deus, sublimando neles o instinto e a carne.

Pedro era um original, um desses casos raríssimos que vivem em exclusivo para o pensamento e para o espírito. Diante dum tal perfil, que se explica menos por si que pela procedência artística do pai, é impossível não mostrar entusiasmo pela sua figura. Eu disse lá para trás que Fernando me parecia na sucessão dos Braganças novecentistas, quer dizer, numa cadeia de seres onde se avantajam os doidos, os glutões, os tarados sexuais, os preguiçosos, os tiranos, uma nota digna de admiração. Digo agora que também este Pedro, apesar de infeliz e de excessivo na sua frieza mental, apesar de estrangeirado nas ideias, é uma figura excepcional, digna de admiração, que me assombra com a sua rectidão de alma e a sua aspiração de infinito. Se esta figura merecesse desdém, então a humanidade não existia: ou era uma intimidação vazia ou um enredo fraudulento.

Depois de Paris, partiram os dois irmãos para a península itálica, onde o voluntarioso e enérgico Cavour, servindo os Sabóias, começava já a inventar a unidade política italiana. Estiveram em Génova, Roma, Nápoles, Pompeia e Turim. Em Roma foram recebidos pelo papa Pio IX e visitaram os monumentos da cidade antiga. Tirando isso, Pedro preocupou-se em observar as galerias de pintura e escultura da Renascença, em perceber a administração da cidade, em estudar as suas indústrias e as suas ligações viárias. Luís, ao invés, tinha como emprego mais corrente subornar empregados de hotel e porteiros de teatro. Queria raparigas finas e disponíveis para as suas noitadas. Agora que experimentara quanto um corpo de mulher era sublime e inspirador, não tirava o sentido do assunto. E como era um príncipe, com os bolsos a abarrotar de reais de oiro, não precisava de bater píveas miseráveis e solitárias sentado nas loiças das latrinas ou, como um ladrão, escondido na cama debaixo dos lençóis. Comprava com toda a facilidade a carne que ansiava para tirar o sentido do desejo e desabafar nela a rajada de prazer que tirava de dentro.

E isto que sucedeu em Roma, aconteceu em Nápoles, em Génova ou em Turim. As raparigas italianas, de grandes olhos negros, cabelos ondulados e escuros, pele branca, lembrando o belo e polido mármore de Carrara, lábios polpudos, quentes e sensuais, acorriam embiocadas ao quarto de Luís, às vezes aos pares, para orgias demoradas e ruidosas, onde se fumavam muitas cigarrilhas, se esvaziavam muitas garrafas de licor, se devoravam ceias copiosas e se partiam copos de cristal e loiça de porcelana, num desvario perdulário e sexual.

Quando regressaram a Lisboa no mês de Agosto, estavam os dois irmãos de costas voltadas um ao outro. Pedro trazia com ele a febre das reformas, enquanto Luís trazia a febre das fodas. Nenhuma afinidade de sentido entre aqueles fonemas ferozes e afins. Pedro, leal de alma e grave de coração, vinha todo compenetrado nos seus deveres; Luís, embotado de espírito, chegava todo enlevado nas memórias das carnes que por lá trincara. O primeiro seria coroado rei dentro dum mês, no dia do seu décimo oitavo aniversário e por isso vivia atormentado pelas suas obrigações e ainda pelos seus antigos e escuros pressentimentos, a propósito dos primogénitos masculinos da casa de Bragança. O segundo seguiria mais tarde ou mais cedo para as casamatas da marinha portuguesa e estava por isso desejoso de se exibir junto dos camaradas com as histórias de bordel que tinha para contar e com os pares de ligas pretas e as odoríficas cuecas de rendas azuis e brancas que trouxera disfarçadas nas camisas da sua bagagem. Eram estes os troféus do seu tour pelas cidades europeias e que se destinavam sobretudo a servir de prova concludente às suas heróicas proezas de cama.

– Entre as francesas e as italianas venha o diabo e escolha. As francesas são perfumadas e delicadas, fazem a coisa a sorrir, de olhos revirados, língua pequenina nos lábios molhados, como quem está ali por um acaso cheio de malícia, mas as italianas não têm freio, berram e esperneiam como porcos no garrote – não se cansou ele de repetir às amizades que tinha na marinha portuguesa.

Veio de seguida a coroação de Pedro, a 15 de Setembro desse ano de 1855. Pôs-se termo à regência de Fernando, mas manteve-se o seu modo de reinar, que foi depois das teimosas tropelias de Maria II o verdadeiro alicerce da monarquia constitucional portuguesa no curto período da sua estabilidade, entre a regência de Fernando e o fim do reinado de Luís I, em 1889, ao todo cerca de trinta e cinco anos. O princípio era uma fórmula branda e inteligente, reinar sem governar, deixando aos políticas a liberdade da governação.

O homem forte, em ascensão, que parecia ter na Regeneração a moldura perfeita da sua política, era um jovem de pouco mais de trinta anos, protegido pelo velho Rodrigo da Fonseca, chamado Fontes Pereira de Melo. Não conhecera da guerra civil senão as sobras finais, já que seria pouco mais do que imberbe quando se assinara a convenção de Évora Monte. Pertencia pois a uma geração de todo alheia aos desvarios do miguelismo e às misérias da emigração, quase sem memória do pobre Desditoso e da Besta ladradora, que vira na retórica material de Costa Cabral uma oportunidade de superar as crónicas e desagradáveis diatribes herdadas da guerra, mas que dera com ela afogada sem perceber por quê na maré alta da Patuleia. Com Saldanha, percebeu que a oportunidade se mantinha intacta e que era a sua vez de avançar. No fundo, o que Fontes propunha era a política de Costa Cabral mas sem controntações facciosas e leis de excepção. A ideia do caminho de ferro e o negócio dos melhoramentos materiais encontraram em Fontes um teimoso advogado e sobretudo um eficiente e frio executor. Já antes do falecimento da rainha os trabalhos haviam começado e pouco depois, no traçado entre Sacavém e Vila Franca, tivera lugar em território português a primeira experiência com uma locomotiva. Esperava-se agora para muito breve a inauguração do primeiro troço de via férrea, entre Lisboa e o Carregado.

O reinado de Pedro V começou assim sem alterações políticas. Os Regeneradores de Rodrigo e de Fontes governavam desde 1851 e o último governo fora ainda empossado pela rainha, no princípio de Setembro de 1853. Durava há mais de dois anos, um acontecimento sem paralelo nos mais de vinte anos de vida do constitucionalismo português.

Pedro desconfiava porém de Fontes e chegava mesmo a desprezá-lo. Acostumara-se desde há anos a vê-lo no paço mas não o distinguia da fauna de videirinhos que a mãe tivera por hábito apontar a dedo, cheia de escárnio e desdém. Ao arrivismo, juntava Fontes um defeito para o rei sem perdão, era orgulhoso e cheio de si em tudo o que fazia. Dava-se a ouvir por todo o lado como o único homem que sabia o que Portugal precisava. Ora esta prosápia de solitário não lha podia Pedro suportar, porque, com tantos anos de honesto estudo em cima, duas longas viagens pela Europa, uma copiosa correspondência com Alberto de Inglaterra, uma volumosa resma de apontamentos e reflexões sobre os maus costumes Portugueses e sua solução, se sentia ele em condições de perorar melhor do que ninguém sobre tal assunto. Eram pois dois adversários destinados a desconfiarem um do outro para todo o sempre.

– É um convencido – acusava Pedro, quando se referia a Fontes na intimidade da família.

– É um obsessivo – queixava-se por seu lado o ministro, quando tinha de se pronunciar em privado sobre o rei.

Dois homens assim não podiam trabalhar muito tempo um com o outro. Depressa Pedro arranjou modo de o pôr a andar do governo. Socorreu-se para isso duma das noções basilares da Regeneração, alternar os políticos no poder consoante a sua sensibilidade moderada ou radical. Saldanha, que se movia há mais dum lustre na presidência do ministério, e satisfizera assim a sua desmedida filáucia, foi substituído em Junho de 1856 por Nuno Rolim de Moura Barreto, duque de Loulé, filho do valido querido de João VI e esposo da filha mais nova de Carlota Joaquina, Ana de Jesus, que saíra tão doida como a mãe e andava por isso fugida em Itália, onde tinha a liberdade e o anonimato que precisava e os amantes que queria. Com Loulé vieram os Setembristas como Loureiro e Sá da Bandeira, chamados agora Históricos, que estavam desde há uma década afastados do poder.

Quem era Pedro V em política partidária? Um Histórico radical, ao modo de Sá da Bandeira ou Manuel Passos? Um Regenerador, ao tipo de Rodrigo e Fontes? Seria tão Histórico como Regenerador; pertencia por isso por inteiro à Regeneração, que não se queria nem do Cartismo nem do Constitucionalismo, nem dos moderados nem dos radicais. Acreditava piamente no progresso linear das civilizações, punha a revolução mecânica como condição basilar do desenvolvimento das sociedades, admirava o parlamentarismo inglês e a alternância pacífica dos políticos no poder. Por isso defendia a rotação de todos os políticos pelas secretárias do governo. Sabia o que queria, lutava por uma aproximação cada vez maior do paço ao povo, trabalhava árduo pelos seus objectivos. Não se via há muito um rei com tanta dedicação à causa pública. Pouco tempo depois da sua coroação, Pedro mandou despachar duas caixas para a portaria do paço das Necessidades onde recebia os requerimentos que lhe quisessem deixar. Impreterível, na tarde de sábado o despacho estava dado.

Tinha uma cadência de trabalho exigentísima; levantava-se às sete da manhã, deitava-se entre as dez e as onze da noite. Trabalhava seis horas por dia no escritório, escrevendo relatórios, apreciando requerimentos ou estudando os projectos do governo; guardava duas horas da tarde para visitar hospitais e quartéis em Lisboa, duas horas do serão para estar com o pai e os irmãos e duas horas da noite para leitura. Era raro ir ao teatro ou à ópera e mais raro ainda organizar bailes e recepções. A corte mostrava-se austera, reflexiva, trabalhadora, quase monástica, absolutamente adversa a gastos supérfluos ou ostentatórios. Demais desprezava as prerrogativas da aristocracia portuguesa, não por vontade autocrática, mas porque detestava os rituais monárquicos. Estava desejoso de abolir o beija-mão real, que lhe parecia uma grosseria de nababos e uma boçalidade de gente nula, o que efectivamente fez pouco depois de começar a reinar.

Mas a par deste processo típico dum reformador optimista que desenvolvia uma actividade excessiva, Pedro não conseguia fugir aos seus negros presságios de infância. Coexistiam nele o racionalista disciplinado, que cria que a fortuna estava ao alcance da mão, bastando para isso ajustar a administração do tempo e acelerar o desenvolvimento da ciência, e o sonhador incoercível, que se emocionava para o bem e para o mal com as inesperadas e proteiformes imagens que lhe surgiam do mais fundo do espírito. Por isso, numa época de tanta euforia mecânica em Portugal, como aconteceu na segunda metade do ano de 1856, em que Loulé substituiu Fontes e se inaugurou a primeira via férrea portuguesa e o telégrafo entre Lisboa e Porto, verdadeiras portas de entrada no palácio do progresso feliz, ele pôde anotar no seu Diário algumas perturbantes frases, que nos impressionam pelo escuro conjecturar da sua alma. Por exemplo, a 16 de Dezembro, anotou o seguinte: Parece que fui escolhido para vítima dos erros acumulados no passado.

Contrariava porém este pessimismo inato com muito trabalho, muita disciplina nos horários, muita intransigência consigo próprio e algum heroísmo moral. No ano de 1857, rebentou no fim do Verão em Lisboa uma epidemia de febre amarela. A aristocracia da corte, a burguesia endinheirada que vivia em Santos e no Príncipe Real e até mesmo a burguesia dos comércios a retalho que vivia nos apartamentos da parte baixa da cidade trataram de trocar Lisboa pelas aldeias saloias, procurando água mais cristalina e ar menos pestilento. Ele porém ficou, para estupefacção de todos. E para mais surpreender, passou a dedicar os seus dias aos doentes, com demoradas visitas aos hospitais e longos circunlóquios com médicos e enfermeiras que se responsabilizavam pela luta contra o flagelo.

– É um santo ­– dizia o povo de boca aberta, quando o via passar no seu cavalo, solitário, lábios húmidos, olhos tristes e docemente melancólicos, cabelo loiro de menino de coro, a caminho dos hospitais e dos casebres onde os pobres se desfaziam em diarreia.

Era. Era um santo, um santo laico, que vencera na primeira adolescência o despotismo do instinto sexual. E por via disso vivia uma solidão monástica, que para muitos era sinal de aversão profunda pelo sexo feminino.

– Corre que é tão solitário e tão acanhado que se excusa a falar com senhoras – comentava-se, quando se avançava em público com a solidão do rei.

Pedro V, que na seriedade e tristeza fundas se assemelhara na infância e na adolescência ao primeiro produto da ínclita geração de Avis, o autor do Leal Conselheiro, associava-se agora na sua solidão e misogenia de jovem adulto ao desejado, que se consumira de castidade no braseiro rubro de Alcácer Quibir. Eram conhecidas as suas recriminações à lascívia indecorosa de Luís, as suas desavenças com o pai por causa dos serões galantes que este insistia em dar na sua ala das Necessidades, as suas acutilantes críticas aos leões da pomada e do pente do Rossio e do Passeio Público, e sobretudo, mais preocupante, menos desculpável, a sua recusa em procurar casamento. A história do último rei de Avis parecia querer repetir-se neste seu parente longínquo.

Mas nas andanças pelos hospitais, diante da morbidez da doença, com a alma tocada pela agonia da morte e a aspiração ao alívio, mais que não fosse o do céu, este original aceitou por fim dentro de si o casamento, mas concebendo-o como um caso estrito de moral. Visto deste ponto de vista o casamento era-lhe aceitável, porque humanizava num amor de consciência moral aquilo que era tão-só na base um instinto animal. Queria ao seu lado um anjo, uma virgem imaculada, um ser alípede, consagrado a consolar os desgraçados e a prestar socorro aos pobres e mortais humanos. Nesse plano aceitava e desejava até a sua ligação privada a outro ser; um casamento assim era como multiplicar por dois aquilo que ele sentia ser dentro de si o verdadeiro apelo da sua vida. Queria pois uma companheira, uma irmã, uma alma heróica e abnegada, que alargaria ou ajudaria a disciplinar o seu desejo de perfeição e de felicidade, nunca um corpo lúbrico, luxuoso, sensitivo, à procura de prazer, comodidade e sexo.

– Há-de ser a minha fortaleza, a minha torre, o meu ideal – dizia o rei, referindo-se àquele sonho que o esperava algures, num bondoso e azul castelo de fantasia.

Foi o primo Alberto que lhe desencantou no norte da Alemanha uma princesinha assim quimérica e ideal, vestida de névoa e bordada de espuma,  tão leve e tão irreal como uma nuvem do céu. Era Estefânia de Hohenzollern Sigmaringen, uma princesa prussiana, educada nas facilidades do catolicismo, mas oriunda duma família que se formara nas asperezas e nos rigores morais do puritanismo luterano e calvinista. O contrato matrimonial foi assinado em Berlim a 8 de Dezembro desse ano e o casamento por procuração teve lugar nos finais de Abril de 1858, tendo Estefânia chegado a Lisboa a 17 de Maio, depois da visita de obrigação aos parentes Ingleses do noivo, Alberto e Vitória. No dia seguinte, foi o casamento na igreja de São Domingos de Lisboa e logo depois a lua-de-mel em Sintra, no palácio da Pena, para onde Pedro foi receoso duma disputa de carne.

Mas não, Estefânia era mesmo a princesinha ideal, toda branca, toda aflita, toda pura, ansiosa de espírito e oração No meio da luxuriante vegetação dos jardins, no claustrinho do antigo convento, diante do retábulo de mármore da capela, juntava as mãos, fechava os olhos e soletrava as rezas que o esposo lhe ensinava. Não pensava noutra coisa senão na oração; orava para agradecer um raio de sol, orava para pedir por um pobre que avistava em farrapos, orava para que uma flor conservasse  aroma e cor.

Aquela menina era uma mística, uma pietista toda enlevada no amor divino e toda entregue ao ascetismo purificador das coisas terrenas. Vestia-se como um freira, raramente mostrava os cabelos, incomodava-se com jóias, diademas, colares, pulseiras, brincos, anéis. Gostava de roupas escuras e largas, detestava perfumes, menos por sensibilidade, que era requintada e etérea, que por severidade moral e penitência rigorista. Tinha uns olhos claros, límpidos e luminosos, um rosto largo e cheio de inocência, uns lábios caprichosos e finos. Quando percebeu que o esposo não pensava incomodá-la durante a noite, senão para lhe beijar sempre respeitosamente a mão antes de se retirar para o seu quarto, suspirou de alívio e sentiu-se ligada a ele por um elo forte de admiração. Era o seu príncipe, o seu rei, o seu companheiro; abalava-lhe o ser de comoção, mas uma comoção de alma, onde nenhuma vibração do corpo se intrometia.

E começou assim entre aqueles dois seres originais que viviam numa atmosfera imaterial de éter e algodão uma relação de pleno entendimento. Pedro dava seguimento às suas reflexões sobre a instrução pública e levava por diante os antigos projectos de reforma do exército e da indústria. Continuava a trabalhar com exigência, não se poupando a uma disciplina de ferro e a um ambiente ainda mais ríspido e monástico do que aquele que conhecera antes do matrimónio. Não esquecia todas as tardes as visitas aos hospitais e aos bairros degradados da capital, em que punha sempre uma especial atenção e a que dedicava cada vez mais tempo. Estefânia, por seu lado, dava-se em permanência a obras de caridade, acompanhando o rei nas suas visitas aos doentes e aos necessitados.

– São dois anjos – dizia o povo, apaixonado e ardente, quando os via passar, um ao lado do outro, austeros e sombrios, metidos em desgraciosas capas.

Eram severos como dois religiosos e puros como duas crianças. Tinham ambos vinte e um anos, os mesmos olhos de dor e sonho, a mesma alma vibrátil e ansiosa de céu e luz.

Pedro viveu nesses meses uma felicidade impensável em ser tão grave e sábio, alma povoada de irracionais temores ancestrais e pensamento imediato votado à sensível observação do infortúnio dos seus semelhantes. Via a seu lado a castelã, a rainha, a fada dos aflitos com que sempre sonhara, mesmo quando não tinha consciência do seu desejo. Olhando-a por vezes ao serão, ajoelhada no oratório, embrulhada em crepes negras, mãos postas, olhos fechados, lábios entreabertos, com a inocência alva do rosto banhada pela luz doirada duma vela, o rei pensava na mãe. Recordava-a a bordar, a comer doces, a falar alto e grosso dos sobressaltos políticos que corroeram o seu reinado, desde o golpe de Belém até ao levantamento Patuleia. Agora, à distância dum lustre, parecia-lhe tudo aquilo grotesco, subalterno, infeliz. A sua fada, piedosa e magoada, vivendo para os pobres e para os enfermos, orando e distribuindo as esmolas generosas que sempre trazia por dentro da capa, era o seu modelo. Sentia-se feliz a seu lado, porque em vez duma sensual excessiva, com um corpo febricitante, guloso de prazeres e comodidades, tinha consigo uma santa, capaz de viver em exclusivo para a novidade das sensações morais.

– Sou o mais afortunado dos homens, pois subordinei a parte material da relação entre homem e mulher ao princípio cristão da companhia – respondeu ele ao pai, um dia que este lhe perguntou se era feliz no casamento.

Estefânia partilhava deste mesmo estado de ventura. Era uma menina educada em princípios religiosos muito estreitos, com uma alma mística de benfeitora. Caso tivesse sido forçada a consumar o casamento na cama, teria ficado decerto a mais infeliz e horrorizada das esposas. A sua beleza, pervertida por um desvio que desconhecia, acabaria por murchar num desalento absurdo de deserto, que pouco a pouco reverteria a um desespero fatal e sem saída. Nas mãos dum homem que gostasse de chicha e vivesse para os sentidos, Estefânia, flor delicada e imponderável, teria fanado sem remédio. Não podia nunca ter vivido uma paixão carnal, pois a sua alma estava possuída pelo horror do mundo e pelo desgosto dos homens. Assim, nas mãos dum jardineiro tão tímido e sonhador como Pedro, as suas pétalas abriram sem medo e brilharam radiantes e felizes, no que um ser assim fadado para carregar a tristeza dos outros podia ter de cintilante e de afortunado. Encontrou nos corredores sombrios das Necessidades, junto do austero e rigoroso trabalho do esposo, o ajustado meio natural para estancar o sangue das suas feridas e desabrochar as virtudes que a sua alma tinha. Apenas uma amizade conjugal como aquela que Pedro lhe destinou lhe podia ter servido de estímulo e de felicidade.

Foi por isso uma das mais nobres e elevadas rainhas de Portugal e talvez ainda uma das mais felizes, se por ventura entendermos a fidelidade ao que somos e não ao que devemos. Demais foi um dos espíritos mais transcendentes que passaram por este recanto do universo. Não legou filhos, mas deixou acções e exemplos indeléveis. E diante dum ser assim puro e ideal temos a obrigação moral de nos sentirmos seus descendentes, merecendo ser seus continuadores.

Mas um ser assim etéreo e sublime não podia estar destinado a durar muito nesta dura Terra dos Guizot, dos Cabrais e dos Fontes. No Verão de 1859 a via férrea aproximava-se de Vendas Novas e a rainha foi ao Alentejo inteirar-se dos trabalhos, visitar as famílias dos trabalhadores, inaugurar um troço da via. O ar escaldava e sentiam-se no ar as revoluteantes e inquietas labaredas do Sol. O ferro das vias chispava em ásperas faíscas luminosas e a madeira das chulipas parecia suada e amolecida debaixo da impiedade daquele clima. A rainha, pouco habituada a tão elevadas temperaturas, sentiu-se mal, esvaída e sem forças, com uma lassa fadiga por todo o corpo, dores agudas na garganta e mal estar na cabeça. Regressou de imediato às Necessidades, onde os médicos lhe diagnosticaram uma angina diftérica. Vinte e quatro anos depois repetia-se o caso de Augusto de Leuchtenberg, que um dia regressara ao seu quarto das Necessidades com dores na garganta e dois ou três dias depois morrera sem dar acordo de si. Estafânia morria por sua vez sete ou oito dias depois, a 17 de Julho, perante o espanto e a consternação de todos.

– O anjo regressou ao céu ­– disse nas ruas o povo, quando a notícia correu e os sinos se puseram a badalar lugubremente em todas as colinas da cidade.

Pedro viveu o transe num aperto de sofrimento e revolta, que lhe queimou o cérebro. Nunca nenhum dos seus negros pressentimentos de infância ou adolescência fora tão dramático ou tão sinistro, tão violento ou tão cruel, como aquilo que a vida lhe guardara para aqueles dias finais de Estefânia. Incapaz de dormir, incapaz de se afastar da esposa, passou todas essas horas a seu lado, desperto, vigilante, segurando-lhe a mão, ouvindo-lhe na respiração aflita os monossílabos do sofrimento e sentindo-lhe a vida a fugir do corpo instante a instante. Descreu de tudo diante duma tal injustiça, mas depois, quando a viu deitada no caixão, vestida de branco, guarnecida a rendas de prata, com uma grinalda de flores brancas na cabeça e calçada com sapatos de cetim branco, resignou-se. Contemplando a serenidade que os seus lábios murchos mostravam, a distensão suave dos seus músculos faciais, a paz dos seus olhos, percebeu e aceitou aquele escuro e trágico plano do destino.

– A sua natureza era demasiado perfeita para o mundo em que vivemos e por isso fez bem em partir – acabou por exclamar, quando fecharam o caixão e o chamaram para o coche que o levaria ao panteão da família.

Cultivou logo a memória da infeliz Estefânia como se duma santa se tratasse. Inventou-lhe culto e orações privadas; guardou-lhe os objectos pessoais como se relíquias fossem; guardou-lhe os aposentos intactos. Passou a viver para a sua recordação, como se ela estivesse viva dentro dele. O rei depois do desditoso acidente da morte da esposa fez-se ainda mais solitário e reservado, afastando do seu convívio privado todos os seres que ainda por lá andavam. Vivia para um espectro e tornou-se ele próprio irreconhecível à vida. Que drama o desse reizinho, que perdeu a esposa alguns meses depois de casar, aos vinte e um anos.

E Lipipi que fazia por este tempo? Tivera uma rápida ascensão na marinha portuguesa e atingira havia pouco o posto de comandante das corvetas Bartolomeu Dias e Sagres. Na Primavera fora a Inglaterra buscar o príncipe Jorge da Saxónia que vinha casar a Lisboa com a sua irmã Maria Ana e conduzira depois o casal aos Países Baixos. Antes andara por Gibraltar, pela Madeira e pelos Açores; tinha ainda no calendário uma viagem próxima na costa portuguesa, que coincidia com o período de luto do rei. Em todas as viagens fazia uma vida solta, com muitos cigarros, muita jogatana, muitos copos e sobretudo muitas mulheres gozadas, que ele comprava pelo velho processo que antes aprendera e que tanto sucesso tivera em Paris e depois nas velhas cidades italianas. Estava viril e sensual, bronzeado pelas sestas passadas no tombadilho do barco ou nas reais barracas de praia. Decidira não esconder a sua vocação de incansável cobridor, e sempre que ia para o Alfeite ou para as propriedades da família no Alentejo recorria aos processos de sempre para meter na cama mulheres aos pares, tara que lhe vinha com certeza do avô brasileiro.

Nas aldeias e nas herdades de Vila Viçosa, onde os Braganções valiam mais que os deuses do Olimpo e dispunham tanto como os santos do altar, as raparigas, sabendo do apetite cego de Luís por carne tenra de fémea, vinham pela sombra oferecer-se ao paço num corrupio imparável. Há muito que não se via por aqueles lados um Bragança assim glutão; o último, se a memória não tremia, fora o avô da rainha doida, e mesmo esse mais moderado e discreto que o dos dias de hoje. Estavam por isso desejosas de se lhe meter na cama; sonhavam todas as noites abrir-lhe as pernas e beber-lhe gulosas os mimos loiros. Para elas, pobres e coradas camponesas que roíam códea dura de pão e dormiam na palha suja dos currais, era como dar beijos, muitos beijos aflitos e repenicados, num menino Jesus sem pecado, gorducho e rosadinho.

Ele, Luís, afiava o talher, polia o dente, lambia os beiços, sorria encantado, sonhando com o manjar campónio. Era gaspacho cru, azedo e bárbaro, sem conduto, mas feito com água pura e virgem da fonte.

– Nem Paris, meu Deus. Nem Paris se chega a isto. Não há nada como o Alentejo. Que terra fantástica – dizia ele, convicto e brincalhão, para os criados do palácio que lhe traziam às escondidas as raparigas.

Elas, as boçais moças do campo, não pediam nada em troca, senão uma merenda na cozinha do palácio, um barrela na banheira de zinco para tirar o bodum, uma moeda gorda de oiro e a possibilidade de se meterem nos lençóis lavados do príncipe. Na pior das suposições nunca mais o veriam; na melhor, nove meses depois, dariam à luz um pombinho loiro e de olho azul, que sempre viria a merecer todos os Natais uma lembrança benevolente do paço.

No fim do Verão Lipipi partiu para mais uma viagem por mar, desta vez em direcção ao norte de África. Pedro ficou de roda das suas tristes recordações e dos seus papéis, enrolando nostalgicamente as pontas do seu pequeno bigode com os dedos de menino e encostando-se ao trabalho como a âncora de segurança. O governo mudara havia pouco e os Regeneradores haviam regressado de novo, num ministério presidido pelo velho Vila Flor. Terceira, o marechal, voltava assim à presidência do governo, depois da aventura dos Cabrais. Fontes estava agora de mãos livres; era ele a alma do ministério e a mão do partido, pois a velha comadre da política portuguesa, Rodrigo da Fonseca, acabara de deixar este mundo. Chamavam-lhe a raposa, pela astúcia que punha nos golpes, pela surpresa com que aparecia onde não era esperado, pela violência com que ganhava eleições. Aldeias havia que, no acto eleitoral, depois do seu partido por lá passar, ficavam mais estafadas que galinheiros dizimados.

O ministério de Loulé desgastara-se por duas razões. Primeiro, a humilhação que a França infligira a Portugal em 1858. Sá da Bandeira proibira o comércio de escravos em África e pretendia ser para esses territórios o que Alexandre de Gusmão fora no século anterior para o Brasil. Iniciavam-se sob as suas ordens as primeiras grandes viagens de exploração no interior, os primeiros trabalhos de levantamento cartográfico, com vistas à planificação futura das fronteiras da nova África portuguesa, o incentivo ao povoamento e à exploração dos recursos agrícolas e minerais. Ora, depois de proibido o comércio de carne humana, um navio negreiro francês fora apresado em Moçambique. O governo francês não só exigiu a devolução do navio como uma pesada reparação financeira. Tudo isto sem que o Palmerston inglês se lembrasse do seu ruído anterior, que levara à queda do Sá Maneta em 1839. Em Dezembro, Portugal não teve outro remédio senão ceder. O segundo caso que contribuíra para o descrédito dos Históricos de Loulé fora a vinda para Portugal, no quadro das epidemias de febre amarela que assolaram Lisboa, de freiras estrangeiras. A chegada destas religiosas teve como resposta uma inesperada movimentação de protesto anti-clerical, com apedrejamentos em Lisboa de igrejas e residências religiosas.

O marechal morreu porém poucos meses depois e Loulé regressou de novo ao poder com os Históricos. Com ele voltou a política de atenção à África austral e o velho plano de refazer em África o que se havia perdido no Brasil. Também o rei se interessou pelo caso. Punha todas as suas esperanças na instrução pública, sobre a qual escrevera um extenso e rico relatório no início do seu reinado, financiando depois do seu bolso várias escolas e projectando, já a esposa desaparecera, a abertura do Curso Superior de Letras em Lisboa, mas não descartava o velho projecto africano de Sá da Bandeira. Estrangeirara-se por inteiro no contacto com a Inglaterra de Alberto e de Vitória, mas estudara a vocação atlântica dos portugueses e não podia desatender um projecto que procurava estribar-se nessa vocação. Era céptico, mas prometia a si mesmo ocupar-se do assunto com atenção e competência.

Nesse sentido, o rei estava interessado em ter um relatório actualizado das várias feitorias e territórios que os Portugueses ocupavam na costa ocidental africana, para que se pudesse fazer uma ideia exacta das suas possibilidades futuras. Demais, Silva Porto, um funante português, destemido e culto, acabara de fazer em 1854 com os seus pombeiros a primeira ligação entre Angola e Moçambique, atravessando o planalto do Alto Zambeze e abrindo assim o sonho de criar um bloco africano português que se estendesse do Atlântico ao Índico. Era essa a actual ideia fixa do ministério de Loulé.

Pensou o rei nos comandantes da marinha portuguesa que pudessem desempenhar a missão que projectava. Naturalmente o pensamento foi recair no irmão Luís. Mas resistiu.

– É um comilão e um fumador – exclamou de si para si. – As actividades digestivas adormecem-lhe as faculdades mentais. Não conto com ele.

E não lhe conhecia ele, o bom Pedro, pelo menos em toda a extensão, o labor lascivo. Tinha dias de exaustão tão grande, que se deitava como um Buda ao Sol e não mais se levantava, sem que o pensamento lhe bulisse no mais pequeno raciocínio. Era a névoa total, a lassidão nolente, o sono doce, onde de vez em vez passava apenas, qual vibração de vela branca, uma saborosa e vaga recordação das eróticas proezas da noite anterior. Fora o que sucedera por exemplo em Tânger, na viagem que fizera depois da morte da cunhada, durante o primeiro luto do irmão mais velho, onde o infante passara os dias a ressonar nas açoteias brancas da kasbah, depois de folgar a noite inteira a bordo com as prostitutas árabes que alugava.

Fernando, quando teve notícia da viagem, interferiu por Luís junto do rei. Não se podia ferir Lipipi numa missão daquela importância, dizia ele. O rei não tinha porém sentido do clã familiar, pois valorizava as relações que se estabeleciam pelo mérito, não pelo parentesco. Quando lhe falavam na família proscrita que vivia em Viena, ele encolhia os ombros e desculpava-se com qualquer coisa do género.

– Interesso-me mais pelos pobres que vão ao hospital de São José que por esses parentes que não conheço nem desejo conhecer.

Mesmo a morte recente de Ana de Jesus, sua tia-avó, em Roma, no ano de 1857, não lhe merecera qualquer palavra sentida ou oficial. As suas atitudes percebiam-se à luz duma moralidade severa, que detestava atitudes teatrais e lúbricas como as da tia, e duma política de progresso e ilustração, que punha de lado qualquer cedência ao legitimismo autoritário. Ainda assim, no caso da viagem à África portuguesa, acabou por transigir com o pedido do pai.

E no primeiro dia de Agosto de 1860 Luís, o príncipe, partiu para Angola, ao comando da corveta Bartolomeu Dias para longa viagem de recolha de informações. Pedro ficou nas varandas das Necessidades, sempre nostálgico, sempre saudoso da sua Estefânia, enrolando as pontas do seu bigode nos  dedos pensativos e afadigando-se de trabalho para não pensar nas mágoas da vida. Estas pesavam-lhe agora muito mais do que todos os pressentimentos do passado, que se lhe desenhavam, no meio das reais e imprevisíveis infelicidades da sua vida, distracção de ocioso. Tinha vinte e dois anos, era um rapazinho de bigode fino, acabado de despontar, mas sobre os ombros carregava duríssimos infortúnios de homem de meia idade ou mesmo de velho. Perdera a mãe a meio da adolescência e pouco tempo depois a esposa adorada, com quem estivera casado apenas quatorze meses. Agora, o espectro não lhe saía do pensamento. Vivia toda a sua vida interior em função dela. Eram duas almas que dialogavam uma com a outra como se fossem duas bocas que falassem. Olhava à noite, numa folga, por uma janela entreaberta do paço, o cacho de estrelas e o pensamento fugia-lhe de imediato para a esposa perdida. Lá estava ela decerto a brilhar numa estrela do longínquo céu. Que drama a sua figura de viúvo aos vinte e dois anos, olhando o céu, à procura da esposa perdida! É um dos maiores e talvez o mais enternecedor drama desta família tão repleta deles.

Interessou-se nesta época pelo estudo da astronomia. A esposa fugida para o céu mereceu-lhe mais essa atenção. Sentia uma afinidade forte entre a natureza gasosa das estrelas e a natureza moral da esposa. Eram ambas incorruptíveis. E desse estado de alma resultou pouco depois, em Janeiro de 1861, já o irmão regressara da sua longa viagem a África, a inauguração do observatório astronómico da Tapada da Ajuda. No rei qualquer empenho, mesmo de alma, acabava a ter uma tradução social. Ele era incapaz de se desprender da sua formação de ilustrado, em primeiro lugar pelas responsabilidades que sentia como rei. Por outro lado essa preocupação era um modo de compensar o seu terror existencial e de se pensar sob a forma dum optimista. O evolucionismo de Darwin acabara de aparecer e motivara nele alguma desconfiança defensiva, talvez menos pela hipótese que aí se formulava que pelas caricaturas, mas dera-lhe também a certeza de que os seres e as sociedades se aperfeiçoavam no processo da sua adaptação ao meio, indo num ponto distante do futuro encontrar a plenitude que por ora, concientemente ou não, procuravam.

Por isso, o seu cuidado com o trabalho redobrou nessa altura. Era porventura a única actividade que aos seus olhos se justificava; tudo o resto, lhe parecia nesta vida cada vez mais inútil e desprezível. Os seus horários fizeram-se ainda mais rígidos e a sua aplicação mais concentrada. Foi uma época muito produtiva da sua vida, mas também a derradeira. Estudou os relatórios que o irmão lhe trouxera de África, com informações sobre as ilhas africanas do Atlântico e sobre Luanda, que era quase, em termos administrativos, a reduzida expressão da Angola daquele tempo. Lamentou a pouca aplicação do irmão, mas ainda assim aproveitou as suas linhas para se sentar à mesa com Sá da Bandeira, ministro da guerra de Loulé e veterano daqueles lides em volta da África. Abriu o Curso Superior de Letras em Lisboa e passou ele próprio a frequentar as aulas dos mestres. Sentava-se, tirava da pasta o caderno e o lápis e ali ficava uma ou duas horas absorto, rabiscando notas e ouvindo as lições, enquanto os vapores lá em baixo, no rio, apitavam friamente. Inaugurou a via férrea do Barreiro a Vendas Novas e do Pinhal Novo a Setúbal, que revolucionava por inteiro as relações do interior do Alentejo com o litoral, e esteve presente no Verão desse ano na abertura da primeira exposição industrial do país, que teve lugar no Porto, tendo o cuidado de ir à cadeia da Relação visitar Camilo Castelo Branco que por lá apodrecia devido à sua ligação com Ana Plácido. Que momento esse, em que o jovem rei, com a alma de luto pela partida de Estefânia, encontrou e abraçou o escritor que, de alma em sangue, punha na prisão o ponto final no Amor de Perdição. Esse abraço chegaria para dar luz às estrelas, quanto mais para salvar o rei, caso este quisesse ser salvo. Não seria, porque Pedro V morreu virgem e quase de seguida. Não chegou a durar depois disso mais de dois meses e meio.

Tirando o trabalho, o rei era um ser cada vez mais atormentado pelo peso duma vida solitária e triste. Perdera a mãe, fugira ao pai, escapara aos irmãos. Vivia abstractamente para o país e para o futuro deste, sem qualquer outra motivação imediata. Acrescentava a isto, um descrédito nada perfunctório no Portugal histórico, que ele não entendia e desvalorizava, aceitando apenas a redenção do país pela imitação do modelo inglês industrial. Continuava a pressentir tragédias, quer no seu futuro pessoal, quer na vida do país. Era um trágico, mascarado de partidário do óptimo. Mas a tais farsas habituara-se ele com o seu fundo estóico a resistir, não lhes prestando sequer atenção. O pior é que além dessa vida em abstracto, a sua alma só conhecia uma preocupação concreta: Estefânia. Nos momentos de solidão, na cama, à mesa, nos intervalos do trabalho, quando se deslocava nas sombras dos corredores do grande palácio, no banho ou mesmo nos pequenos passeios que dava por distracção na tapada, a única coisa que o acompanhava era o espectro de Estefânia. Revisitava na memória todos os instantâneos que dela tinha. Revia as suas relíquias; reeditava as suas orações; revisitava os seus aposentos, que continuavam intactos, como ela os deixara no dia da partida para Vendas Novas. Via-a no momento da sua chegada a Lisboa, tímida e expectante; recordava-a meiga e sonhadora nos jardins da Pena nas manhãs solitárias da sua lua-de-mel; revivia-a simples e magnânima nas tardes de Lisboa, embrulhada na sua capa escura, distribuindo esmolas nas prisões e nos hospitais ou subindo para o seu cavalo na tapada de Alcântara. Por fim surgia-lhe aquela Ofélia toda branca, boiando num caixão forrado a cetim creme, como uma lua silenciosa e serena, que tanto lhe inspirava um pavor espectral como uma atracção positiva. Ele, preso à sua obsessão, porfiava consigo, abrindo muito os olhos e gesticulando. Falava só, mexendo os braços no ar, como se estivesse a enlouquecer ou precisasse de limpar o ar com as mãos.

– Foi melhor assim. Aquele anjo não pertencia a este mundo – repetia vezes sem conta nesses intervalos de teimosia e cegueira.

O destino, no seu caso mais generoso do que tirano, poupou-lhe a dor cruciante de continuar às voltas com aquele fantasma e de envelhecer com aquela sombra a azedar no espírito. Um dia, no princípio do Outono desse ano, foi com dois irmãos, Fernando e Augusto, até Vila Viçosa. Luís partira há pouco em mais uma viagem por mar, desta vez para acompanhar à Alemanha a irmã Antónia que acabara de casar em Lisboa com um irmão de Estefânia, o príncipe Leopoldo de Hohenzollern Sigmaringen. Era um marinheiro de águas brandas, sempre disponível para estes serviços doces, que lhe traziam horas de pagode e convívio. Em Vila Viçosa rei e irmãos foram caçar para o montado; o primeiro por desenfado, os dois outros para esquecerem a partida da irmã querida, quase da mesma idade. Chovera e havia charcos com miasmas pútridos, dissolventes, volatizando-se no ar. Viam-se nos raios crus do Sol, que penetravam os espaços livres do montado, as emanações corruptas, esverdinhadas, subirem no ar. Dois dias depois, Fernando, o mais novo dos três irmãos, apareceu doente, febricitante, com vagas dores no ventre e princípio de diarreia. Logo depois, no dia seguinte, quer Augusto, quer o rei apresentavam os mesmos sintomas. Os médicos que então os viram aconselharam-nos a regressar a Lisboa. Na viagem os sintomas agravaram-se; as dores tornaram-se aflitivas e a diarreia violenta. Chegaram a Lisboa muito doentes, sobretudo Fernando, que fora o primeiro a contrair a doença. Os facultativos do paço depois de os observarem foram peremptórios.

– Febre tifóide!

Fernando foi o primeiro a falecer a 6 de Novembro. Era um pobre diabo de quinze anos, amarelo, frágil, incapaz de saúde ou de maldade. Quando se olha a sua fotografia percebe-se que escapou por um triz à morte no momento do nascimento. A morte andava-lhe desde sempre no encalço e cada vez mais ansiosa de o apanhar na primeira volta.

O rei agonizava no leito, incrédulo do que estava a suceder. Pressentira outrora tragédias neste estranho fim de terra, debruçado sobre a esmeralda límpida do oceano, onde tanto parecia gritar de dor um outro Adamastor como de esperança um outro Prometeu, mas nunca fora capaz de imaginar o plano tétrico que a vida guardara para ele. A morte do irmão pareceu-lhe excessiva. Primeiro a mãe, depois Estefânia, agora Fernando. Se tinha irmão que merecesse viver era este pobre Fernando. Abateu e percebeu que também ele ia morrer. Será presságio, perguntou-se? Sentia-se agonizar, incapaz de se levantar dos almofadões onde se recostava; só não sabia se agonizava por dentro, na febril actividade da sua cabeça, como em tantas outras ocasiões acontecera, se por fora, com o corpo corroído, a despedir-se para sempre deste mundo.

Assim como assim, pediu para chamar o pai. Há muito que andava de costas voltada para ele, pois há muito que o trocara sem apelação pelo primo-irmão, Alberto. O pai veio, choroso e inconsolável, pedir-lhe que vivesse. Nesse instante, sem perceber porquê, o rei soube que estava condenado e que a morte era uma estrada aberta e limpa, que lhe merecia menos uma negaça que um sorriso de complacência. Um anjo de luz estava à espera dele para lhe dar a mão e o guiar no outro mundo. Quando fechasse os olhos, não ficaria com certeza só.

– Estefânia aguarda-me. Não a quero fazer esperar. E que saudades eu tenho.

Fernando entendeu naquelas palavras o delírio dum agonizante. Tomou nas mãos a mão direita do filho e beijou-a com os lábios molhados de lágrimas. Mas Pedro já não dava acordo de si; vivia todo na ilusão do seu espírito ou na verdade do seu desejo.

Morreu poucas horas depois, a 11 de Novembro de 1861. Não disse mais, de lábios selados e rosto mudo. Só os olhos se mantinham muito abertos, vivos e comovidos, como se vislumbrasse já o que o esperava depois da morte. Perdera a noção de trabalho activo que fora a sua âncora durante muito anos e entregara-se por inteiro nos últimos momentos ao delírio do pensamento. Deu-se à morte, sem medos, com um sorriso a desenhar-se nos lábios exangues. E assim o depositaram no féretro, enquanto na cidade os sinos tocavam a finados e o povo se reunia incrédulo, desconfiado e dorido para mais uma despedida na igreja de S. Vicente, onde os Braganções tinham o seu panteão. Era de novo um monarca português, um Bragança, que partia e desta vez, se não era um herói que se despedia, era um santo, o que valia tanto ou mais que o herói.

– Este que agora morre não precisou da morte para doar o coração; partiu-o em mil pedaços em vida e com cada pedaço nos alimentou – disse alguém em Lisboa, quando se soube do falecimento do soberano.

Era verdade. Este Pedro V é um dos mais interessantes reis de Portugal. Reinou apenas cinco anos, mas também Duarte, o autor do Leal Conselheiro, no reinado do qual se dobrou o Bojador e se escreveram as crónicas de Fernão Lopes, que chegam para fazer grande um povo, reinou os mesmos cinco anos. Morreu aos vinte e quatro anos, mas também Sebastião, que impediu os otomanos de chegarem ao Atlântico e deu origem ao mais rico filão da nossa História, aquele que provou que Portugal era capaz de sobreviver à sua própria decadência, morreu com os mesmos vinte e quatro anos. Há quem fale das vias férreas, dos vapores, da linha do telégrafo, do observatório da tapada da Ajuda, do Curso Superior de Letras, das inúmeras escolas que ele financiou do seu bolso, das talentosas reflexões que escreveu sobre o país, para o comparar aos melhores reis da nossa História. Para mim, que não me deixo ofuscar por milagres técnicos, bastava-me que ele tivesse abolido o beija-mão real e citado Proudhon para o ver como um dos casos prodigiosos da nossa História. Não preciso de mais. E se precisasse, era o seu singular amor por Estefânia, o seu corajoso exemplo nos dias da febre amarela, que eu iria buscar e não a telegrafia, as locomotivas e menos ainda o seu sentido de estrangeiramento cultural. Um povo pode viver mergulhado numa tecnologia rudimentar, arcaica e rural, quase pré-histórica, nada cosmopolita, como Gandhi viveu na Índia, e ainda assim ter uma fêvera moral e humana superior a qualquer outra nação que viva na ponta do desenvolvimento tecnológico. O chamado choque tecnológico é uma treta retórica de políticos ocos e espalhafatosos.

Por isso, e decerto por mais, cem mil pessoas desfilaram no seu funeral a pé pela cidade, vestidas de negro, de lenço na mão e lágrimas nos olhos. Soluçavam e seguiam lentamente a pé o ataúde negro do rei. Estavam lá as corporações dos ofícios, os alunos do Curso Superior de Letras, os empregados da Alfândega. Ninguém ficou em casa; todos sem excepção desceram dos seus quartos e compareceram no cortejo fúnebre. Até o sisudo Alexandre Herculano lá se via, pintado de negro, a chorar como uma criança. Mais uma vez a morte, a morte, essa escura loba, chegava para redimir os erros e limpar a memória duma família. Os Braganças subsistiam através da morte precoce dos seus monarcas e ganhavam com ela uma margem de lucro que lhes permitia na aparência sobreviver a todas as crises e depauperamentos.

E Luís, o herdeiro presuntivo do trono, por onde andava? Lipipi, o suave Lipipi, a nédia e rubicunda pérola de sua mãe, andava por onde sempre se mantinha, desde que fora por duas vezes com o irmão além Pirinéus. Viajava, folgava com prostitutas, visitava parentes, deliciava-se com lautas ceias nos hotéis mais caros do mundo. Não tinha o feitio austero do irmão, pertencia a uma das mais ricas famílias da Europa e não estava por isso para poupar despesas. O Alentejo, o autêntico, com as migas de espargos, a carne do alguidar e as zagalinhas de pelico, surrão e cheiro a borrego, servia-lhe para desopilar dos pratos requintados e algo cínicos das grandes capitais; por sua vez, a Lisboa natal, com o Alfeite ali defronte de Belém, era o lugar ideal para aliviar a língua com os cadetes e as altas patentes da marinha portuguesa.

– Não há como o Alentejo para desenjoar das falsidades de Paris e como Lisboa para desenferrujar a língua de tanta algazarra estranha – costumava ele dizer.

Era assim, descontraído, folgazão e benevolente, que contava passar os anos, vivendo uma vida fácil, saborosa, cheia de aventuras fesceninas, sem compromissos, nem aborrecimentos, de preferência solteiro; mas reclamava também uma vida discreta, ao abrigo de qualquer exposição, protegida pela sombra colossal do irmão. Fugia da publicidade; não estava no seu feitio mostrar-se e fugia de preocupações. Não tinha inquietações nem de espírito nem de matéria, pois as únicas que um filho-família como ele podia ter eram as do trono ou as da administração do património familiar e no seu caso tanto umas como outras estavam nas mãos certas do mano Pedro, o mais velho, que Deus, previdente e atento aos homens, fadara mesmo a calhar para dar conta do assunto.

Agora, enquanto o irmão agonizava de olhos postos em Estefânia, andava Lipipi pela França do segundo império, onde conhecera anos antes algumas das suas mais ricas aventuras de bordel, já que essa França se mostrava rigorosa para as ideias políticas radicais mas permissiva para as imoralidades do dinheiro. Foi num baile oferecido por Napoleão III em Compiègne, onde se pavoneava o corpo diplomático reconhecido em Paris e as altas patentes militares do império, que Luís teve notícia da grave doença dos irmãos. Alarmou-se e decidiu regressar de imediato a Lisboa. A 9 de Novembro conseguiu apanhar o paquete Oneida que, tocando o Porto e Lisboa, ligava Southampton ao Brasil. A 13 chegava o infante à enseada de Cascais e a sua primeira preocupação foi subir à amurada do barco, acender uma das suas cigarrilhas negras e deitar os olhos para terra. Notou com espanto que as águas estavam escuras e revoltas, como se remexessem no seio correntes de lama, e que na cidadela da vila os estandartes se encontravam baixos, a meia-haste, sinal de luto, mas afastou a ideia do falecimento dos irmãos. A Providência não deixaria que tal absurdo acontecesse. A derradeira coisa que esperava desta vida era ver-se rei. Enquanto outros, como Macbeth, por um trono, não teriam hesitado em vender a pele ao Mafarrico, ele, o inofensivo Lipipi, rezava aos santos para que coroa e ceptro se afastassem dele.

Mas no Tejo, já na barra da cidade, enquanto Lipipi dava voltas à bagagem no camarote, Loulé, o presidente do ministério, subiu a bordo vestido de luto para lhe dar notícia da morte dos irmãos. Quando a recebeu, Luís ficou paralisado. Sabia que Loulé não estava a brincar mas parecia-lhe tudo aquilo uma farsa.

– Que tristeza – foi a banalidade que conseguiu soletrar no momento.

Sentia-se constrangido diante do chefe de governo, seu parente ainda por linha colateral, e por isso repetiu por várias vezes, com a grossa cabeça entre as mãos, a frase. As lágrimas escorriam-lhe pela face, não tanto pela dor, que lhe parecia absurda de mais para ser real, mas pela constatação imediata que tirou. Estava aos vinte e três anos, sem tirar nem pôr, rei de Portugal. Rei de Portugal, disse ele de si para si, atónito e suspeitoso. E as lágrimas correram-lhe ainda mais grossas e azedas pelo rosto. Tudo o que queria era correr depressa, numa sege fechada, longe, bem longe do olhar dos transeuntes, para as Necessidades. Precisava de se recolher nos braços do pai, que entretanto na sua ausência assumira a regência do reino, chorar com ele o lúgubre destino dos irmãos e pedir-lhe protecção para o tão inóspito e áspero destino que o esperava.

– É uma coroa de espinhos – disse Lipipi, quando abordou o assunto da sua próxima aclamação real.

A 22 de Dezembro, dia frio e espectral, com névoas sujas a correrem no céu, o pobre Lipipi foi às Cortes jurar a Carta e ser aclamado rei. Cá fora nas ruas da cidade corria a mesma multidão que acompanhara em Novembro o cortejo fúnebre de Pedro ao mosteiro de S. Vicente. À noite, numa das varandas voltadas ao Tejo, enquanto Luís fumava nervosamente uma das suas cigarrilhas, Fernando discorreu sobre a situação política.

– A monarquia está robusta; não lhe faltam nem demonstrações de apoio, nem sinais de carinho.

Não faltariam, mas também lhe sobrariam motivos de preocupação. Ademais, aquelas manifestações de apreço eram conjunturais e diziam respeito a um rei absolutamente excepcional, viúvo e letrado, falecido aos vinte e quatro anos, e não podiam por isso ser tomadas como demonstração de saúde ou prova de resistência.

No dia seguinte, pai e filho encontraram-se para tratarem da árvore de Natal, mas não tiveram coragem de armar o pinheirinho em nenhuma das salas do paço. Fernando perdera no mês anterior dois filhos e Luís, que ainda há pouco tivera sete irmãos em casa, tinha apenas agora consigo dois, João e Augusto, ambos acamados, ambos em perigo de vida. Os outros ou haviam morrido ou partido para longe, como Maria Ana e Antónia. Augusto salvou-se mas João acabou por falecer poucos dias depois, a 27 de Dezembro. Que momento tão tormentoso e tão negro! É a continuação natural da viuvez de Pedro e da tragédia que ele então viveu. A mesma nuvem negra que levou deste mundo Estefânia, levou meses depois o rei e os seus dois irmãos. Tal como o quarto de Estefânia ficou intacto depois da sua morte, também o do rei ficou tal como estava antes da sua partida para Vila Viçosa. Ninguém se atreveu a mexer ou a limpar fosse o que fosse. Que tragédia a morte! E que pânico para os que ficam! Ainda hoje, quando olhamos ali em Alcântara, na parte ocidental de Lisboa, o maciço das Necessidades, com a tapada verde por trás, e as cruzes macabras do cemitério dos Prazeres espetadas por cima, vemos pairar sobre aquele edifício a sombra fatídica desses dias.

Foi assim, nesse ambiente escuro e lúgubre, que começou o reinado de Luís. Fernando retomou pouco a pouco a sua vida. Vivia desde há uns anos numa zona retirada do paço das Necessidades, onde amontoava as suas colecções, trabalhava as suas peças e dava as suas recepções. Era agora um homem de meia-idade, na casa dos quarenta, que decidira abandonar a vida política para se entregar a um conciliábulo privado. Desde há um ano que mantinha uma relação afectiva com uma jovem cantora lírica suíça, Elisa Hensler, nascida em 1836, e que cantara pela primeira vez em Portugal no teatro S. João do Porto, em Outubro de 1859. Pouco depois, em Abril do ano seguinte, viera a Lisboa, ao São Carlos, onde Fernando a ouvira no papel de pagem numa ópera de Verdi e se começara a interessar por ela. Escondera a sua ligação à cantora, pois conhecia a espinha moral do rei e estava  cansado dos dissabores que com ele tinha por causa das recepções que dava e até das passeatas que fazia, descontraído, garboso, galante, no Passeio Público, em Lisboa. O filho era solitário, temível em questões de moral, e ele não se atreveu sequer a mostrar a cantora. Agora, com o desaparecimento do filho, distendia e começava timidamente a passear em público com a amante nos passeios de Belém e Pedrouços, convidando-a abertamente, sem medo, para as recepções das Necessidades.

Luís, por seu lado, mostrou pouco a pouco algum optimismo. Aquilo que a princípio lhe parecera um tormento, afigurava-se agora, caso seguisse as pisadas hábeis do pai, uma tarefa penosa mas suportável para a sua natureza de indolente. Nada faria, a não ser regular de quando em quando, com a sua boa disposição conhecida, o trabalho dos políticos que se interessavam pela governação. É verdade que a monarquia da mãe já não contava com alguns dos pilares fundadores. Palmela, Terceira e Rodrigo já haviam partido, mas ainda por cá andavam outros, como Saldanha, Aguiar ou Sá da Bandeira. E havia agora uma reserva nova, com a geração ascendente de Fontes, que parecia ainda mais decidida e prestante à monarquia que a anterior. As guerras intestinas dentro do partido liberal, que haviam levado às inacreditáveis dissensões da década da Patuleia, com o miguelismo recrudescente no norte do país e a rainha manietada pela agitação popular, estavam superadas; Regeneradores moderados e Históricos radicais mostravam paciência para se alternarem pacificamente no poder e disposição suficiente para não voltarem ao recurso das armas. Com o Acto Adicional à Carta, assinado em Julho de 1852, e que parecia ter contentado dentro do partido liberal, Cartistas e Constitucionais, não se via sombra de agitação no horizonte, menos ainda de revolução.

Demais, o país no curto reinado do irmão dotara-se duma malha de linhas de comboio, unira-se por uma rede de postos de telégrafo, iniciara um novo ciclo industrioso e de expansão económica. Houvera a primeira grande exposição industrial do Porto e as cidades do litoral, devido aos novos transportes, estavam a encher-se de gente fugida aos campos e a ganhar arrabaldes activos, onde se viam altas chaminés de tijolo magenta a cuspir todo o dia o fumo branco dos fornos para o céu. Para Lipipi, que não tinha uma ideia própria do país e adoptava tudo o que o irmão dele pensara, esses sinais que enchiam a paisagem eram as letras felizes do seu novo alfabeto. A própria zona de Alcântara, onde estava o paço, e que fora até aí um retiro bucólico na ponta da capital, com zagais, rebanhos e herdades de frutas e flores, ganhava um novo aspecto geral com fábricas, chaminés e uma multidão de gente que se acumulava em ilhas na estrada que subia para o cemitério dos Prazeres, nas traseiras de Campo de Ourique e do bairro da Estrela.

Para bem dizer, Luís no início do seu reinado só teve um problema, o casamento. Tinha vinte e três anos, estava solteiro, arrastava dúzias de bastardos pelas aldeias de Vila Viçosa e Borba, crianças de pele rosada, olho azul e cabelo loiro, cujos descendentes ainda por lá hoje se vêem, mas não havia herdeiro oficial. No paço, duma grande família de onze irmãos, restava apenas ele e Augusto, o Tubinho na expressão carinhosa dos mais próximos, um menino de quatorze anos, que fora o último rebento de Maria a sobreviver ao parto e que ficara afectado pelo tifo contraído nos pauis de Vila Viçosa. Apresentava dificuldades de locomoção e as capacidades mentais obnubiladas. Era um inútil a cargo do pai, que nunca poderia receber os encargos do reino. O casamento de Luís era pois a prioridade absoluta do governo e do paço.

Sá da Bandeira, ministro que continuou em funções depois da morte do varão, ofereceu ao novo rei três ou quatro possibilidades de casamento. Caíram umas naturalmente, outras ficaram suspensas. Sobrou por fim a casa de Sabóia, que acabara de fazer, com o apoio de Cavour e de Garibaldi, em conflito directo com o papa Pio IX, a unificação da Itália moderna. Os laços entre a casa de Sabóia e a de Bragança eram recentes, mas ainda assim vivos; o pai do actual rei, Vítor Manuel II, Carlos Alberto, rei da Sardenha, que se mostrara no seu tempo um liberal convicto e adverso à influência da Santa Aliança no norte da Itália, acabara por escolher como local de exílio, no seguimento dum forte revês militar, e em homenagem ao espírito avançado da cidade, o Porto, onde  falecera em 1849. Vítor Manuel II tinha uma menina de quatorze anos, Maria Pia, nascida em 1847, que estava na disposição de desposar o rei português. Com o acordo do pai, em Julho de 1862, acertou-se o enlace de Luís com Maria Pia, casamento que recebeu como era de esperar os parabéns e o entusiasmo da esquerda liberal portuguesa.

Luís por seu lado recebeu o caso a brincar. Não se podia dizer que aquele casamento lhe fosse indiferente, e muito menos do seu desagrado, mas as razões do seu contentamento decerto não eram as mesmas que levavam a esquerda liberal a mostrar-se desde o princípio partidária activa do enlace em Itália com os Sabóias. As suas causas eram mais triviais, mais prosaicas, que estratégicas ou políticas.

– Não há nada como uma italiana ruidosa para nos divertir – dizia o rei, aliviado e folgazão, quando comentava o enlace com os seus amigos da marinha portuguesa.

Na verdade, o rei pensava ter bons motivos para assobiar de alívio. Um dos nomes considerados para o seu casamento era o de Maria Hohenzollern Sigmaringen, irmã de Estefânia. Tremia só de pensar que esta Maria pudesse vir para as Necessidades com o mesmo aspecto de carmelita puritana que conhecera na cunhada. Sá da Bandeira gabara-lhe a beleza da italiana, a finura dos traços, o requinte dos gostos, a sensualidade dos gestos, a atracção pestanuda dos olhos, a desenvoltura ondulante do peito, e tanto lhe bastara para a preferir a qualquer outra.

O namoro começou logo depois, com um inflamado arrebatamento por parte de Lilipi. Tinha-se a si mesmo, nos territórios do amor, como um jovem experiente, que começara a conhecer os segredos do prazer feminino aos quinze anos e que depois disso conhecera mulheres sem conta por quase todas as capitais da Europa. Aprendera a tirar todo o sumo dum corpo de mulher mas não parava por aí; punha todo o empenho em puxar pelo prazer da parceira. E agora, projectando receber na sua câmara uma menina de quatorze ou quinze anos, estava desejoso de inquietar aquela criança, de modo a que ela se entregasse de vontade própria, nervosa, aflita, doida de desejo. Sentia-se um cobridor experiente e não queria deixar o seu enlace alheio a tanto conhecimento. Aquela botão italiano, verde e apertado, era seu e estava consigo a possibilidade de o fazer abrir numa flor descomedida e suculenta, quente e madura, que seria só sua, como nunca nenhuma outra o pudera ser.

Queria começar desde já a trabalhá-lo, preparando-o para o seu grande destino.

Começou por lhe enviar palavras ardentes, apaixonadas e torrenciais, que tiveram como resposta uma surpresa tímida, se não uma resistência fechada. Ele insistiu, metralhando-a com telegramas inquietos e sofridos, que foram pouco a pouco abrindo o coração da pequena Maria Pia. Corria o Verão de 1862 e o barba azul português polia ou afiava as unhas nas pedras de Caxias, para onde fora a banhos com a real barraca. Começava a ser de bom tom frequentar nos dias quentes a praia, levando os meninos à água e alugando uma barraca de tecido, onde se passavam as manhãs de pés descalços enterrados na areia quente. Uma sociedade de elegantes bronzeava as mãos e os tornozelos nas águas do Tejo, enquanto debatia futilidades amorosas, deslizes políticos, entretenimentos.

No fim de Agosto, Maria Pia rendeu-se a tanta insistência da parte do noivo, passando a tratá-lo por querido e bem-amado e enviando-lhe em segredo um medalhão com o seu retrato e uma madeixa dos seus cabelos. Foi o delírio na alma simples do português.

– Está no papo – exclamou ele, com um sorriso rasgado na cara, quando lhe bebeu as palavras da carta.

No fim de Setembro a menina trocou Turim por Génova, onde embarcou para Portugal numa corveta portuguesa, que se fazia acompanhar por dois navios Portugueses e por três fragatas italianas. Vinha absorta na súbita mudança do seu destino, desejosa de se ver rainha e mulher, mas também retraída, com uma qualquer sombra sinistra a pairar no espírito. Não podia afastar do pensamento a rajada de mortos que atingira a corte portuguesa há tão poucos meses. Tremia de medo e suspirava de alegria, sem saber qual dos dois, o medo ou a alegria, o destino escolheria para lhe iluminar ou escurecer o caminho. No final, acabou por vingar o medo e muitos anos depois ela deixou Portugal louca e delirante, aos gritos, depois de ver morrer aos pés o filho e o neto. Nessa altura foi decerto um dos mais infelizes destinos que passaram por esta Terra e um daqueles que bem merece da nossa parte uma palavra de compaixão.

Mas não antecipemos. Regressemos ao Outono de 1862, quando Maria Pia chegou a Lisboa. Era então uma menina de quinze anos com muito boa impressão de si própria. Tinha uns olhos líquidos e sensuais, uns lábios ternos e carnudos, uma pele polida e branca de marfim. O corpo era escultural, como se tivesse sido modelado pacientemente por um artista dotado. Mas a obra-prima eram os cabelos fulvos, bastos, eléctricos, que ela armava como uma auréola de luz ou de fogo sobre o rosto muito branco e lhe deixavam uma impressão de voluntarismo e paixão violenta. Debaixo daquela crina ardente dava vontade de mordiscar os seus lábios húmidos e vermelhos. Os Sabóias eram porém mais dados aos bailes, às recepções, aos galanteios ou à guerra que às salas de estudo ou às horas passadas no remanso duma biblioteca. A educação da princesa era por isso muito defeituosa. Falava com fluência o francês, tivera aulas de canto, lia e escrevia o italiano, mas toda a sua formação bloqueva aí. No resto, era o instinto ou o capricho do mimo que dominava. Entre ela e Estefânia, a rainha anterior, não havia qualquer termo de comparação.

Foi recebida em Lisboa por uma multidão eufórica e entusiasta, com vivas à liberdade, a Garibaldi, a Vítor Manuel, à unificação da Itália. A cidade em peso acompanhou-a nos passos do casamento. Esteve na primeira recepção à rainha no Terreiro do Paço quando esta deixou a corveta Bartolomeu Dias onde viajara; acorreu a São Domingos onde Maria Pia e Luís casaram na tarde do dia 6 de Outubro; acompanhou o cortejo real ao paço e manteve-se na ruas até de madrugada, bailando e festejando. Nos dias seguintes, as cerimónias voltaram a contar com forte concurso popular.

Fernando mostrava-se satisfeito. A monarquia está de boa saúde, dizia ele. Era um balanço realista, para quem tinha na memória a forte instabilidade política do passado recente. Recordava os dias de Belém, em que fechado com a esposa no pequeno palácio fronteiro ao rio, protegidos por um punhado de tropas fiéis, ele tremia de medo, desejoso a todo o custo de fugir para os barcos Ingleses que boiavam indecisos no Tejo. E lembrava ainda o cadáver de Freire, na Pampulha, nas indecorosas mãos da Guarda Nacional. Tudo coisas difíceis de imaginar nos dias que corriam, em que a  Regeneração com as suas regras pusera termo às disputas armadas entre as facções liberais.

Maria Pia recusou-se a ficar nas Necessidades. Tinha quinze anos mas mostrava de entrada um feitio afirmativo, voluntarioso, autoritário. Logo na abertura mostrou-se fechada a aprender a portuguesa língua, porque não lhe apetecia martelar a cabeça com vocabulário e conjugações. A cabeça era uma polida moeda de oiro que assentava no pedestal do corpo e não uma picareta de arrancar pedra. Todos falavam francês; logo adoptou o francês como língua da corte e da família. Depois, impôs o abandono das Necessidades, deixando o paço ao sogro e ao cunhado, Fernando e Augusto. Nem sequer quis entrar nos quartos onde haviam falecido Estefânia, Pedro, Fernando e João. Optou logo pela Ajuda, um casarão imenso, desabitado desde que Isabel Maria se afastara para Benfica e onde mandou fazer obras a seu gosto.

Maria Pia vinha duma monarquia liberal, excomungada pelo papa, mas era duma prosápia aristocrata nunca vista na discreta e pataqueira família do João-dos-anzóis.

– Je suis reine e je suis la seul  – dizia ela no seu francês de acento nervoso e afectado.

Os primeiros tempos daquele casamento foram azuis. Luís não se enganara quanto à esposa. Chegava sequiosa de prazer e sem reticências na entrega. Queria gozar sem entraves, primeiro da sua posição e depois do seu corpo. Era uma menina deliciosa, de lábios carnudos, peitos roliços, grandes olhos escuros e pele muito sedosa, com aroma a limão e canela. Tinha no rosto e no olhar uma sensualidade, que excitava os sentidos e punha o desejo ao rubro. Luís não a largou durante meses, sedento daquele corpinho de boneca com boquinha de cravo refolhudo. A política não o incomodava; Loulé e Sá da Bandeira governavam sem questões, o caminho-de-ferro avançava sem embaraços, o país mudava de fácies. Ouviam-se no ar os ecos dos festejos da inauguração da via férrea do leste, que ligava Vendas Novas a Évora e Évora a Badajoz. O povo estava contente e esperançoso, brindando a vida com foguetório e bandurreando pelas esquinas, depois de vender as courelas que o velho Mouzinho lhe dera com as reformas. Juntava-se nos arrabaldes de Lisboa e Porto e em breve, muito em breve, quando Lisboa aparecesse ligada a Beja por via férrea, mais gente ainda chegaria; também a linha do norte estava quase concluída, ligando Porto e Lisboa em poucas horas.

– É o paraíso a entrar-nos pela porta sob a forma de máquina de ferro, a deitar fumo preto para o céu – dizia o rei, de havano na mão, imitando com a boca cheia de fumo a chaminé duma locomotiva.

O entendimento de Lipipi não alcançava mais, mas na verdade todos os grandes homens da época assim pensavam. Só se entusiasmavam com as mudanças que deslocavam gente dos campos para a cidade; o importante para todos era reduzir as distâncias, aumentar a velocidade, produzir em série e com a ajuda mecânica. Essas medidas satisfaziam o crescimento do dinheiro e o aparecimento das fortunas colossais. Eram estas como o leitor sabe os feitos da nova aristocracia. Um chibo chegado de Fornos de Algodres fizera-se pelo simples estratagema do ágio descendente de Gualdim Pais e do infante D. Henrique, concorrendo com o paço no brilho das suas recepções. Luís não destoava pela originalidade do meio; já o irmão, inteligentíssimo, assim pensara. Ele, limitado a endeusar as ideias do mano, tomava-as tão-só, a seu modo, como modelo.

No princípio do ano, Maria Pia apareceu grávida. Foi acontecimento que emocionou o país. Este, depois da morte do rei e dos seus irmãos, esperava ansioso o aparecimento dum herdeiro. E a 28 de Setembro de 1863 nasceu um menino, que foi baptizado a 19 de Outubro na igreja de São Domingos de Lisboa com o nome de Carlos, em homenagem ao bisavô italiano, que escolhera Portugal para vir morrer. Logo se percebeu que o menino tinha o aspecto geral da mãe, com um queixo voluntarioso, uma testa alta e uns lábios fechados, caprichosos, que denotavam um traço autoritário no seu feitio. Eis o momento do nascimento de Carlos de Bragança, a personagem central desta história e uma das figuras mais trágicas da História de Portugal e por isso tão da minha inclinação.

A vida da família real continuou sem alterações. Fernando estreitou relações com a sua cantora, Elisa Hensler. Trouxe-a para as Necessidades, onde ela se instalou e passou a viver, reconstituindo à volta de Fernando e Augusto uma atmosfera de família. Fernando estava com quarenta e sete anos. Tinha um ar de mago de circo, com a sua pêra fina e pendular e os seus olhos azuis, tão fixos e magnéticos como os dum hipnotizador; amadurecera o seu génio na construção da Pena, na reabilitação de outros monumentos, no entendimento da arte medieval portuguesa, em demoradas viagens de estudo, uma delas até ao norte de África, Marrocos, onde fora procurar os sucedâneos do mudéjar que encontrara em Sintra e em Évora e depois na Andaluzia espanhola. Agora dedicava-se ao filho diminuído, o único que ficara consigo e às afinidades que tinha com Elisa. Passavam largas temporadas na Pena, mergulhados num horizonte de fantasia e encanto. Augusto ficava os dias recostado num cadeirão almofadado com uma manta de lã pelos joelhos, enquanto o pai e Elisa na sala ao lado ensaiavam árias de ópera.

Luís e Maria continuavam pela Ajuda, sem grandes incómodos. Iam de passeio até Sintra, e daí até Mafra, onde Luís gostava de calçar as botas altas de cabedal preto, pegar na espingarda de dois canos e ir para a tapada grande por desfastio atirar às perdizes e aos coelhos; outras vezes, nos dias quentes de Sol, atravessavam o rio e estanciavam pelo Alfeite para apanharem a brisa do mar, que ali corria sempre temperada e cómoda. Nestas deslocações faziam-se acompanhar quase sempre pelo filho, uma criança saudável mas nada dócil, que gostava de chorar quando não lhe davam atenção. Mal lhe despontaram os dentes começou a pisar os seios da ama com uma determinação que fazia o riso da mãe.

Esta, por sua vez, mostrava-se afectuosa mas perdulária. Começara por gastar uma fortuna em obras no palácio da Ajuda, insatisfeita com a vasta dimensão das salas, que mandara dividir em confortáveis quartos, de dimensões médias e burguesas. Depois, excluía com determinação, fechada a qualquer argumento, quando se tratava de peça de enxoval, para si ou para Carlos, as modistas de Lisboa.

– L’empereur m’a donné le diadème de mon mariage et l’ impératrice le robe – dizia ela para justificar o caso. – Donc, c’est juste de choisir Paris pour chercher mes parures.

Luís continuava dedicado à esposa. O nascimento do filho em vez de lhe desfigurar o corpo, tornara-o mais apetitoso. Esmerara formas e ganhara, aos olhos de Luís, uma nova sensualidade. Os olhos, como duas esmeraldas claras e polidas, brilhavam ainda mais e a boca abrira o botão de flor, requintando os laços e as voltas e mostrando-se ainda mais bonita e atraente. A sua vontade era passar os dias a mordiscar sofregamente as copiosas pétalas daqueles lábios pequeninos e a tornear com as mãos aquela cintura caprichosa e fina, sedosa como um tecido raro, levando a língua de quando em quando ao biquinho rosado do seio que por ali perto espreitava. Não queria saber do mundo nem dos homens para nada; bastava-lhe aquele corpo miúdo e perfumado, com uma lânguida e ardente cabeleira de caracóis castanhos caindo vistosamente pelas costas e pelo peito e em que ele tanto gostava de afundar dedos e rosto. Que rios de tinta esses cabelos fizeram correr! Não houve em Lisboa amanuense da escrita que não os tomasse por tema dos seus eflúvios poéticos. Só isso chega para provar ao leitor de hoje o seu fausto raro.

– O melhor da vida é isto – repetia ele, sempre espantado, sempre voluptuoso, quando de novo se agarrava ao corpo esguio e teso da esposa.

Sem se fazer esperar, Maria Pia apareceu de novo grávida. Estávamos no Outono de 1864 e a criança nasceu nos finais de Julho do ano seguinte. Era uma criança com os mesmos traços do irmão, mas com uma ligeira dilatação no rosto, que o inclinava para o ar de indolência do pai. Baptizaram-no dois meses depois na capela do palácio da Ajuda, numa cerimónia discreta e familiar. Chamaram-lhe Afonso Henriques, não sei se por urgência, se por distracção.

Depois do nascimento de Afonso as relações no casal deterioraram-se. Lá fora, sem ligação com a vida do paço, mudara a política portuguesa. Loulé e Sá da Bandeira foram embora e deram lugar a um ministério regenerador, presidido pelo velho Aguiar, que fora ministro do reino e da justiça de Pedro V e abolira as ordens religiosas em Setembro de 1834. Depois da morte de Rodrigo, era ele o regenerador mais prestigiado e antigo e decerto por isso o escolheram para a presidência do ministério. Assim como assim, era o engenheiro Fontes que espreitava por detrás dele com a sua conhecida política de fomento e concentração do capital. Em verdade Luís não era um espírito fiel; tinha ademais um instinto sexual copioso e exigente, herdado das taras sensuais da sua bisavó, Carlota Joaquina, e do seu avô, Pedro IV. Maria Pia, com um corpo divino e um instinto requintado e impertinente, aguentara-o três anos firmes, mas agora rebentava, para bem dizer, por tirar uma escapadela e variar a ementa.

– Mesmo quando a comida é do nosso agrado, não há pior para a higiene do estômago que comer sempre o mesmo – dizia ele em privado.

E um dia decidiu partir sozinho para Vila Viçosa com o pretexto da caça. Na verdade, no seu caso, a caça era outra. Estava desejoso de varrer as aldeias e as herdades à procura de fêmeas para cobrir. Conhecia o assunto, tinha o hábito, sabia os lugares onde as gaiatas se mostravam desejosas de virem ao palácio. Dava-se à pompa de as seleccionar, imitando o que se fazia aos cavalos no tempo do cio. Deixava de lado, as que tinham os dentes estragados ou qualquer outro defeito manifesto. Eram tantas as que ansiavam por se meter nos lençóis do rei, que ele só tinha de escolher as mais atractivas de cara e bem proporcionadas de corpo.

Divertia-se tanto que ao cabo dum momento exclamava com satisfação e grosseria.

– Isto mete Londres num saco e é muito melhor do que Paris.

Aquelas maroteiras, que teriam feito sorrir os seus antepassados, eram o seu modo de gostar do país. Não tinha outro. Mas era ao menos sincero naquilo que dizia. Vila Viçosa era de feito o seu luxo castiço.

Quando Maria Pia percebeu o que se passava com Luís teve um choque. Tinha do seu amor uma imagem tão forte que não podia admitir ser contrariada por uma infidelidade. Basta observar os olhos desta rainha para perceber que se dava tão alta estima, que não admitia a mais leve contrariedade. Demais, consideradava o seu corpo uma obra divina de estatuária, com o qual ninguém podia concorrer. Com aqueles cabelos, que fizeram a admiração de todos os plumitivos da época, não admirava que assim fosse. Mas eu, que estudei esta rainha, posso dizer que esta sua beleza dos vinte anos é muito menos interessante que o caso moral do fim da sua vida. Louca, apagada, de cabelos brancos e ralos, é que esta rainha teve o seu rasgo de grandeza! Assim como assim, naquela época, era ela uma rapariguita leviana e  sobranceira. Por isso aquela infidelidade descarada do marido com campónias do Alentejo custou-lhe tanto que nunca foi capaz de a perdoar ou tão-só de a explicar.

– Salop! Dupeur! Changer ce petit corp si adorable pour des paysannes – dizia ela consigo, com ar incrédulo.

O resultado imediato de tão grande choque foi o corte definitivo com o marido e uma guerra permanente da rainha para com o rei, que só não teve mais efeito porque este fingia que não via e não se incomodava, deixando correr o marfim, como se tudo estivesse no bom lugar.

A rainha não abateu; animou-se até a preparar a guerra. Fora uma rapariga caprichosa e mimada e era agora aos vinte anos uma mulher de feitio temível. Duplicou os gastos, desbaratando uma fortuna sem cálculo em bijuteria, que mandava vir de Paris e Londres. Carregou nas compras de enxoval que fazia para ela e para os filhos; encheu o quarto das crianças de novos e dispendiosos brinquedos; insistiu em novas obras no palácio da Ajuda; deu bailes cada vez mais refinados e dispendiosos. E começou a fazer  viagens ao estrangeiro, ficando nos melhores hotéis e dando recepções galantes. Foi isso que aconteceu logo em 1867 com uma longa viagem a Paris, em que quase por acaso se cruzou com o marido, que lá foi em Julho visitar uma exposição internacional e arejar as carnes com as coristas do vaudeville. Tinha sessenta contos de renda anual mas estava a gastar quase o dobro. O rei tinha de recorrer ao seu orçamento pessoal para lhe financiar os caprichos, fazendo adiantamentos ao erário público cada vez mais volumosos. Ela encolhia os ombros.

– Les rois et les nations se confondent – desculpava-se, não ligando sequer ao assunto.

Aconselharam-na – caso não moderasse as despesas – a dedicar-se a obras de caridade. Os gastos davam nas vistas e o paço começava a endividar-se. Estava ainda muito presente no espírito de todos a austeridade de Pedro V e a magnanimidade de Estefânia. A forma estouvada como Maria Pia gastava dinheiro saltava à vista e contrastava com o juízo do reinado anterior. Era preciso esconder aqueles gastos exagerados, envernizando a situação e protegendo o paço. Nem no tempo dos Cabrais, em que a rainha caprichava em dar bailes monumentais, concorrendo com o ministro do reino, o paço fora tão perdulário. Levantou-se um serviço de apoio ao paço para encaminhar uma parte dos gastos da rainha para obras de caridade. O objectivo era criar uma fachada de beneficência que servia para calar os mais críticos.

– Dá o dízimo de todas as despesas aos pobres – diziam funcionários especialmente encarregues de divulgarem entre o povo da cidade os merecimentos da rainha.

Por outro lado, deixou-se galantear pelos homens que apareciam no paço, sobretudo os militares garbosos que prestavam serviço de guarda na Ajuda. Não temia namoriscos. Estava no ar da época, segundo ela, as ligações correrem desse modo. Quando alguém se atrevia a abordar alguma ligeireza sua de comportamento, ela levantava os olhos com um ar tão severo que desanimava qualquer recriminação, mesmo a mais branda.

– Chacun à sa place – rematava nesses momentos, com soberba e fúria, do alto da sua majestade.

Para tirar desforra da vida do marido, entrou também em conflito aberto com o sogro. Pegou no facto de ele viver amancebado com Elise Hensler e aparecer com ela em público. Era-lhe absolutamente indiferente o caso do sogro, mas viu aí um pretexto de conflito forte, que lhe podia valer apoios na sua necessidade de amarrotar o marido. Ademais, detestava gente anónima, sem passado nem história, como Elisa Hensler. Saxe-Coburgos misturavam-se com Sabóias, não com Hensleres. Tinha de si uma alta imagem, sem condescendências para com plebeus como Elisa.

– Quelle honte! – exclamava ela às famílias da corte, implicando com o sogro.

Primeiro, fez má cara à antiga cantora, quando esta se cruzava com ela no camarote real do São Carlos ou na frisa do teatro Dona Maria II. Depois, quando percebeu que a mulher era fria como a neve dos Alpes, pouco buliçosa, nada inclinada a dar nota de si ou a fazer caso das alfinetadas que ela despedia com os seus olhos severos, proibiu simplesmente o sogro e Elisa de estarem presentes nas recepções oficiais da Ajuda, nos jantares de família e até nas cerimónias do beija-mão, que depois da morte de Pedro tinham vagarosamente voltado às cerimónias do paço.

– Je ne les reçois plus ensemble – declarou ela. – Mon beau-père doit venir tout seul.

Foi a estupefacção geral, mas ninguém se atreveu a contrariar a rainha. Ela levava o caso para o lado moral e por aí conseguiu apoios importantes. Um deles, foi o de Isabel Maria, a infanta velha, que fora regente depois da morte de João VI, e que vivia agora retirada para Benfica. Era um fantasma, tão envelhecido, que com quase setenta anos parecia ter setecentos. Carlos, um menino de seis anos, quando a via entrar no salão da Ajuda embrulhada na sua capa escura de lã, com o musgo a aparecer nos cantos da boca, exclamava sempre, muito seguro do seu saber e da sua graça.

– Lá vem a mulher do primeiro rei de Portugal.

Para fechar o caso com o marido, Maria Pia recusou recebê-lo nos seus aposentos. Tinha de quando em quando saudades daquelas tardes de lubricidade que com ele vivera. Mas defendia-se delas com o amor-próprio; aquilo que ela chamava sa dignité, podava nela qualquer saudade decisiva do marido. Despia-se ao espelho e olhava o corpo às vezes nu nos largos espelhos dos seus aposentos. Ficava doidamente apaixonada por si. Preferia acariciar-se sozinha as vezes que fossem precisas do que sentar-se nua em cima do marido, como nas tardes de loucura e prazer. Essas tardes ela sabia que nunca mais regressariam; haviam acabado para sempre por decisão sua. Demais os namoriscos com os oficiais da guarda do palácio, que se ficavam por um jogo de olhares, começavam a ter viveza e a entusiasmá-la, ocupando na sua vida uma expectativa importante.

Luís não era de oposições, nem de guerras. Quando percebeu que a mulher lhe tinha descoberto a fraqueza e se ofendera mortalmente com o caso, tentou reconquistá-la. Sabia-a muito inclinada para jóias caras e não hesitou em lhe oferecer três safiras mandadas vir de Paris,  escolhidas pela imperatriz. Desbaratou uma fortuna, mas deu de barato o dinheiro. Estava desejoso de ter de novo a mulher nos braços e não se via a passar o resto dos dias naquela atmosfera pesada. Maria Pia porém não lhe ligou mais por isso. Teve até nesse momento um motivo para continuar; gozou com o  sofrimento do marido e com os esforços ingentes deste para a reconquistar. Ele foi esperando, mas ao longo dos meses compreendeu que a mulher estava inabalável. Bem se podia preparar para amuo de longa duração.

Assim como assim, o seu sofrimento durou pouco. A princípio ainda se sentiu um desditoso pobre diabo a quem nem a mulher ligava, mas depois, em vez de desesperar, adaptou-se. Não tinha vocação para infeliz e não sendo um optimista acreditava na utilidade de certos percalços.

– Há com certeza mais vantagens na situação do que aquilo que se pensa – começou por dizer, quando decidiu aceitar a separação de facto da mulher.

Tinha um feitio fácil e lasso; não queria inquietações nem desafios. Arranjou amantes entre a legião das actrizes dos teatros de Lisboa, mas depressa se deu conta que as suas grandes proezas na cama já não eram as mesmas. Passara dos trinta anos e engordara muito; perdera a agilidade do passado, que Maria Pia ainda conhecera nos tempos que haviam antecedido o desarranjo entre os dois. Já o irmão Pedro, no seu reinado, há dez anos, lhe chamara comilão e desalmado fumador, mas as patuscadas daquele tempo não se comparavam ao que comia e fumava hoje. Moderou por isso a sua actividade sexual para se poder entregar à comida e ao tabaco. Foi também a altura em que decidiu dedicar-se, talvez por incentivo do pai, a actividades ilustradas, para sossegar o espírito e dar uma ideia avançada e sobretudo proveitosa do paço. Interessou-se pela tradução das peças de Shakespeare e voltou a pegar no violoncelo, que por momentos deixara de lado.

Mas na verdade aquela separação forçada da mulher proporcionou-lhe uma vida social muito mais rica e intensa. Todos os serões recebia na sua galeria uma pequena multidão de convidados que vinha cear com ele. Tocava-se piano, ouviam-se árias, recitavam-se trechos, jogavam-se cartas ou as pedras do dominó. Ficavam até às tantas da manhã naquele convívio de interior, as senhoras bebendo chá e os homens beberricando cálices de licor, comendo pão com manteiga e puxando a sua fumaça no charuto. O rei, no dia seguinte, não se levantava senão por volta do meio dia. Depois de se aprontar, comia uma primeira refeição ligeira, passava pelos aposentos dos filhos e vinha para a rua passear. Por norma não fazia qualquer trabalho diário de escritório; preferia o ar livre.

– Reinar é ser visto pelo povo – dizia ele, sempre que saía do paço.

Era a sua máxima escolhida e por isso não passava um dia que não fosse visto no centro da cidade, ou passeando a pé ou seguindo de coche aberto. No Passeio Público parava para falar com os transeuntes e gostava de mandar parar a sege numa esquina do Rossio para ir comprar cigarrilhas e charutos à Havaneza. Aí encontrava algum velho conhecido da marinha e ficava no cavaco com ele. Falavam das velhas viagens no brigue Pedro Nunes ou na corveta Bartolomeu Dias. Lembrava-se do passado, das praias de Cabo Verde, das prostitutas árabes, da cor das pedras do penedo de Gibraltar e cismava por momentos no seu destino. Se o irmão não tivesse largado de forma tão inesperada desta vida, ainda hoje andaria naquele trânsito ameno pelas águas do Atlântico. Acendia então nostalgicamente uma das suas cigarrilhas e, enquanto deitava a primeira baforada de fumo negra para o ar, exclamava.

– Que saudades, que saudades do mar, Deus meu.

Juntavam-se depois os curiosos à volta do rei. Ele, bem disposto, porreiraço, oferecia cigarrilhas, dizia graçolas, mandava vir licores e café. Acabavam todos a bater palmas e a rir muito. Depois regressava à Ajuda com a consciência tranquila para comer e preparar o serão.

Era assim que gostava de reinar. Não se sentia um demagogo calculista, mas antes um bom homem, a quem calhara ser rei. Neste particular, lembrava o bisavô materno, com mais lubricidade e porventura menos talento musical. Mas tinha a mesma humildade, o mesmo sentido do convívio e da amizade, que era também uma forma de repartir o coração. Detestava sangue e brigas; era incapaz de maltratar um animal ou de querer mal a um criado. Por isso, ficou feliz por associar o seu nome ao governo de Aguiar quando este aboliu a pena de morte e logo de seguida, em 1869, ao de Sá da Bandeira quando este deu por finda a condição de escravo em tudo o que fosse território português, na África ou na Europa. Era política que lhe dava razões gradas para sentir satisfação.

– Porta-se bem, porta-se bem – dizia ele, referindo-se à monarquia, sempre que falava do assunto.

Fernando por sua vez ressentiu-se com a guerra que a nora lhe fez. Estava em Portugal desde 1836, vivera momentos difíceis, atravessara crises perigosas, chegara a pensar voltar costas a tudo, mas ao fim de trinta anos sentia-se português e amava de alma o país. Não o trocaria por qualquer outro. Haviam-lhe oferecido em 1863 o trono da Grécia e um ano depois o do México mas ele recusara. Acabavam agora mesmo de lhe oferecer o trono de Espanha, vago pela revolução de 1868, mas ele, inabalável nas suas convicções, de novo dissera que não. Tinha consciência de que dera um contributo forte para a estabilidade política que se vivia em Portugal, pondo um travão na desmedida autoridade da rainha e fazendo sobretudo uma regência exemplar. Fora esta o ponto de partida do popular reinado do filho mais velho e chegava ainda agora para inspirar o modelo de equilíbrio político que Luís procurava favorecer. E sabia o valor do seu trabalho artístico e quanto o país lhe devia pelo estudo e conservação dos seus principais monumentos. Fernando era português e não se sentia capaz de vestir outro fato.

Chocou-o pois o comportamento que a nora lhe mostrou. Era esta uma criança, acabada de chegar à idade adulta, sem obra feita, com mau feitio e um desinteresse olímpico por tudo o que não fosse gastar dinheiro e bater o pé dentro de casa.

– Proibir-me de ir ao Paço. É inacreditável – disse Fernando para o filho, quando se deu conta do que se estava a passar.

Percebeu porém que aquela guerra não era para si. Ele tinha do seu lado uma autoridade moral que lhe vinha de tudo o que fizera pelo país, mas a rainha dava ordens. Também Fernando não tinha fibra para mover peões num campo de batalha. Em Setúbal não o chegaram a ver e em Coimbra apenas o avistaram. Agora, faria o mesmo. Primeiro escreveu para casa a pedir um título para Elisa. Veio o título, concedido por Ernesto II de Saxe-Coburgo-Gotha. Depois decidiu casar com a nova aristocrata, a condessa de Edla, no oratório de Benfica da infanta velha, Isabel Maria, que se tornara numa das mais ouvidas vozes críticas da sua ligação afectiva com a antiga cantora.

– Assim não haverá motivo de recriminação – disse ele, quando deu notícia do casamento à tia da defunta esposa.

Não haveria, mas ainda assim a má vontade da rainha não amainou. Não podia mais impedir a madrasta do rei de acompanhar o marido às recepções da Ajuda mas fazia tudo para lhe estragar a visita. Esquecia-se deliberadamente de lhe enviar os convites para as Necessidades ou para a Pena, omitia o seu nome naqueles que enviava a Fernando, não lhe dirigia sequer a palavra quando ela ainda assim aparecia, leve, branda, sorridente, feliz, despreocupada, como se nada lhe tivesse sucedido, pelo braço do marido.

Um dia, em que Luís, pensando que tudo estava sanado com o casamento do pai, se lembrou ao jantar de levantar o copo e de pedir um brinde para a nova condessa, ela, a rainha, não hesitou em se levantar furiosa, toda vermelha, com um tique nervoso na asa esquerda do nariz miúdo, arremassando com toda a sua força um copo de cristal ao chão. Estragou o brinde, calou para sempre Luís, deixou infelicíssimo Fernando, mas mostrou que ninguém podia ter mão nela. Ficara provado que no paço quem mandava era a rainha; reinar era para ela comprar jóias caras e fazer-se obedecer dentro de casa. Para o rei deixava a política e os governos e já era o seu tanto para feitio assim despótico e atrevido.

E por falar em governos, Saldanha há muito que estava parado; nascera em 1790 e ia agora a caminho dos oitenta anos. Estaria retirado, dedicado ao jardim e à botânica, depois duma vida de trabalhos duros, dirá o leitor. Desengane-se, Saldanha continuava o mesmo de sempre, vaidoso, inchado, dando-se ares de homem que conhecia os segredos do céu e da terra. E agora, com oitenta anos, vendo a vida fugir-lhe momento a momento, carregava ainda mais alguns destes aspectos do seu carácter, por medo de tudo perder em dias breves. Desde 1856, altura em que Pedro V o afastara do governo, que andava mais ou menos desterrado da política. Pedro V não gostara de Saldanha; eram dois feitios estranhos, se não contrários. Um reservado e cismador, filosófico até; o outro ostensivo e demagogo, fala barato. Em seu lugar pusera Loulé, que, se era indolente e vaidoso, não deixava de ter uma parte de meticulosidade muito do seu agrado. Luís deixara no governo os políticos do irmão, favorecendo com o conselho do pai gabinetes mistos, de fusão, onde se misturavam Regeneradores e Históricos. Não havia pois motivos de luta partidária, já que todos comiam da mesma mesa, brindando cada um à vez ou em conjunto.

Mas Saldanha era irrequieto por natureza e vindicativo por experiência. Logo, aquele Loulé que à força de encontrões o rei jovem empurrara para a presidência em 1856 ficara-lhe a dever uma partida. Lembrava-se bem de Loulé desde os tempos de João VI. Era rapaz um bom bocado mais novo do que ele mas que se impusera muito jovem diante do rei por causa do homicídio do pai, o velho marquês de Loulé, muito da intimidade do rei. Depois vieram as cenas de sedução da infanta mais nova de Carlota Joaquina, Ana de Jesus, que levaram ao seu casamento no seio da família real em 1827. Aderira de seguida à Carta mas fizera sempre figura de Zé-broa. Se não fosse o parentesco que o ligava ao rei, nunca ninguém teria dado por ele. Não sabia usar as mãos para subir na vida, quanto mais a cabeça.

– Aquele Nuno Rolim de Moura Barreto era bonitão que só valia pelo bigode – dizia Saldanha com desprezo aos amigos. – A espada era sem valia e a mioleira parada.

E fora aquela frioleira sem merecimento, aquele caracol sem espinha que se visse, que o cismático Pedro V decidira chamar para o substituir no governo. Era de todo inaceitável e merecia uma boa desforra.

E aos setenta e muito anos o velho Saldanha pôs-se a contar espingardas para tirar vingança de Loulé. Sentia-se o mesmo que em Julho de 1826 obrigara a regência a jurar a Carta e o mesmo que em Março de 1833 quase sozinho varejara de bala as compactas ondas miguelistas que se lançaram ao assalto da linha defensiva do noroeste do Porto. E sobretudo, recordando a sua coroa de louros, queria ser o mesmo que batera no centro do país o Chibo de Fornes de Algodres, obrigando a rainha a capitular e a recebê-lo no paço depois de o haver deitado borda fora.

Foi aos quartéis, pediu fidelidade, arregimentou tropas e urdiu um novo golpe de estado. E no ano dos seus oitenta anos saiu para a rua na madrugada do dia 19 de Maio à frente da tropa, ocupando o largo da Ajuda e trocando tiros com a guarnição do palácio, enquanto o conde de Peniche ocupava o castelo de São Jorge. O rei, dormindo a sono solto, depois de longo e tardio serão na sua galeria, acordou sobressaltado com os tiros. Pareceram-lhe foguetes de festa a rebentarem no paço. Foi à janela. Viam-se as tropas de Saldanha entricheiradas nas árvores com o cano das espingardas a brilhar na luz fresca da primeira manhã.

– Deve ser engano – exclamou ele, assarapantado, pensando sem perceber porquê numa partida de Carnaval ou num baile de mascarados.

Mas o Carnaval já esquecera há muito e um baile de máscaras não começava de madrugada, na praça fronteira ao palácio. Os tiros continuaram e pouco depois vieram dizer-lhe que Saldanha cercava o paço e estava na disposição de vergar a guarda do palácio à força de chumbo. Ele mandou de imediato parar a fuzilaria. Abominava tiros e sangue. Nisto, e no facto de viver separado da mulher, se assemelhava muito ao bisavô materno, João VI. São dois factos estruturais – um da  vida interior e outro da existência privada – que chegam para fazer destes dois homens, familiares do mesmo destino.

A História repete-se, repete-se sempre, autêntica roda do Samsara a rodar desde o princípio do mundo, com os mesmos erros, as mesmas cores, o mesmo sofrimento. A História repete-se, sim, mas com uma única diferença, que é a originalidade de cada ser que vive; essa, a individualidade, é irrepetível. As papoilas vermelhas que eu vi na minha infância são exactamente iguais àquelas que agora estão a descorar neste mês de Junho no meu quintal. A diferença que existe entre essas duas gerações separadas por algumas décadas não é perceptível aos meus olhos porque é ínfima e íntima. Assim, a experiência de Luís parece repetir a de João; vistos à distância de quase dois séculos, como eu os vejo, estes dois homens confundem-se um com outro, como se já se haviam misturado aos olhos da mãe, mas entre os dois existe uma falha imperceptível, que se torna cada vez mais abissal à medida que chegamos ao ser de cada um. Um é João e outro é Luís e tanto basta para só ao longe, muito ao longe, eles se confundirem um com o outro.

Mandou o rei chamar de imediato o marechal. Apareceu Saldanha com o duro ar que punha nestas ocasiões, e que num homem de oitenta anos era forçado, se não fosse como era uma cena irrisória que só assustava um pobre de espírito como Luís, e desfiou o rol das suas reinvindicações. Queria a demissão de Loulé, o governo nas suas mãos e o encerramento das Cortes. O rei estava por tudo, desde que Saldanha lhe garantisse que o pronunciamento militar se sumia debaixo da terra, sem deixar rasto. Acedeu em demitir Nuno Rolim Barreto, em empossar Saldanha como presidente do ministério, em mandar fechar o Parlamento.

Mas desta vez o país recebeu mal o golpe do velho Saldanha. Havia um problema de défice nas contas do governo e uma dívida cada vez maior do paço, muito por culpa da rainha e das suas despesas cegas, mas tirando isso o governo não estava acusado de escândalos, como no tempo dos Cabrais, e o rei era popular, recebendo a sincera simpatia, se não o aplauso caloroso, de várias classes. O seu feitio simples e modesto, sem se dar ares de grande senhor, gostando de ser visto na esquina da Havaneza a fumar a sua cigarrilha na companhia de quem por lá estava, caía bem. Passou pois por vítima dum velho tresloucado que decidira fora de prazo vir para a rua aos tiros.

– Saldanha que volte para casa – ouvia-se dizer com frequência e muito enfado nas ruas. – Para um disparate destes, mais valia nunca ter saído.

Gritava-se alto, por todo o lado, contra a saldanhada. O marechal depressa percebeu que não tinha condições de governar contra o país, para mais em ditadura, sem o apoio das Câmaras. Era menos contumaz que presunçoso; pintava-se como herói mas não tinha os olhos vendados. Sá da Bandeira regressou ao governo, voltando o rotativismo ou a fusão dos anos anteriores com o acordo dos partidos ou das facções. Saldanha ficou por perto para assistir ao desenrolar da situação. Mas logo depois, num serão do São Carlos, quando se cantava ópera, Maria Pia avistou nos corredores as lunetas miúdas do marechal. Não descansou enquanto não se abeirou dele, para lhe dizer com ar ríspido aquilo que pensava.

– Si j’étais le roi, maréchal, j’ordonnerais ici même votre fusillade.

Era assim a rainha e não havia Saldanha que a calasse. O marechal inclinou a cabeça e retirou. Foi para Londres e por lá morreu seis anos depois, sem mais haver regressado à pátria. Era talvez um destino à medida dum homem que medira os seus pés pelos de Napoleão e que mostrara sempre ter tanto de valente como de burlesco. Só não usurpara o trono porque vinha duma família tradicionalmente ligada ao paço, bem industriada na etiqueta das sucessões e no acatamento da excepção que era a família real. Fosse ele um Manel das Bouças e teria varrido desde cedo o trono, sem respeito nem complacência. Teria sido rei, imperador, presidente, cônsul, comissário-chefe, o que lhe desse na bolha, mas nunca o árbitro abusivo do paço que acabou por ser.

Adeus Saldanha, que tiveste em Londres uma Santa Helena doirada como Napoleão teve em Santa Helena um carcereiro inglês de chumbo. Tu, que incomodaste ainda o reinado de Luís e nasceste no tempo da Viradeira, mostras bem que a história de Carlos não se entende sem recuarmos ao tempo de Maria I.

Veio de imediato a guerra franco-prussiana. Em Agosto desse ano as tropas do rei da Prússia, Guilherme de Hohenzollern, entraram de roldão pela fronteira leste da França e em poucas semanas quebraram a resistência dos soldados Franceses, aprisionando Napoleão III em Sedan. Paris resistiu, mas acabou por capitular em Janeiro do ano seguinte; o rei da Prússia ocupou o palácio de Versailles e aí se coroou imperador da Alemanha com o nome de Guilherme I. Logo de seguida, uma insurreição popular em Paris deu o governo da cidade aos discípulos de Proudhon, que morrera meia dúzia de anos antes. O comunismo libertário afastou os padres e as ordens religiosas, racionalizou a distribuição da riqueza, democratizou a instrução, humanizou o trabalho, minicipalizou o governo, trouxe o operariado para padrões culturais ilustrados, criou instrumentos eficazes de participação política e de cidadania.

Em Portugal estas notícias aterraram. Era o primeiro governo operário do mundo; as ideias comunistas e libertárias que tinham nascido no seio da agitação de 1848 renasciam vitoriosas, depois da repressão a que haviam estado sujeitas no segundo Império. Era inacreditável. O governo do marquês de Bolama, o velho António José de Ávila, um dos políticos de Luís que vinha do tempo do imperador, deitou as mãos à cabeça e pôs-se a farejar por Lisboa a ver se dava com alguma sucursal daquelas ideias. Estava disposto a examinar minuciosamente os quatro cantos do país para perceber se em algum lado o fogo libertário lavrava.

– Racho-os a todos ­– disse o velho Ávila, convencido que tratava do caso como o mestre-escola do seu Faial natal dava conta da disciplina na sala de aula.

Mas não; o país não dava sequer pelo que se passava em Paris e a capital estava sossegada e pacata, com os teatros cheios e os cafés frios ao que se passava por Paris. Os Republicanos portugueses, de Oliveira Marreca a Elias Garcia, eram cordatos e detestavam desordens. Para eles a República era o produto duma evolução natural da monarquia constitucional. Estavam inseridos no sistema, aceitavam as instituições, contribuíam para os actos eleitorais. No fundo, acreditavam que Portugal vivia desde 1834 numa República coroada. Faziam o seu trabalho dentro do sistema e não queriam revoluções nem desacatos. Eram ordeiros e pacíficos.

Por fim, o governo lá deu com um grupo buliçoso de rapazes de boas famílias, acabados de chegar de Coimbra, desejosos de publicidade e atenção, que estavam a fazer umas eruditas conferências no Chiado, no casino Lisbonense. Aí sim, a par de muita letra cortada, incompreensível, falava-se de socialismo, de revolução, de Proudhon, de Internacional operária. O governo esfregou as mãos; afinal sempre houvera razão em espiolhar miudamente o país à procura de ideias subversivas. Elas lá estavam, ali mesmo, no coração ronceiro da Lisboa galante e preclara, dispostas decerto a incendiar a estimável paz da cidade e a dinamitar as benévolas instituições constitucionais. O velho Ávila achou ainda assim de mais rachar aquela rapaziada bem relacionada, acabada de chegar de Coimbra, mas acautelou-se.

– Corta-se o mal pela raiz ­– disse. – Acaba-se com aquilo.

Proibiram-se de imediato as conferências do Casino, mandando o ministério afixar na porta do estabelecimento a portaria da proibição, onde se acusavam as conferências de ofenderem as leis do reino e o código fundamental da monarquia. Quando os rapazes lá chegaram, deram com a tropa no largo, sanhuda e desconfiada, e com as portas fechadas. Voltaram costas e foram para o café Central em ruidosa camaradagem beber copinhos de licor e redigir um protesto. Era assim a perigosa revolução que o audacioso marquês de Bolama tivera a astúcia de desmontar.

Espicaçado por tal sucesso, deu o Ávila em continuar com minúcia a investigação. Ao fim de muita indagação lá deu com um desconhecido e ignorado panfleto, A Comuna de Paris e o Governo de Versailles, publicado por um antigo estudante de Coimbra, José Falcão, que mandou de imediato processar por perigoso e criminoso agitador. Estava desarticulada, nas suas palavras, a tenebrosa insurreição com que os internacionalistas de Paris pretendiam consumir pelo fogo a formosa pacatez portuguesa.

Ao mesmo tempo que isto se dava no estéril Chiado, Paris vivia os dias dramáticos da invasão pelo exército de Mac-Mahon, duque de Magenta. Cerca de cento e cinquenta a duzentos mil soldados marchavam sobre a cidade dispostos a pôr cobro à experiência de governo popular que ela estava a viver. Deu-se isso nos dias finais de Maio e em pouco mais de oito dias Paris tinha vinte mil mortos espalhados pelas ruas e bairros inteiros em escombros, desfeitos pelo tiro dos morteiros. O exército de Mac-Mahon preferira destruir a cidade a deixá-la na mão dos anarquistas.

A notícia destes acontecimentos quando chegou a Lisboa, amedrontou. A carnificina nas ruas de Paris e a destruição da cidade era justificada com os excessos dos revolucionários. Tudo recaía sobre os ombros dos perigosos anarquistas que haviam reconvertido as igrejas em escolas e hospitais. O próprio rei se condoeu do destino da cidade, onde havia passado tantas e tantas horas de inefáveis prazeres.

– Que dor de alma. As esplanadas do Trezenet varridas para sempre da face da Terra – exclamou ele, quase incrédulo, quando lhe deram notícias pormenorizadas da morteirada que devastara a cidade.

Sentiu aquilo a fundo. Andou um tempo triste e acabrunhado, como se lhe tivessem roubado uma parte importante do seu passado ou da sua memória. Faziam-lhe impressão vinte mil mortos espalhados pelas ruínas da cidade, mas muito mais medo lhe fazia aquele buraco negro onde se sumia o seu passado. De repente, tudo aquilo que vivera na cidade lhe parecia uma mentira ou uma impossibilidade. Depois, pouco a pouco, aquele mal-estar esbateu-se o seu tanto. Paris ficava longe, Napoleão III era uma miragem, o seu passado tinha outros nomes.

– Eu bem dizia que Paris não chegava aos calcanhares de Vila Viçosa – repetia ele para se consolar, sempre que vinham ao caso os sucessos recentes da França do segundo império.

O rei era por natureza um optimista. Quando falhava um tiro, era capaz de se desculpar que mais valia uma perdiz viva, em liberdade, que um tiro no alvo. Lamentou Paris, mas elogiou Portugal, onde aqueles eventos, segundo ele, nunca poderiam ter lugar. Tal como em 1848, quando os duros proletários de Paris vandalizaram os palácios dos Orleães e a rainha de Portugal e o seu confessor se ficaram a lamber os beiços, gulosos de leitão e pudim, também desta vez, com os acontecimentos da Comuna e do governo de Versalhes, Luís se ficou a revirar os olhos, cheio de apetite pelo país em que vivia e que um tanto ao acaso lhe calhara governar. Quer o levantamento anti-fiscal de Janeiro de 1868, que ficou conhecido pela Janeirinha, quer o pronunciamento de Saldanha de Maio de 1870 eram brincadeiras anódinas de gaiatos quando comparados com as abstrusas trapalhadas em que a França andava metida. Esfregou as mãos, carregou na manteiga, visitou umas actrizes, libou com vinhos raros e exclamou convicto da sua certeza.

– Ao Diabo a sisudez e a tristeza!

Maria Pia por sua vez viveu toda aquela agitação europeia com o seu génio de conflituosa autoritária. Se antes quis fuzilar Saldanha num dos corredores do teatro de São Carlos, mal teve nota dos propósitos da Comuna deu em vociferar como uma boca de bacamarte. Cuspia fogo e pragas. Depois, quando vieram as descrições das carnificinas de Mac-Mahon, ela descreu da eficácia do vencedor de Magenta e inconformada com branduras bateu o pé.

Quando lhe lastimavam aquelas mortes, ela escandalizava-se e exclamava irada.

–  Ça va, non?! Vingt mille âmes dans une ville avec cinq cents mille c’est rien. Moi, à sa place, je ne tuerais pas vingt mille, mas au moins deux cents mille.

Eram puerilidades de criança caprichosa, mas ainda assim punham a nu a sua vontade; não tinha noção do valor do dinheiro, que gastava a rodo, nem da vida humana. Desde os acontecimentos que levaram à rotura com o marido, que os seus nervos tremiam como folhas gastas no Outono. Não admitia a mais leve contrariedade e era capaz por simples afirmação pessoal ou por desfeita imaginada de se fazer esperar horas. Tinha vinte e poucos anos, um corpo elegante e lascivo, mas um metabolismo destrambelhado, gasto por uma guerra permanente com o marido. Sofria de perturbações gástricas graves, com dores horríveis no ventre, que exigiam estadias cada vez mais prolongadas nas termas médicas, a águas, e mostrava um sono frágil, agitado, que a obrigava a viver mergulhada em horríveis enxaquecas. Continuava inconscientemente perdulária e chocante. Só em jornais gastava uma fortuna; chegavam todos os dias ao paço, em seu nome, mais de cinquenta publicações portuguesas e outras tantas estrangeiras, que ela nem sequer se curvava a abrir. Tal como vinham assim partiam, desta vez para o lixo. E todos os dias, quando estava na Ajuda, dava recepções, bailes, banquetes e saraus. As dívidas da Casa Real subiam, subiam e começavam a escandalizar. Os jornais indagavam e o povo comentava. Por fim, talvez para experimentar recompor o sono, arranjou o primeiro amante, um italiano da legação que lhe fez a corte a jeito e com quem passou a cear em privado.

Os filhos nesta altura começavam a espigar. Carlos ia a caminho dos dez anos e mostrava-se um belo rapaz, cabelos loiros aos caracóis, pele fina e rosada, olho azul vivo e inteligente, fronte alta e ar determinado. Os mestres que por esta altura o acompanhavam davam conta do seu bom desempenho escolar. Era um rapaz vivo, que aprendera num repente a ler o português e o francês, mas arrogante, dado a amuos contumazes, incapaz de aceitar um conselho ou um contratempo. Habituara-se a uma vida fechada, onde a etiqueta severa da mãe dominava e punha o exemplo. O seu convívio limitava-se ao irmão mais novo, que se habituara a humilhar, e que a menos do que ele tinha um bom palmo de altura, e também de testa, e a dois ou três visitantes da sua idade que vinham ao paço festejar o Natal, o Carnaval ou o aniversário dos infantes. Um deles era Tomás de Melo Breyner, da família dos condes de Ficalho, futuro conde de Mafra, que casou mais tarde com a filha dos condes de Burnay; outro era o filho do conde de Valbom, Carlos Lobo de Ávila, que, morrendo cedo, aos trinta e cinco anos, teve ainda assim tempo para ser ministro e escritor, nunca deixando de ser íntimo do rei e frequentador da sua casa.

Tirando isso, sabia quem era e fazia-se servir, mostrando-se tão ou mais áspero do que a mãe. Aos nove anos teve a primeira espingarda dada pelo pai e logo desatou aos tiros. Punha uma crueldade particular no tiro aos pombos, que os criados lhe davam pacientemente como alvo na tapada de Mafra ou nos jardins da Ajuda. Um dia, depois de descarregar uma cartucheira numa dúzia inocente de pombos, que ficaram aos seus pés depenados numa poça de sangue, saiu-se com um dito inconveniente, que foi tomado à laia de divertido e humorado.

– Quando for rei, se alguém se meter comigo, dou-lhe um tiro.

Queria-se bravo e destemido. Estava sempre pronto para um encontrão. Suportava bem o sangue e o exercício físico. Tinha um corpo possante e rijo, sem ser disforme, e uma altura acima da média para a idade. Inclinava ao riso e à boa-disposição; tomava-se por alto e teso. Gostava de cavalos e de toiros e passava os meses chuvosos nos picadeiros da família a treinar o volteio. No Verão estava em Cascais com a mãe e o irmão para uma época de banhos e praia. Adorava a vida que fazia pela vila piscatória e amava o mar com um sentimento tão intenso que nada se lhe comparava. Era o seu gigante de estimação ou o seu turibulado brinquedo de corda. O fascínio começava na areia, com as caprichosas conchas e as polidas pedrinhas que as marés traziam e que ele encantado recolhia e coleccionava em caixinhas de madeira aprontadas para o efeito, e terminava nas águas, onde ele depressa aprendeu a mergulhar e a desembaraçar-se das altas ondas que se esbarrondavam ovantes, aos solavancos, na praia. Adorava o sabor que as águas salgadas do oceano lhe deixavam nos lábios depois do banho. Pelo meio, ficavam as misteriosas algas, que vinham dar à costa na rebentação e por lá ficavam a secar ao sol como borrões envernizados de tinta. Havia ainda o tecto de vidro das águas, as covinhas de água que a vazante deixava à mostra e os barcos à vela, fantasmáticos e solitários, que surgiam e desapareciam no horizonte como por magia e que para ele tinham um magnetismo gárrulo e maravilhoso.

Uma manhã do princípio de Outubro, no ano de 1873, na praia do Mexilhoeiro, cerca da Boca do Inferno, quis mostrar as suas proezas no mar. As ondas batiam nas rochas do carreiro, salpicando tudo de espuma, numa maré viva que metia medo, mas ele entrou pelo mar dentro numa bravata de gestos e monossílabos. Sentia-se um deus do mar, que regressasse ao seio da sua natural habitação.

– Eh, Eh… Eh touro! Eh touro … – exclamava ele, oferecendo a carne rija da barriga à água fria do oceano.

Em menos de nada viu-se envolvido pelas ondas e arrastado para o mar fundo. Deu voltas e voltas no seio das águas sem perceber sequer o que lhe acontecia. Recordou-se dum jarrão de loiça que havia num dos corredores das Necessidades e do sino que costumava tocar na capela da Ajuda. Um traço branco trancou-se-lhe na retina, como se o mundo fosse desaparecer. Valeu-lhe estar por perto o faroleiro da Guia, um homem experiente do mar, que o trouxe são e salvo pelos caracóis dos cabelos para a areia da praia. A mãe, que era histérica e nevropata, ia morrendo de susto, aos berros, sem ar, sufocada nos seus próprios gritos de aflição. Ele, pelo contrário, mal se apanhou ao Sol, depois de tossir fundo e cuspir baba e ranho de mistura com algas e conchas, pôs-se a esmurrar o ar, com o sobrolho casmurro e as palavras carregadas.

– Amanhã tiro-te as peneiras, meu grande asno.

Desde 1870 que o rei mandara acondicionar a cidadela da vila de Cascais para passar por lá uns dias nos meses quentes. A princípio, pensava tão-só retomar os tempos do Alfeite e desenfastiar sozinho com os oficiais da armada que tomavam conta da fortaleza que vigiava a entrada de Lisboa. Depois, quando lá levou os filhos, percebeu a atracção do filho mais velho pelo lugar e o gosto que a rainha punha na vilegiatura ao pé do oceano. Depressa Maria Pia passou a frequentar a pequena vila de pescadores, reservando-a só para si. Ia com os dois meninos nos finais de Julho ou nos princípios de Agosto e só regressava no termo de Outubro, depois duma época de banhos e boa vida em que festejava com estrondo e dissipação profusa o aniversário do príncipe e o seu próprio, a 28 de Setembro e a 16 de Outubro, quando não o de Afonso Henriques, a 31 de Julho.

Logo que a rainha tomou a vila como centro de vilegiatura, uma sociedade de aristocratas e de grandes financeiros seguiu na sua peugada. Restauraram-se casas, edificaram-se palacetes, criaram-se clubes para gente fina. Não havia nada melhor do que passar as manhãs na praia e fazer amor à noite, nos lânguidos canapés mandados vir de Paris, ainda com grânulos de areia metidos entre os dedos dos pés; o supremo prazer desta Terra era encontrar nesses momentos, à luz viva dos castiçais, uma tatuagem lilás na volta do tornozelo, produto duma alga que por lá ficara colada e esquecida.

Mal chegavam os dias grandes de Sol, gerava-se na vila um ambiente cosmopolita, com uma pequena multidão colorida a correr pelas ruas, os meninos pela mão, as criadas atrás, os homens em grupo, de gravatas vistosas e roupas leves e flutuantes, as senhoras de sombrinha de seda na mão, os braços nus e alvos; as manhãs passavam-se na areia da praia, com boné de pala e sapatilhas de lona, jogando cartas nas barracas e vigiando as crianças, e as tardes nos clubes snobes do centro da vila. Fazia-se de conta que o mundo corria pelo melhor e que tudo se resumia aos mexericos dos vizinhos e às luxuosas e cansativas recepções do serão. Salvante isso, para se poder amaldiçoar a vida, sobrava apenas algum contratempo fútil.

Uma tarde a rainha, depois de ter esquecido nessa manhã um dos seus anéis na real barraca, perdeu duas vezes seguidas ao quino. Blasfemou intempéries contra Deus por tal descaso. À saída, deu de caras com uma pobre varina vestida de preto, calosos pés descalços, canastra pousada no chão, que a esperava para lhe estender a mão ou o avental, à esmola; ela, roída de raiva e moléstia, não hesitou em agitar diante de si a sombrinha como um estoque vingador.

– Allez… Vous êtes moche!

Era a belle-époque que começava para os galantes e endinheirados de Lisboa ao mesmo tempo que uma outra idade, mais trágica e menos ligeira, chegava ao seu termo. Em 1873 morria a ex-imperatriz, Amélia de Beauharnais, filha do duque de Leuchtenberg, que o barbeiro Plácido, noutros tempos e noutros lugares, mais ardentes e apaixonados, crismara de Napoleão de saias. Tinha pouco mais de sessenta anos, mas muito desgosto em cima. Estivera casada cinco anos; depois fora-se-lhe o esposo com trinta e cinco anos. De seguida viera a morte do irmão Augusto, também em Lisboa, aos vinte e cinco anos. Mais tarde, chegaram as dificuldades com a nora e a morte da filha, aos vinte e dois anos. Ela, irreconhecível e inconsolável, deixara-se ficar naquela modorra lisbonina à espera da morte. Três anos depois de Amélia, também Isabel Maria, a filha dilecta de João VI, a mulher do primeiro rei de Portugal, como a tratava maldosamente o sobrinho Carlos, partiu deste mundo. Em Londres, no mesmo ano, expirava o velho Saldanha, ao mesmo tempo que em Lisboa Sá da Bandeira, o maneta, fechava os olhos. Uns meses antes fora a vez de Nuno Rolim Barreto, o homem mais belo do seu tempo, duque de Loulé, e de Joaquim António de Aguiar, o mata-frades do macho Pedro. Era todo um passado exaltado e violento que desaparecia sem deixar rasto, para em seu lugar surgir um mundo espumoso e oco, que vivia de elegâncias e futilidades e se julgava eterno, imune a crises e a perigos.

Carlos era nesta época um rapaz de treze anos, que continuava a dar boa conta dos seus trabalhos escolares. Demais, mostrava-se um rapaz dotado artisticamente, que aguarelava com originalidade técnica e realismo, e ainda um interessado na paciente observação da natureza, por esta porção se mostrando um digno sucessor do seu ilustrado tio, Pedro V. Datam desta altura as suas relações com o futuro marquês de Ficalho, Francisco Manuel de Melo Breyner, muito mais velho do que ele, que ensinava botânica na Politécnica de Lisboa e preparava um estudo sobre a flora de Os Lusíadas, e que veio a ser mordomo-mor da sua Casa Real. Apesar da diferença de idade, o príncipe não se coibia de lhe beliscar as orelhas, mostrando-se um adulto temporão e de tineta azeda. Certo dia que Ficalho ficara de aparecer, para examinar uns pássaros na tapada da Ajuda, e lhe chegou com uns minutos de atraso, ele não se conteve.

– Oiça, Francisco, você escusa de vir, se é para me fazer esperar.

Era um gaiato imberbe, muito inexperiente, mas com venetas geniosas. Juntava a isto uma soberba inflexível. O pai, percebendo-lhe o génio torto da mãe, deu-lhe como mestre um apertado jurisconsulto moderado e liberal, Martens Ferrão, que havia sido político probo de Pedro V no ministério regenerador do duque da Terceira. Mas, salvando essa influência de moderação, o jovem príncipe continuava mergulhado num meio grosso e caprichoso, que acabava por ser dissolvente. Punha grande gosto na equitação e no jogo dos touros, dando-se muito com os moços de estrebaria que na Ajuda, no Alfeite, em Mafra ou em Vila Viçosa lhe preparavam arreios e montadas e lhe serviam exemplos de passes para touros e garraios. Ao mesmos tempo que o municiavam de truques para a arena, iniciavam-no nas grosserias do calão popular afadistado. Ele, sendo estudante aplicado e de distintos resultados, delirava com aquela língua estafada de farrapos, cheia de velhacaria e picante.

Uma noite a mãe chegou-se a ele de nariz arrebitado para lhe pedir explicações duma violência que sucedera ao irmão.

– Mau… Não me venha arrotar postas de pescada – respondeu ele, voltando-lhe as costas, sem mais.

As relações entre os dois azedaram-se nessa altura. Eram por de mais parecidos para se poderem aceitar. Estavam destinados a implicar um com o outro; nunca se podiam entender ou considerar. Se os deixassem, matavam-se com os gadanhos, porque tinham consciência que o lugar que ambicionavam era só um e ambos o desejavam. O mundo era demasiado pequeno para os dois. A mãe, com o seu génio de intratável, voltou-lhe costas, riscando-o do número dos vivos e dedicando-se ao segundo filho, Afonso Henriques, muito mais plácido e obediente. Tinha parecenças com o tio Augusto, o terno e amado Tubinho, que ficara meio paraplégico com o tifo de 1861 e que vivia como um eremita ou um indigente nos arredores do círculo do cartomante das Necessidades e da condessa d’Edla; Afonso era leviano, desleixado e estulto como ele, mas também sem lubricidade nem maldade.

As relações de estrebaria de Carlos pareciam repetir as de Luís com a armada portuguesa. Havia apenas uma diferença de grau. Os marçanos das garraiadas eram muito mais amalandrados que os dos barcos; em vez de águas mornas, tinham éguas ferozes e fesceninas. Quando as apanhavam a jeito, na época do cio, desciam as calças e enfiavam sem hesitações o pau nas bordas do bicho. Riam depois, soltos e desprendidos. Não tinham outra moral que a da natureza pagã e selvagem. O traço do arcanjo loiro de todo se perdera na corte portuguesa depois que Maria II e Pedro V se desinteressaram da sua sorte e memória; agora o tique do jovem Carlos em acamaradar com os moços de curral fazia lembrar um factor hereditário que lhe chegava por empréstimo tardio, ou por desvio calado, do filho querido de Carlota Joaquina.

Carlos achou-se a seu gosto naquele mundo primitivo e instintivo. Veio-lhe ao de cima, estonteante e nítido, o desejo de sexo. O pai, quando deu conta das afogueadas aflições em que ele andava, riu e em vez de lhe meter uma rolha na pressão deu em lhe procurar uma via de saída. Lembrou-se das latrinas do Arsenal onde na juventude tocara o bicho e achou que era um desperdício o rapaz ter de fazer o mesmo, fosse debaixo dos lençóis ou sentado na sanita.

– Vais para Vila Viçosa; lá te arranjarão entretém a teu gosto – indicou ele.

Aquele filho deixava-o apreensivo com tanta prosápia, mas era incapaz de lhe querer mal. Tinha com ele uma relação sem peias, muito diferente daquela que a mãe com ele mantinha. Ela, nevrótica e disparatada, gritava-lhe; ele, benévolo e tolerante, deixava correr, com um sorriso fino e traquina. Mais tarde, quando o sentisse próximo do trono, pensava aconselhar moderação na soberba alta, apesar de o saber adverso a avisos e limitações. Punha que o filho lhe herdasse o jeito, porque via neste a sagesa do seu próprio pai. Por ora tudo o que desejava era amansá-lo, levá-lo a bem, ganhar a sua confiança e amizade. E a ocasião era superior para lhe passar a mão pelo pêlo.

Foi Carlos para Vila Viçosa meio desconfiado. Não percebia que entretenimento era esse. Corria a Primavera e a época não era de montaria. E os pombos, que ele tanto gostava de deitar abaixo, até na Ajuda fazia gosto ao dedo. Não havia dia que não gastasse uma cartucheira com eles, estivesse onde estivesse. Mas mal se instalou no palácio do Alentejo, percebeu o que o pai queria dizer com o tal entretenimento. Os velhos criados da confiança do rei, industriados no negócio, não tardaram em trazer-lhe a primeira vítima, uma boieira da herdade, tão furtiva como formosa, que passava os dias ao Deus-dará. Ele, quando acabou de devorar a rústica ostra, lambeu os lábios gulosos. E outras depois vieram, para que ele não se enfastiasse da separação da primeira, ficando para todo o sempre preso na teia de melancolia e cisma que pode acontecer na descarga de origem.

– Ele que se habitue a trocar as camisas que sujou – cuidara o rei de prevenir os homens que acompanharam o príncipe e conheciam o seu recado.

Quando o novo Barba Azul regressou a Lisboa, o pai foi esperá-lo ao barracão do Terreiro do Paço, onde chegava o barco que vinha da estação ferroviária do Barreiro. A viagem entre o grande palácio dos Braganças e Lisboa, que ainda no tempo de Maria II demorava vários dias, num cansaço extenuante, era agora rápida e confortável. Em Vila Viçosa tomava-se uma sege até Estremoz, na vizinhança, onde se embarcava na real carruagem, na qual depois se seguia por via férrea, em ambiente luxuoso, dilatado e fofo, de sedas roxas e frescas, até ao Barreiro, parando em Évora, Casa Branca e Pinhal Novo.

– Então por lá a caça foi vantajosa? – perguntou-lhe o pai, mal o viu.

Carlos piscou-lhe o olho, satisfeito e afável. Corria o fim da Primavera, os dias vinham quentes e secos, ele envergava um completo cinzento-claro, de casimira fina, que mandara vir de Londres. Quem o visse à distância, abraçando o pai, de boné na cabeça, jaquetão aberto, camisa de seda a descoberto, com letra e coroa bordadas a alvo, bota envernizada e lustrosa, diria que se tratava de rapaz acabado de chegar do Paraíso. Não havia mal que o pudesse tocar; era um anjo disfarçado de homem. A carne era robusta, o rosto rosado, o sorriso determinado, o olho azul, as mãos fortes, a roupa invejável. Ao lado daquela inclinação que ele mostrava para a grosseria, punha também gosto no requinte e começava a interessar-se pela elegância. Assinava revistas de moda dos quatro cantos do mundo e recebia os catálogos dos melhores alfaiates de Paris e Londres. Via na elegância, naquela que só à sua bolsa lhe era acessível, uma continuação do seu soberbo génio de vencedor. Viera ao mundo para triunfar, quer dizer, para ser rei, e não estava disposto a ceder um dedo nesta prerrogativa do seu destino.

O país político quando o viu assim seguro e desenvolto julgou por bem levá-lo às Cortes a jurar obediência à Carta e adicionais. Martens Ferrão, ajudado por Henrique O’Neill, que pertencera ao círculo de Herculano, adestrara-o nos preceitos constitucionais e dera-lhe uma memória da curta História política do país sob o novo regime. E no dia 14 de Março de 1878, com quatorze anos, presumido e pomposo, pensando-se único, lá foi a S. Bento prestar juramento e ser reconhecido como herdeiro presumptivo da coroa. Aquilo era uma corte ronceira, onde apenas se arriscava o pataco de cobre, mas ainda assim o seu herdeiro tinha-se no mundo por excepção cimeira. De regresso, quando se apanhou no landau com o pai e a mãe, lado a lado com o irmão, deu-lhe para se meter com este.

– Meu grande chouriço, cabeçeavas de sono. Da próxima dou ordens à Guarda para levares uma valente pranchada.

Continuava a ser o mesmo gaiato desbocado que uns anos antes se metia com a tia Isabel quando esta aparecia embiocada e trágica, teia de aranha na cabeça e caliça nos ombros, nas majestosas salas de Maria Pia. Dera-lhe entretanto para fazer de sátiro, mostrando os cascos duros e selvagens, deitando mão áspera e rija às delicadas flores das donzelas, mas tirando essa máscara de fauno e os bons resultados nos estudos continuava a ser um menino malévolo e quase inocente. Adorava meter-se com a timidez do irmão, que vivia protegido pelas perfumadas saias da mãe, e não perdia ocasião para lhe ir às orelhas. Desta vez, por causa do episódio das Cortes, não o largou durante dias. Foi-lhe às orelhas, pisou-o por baixo da mesa, beliscou-o nos estudos, atormentando-o tanto com diabruras abegãs que uma manhã Afonso Henriques lhe atirou de lágrimas nos olhos com um malévolo vaticínio.

– Nunca hás-de ser rei, mano. Os Republicanos roubar-te-ão a coroa.

Carlos soltou uma risada de triunfo e satisfação. Não encontrou no que ouviu mais do que um novo pretexto para saltar em cima das orelhas e dos calos do pobre irmão.

Mas depois a realidade mudou. Em Setembro fez quinze anos e sentiu-se irreconhecível, desavindo com o passado. Desligou-se de vez do irmão e passou a olhar com real interesse os rapazes mais velhos que apareciam pela corte e que viviam para fazer sala com o pai. Estava desejoso de se meter com eles, sonegando-os ao pai e criando ele próprio a sua pequena corte, com serões e ceias. Estanciavam por lá Carlos Lobo de Ávila, filho do conde de Valbom, Bernardo Pinheiro Correia de Melo, filho do visconde de Pindela e futuro conde de Arnoso, António Maria César e Meneses, filho do conde de Sabugosa, e Luís Maria Pinto de Soveral, futuro marquês de Soveral, que era conhecido pela sua astúcia de original como o Macaco Azul. Todos eles mais velhos do que Carlos, eram ainda suficientemente jovens, pródigos e ambiciosos, para poderem acamaradar com ele. Entre todos sobressaía Carlos Lobo de Ávila, com apenas três anos de diferença do herdeiro, que em criança convivera com ele nas festas do fim do ano e lhe servira de apoio em alguns estudos. E logo se lhes juntou o filho do conde de Mafra, Tomás de Melo Breyner. Desta vez emprestou os seus bons ofícios perto daquele conjunto de rapazes. Depressa Carlos se viu no centro do convívio do grupo, que por seu lado se sentiu encantado com as preferências do príncipe.

Que fazia o grupo? Ficalho, que também aparecia no cenáculo, e que já passara dos quarenta, tentou interessar os seus parceiros pela botânica, pelo livro antigo, pela gravura e pela literatura, mas foi assobiado e pateado com muito chiste e ruído.

– Deixe lá isso para outra ocasião, Francisco – disse-lhe Carlos. – Aqui o que conta é ter pilhéria e bizarria.

Carlos, embora mais novo, imberbe ainda, era pela situação privilegiada de anfitrião a alma da assembleia. O que ele desejava para os seus rapazes era picante e garbo, nada mais. Não punha de lado a erudição, o estudo, a arte, a ciência e outras flores da cultura humana, e por isso muito prezava o seu Francisco e seus rabiscos de literato e de naturalista, mas ali, naquelas reuniões, o que se queria era comida, elegância e chalaça.

– Que raio – dizia ele – precisamos de nos divertir. Para o estudo já basta cá o Martens Ferrão e a sua divisão de doutores.

Contavam-se por isso anedotas – e Carlos gostava delas bem sujas e lascivas – e serviam-se abundantes ceias. À parte, pregavam-se desfeitas e partidas, faziam-se bailes de máscaras e recepções, como se a vida fosse um infinito Carnaval, sem cinzas nem quaresma.

Uma das graças que o herdeiro se lembrou de fazer, depois de convidar os amigos a dormirem na Ajuda, foi meter-lhes pelo corredor dos quartos dois garraios negros que mandara especialmente vir no dia anterior de Vila Franca e que criaram um reboliço monumental no paço e um susto de morte no pobre Afonso, que era por esta altura um desastrado rapazinho de treze ou quatorze anos de grandes caracóis loiros e ar doce e espantadiço.

Soveral, o Macaco Azul, que era malandrim e bajulador, não deixou passar a ocasião para fazer espírito.

– Ouve lá, Carlos, era bem mais catita ter acordado com duas negras meias de vidro no escultural corpo duma pêssega toda nua, aos suspiros, que com aquele cheiro azedo de azeitona e aqueles urros desenfreados e diabólicos.

Ele não se fez esperar e na vez seguinte que os convidou a pernoitar no paço trouxe-lhes duas galdérias arrebanhadas numa casa fina de espanholas do Chiado, que se despiram com inflexões lânguidas na voz e saracoteios no peito e nos quadris, tudo no meio de muita algazarra e muito brinde ruidoso com vinho branco espumoso.

No Verão o grupo assenhoreava-se de Cascais e pintava o sete nas praias e nos clubes janotas, onde se organizavam torneios de cartas e de ténis. Carlos aparecia de chapéu de palha na cabeça, sapatos de lona, calças de algodão claro, camisa de seda e raqueta na mão. Tinha um gosto especial em se exibir diante das senhoras, que protegidas por largos e vistosos chapéus de palha se encostavam de livro aberto descaído no regaço em esculturais bancos de mármore, olhando distraídas o cuidado relvado do ténis. Ao fundo, avistava-se uma tira azul de mar, chispando oiro. Outras vezes iam picar os cavalos para o lado da Guia ou caçar rolas para o pinhal da Marinha. Quando se sentiam mofinos, não hesitavam: iam fazer razias malvadas para o Estoril e para o Monte. Essas pilhagens eram remédio santo para a infelicidade ou para os tristes e cinzentos dias de nevoeiro em que não podiam pôr pé na praia; vinham de lá limpos e frescos, sem nenhum fastio.

Destestavam a burguesia comercial que, no encalço da adaptação da família real à zona, se instalava nos meses quentes nos Estoris, procurando imitar, de forma reles asseguravam eles, o que se passava por Cascais. Eles clamavam contra essa gente mesquinha, a que chamavam depreciativamente os piristas, e mais tarde por sugestão de Ficalho de lepidópteros. A si próprios, por contraste, se tinham por chiques. Era pois, naquela guerra do alecrim e da manjerona, o chiquismo contra o pirismo. Dia em que esta gente punha o pé nas ruas ou nas areias de Cascais era uma assuada de meter respeito, quando não uma batalha campal. Um dia Soveral, que era muito dado a estrangeirices, mormente às inglesisses do Times, veio com uma novidade.

– Meninos, preparem-se, oiçam. Não caiam e registem. Nós sómos o smart set.

A expressão ficou e ao lado de elegantes eles passaram a ser vivos, por oposição aos piristas, ordinários e estúpidos. Adoravam por isso as incursões perversas pelos Estoris. Gostavam especialmente de se meter com as jovens burguesinhas envergonhadas que regressavam das praias ou dos pinhais com os irmãos mais novos pela mão, cara tapada por largos chapéus de pano enfeitados de miosótis. Quando as mães, grossas e feias, aperreadas em grandes e desbotados vestidos do tempo de Maria II, apareciam de sombrinha em punho e sapatorros de ferro, eles riam e fugiam como vulgares deliquentes. À distância, um deles, por descarga e canalhice, voltava-se, pedia aos companheiros de fuga que retrocedessem e exclamava convicto e sério.

– Meus senhores, olhem-me aquela barbela descaída e peluda. É decerto o bispo de Lisboa que ali está a acenar-nos de casula e estola.

Ao que outro, invariavelmente respondia qualquer brincadeira do género.

– Enganas-te, menino. Aquilo que ali vês, de arma de fogo na mão, é o fero e bigodudo sargento dos lanceiros 4 de cavalaria.

Ficalho, parceiro mais vetusto, tentava pôr alguma ordem nesta estúrdia, apelando os rapazes à moderação, à leitura, à investigação séria e proveitosa. Eles liam, compravam livros, acumulavam jornais e magazines, tiravam horas de leitura e estudo, já que fazia parte do chiquismo ser instruído e publicar livros. Tinham todos pretensões a erudito e sonhavam deixar nome gordo nas letras ou na ciência pátrias. Mas, assim, a seco, gostavam de se meter com Ficalho, dando-lhe apupadas amigas. Carlos então, pimpolho e atrevido, fazia resistência forte às moralidades de Ficalho. Um serão, em que o veterano lhes aconselhara a leitura da botânica de Garcia de Orta e de Os Lusíadas do grande Luís, saiu-se o princípe com esta.

– Oiça lá, Francisco, aqui em Cascais de ciência só a pirilogia e do grande Luís só a Ilha dos Amores, com os Portugueses esfomeados atrás das endoidadas ninfas todas descascadas.

Riram todos e o filho do Pindela, que se esforçava por ser literato e dava o brasão se preciso fosse para passar por artista, pôs-se com gestos rebuscados a recitar a estrofe oitenta e três do Canto IX, que começa Oh! Que famintos beijos na floresta,/ E que mimoso choro que soava! E que enlevo, que estonteante arrastamento ele punha naquela aberta vogal inicial! Era de chorar de comoção e de morrer… a rir.

Era esta a nova sociedade de elegantes que se preparava para tomar conta do país. A belle-époque, que começara entre nós quando os outros ainda se matavam em Sedan e Versalhes e que tivera em Maria Pia a sua geratriz, encontrava nos espaços reservados do seu nascimento – Cascais, hipódromo de Belém, São Carlos, Turf clube – o seu natural seguimento. Aquele grupo de rapazes das mais ricas e tituladas famílias do reino eram a expressão do seu presente. Tornavam-se o alvo preferido das atenções dos jornais. Estes tinham pela primeira vez um largo número de leitores e estavam desse modo a transformar-se numa considerável força de mediação, geradora de valores e de imagens. O grupo selecto de Cascais tornava-se por isso modelo de imitação do país. Os rapazes criavam uma nova maneira de estar, descomplexada, inconsciente, janota, perdulária, que através da imprensa se impunha como moda. Eram eles que davam o ar do tempo, que é na existência dos homens algo de tão indefinível e de tão perceptível que não há História sem o seu entendimento. Cada tempo ou cada geração tem a sua cor própria e o trabalho do verdadeiro historiador é ser capaz de revelar essa essência inefável. Se para isso precisa de mentir, nem desculpa precisa de pedir, porque a mentira é aí apenas o artifício que lhe permite pintar a verdade.

Quando eu nasci a concreção do tempo surgia marcada por um modelo em que os homens usavam obrigatoriamente gravata, cabelo curto, cara escanhoada e as senhoras saias por baixo do joelho e sapato de salto alto. As roupas pretas das velhas senhoras conservavam o cheiro dum derradeiro resto de rapé e os quartos onde dormiam tinham sempre uma nuvem de pó-de-arroz, duma cor baça e rosa. Onde é que isso hoje já vai. Também quando Carlos nasceu a pátina do tempo era ainda aquela que o avô conhecera, com barbas passa-piolho, suíças fartas e pluviais, jaquetas azuis assertoadas que faziam lembrar as dos revolucionários de 1792. Na sua adolescência, esse verdete caiu e uma época nova mostrou-se. As senhoras substituíram a touca fechada por engraçados chapelinhos de plumas, deixando pela primeira vez à mostra os cabelos apanhados, e os homens deitaram abaixo barbas e bigodes. Nada sobreviveu na indumentária que lembrasse o cotim dos democratas pé-de-boi. Essa novidade transformou-se depois na tragédia do Terreiro do Paço ou nas sanguinosas trincheiras da primeira grande guerra.

Nem os políticos destoavam da evolução geral. Dos velhos, que haviam servido os primeiros reis constitucionais, já cá não estava nem um de peso; haviam sido substituídos por uma nova estirpe, menos firme, menos agressiva, mas muito mais dissimulada. As referências entre os moderados eram Fontes e António Serpa Pimentel e entre os radicais José Luciano de Castro e Anselmo Braamcamp. Os radicais chamavam-se agora – depois do Pacto da Granja, que fundira em 1876 dois agrupamentos anteriores, o Reformista, liderado por um bispo matreiro, Alves Martins, e o Histórico – Progressistas. Eis talvez o momento da chegada dos partidos políticos à sociedade portuguesa. Aterravam montando portentosas máquinas eleitorais, e impondo-se ao rei como os únicos protagonistas do palco onde se governava; herdavam os pactos das antigas facções liberais mas constituíam agora engrenagens labirínticas, que se apresentavam também como cobiçados lugares de ascensão social. A Granja, a poucas léguas de Gaia, era para o Porto o que Cascais era para Lisboa, uma estância de veraneio que a alta sociedade portuense adoptara, quando se dera conta das idas da família real para Cascais nos meses quentes de Verão.

Nem os acontecimentos em torno da assinatura do tratado de Louenço Marques com a Inglaterra em 1879, por um governo liderado por Fontes, com tumultos e marchas, perturbaram a deliciosa ilusão de paz e ventura que esta geração viveu ou começou por viver. Tudo se resumiu às facilidades que o governo estava disposto a dar aos Ingleses na feitura duma via férrea entre Lourenço Marques e o Transval, sem obstáculos alfandegários ou de outro tipo. Fontes e Andrade Corvo estavam bem mais interessados na ligação de Lisboa a Paris por via férrea do que em segurar a feitoria de Lourenço Marques, que só tinha um pobre resto, dizia-se, de marfim e âmbar para espremer. Os Progressistas, herdeiros da política africana do falecido Sá da Bandeira, escandalizaram-se e mobilizaram protestos para as ruas. Os Republicanos aproveitaram para marcar presença. Veio o cortejo cívico do terceiro centenário de Camões e a mudança de governo, com Anselmo Braamcamp na presidência e um jornalismo duro, crítico, vigilante como aquele que era feito no Século pelo aguerrido Sebastião Magalhães Lima, um jovem de vinte e tantos anos. Mas a bem dizer, tudo ficou na mesma, com os Republicanos de Oliveira Marreca e Elias Garcia a subirem nas eleições e a servirem de cunha nas alianças da oposição, na câmara de deputados ou nos municípios.

No círculo de Carlos, quando se soube do desfecho de tão perigosa crise, vociferou-se alto. Queriam fazer a revolução, o Terror se preciso fosse, para trazer nova vida ao país. Sabugosa, que acalentava sonhos de historiador e de reformador social, não hesitou mesmo em gritar.

– É o pirismo no governo, meus senhores, o alto pirismo. A Granja é um caso grave; tanto desafia o Estoril como Cascais. Preparem as mocas, selem os cavalos; é imperioso invadir o sertão.

A pirilogia, como ciência experimental e teórica do pirismo, tinha entretanto evoluído o seu tanto. Distinguia já entre um alto e um baixo pirismo; no primeiro, estavam os políticos e os veraneantes da Granja e no segundo os tendeiros – em geral Regeneradores – do Estoril. O baixo pirismo era o mais insuportável, aquele que em todos os tratados e súmulas da nova ciência era preciso varrer sem piedade da face da Terra; estrategos como o filho do Pindela, ou literatos como Lobo de Ávila, começavam até a conceber alianças estratégicas com o alto pirismo para melhor desancarem no baixo.

No fundo, todos se tinham por grandes homens. Uns porque eram respeitáveis chefes de partido, com uma desmedida importância dentro do país e da sua imprensa; os outros, porque eram chiques e acamaradavam com o herdeiro do trono. Acreditavam todos viver no melhor dos mundos. Uns porque eram incapazes de ver além da cerca do palácio da Ajuda, deitando os olhos para a miséria das ilhas operárias que começavam a cercar por todo o lado a grande cidade: outros porque liam jornais de mais e se esqueciam que tudo na vida tem o seu fecho.

Veio pouco depois a questão do casamento do herdeiro. Já no tempo da crise de Moçambique se começara a falar do assunto, mas a atenção do rei estava toda voltada para os problemas do governo e para as relações com a Inglaterra. Carlos era um rapaz de dezassete anos, muito desenvolvido, boa apresentação, boa instrução, que falava e escrevia o francês, o italiano e o inglês; compreendia ainda o alemão que de quando em quando o avô falava e com quem ele se entretinha a dar dois dedos de conversa inteligente. Demais, era artista e homem positivo, com uma vasta gama de estudos e conhecimentos. Por esta época tinha já um magote de bastardos feitos nas catraias de Vila Viçosa, Borba, Alandroal, São Romão e Orada. E se o leitor nisto não me dá fé, faça o favor de ir passear por essa fieira de lugares, a leste, e ver o que por lá vai ainda hoje de olho azul, cabelo ruivo e pele rosada. Mesmo ontem por lá vi, num poial de pedra, um figurão de barbela rija e descaída, bigodaça loira, peitaça cheia e enfunada, que era o retrato vivo do nosso Bragança.

Em mais lata porção que o pai, o príncipe era lascivo e glutão. Começara mais cedo as suas incursões pelas aldeias do Alentejo e aí se habituara a guardar o seu serralho privado. Quando chegava a Primavera e a seiva se lhe punha a correr no corpo, despertando nele uma rijeza de furar tijolos, ele desandava para Vila Viçosa. O pai, que não lhe levara a mal o roubo do Soveral e do Sabugosa, era porém inflexível com os privilégios de que os Braganças gozavam por terras do Alentejo.

– Vila Viçosa é couto privado e privilégio exclusivo de reis. Nem duques nem marqueses ali comem.

Ele cumpriu. Mandava vir dos melhores e mais finos alcouces de Lisboa carne tenra para os amigos, mas nunca os levou de trem na Primavera para Vila Viçosa. Quando chegava o equinócio de Março e a passarada se punha a chilrear de aflição, ele fazia as malas, despedia-se dos amigos e ia apanhar o vapor para o Barreiro, onde embarcava na carruagem real para Estremoz. Os amigos ficavam intrigados com aquelas fugas, pois não havia ida ao Alfeite ou a Mafra em que não fossem lembrados. Carlos era inacessível e fechado, raramente se mostrava na cidade, a não ser encerrado na sua farda de lanceiro de cavalaria, e nisto discordava muito do pai, que era popular e modesto no trajo civil, fora de moda, com que tantas vezes aparecia nas esquinas da cidade; com o seu grupo de amigos Carlos fazia porém questão em marcar familiaridade, numa camaradagem vulgar e quase reles. Por isso eles estranhavam mais aquelas surtidas e começavam a suspeitar das saias que por lá havia. Mal o apanhavam de regresso, metiam-se com ele, fingindo-se amuados. Carlos punha um ar sério e misterioso, que tanto podia ser de assentimento como de crítica. Por fim, esclarecia, saindo do mutismo em que entrava.

– Seja, meninos. Mas em assuntos de saias os amigos calam, não denunciam.

Eles calavam-se, pondo nesse silêncio um brio heróico de corporação militar. Sentiam-se a nova ala dos namorados, guardando no seu seio a figura do rei. Davam bravamente os braços e cerravam desse modo fileiras em torno dos segredos do futuro rei como se o protegessem das levas malditas dos castelhanos e das ondas ululantes dos infiéis.

Mas todo esse heroísmo, que se resumia afinal em apertar os lábios com força, levava muito gracejo de mistura, muita pilhéria, como Carlos gostava de dizer. Um serão, em que o herdeiro acabara de regressar duma demorada escapadela ao paço ducal, o futuro conde de Arnoso interpelou desta forma o herdeiro.

– Ouve lá, qualquer dia é preciso recolher todos os mapas e cartas do reino para lhes introduzir uma alteração.

Voltaram-se todos para ele.

– Troca lá isso por miúdos, ó Bernardo – pediu-lhe o príncipe curioso.

– Não sabes, meu Carlos? É que Vila Viçosa parece que vicia; passou a chamar-se Vila Viciosa.

O dito deu lugar a cachinada aberta e sonora. O topónimo pegou e não havia vez em que não trocassem por malícia deliberada a sílaba da palavra. Carlos adorava estes trocadilhos e dava tudo por uma boa e larga gargalhada. Estava na posse duma bela figura e não deixava por mãos alheias a sua boa reputação de galante. Tinha uma legião de bastardos no Alentejo mas começava a deitar a mão a todas as saias que lhe passavam ao pé dos olhos. Era conhecida a sua relação com uma criada na Ajuda; o jardineiro da cidadela de Cascais queixava-se que a filha lhe aparecera prenhe dele; em Belém, outro tanto e até em Queluz, onde a família tão de espaço ia, se dizia que uma das ajudantes da rouparia dera à luz um menino de olho azul e cabelo ruivo que era a cara chapada dele. O rapaz habituara-se depressa de mais a trocar a camisa que sujava, quando não, o que era mais, a deitá-la simplesmente fora.

Era preciso pois casar Carlos. Em 1883, quando o caso de Lourenço Marques abrandou e a maioridade do herdeiro estava próxima, o pai achou que era altura de pegar no assunto. Lembrava-se do seu enlace com Maria Pia e percebia que duma maneira ou doutra aquela fúria ia adoçar. Demais, com a maioridade de Carlos vinha o direito do filho receber o morgadio de Bragança, o único que sobrevivera às leis de Mouzinho, actulizadas depois em 1863 por um governo de Loulé e Sá da Bandeira, o que lhe garantia posses e título próprio. Mandou os filhos em Junho numa viagem de estudo pela Europa, que lembrava aquelas que ele fizera na juventude com o mano Pedro. Desta vez, ao propósito de formação, juntava-se porém o recado do casamento. Mas neste particular capítulo a viagem não foi feliz; teve mesmo um resultado quase calamitoso.

Saíram os dois irmãos no princípio de Junho desse ano de Lisboa, acompanhados por Martens Ferrão, para se encontrarem com a mãe em Madrid. Esta queria espairecer e ia com o fito do casamento do filho com uma sobrinha, filha da irmã Maria Clotilde, casada com um Bonaparte. Passaram lestos por Itália e seguiram para a Alemanha, onde visitaram a tia Antónia, em Sigmaringen. Arranjaram então a Carlos um aborrecido programas de visitas a indústrias, quartéis e escolas, que ele como príncipe herdeiro não quis recusar. Em princípios de Setembro a mãe decidiu regressar com Afonso, desejosa ainda de vilegiaturar umas semanas por Cascais. Deu indicações ao filho mais velho para seguir para Itália, de visita à irmã, que por lá estava com a família, mas o rapaz quando se apanhou sozinho deu de barato visita e casamento e estafou o dinheiro nos bordéis finos das mais importantes capitais da Europa. Era a grande borga europeia, de que ele se tornou depois o mais convicto e célebre adepto português.

No regresso, o pai fez de conta que não percebeu. Quem assim não procedeu foi o círculo de amigos de Carlos, que, quando o apanhou por Lisboa nos finais do ano, se meteu com ele.

– Traidor – exclamou um deles – que este Verão nos voltaste costas e nos deixaste sós no meio duma multidão enfurecida de piristas. E nem sabes tu, menino, como eles se estão a multiplicar.

Veio de seguida o projecto de o casarem com uma filha do príncipe imperial da Alemanha, Frederico Guilherme. Ele, que simpatizava com a augusta figura de Bismarck, o vencedor dos Franceses, não se desagradou do projecto, que acabou porém por ruir dado o desacerto de crenças dos nubentes, católico o português, protestante a alemã. Foi então que Antónia se lembrou de sugerir ao irmão o nome duma princesa francesa, Maria Amélia de Orleães, filha do conde de Paris, herdeiro de Luís Filipe, o herói de 1830 que a revolução de 1848 expulsara de França com toda a família mas que a queda do segundo império deixara regressar. O grupo vivia agora na Normandia e passava o Inverno no Sul, na Riviera francesa, gozando da comodidade dos grandes hotéis da região e da amenidade do clima. Esperavam a todo o momento a restauração da monarquia, porque a República de Versalhes, a República de Mac-Mahon, duque de Magenta, aquela que aniquilara o perigoso governo de Paris, era monárquica, aristocrática e com toda a certeza, numa Europa toda ela regida por monarquias, transitória. Viviam assim numa ázafama de contactos e reuniões, porque todos os dias lhes diziam que a restauração estava para o dia seguinte.

Quando o pai lhe falou do plano da tia Antónia, ele, feito já duque de Bragança, ficou de pensar. À noite, por descargo, no seu círculo, mordendo o grosso e mal cheiroso havano, antes mesmo de lhes mostrar as grossas folhas que nessa tarde aguarelara, deixou cair, entre o cínico e o gozão, sem que os amigos percebessem ao que ele aludia.

– Vocês têm razão, meninos. Isto está tão bera e o pirismo tão avassalador, que tudo o que seja deixar a piolheira me serve.

A piolheira era conceito novo dentro da pirilogia. Representava um avanço significativo desta recente ciência, porque detectara enfim o meio favorável ao desenvolvimento dos piristas. A piolheira, a pocilga ou a porcaria eram tudo sinónimos do Portugal pirista. Pelo contrário, a Europa além-Pirenéus era, não se sabia bem porquê, o equivalente do Portugal chique e ilustrado, de que eles eram a perfumada linha avançada. Davam uma semana da velhice por outro tanto em Paris ou em Londres e não havia agora conversa em que não adoptassem do Times uma palavra que lhes parecesse ilustre. Carlos dava até pelo que se via e ouvia – se o levássemos a sério – a sua vida de rapaz solteiro.

E quando estava para partir para a Normandia para conhecer e namorar a menina que o papá lhe destinava, ou tão-só para desopilar do país dos  Pires foleiros, veio a morte do avô, o último homem que no Portugal de então representava ainda os dias do passado. O construtor da Pena, o artista que trocou uma batalha por uma ária de ópera, merece bem na hora da sua partida a minha despedida sincera e condoída. É dos poucos enterros dos Braganças a que eu próprio compareço, deixando de lado obrigação e estudo. Como não, se o Mágico de Coburgo, que alguns chamavam por graça Zé Nabo, teve mais de saloio que de elegante, de imaginativo que de racional? Este homem que agora morre na nossa história foi um sonhador que encavalitou num dos picotos de Sintra a mais feérica e psicadélica fantasia de todos os tempos e um prestidigitador que tentou transformar com um sorriso a guerra das paixões numa comédia de alívios. Ajoelhai, que o homem que agora passa para a eternidade é um dos raros taumaturgos do Portugal moderno.

Corria o mês de Dezembro de 1885 e só na segunda metade de Janeiro do ano seguinte pôde Carlos partir para Paris na real carruagem para conhecer a noiva. Encontrou-se em Paris com o presidente da República, foi à ópera com um Bonaparte, despediu-se da sua vida de solteiro, pôs uma cara de menino e foi para Chantilly fazer a corte a Amélia.

Esta era conhecida como la grande, pois tinha uma estatura colossal de pinheiro bravo. A mãe, que descendia dos Bourbons Espanhóis, era grosseirona e alcoólica, uma bruxa de sangue espanhol com forte parentesco de género com a nossa impagável Carlota Joaquina. Para se fazer respeitar, ou tão-só odiar, gostava de humilhar os filhos. Punha um requinte especial em torturar Amélia, chegando a esgadanhá-la em público. A rapariga fugia o que podia e estava desejosa de casar. Cordata mas teimosa, pondo muito patriotismo ofendido nas suas atitudes, detestava os alemães, que haviam humilhado a querida França, e acreditava piamente na rápida restauração dos Orleães no trono. Ficou por isso encantada quando se lembraram dela para casar com o futuro rei de Portugal. Queria um ceptro, queria mandar, queria ser rainha; tinha estatura e estadão para tal, pensava ela, sempre à espera que a restauração do trono se fizesse em França.

Quando lhe perguntaram, se não se importava de se comprometer com um rapaz que ainda não conhecia, ela respondeu num português elementar, que se esforçava por praticar.

– Nasceu no meu dia, a 28 de Setembro. É a minha alma irmã.

Em Chantilly Carlos comportou-se como um inocente rapaz que tivesse saída do seio da família pela primeira vez. Mostrou-se tímido, reservado, ingénuo, com pouca ou nenhuma experiência do mundo e muito idealismo. Quer dizer, agradou muito. Contava de olhos inflamados as aventuras de Vasco da Gama ou de Pedro Álvares Cabral, fazendo-se passar por um apaixonado descendente destes navegadores lusitanos. Falava do mar selvagem que vinha rebentar nas noites de lua cheia nas costas de Cascais ou de Sesimbra. Abria muito os olhos de espanto, sempre que descrevia um temporal. Tomava por um caso de heroísmo o afogamento em que se vira metido no Mexilhoeiro, dez anos antes. Da piolheira, do execrável pirismo, claro, nem palavra. É verdade que era bastante mais baixo do que Amélia, mas até isto lhe conveio ao retrato que de si quis deixar. Ao fim de poucos dias, Amélia estava doida por casar com ele; já se via a governar o país, com o seu principezinho encantado, alvo e sonhador, ao lado, a quem ela protegia com a sua descomedida estatura de mãe, e o pai restaurado no trono de França. Mal imaginava ela, que aquele cândido menino de caracóis loiros, olho azul e pescoço fino, pintava a macaca na sua terra e não havia dedos das mãos e dos pés que chegassem para lhe contar os bastardinhos.

Carlos, pelo seu lado, deixou correr. A casar – pensava ele – que seja em França, com Paris ao pé da porta. A família estava ligada aos Orleães desde o tempo do bisavô Pedro e fazia-se sua advogada sempre que podia, pelo menos desde os tempos de Maria II. Uma irmã da rainha portuguesa, a querida Chica, casara mesmo com um filho de Luís Filipe; as relações dos Coburgo com os descendentes de Filipe Igualdade haviam-se igualmente multiplicado; por outro lado, um destacado membro da família, Gastão de Orleães, conde de Eu, casara recentemente com a única filha do imperador do Brasil, seu tio-avô, ficando assim herdeiro da coroa brasileira. Era mais do que o bastante para se ficar orleanista até ao tutano.

Amélia como mulher não impressionou o português. Improvável que assim não fosse, em rapaz que tanta flor de mulher havia já estragado. Não havia nessa altura jeito no corpo feminino que lhe escapasse, tanto mais que tinha o espírito observador dum bom retratista. Amélia, para seu gosto, era demasiado alta e desproporcionada, muito longe daquele talhe escultural que ele conhecia e muito apreciava. Notava-se, além disso, um retraimento natural, produto talvez duma educação religiosa castradora, que lhe deixava perceber dificuldades no trato e sobretudo muita sensaboria de cama. Mas não era mulher para meter entre os lençóis que ele procurava no castelo de Eude; essas não habitavam decerto palácios austeros que pareciam conventos. O que ele vinha buscar à Normandia era mais chão e menos íntimo; era a próxima rainha de Portugal – a mulher que todos os anos se haveria de sentar a seu lado no palácio das Cortes na sessão solene de abertura do Parlamento – que ele ali vinha sondar.

O que o decidiu favoravelmente na conquista de Amélia foi, além do orleanismo visceral da família, o forte sentido de Estado que a menina lhe pareceu ter. Convenceu-se que todas as desavenças íntimas que pudessem surgir, como aquelas que eram públicas e badaladas entre os seus pais, nunca haveriam de transbordar para fora da câmara íntima. Em S. Bento, em Belém ou no Terreiro do Paço, Amélia saberia sempre comportar-se a seu lado como rainha de Portugal. Demais, pelo que percebera, e decerto não se enganava, aquela graúda mulher nunca seria capaz de o trair fosse com quem  fosse, evitando-lhe assim os escândalos que a sua mãe dava no paço da Ajuda, amancebada de quando em quando com os lanceiros da Guarda ou os legados do corpo diplomático.

Veio o casamento logo no mês de Maio desse ano de 1886. A família de Maria Amélia aproveitou o enlace para fazer uma demonstração de força. Convidou meio mundo para recepções e banquetes no palacete que tinha em Paris, procurando fazer passar a imagem dum casamento de Estado, e enviou uma comitiva de mais de meia centena de pessoas a Lisboa. A par da família, Amélia fazia-se acompanhar de camaristas, médicos, cozinheiros, modistas, fotógrafos e outro pessoal de circunstância. O governo de Freycinet sentiu-se ameaçado pela orleanização da monarquia portuguesa. Correu então a ideia de expulsar de novo os Orleães de França.

Em Lisboa, a cerimónia foi reservada mas de muito dispêndio; teve lugar na igreja de S. Domingos a 22 de Maio, num ambiente fechado, com todos os convidados em ridículo traje setecentista, próprio da etiqueta da corte do Magnânimo, os homens de calção e meia de seda branca, as senhoras de longo vestido, cauda apanhada na cintura e grande e ondulante decote nos ombros e no peito. Em dois únicos momentos a noiva se mostrou ao povo: no instante da sua chegada, na estação ferroviária de Santa Apolónia, e depois, já ao lado de Carlos, no único acto público que se realizou, três dias depois do casamento, nos Restauradores, em que assistiu ao desfile duns tantos batalhões do exército. Aproveitou ainda uma ida ao São Carlos para se mostrar à sala. O restante aconteceu sempre no meio fechado do paço da Ajuda com jantares de gala, recepções e bailes. Na cidade ninguém sabia ao certo da princesa, como ninguém aliás dava nota do herdeiro português, que raramente se fazia ver fora dos circuitos habituais, entre o hipódromo de Belém, a vila selecta de Cascais e o São Carlos, e de quem só se conheciam notícias pela imprensa galante.

Os desenganos de Amélia em relação a Carlos começaram pouco depois, quando a família regressou a França, para logo ser proscrita, e ela se mudou com o esposo para o palácio de Belém, residência do casal. Depressa percebeu que o menino de caracóis loiros que lhe fizera um namoro ingénuo e apaixonado no castelo de Eude não era o mesmo que ali se mostrava. Estava transformado num homem boçal, que não se importava de a deixar sozinha e que só a custo lhe dirigia a palavra. Além disso notava-lhe hábitos grosseiros, que ele calculadamente ocultara em Chantilly no grande domínio da família. Não largava o charuto de manhã à noite, comia como um homem sem alma, tinha o péssimo hábito de gastar logo pela manhã uma cartucheira de balas em duas dúzias de pombos. O tabaco punha-lhe um mau cheiro permanente, que nem os delicados perfumes que ele mandava vir de Paris disfarçavam; a comida fazia-lhe perder o encanto; os pombos, que rebentava a tiro numa amálgama de sangue e penas, davam-lhe tintas de cruel e carniceiro, parecendo ter sempre, por mais que as lavasse, as mãos e o rosto salpicados de sangue.

– Et c’était lui, le Damné, mon âme soeur… – confidenciava ela consigo próprio, desiludida e descrente.

Desde criança que se habituara às adversidades. Nascera no exílio, numa nevoenta e esquecida localidade inglesa, em 1865, quando ainda estavam muitas vivas as cenas atrozes da revolução de 1848 e se contavam entre os membros da família sequências do seu terror. Depois, quando tinha apenas cinco ou seis anos, vieram os momentos angustiantes da guerra franco-prussiana, em que a sua querida França fora massacrada e humilhada pelos exércitos do novo imperador da Alemanha. Por fim, já de regresso à pátria amada dera com o governo popular de Paris e com a investida de Mac-Mahon, que deixou vinte mil mortos nas ruas e a cidade em escombros. Ela viu, de lágrimas nos olhos, aterrorizada e infeliz, os daguerreótipos dos prédios esventrados, enegrecidos, destelhados, como se tivessem sido bombardeados com fogo do inferno. Era monstruoso e ao mesmo tempo pungente. Agora mesmo, enquanto ela se habituava ao palácio de Belém, a família era obrigada a fazer as malas à pressa para partir para o exílio, banida que de novo fora da França, essa França tão estimada e tão amada quanto ingrata.

Ao lado disto, que muito fizera pela sua infelicidade de criança, teve uma mãe dura, ordinária, viril, que amava menos os filhos que os cavalos e os cães e punha os charutos e as armas de fogo acima da sua vida de família. Voltava a ser monstruso e lancinante. Amélia, sendo a mais velha de seis irmãos, foi aquela que mais se regalou com os bofetões que as manoplas da mãe disparavam. Criada assim sem carinho e sem amparo, no meio de grandes contrariedades políticas, de sangrentos desastres militares, e de perigosos dissabores familiares, esta mulher não esperava decerto facilidades seráficas da vida, mas ainda assim acreditava no seu destino de menina adulta. Mal sabia ela, pobre coitada, o que a esperava nas lusitanas praias. Que tragédia a tua vida em Portugal. Melhor do que aquilo que por cá te esperava foram sem dúvida as punhadas da tua mãe. Que saudades, mais tarde, quando o teu querido filho te caiu aos pés no Terreiro do Paço, deves ter sentido delas. Foste de longe a mais infeliz rainha de Portugal e isso diz tudo do trágico e funesto destino que sempre te acompanhou ao longo de oitenta e muitos anos de vida.

Suportou por isso o seu novo desencanto com estoicismo. Era mais uma desilusão e nem assim tão grande; tolerava-se menos mal. Em verdade, gostara de Carlos, e disso se aborrecia a valer, mas o trono de Portugal fora a principal razão da sua vinda para Portugal. E o trono lá estava, quieto e cintilante, à espera dela; a razão da sua vinda permanecia pois viva e acima de qualquer desengano. Assim como assim, esta jovem de vinte anos sofreu com a desilusão do seu casamento. Os olhos, que antes eram inocentes como os dum pequeno bicho, quase encantadores, carregaram-se de sombra e de dureza; uma escuridão de tristeza desceu para sempre sobre o seu rosto sofrido e feio. Perdeu o gosto pelas cores claras e pelos enfeites; amortalhou-se aos vinte anos num vestido liso, escuro e teso, que lhe caía no corpo como uma batina pudibunda de eclesiástico fugido ao mundo. Uma viuvez precoce ou um desgosto pelo instinto do cio agrilhoava aquela mulher ao penedo da Tristeza nas imediações do Tejo.

Ao lado deste distúrbio, vieram para Maria Amélia as violências achincalhantes de Maria Pia. Habituada que estava às da mãe, não as achou também tão despropositadas quanto podia outra menos experiente do que ela julgar. Ainda assim, custaram-lhe mais que quaisquer outras, porque ameaçavam a sua situação e o principal motivo do seu casamento.

Logo que o casal se instalou em Belém, antes mesmo de irem passar uns dias de lua-de-mel ao Alfeite, a rainha mandou-a chamar à Ajuda. Ela foi, na esperança de poder passar uma manhã amena na companhia da sogra. Mas não. A sogra recebeu-a na luxuosa câmara que ocupava no paço; fez questão logo de entrada de lhe mostrar a riqueza desprorpocionada em que vivia. Sedas, rendas, tapetes, peles, marfins, móveis antigos, animais empalhados, madeiras lavradas, crucifixos em oiro, terços em prata, uma profusão de jóias, brincos e pedras preciosas nas mesas e nos contadores. Depois levou-a para a sala adjacente, onde a olhou com severidade e malícia. Agarrou-lhe no braço e foi com ela até à janela, donde se avistava o azul do Tejo e do oceano.

– Je suis la reine – disse, olhando-a friamente nos olhos – fille et petite-fille de rois. Tu es la fille et la petite-fille de deux prétendants, pas plus. Voilá la différence entre nous.

Maria Amélia ficou estupefacta. Balbuciou dois ou três monossílabos sem sentido e pediu licença com ar envergonhado para se retirar. A rainha exultou e riu com gosto de tanta modéstia e timidez. Despachou-a com um gesto  altivo da cabeça e foi tratar do penteado, para depois expedir para o lixo os jornais que lhe chegavam todas as manhãs.

A orleã ficou agastada com o comportamento da sogra. Percebeu que se tratava duma autocrata no género da mãe, mas sem a virilidade e as fantasias masculinas. Esta caprichava mesmo em ser gastadora e feminina, indiferente de todo à caça e às armas de fogo, toda dedicada ao toucador e aos enfeites. Mas gostava de reinar em casa e na corte, não deixando que ninguém se lhe adiantasse. Estava com trinta e nove anos, esplêndida e suculenta, disposta a gozar os prazeres da vida e a trocar de amante mal se enfadasse do primeiro dito mais abrupto. Não perdia uma ocasião para humilhar Maria Amélia, repetindo agora com a francesa o que outrora havia feito com Elisa Hensler. Era certo que cartão ou convite que  chegasse a Belém nunca, mas nunca, levava o seu nome. E quando a pobre Amélia ainda assim aparecia na Ajuda pela mão de Carlos não havia para ela mais do que um olhar gelado de reprovação, fazendo a sogra gala em se mostrar sempre duma má-criação caturra e ostensiva, propositadamente exagerada.

Carlos neste caso veio em seu socorro. Detestava a mãe, que sempre o trocara pelo irmão e nunca lhe ligara, desagradada decerto com os seus modos desabridos e irreverentes. A submissão pacífica de Afonso ia-lhe muito melhor com a autoridade. Um serão em que a rainha se atreveu em mandar sentar a nora num dos corredores do paço, vedando-lhe a entrada no salão de música onde a corte se reunia, Carlos não se conteve e recriminou-a com severidade.

– Oiça lá, é a mim que me atazana tratando Amélia deste modo. Vamos lá acabar com tanto desplante.

A rainha explodiu. Desta vez não estava à mesa, copo de cristal na frente, mas tinha por perto um jarrão de porcelana japonesa do século XVIII, que viera da sala Amarela do paço das Necessidades. Foi-se a ele e espatifou-o contra uma parede, enquanto Carlos deitava as mãos à cabeça desesperado. Acorreu a corte mal sentiu o estrondo dos cacos, mas quando Maria Pia os fuzilou com o olhar gelado regressaram todos em massa aos seus lugares, atropelando-se uns aos outros, continuando como se nada fosse a amena cavaqueira em que estavam. Era assim a rainha e não havia forma de lhe contornar o mau génio.

Luís no meio destas desavenças sentia-se infeliz. Era homem de quarenta e sete anos, que empunhara o ceptro sem vontade nem preparação, muito gasto pela estroinice dos anos de juventude e pelos péssimos hábitos alimentares que teimava em manter. Continuava a fumar as suas cigarrilhas negras e repelentes e a deitar-se tarde, depois de receber os amigos no seu gabinete até de madrugada. Estava pesado e disforme; tinha dificuldades sérias em respirar; o olhar parecia parado e de vidro, quase morto. Aguentara o trono, forçara os políticos ao entendimento, desenvolvera o reino segundo as ideias de progresso do irmão, não deixara para trás a política africana, que ia no bom caminho com as recentes viagens de Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens e o mapa-cor-de rosa de Henrique Barros Gomes, mas as desvergonhas da rainha eram agora tão descaradas que essas realizações lhe pareciam nulas e despiciendas. Tinha gosto em deixar ao filho um trono estável e sólido, com certificado de garantia por muitos anos, mas isso não lhe alijava dos ombros o desgosto, a humilhação, o descalabro da sua vida íntima e conjugal. E que arrobas tão descomunais por lá lhe pesavam.

Chegou a pensar em abdicar, se não até em suicidar-se. Mas o suicídio não estava no seu feitio bonachão e abdicar era abalar a solidez do trono, o único gosto da sua velhice precoce. Estava ademais doente, com os dedos do pé esquerdo a gangrenarem; para andar começava a arrastar pé e perna.

Os médicos do paço deram o caso como sendo reumatismo. Na intimidade, em segredo, sussurraram porém entre si que o facto se devia a sífilis contraída na primeira juventude, decerto num dos bordéis de Paris, Londres, Roma ou Nápoles por onde ele tanto dinheiro estafara. Assim sendo, o rei estava condenado dentro em breve a apodrecer por completo, mesmo sem saber a origem do seu mal.

A rainha, que por esta altura não tinha consciência do estado do marido, e que iniciara um caso escaldante com um capitão de cavalaria da guarda do paço, sentiu-se muito motivada para o picar. Não lhe perdoava mais de vinte anos depois as traições que ele lhe fizera, no momento forte do romance de ambos; o assunto ainda lhe vinha frequentemente ao espírito, sempre com um renovado e azedo ressaibo. Quanto mais via Lipipi apático e caído, mais gosto punha nas traquinices nocivas que lhe fazia.

– Là, maintenant, avec ce pied, tu devrais aller à Vilá Viçosá. Qu’en penses-tu, mon cher?

Ele enfiava, infeliz e triste, sem responder aos ditos malévolos da mulher. Não obstante em privado, com lágrimas nos olhos, era capaz de desabafar com o filho mais velho ou com a nora, sabendo o mau tratamento que esta recebia da sogra. Amélia, que tinha tanto de resignada como de rebelde, revoltava-se contra a megera que governava na Ajuda e prometia a si mesma dar as mãos a todos aqueles que na família desejavam fazer frente à arrogância da rainha.

O mau génio de Maria Pia tornou-se pois um dos motivos da aproximação de Carlos e Amélia e uma das pontas que lhes permitiu segurar o casamento. Outra foi o desejo da jovem pretendente dar rapidamente um herdeiro à coroa portuguesa, acontecimento que ela sabia que podia marcar pontos favoráveis à sua pessoa, quer dentro da família, quer fora. Fez pois o esforço de apertar os dentes e suportar o peso incómodo de Carlos em cima de si, numa altura em que estava já de todo desenganada em relação à pessoa do marido e se amortalhava nos seus viris e desgraciosos vestidos negros. Apareceu grávida no Verão do ano do seu casamento e veio a ter o seu primeiro filho na residência de Belém, a 21 de Março do ano seguinte. Fez questão em chamar ao filho Luís Filipe, em atenção ao seu antepassado que fora rei dos Franceses e ao bom rei Luís de Portugal, de resto também ele Luís Filipe. Foi a loucura no paço e naquela limitada parte do país que vivia de olhos postos na corte. Maria Amélia não se deu por satisfeita com o sucesso e quis nova gravidez. Tolerou de novo o mau cheiro do marido e viu-se grávida em menos de nada, mas no fim do ano, em Vila Viçosa, perdeu a criança.

Ainda assim, com Luís Filipe saudável nos braços, os olhos benévolos da imprensa a caírem sobre o seu regaço, ela sentiu-se forte para enfrentar a sogra. E na noite do ano novo de 1888, no tradicional beija-mão que Maria Pia oferecia nesse dia, quando a rainha a procurava humilhar afastando-a da sala do trono, ela deu um safanão desesperado na sogra e não hesitou em dizer-lhe palavras de desafio.

– Ça suffit. Vous allez me respecter maintenant.

A rainha ia rebentar numa potente explosão de dinamite, mas lembrou-se dos legados estrangeiros na sala e conteve-se. Mas mal se apanhou sozinha, no dia seguinte, mandou chamar a nora, disposta a aplicar-lhe um  correctivo. Amélia recusou-se a comparecer e enviou-lhe provocatoriamente um cartão em branco, com o seu nome, o de Carlos e o do jovem Luís Filipe, encimados pelas armas dos Orleães e dos Braganças. A rainha percebeu que tinha guerra à porta e preparou-se para se barricar na Ajuda, impedindo a todo o custo a vinda da nora. Esta, cada vez mais respondona e combativa, achou por bem deixar cair as suas visitas ao paço, movendo-lhe antes uma luta de desgaste a partir de Belém.

Carlos mantinha-se longe destas pegas; embora prestasse apoio verbal às atitudes de Amélia, preferia distanciar-se, dando a entender que o assunto era demasiado miúdo para merecer a sua atenção. No fundo estava desejoso de fazer as suas escapadelas aos alcouces finos de Lisboa, ir até Paris, ou pelo menos até Madrid, desopilar da piolheira e sobretudo regressar ao seio do seu selecto grupo de amigos.

Estes estavam cada vez mais diletantes, indiferentes, cínicos, frios. Gozavam sem piedade com os africanistas do governo, em primeiro lugar com Barros Gomes, um antigo estudante da politécnica, nascido no tempo dos Cabrais, que para fazer carreira visível nos Estrangeiros decidira dar continuidade à política de Sá da Bandeira num governo chefiado por José Luciano de Castro, em funções desde 1886. Aceitando as disposições que haviam saído do Acto Geral da Conferência de Berlim, assinado em Fevereiro de 1885, e que trocavam o direito histórico pelo da efectiva ocupação dos territórios, Barros Gomes desenhou os antigos sonhos do caudilho liberal num mapa a que chamou para delícia de todos os Portugueses cor-de-rosa, mandando-o afixar em todas as repartições públicas, e iniciou com meia dúzia de oficiais – Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens, Paiva Couceiro e poucos mais – a ocupação efectiva dos territórios entre o leste de Angola e a fronteira de Moçambique.

À medida que as notícias da exploração e das viagens iam chegando, o grupo exultava de indignação. No dia em que Barros Gomes anunciou que o mapa estava efectivamente realizado e que a administração portuguesa se estendia desde o Bié, em Angola, até Manica e Sofala, em Moçambique, seguindo o grande Zambeze, o maior rio da África austral, e descendo depois até Lourenço Marques, o grupo arriou de desgosto e desânimo.

– Este país está cada mais piroso­ – comentou Soveral visivelmente agastado. – Imaginem só, abandonar Paris, Viena, Berlim, Londres, pelo Bié, pelo Zambeze, por Manica e por Maputo. Não se acredita em tal, meninos, num país de juízo.

E depois dum curto silêncio, reforçou, esforçando-se por se manter magoado, sério, indignado.

– Os Portugueses devem ter endoidecido! Trocarem os Ingleses pelos Macololos. Os Macololos, Deus meu! Enlouquecemos todos.

Riram. Carlos conhecia os amigos. Fora ele que lhes pedira um ondulante, profuso e intérmino rio de piadas, por ver no humor a principal distinção da elevação de espírito dos verdadeiros aristocratas. E eles cumpriam à risca a figura, mostrando-se mesmo incómodos. Por exemplo, quando o filho do Pindela o vira pela primeira vez depois do casamento com Maria Amélia, chamara-o de lado e pusera-lhe nas mãos um embrulho com um laço. Era a sua prenda de casamento. O recém-casado fora ver; descobrira uma edição seiscentista – valiosíssima exclamaram logo os amigos – da Carta de Guia de Casados de Francisco Manuel de Melo. O duque de Bragança folheara interessado o cimélio e a dado passo perguntara se fora o valor do livro que o motivara à oferta.

– Não, Carlos ­– respondera-lhe o Bernardo a estoirar de malícia. – Presenteei-te com o livro para que nunca te esqueças, como diz o nosso Melo, que casar com uma mulher bonita é o pior castigo que pode suceder a um homem de maneiras.

Carlos ficara sem saber se havia de se zangar ou de se perder de risota. Acabara por rebentar de riso, já que aos companheiros estava sempre na disposição de tudo perdoar e aquela do Bernardo, que era zanaga e brejeiro, fora mesmo bem caçada. E, a bem da verdade, ele até nem saía assim tão maltratado da inconveniência do amigo.

Os amigos davam-se agora com os ansiosos jovens que haviam feito as eruditas e perigosíssimas conferências do casino Lisbonense. Conferenciara-se, como o leitor decerto recorda, no tempo do velho e audacioso marquês de Bolama, que de igual forma a Loulé, Saldanha e Sá da Bandeira já por cá não andava agora. Também os jovens conferencistas de outrora eram absolutamente anti-piristas e anti-burgueses; também eles odiavam os piolhosos e imundos cheiros do Portugal rural; também eles sonhavam encantados com a urbanidade da Europa, que tomavam por um jardim perfumado que em vez de rosas tinha janotas, quer dizer, o paraíso dos homens distintos e civilizados; também eles queriam muitas e rápidas locomotivas; também eles riam horrorizados da doidice africana em que o país mergulhara. A propósito do delírio em que o país andava em torno da África austral, um deles rematava magistral.

– Não chegava termos entre nós os cafres da Europa. Ainda precisamos dos outros, dos originais, para nos sentirmos felizes.

Do socialismo guardavam apenas aquele ar de chacota para com a egoísta e avara burguesia portuguesa e do internacionalismo conservavam tão-só um desprezo olímpico por tudo o que era português. Praticavam a literatura como uma esgrima de florete e cada livro de Eça de Queiroz era como uma razia na pirosice dos Estoris. O mesmo se podia dizer de cada farpa de Ramalho Ortigão, de cada verso de Guerra Junqueiro, de cada retrato de Oliveira Martins. Em conjunto mostravam mais veneno e mais eficácia que os finos ditos gozões que os aristocratas do paço atiravam às grossas baleias da Baixa lisboeta, quando estas desciam à rua furiosas, de sombrinha erguida, para defender as filhas das suas investidas. Era pois um conluio de todo esperado este, entre os jovens moços do paço, que acamaradavam com o futuro rei, e os jovens acabados de chegar de Coimbra, desejosos de fazer render o talento.

Começaram por cear juntos no Tavares, uma das mais luxuosas casas do Chiado lisboeta, crismando-se com um título propositadamente frio, provocante, cínico, Vencidos da Vida. O nome era descarado e irónico, porque afinal todos eles estavam ricos e consagrados, nas boas graças do paço e do público, mas a desfaçatez era para eles, ao lado do humor, o único sinal de verdadeira distinção. Só o cinismo, diziam eles, num meio corrupto, atrasado e baixo, como era o português, distinguia os homens sábios e experientes dos homens ingénuos e mesquinhos. Escarneciam assim de todo o passado constitucional português, de que só salvavam o velho Palmela, Pedro de Sousa Holstein. Ninguém o conhecera, ninguém o frequentara, ninguém o vira, dado que o ministro morrera há quase quarenta anos, mas o seu dandismo diletante e provocativo fazia ainda furor no grupo. No meio da saloiada que agitara a Carta e depois fizera a Constituição de 1838, os envernizados sapatos amarelos de Palmela eram para o grupo o único e distinto sinal de civilização. Vida minha, estes sapatos são mais famosos que o calçado alto dos antigos actores trágicos! Que coturno!

Passaram depois a jantar mais demoradamente, com as atenções públicas voltadas para eles, no Hotel Bragrança, que tinha além do apuro extremo um nome representativo das intenções do grupo. Faziam-se fotografar, de charuto na mão, em poses vaidosas e irritantes. Carlos Lobo de Ávila, que tinha interesses fortes nos jornais, chamava a imprensa, que lhes dedicava sempre uma atenção desmedidamente exagerada. Todos eles, de chapéu alto, fraque preto, camisa branca sem o mais pequeno defeito, laço de seda, calça de fantasia e polainas acabadas de estrear, acreditavam que o rei era um traidor, um burguês miserável que fumava cigarrilhas vulgares e que não se importava, pecado dos pecados, de acamaradar com os gordos e sujos hipopótamos que faziam conversa mole no passeio reles da Havaneza do Rossio.

Um dia Ramalho, irrepreensível a todo o instante na sua toilete parisiense, surpreendeu-o mesmo no passeio público com uma jaqueta larga, ligeiramente coçada nos cotovelos, fora de moda. Ficou inconsolável e republicano.

– Sua Majestade – confessou mais tarde aos amigos – é um desleixado sem desculpa.

Todas as esperanças incidiam assim sobre o jovem duque de Bragança, elegante, culto, esperto, viajado, artista, distante, anti-burguês. Projectava-se um grande reinado em volta dessa nova esperança, que fosse uma verdadeira revolução institucional e acabasse com o ramerrão em que a sociedade portuguesa vivia desde que Saldanha se lembrara de varrer de vez os Cabrais para realizar o programa deles com homens mais novos, menos vaidosos e sobretudo menos turbulentos. Há quase quatro décadas que a Regeneração, com os reinados de Pedro e de Luís, os apertava numa piroseira burguesa cada vez mais insuportável. Havia de chegar o tempo de voltar a página e falar em existência nova. Sinal forte dessa mudança fora a morte recente, aos sessenta e muitos anos, pouco antes do nascimento do príncipe real Luís Filipe, de Fontes, o engenheiro que cumprira as esperanças de 1851 e fora durante mais de trinta anos o rosto público da Regeneração. E antes dele, outro sinal animador de que a vida política portuguesa estava a amadurecer para entrar num ciclo novo, fora o desaparecimento de Anselmo Braamcamp, o principal adversário político de Fontes depois da morte de Loulé.

Carlos, o duque de Braçança, entretinha-se a ler os venenosos e muito artísticos romances de Eça de Queiroz ou as geniais verrinas historiográficas de Oliveira Martins, rindo com gosto de tanta travessura e paixão fria, mas escusando-se a aparecer. Bernardo, o filho do Pindela, futuro Arnoso, que era dos mais entusiásticos adeptos das reuniões do Chiado, e que gozava mesmo da distinção de ver um azulejado livreco seu prefaciado por Eça de Queiroz, insistia com ele.

– Não sabes o que perdes, Carlos. Aquilo é a valer. Até o Francisco aparece.

Ele, o duque de Bragança, sorria, dizia que sim, agradecia o cuidado que todos punham nele, convidava até os rapazes para Belém, para uma conversa elegante e um brinde, mas não se decidia a aparecer. Não era tímido nem acanhado, mas tudo aquilo lhe parecia fora de propósito. Eça e Martins eram grandes e novos valores, rapazes de muito talento, superiores a Garrett e Herculano, não sobrava dúvida, mas um era filho natural e outro um pobre órfão que se desunhara a trabalhar desde criança. Lisboa para ele, só mesmo o sedoso camarote real de São Carlos, a almofadada tribuna do teatro do Rossio, ou o grémio artístico para alguma exposição de pintura, nada mais.

Um tarde em que Bernardo apareceu exultante com o serão, ele condescendeu.

– Ouve, menino, fica-te com esta; eu também sou um Vencido da Vida. Mas suplente.

Enquanto as reuniões do Tavares e do Bragança decorriam com muito perfume, muito espumante, muita elegância e muito picante, o rei apodrecia na Ajuda. Oficialmente era a sua crise de reumatismo a progredir; dentro de portas, no segredo dos médicos, era a irremediável sifilização do seu corpo. O pé esquerdo apodrecera ao longo do ano de 1888 e as gangrenas no início do seguinte alastravam à perna. Alarmado, nessa mesma época, deu-se conta que os sintomas se começavam a verificar desta vez no pé direito, espalhando-se velozes. Em pouco tempo estava impedido de se movimentar. Tudo o que conseguia era levantar-se uma vez por outra e dar uns curtos passos arrastados. De resto, tinha de passar o tempo sentado num cadeirão, com os pés descalços, embrulhados em meias, apoiados numa banqueta almofadada. Também o seu aparelho respiratório estava num estado miserável. Salvante os curtos intervalos das horas de sono, tinha trinta e cinco anos de fumo cerrado nos pulmões; tempos houvera em que acordara até de noite para esfumaçar a cigarrilha que deixava sempre pronta à cabeceira. Nem forças sentia agora para respirar e mesmo assim teimava em deitar a mão de quando em quando ao tabaco e aos fósforos.

– Se não for isto, nada me alegra – dizia ele para se desculpar nessas horas de pecado, que lhe provocavam horas depois, quando se deitava, entupimentos monumentais.

Para agravar o estado do rei, o irmão, o impagável Tubinho, Augusto, que acabara há pouco de fazer quarenta anos, caíra de cama numa lástima. Também ele agonizava entre almofadões, observado pelos cuidados da madrasta, a condessa d’Edla, que depois da morte de Fernando se dedicara em exclusivo a dispensar atenções ao enteado.

Maria Pia preocupava-se agora com o estado de saúde do rei. Sabia que se ele morresse viria a aclamação do filho mais velho e com ele o reinado de Amélia como rainha. Era inevitável que isso acontecesse, mas não lhe passara pela cabeça ver-se tão cedo a braços com o caso. Tinha quarenta e quatro anos e não estava na disposição de ir tão cedo para a reforma. Evitou pois espicaçar o rei com ditos malévolos ou perturbá-lo com cenas inconvenientes. Queria poupá-lo, ampará-lo, aguentá-lo o mais possível, mesmo que para isso tivesse de mudar o comportamento e ficar nas mãos com um boneco articulado de palha.

Carlos por seu lado não ligava ao assunto. O tio Augusto sempre fora para ele um doente e o pai era um homem de cinquenta anos, quer dizer, um Matusalém patriarcal, que nascera antes da Patuleia, no inimaginável tempo em que governavam os Setembristas, os bizarros que vestiam de surrobeco nacional, imitando a intrigante e recuadíssima época do marquês Pombal. Demais, cedo acreditara, quando o pai lhe falou na abdicação, o que acontecera na ocasião do seu casamento com Amélia de Orleães, que o trono era seu. Desenhava-se já então a aliança dos seus amigos com os jovens intelectuais da geração das conferências do casino; o Bernardo acabara de publicar o seu livro com o exórdio de Eça de Queiroz e falava com entusiasmo na criação dum novo partido político, oriundo das novas ideias, que misturasse à maneira de Bismarck socialismo e cesarismo, quebrando a rotina do rotativismo progressista e regenerador e reforçando o poder interventivo e mediador do rei.

Carlos entusiasmara-se e fizera nessa época planos para reinar. O pai finalmente não abdicara e ele voltara à administração da casa de Bragança e das suas propriedades em Vendas Novas e Vila Viçosa. Gostava de passar por lá temporadas durante o ano, servido por uma legião de criados, envergando perneiras de cabedal, pelico e chapéu preto de aba larga; caçava, atirava aos pombos, aguarelava, bandarilhava toiros em cima dum cavalo, sempre fero, sempre atento. Frequentava depois Sintra ou Cascais no Verão com os amigos e fazia logo que podia uma escapadela a Paris, onde já era conhecido nos vaudevilles da cidade como o Carlos de Bragança, que de quando em quando se dava ao luxo de pagar os serviços que pedia com uma esmeralda de valor. Era perdulário e gastador em sociedade, também nisso se parecendo muito com a mãe, mas muito avaro e fechado nas contas que fazia com os seus rendeiros e capatazes transtaganos.

Agora, diante do agravamento da doença do pai, deixava correr; percebia que o seu tempo estava a chegar e que não valia precipitar o que corria tão manso e natural. O tio estava a morrer no quarto das Necessidades, desfazendo-se em hemoptises nos braços da madrasta dele e o pai continuava na Ajuda, incapaz de se levantar. Os médicos aconselharam mudança de ares; era preciso fugir dos calores estivais de Lisboa, sempre maléficos e difíceis para problemas respiratórios. Havia ainda uma leve esperança para ambos. Foram para Sintra esperançosos nos ares frescos e leves da povoação. Carlos por seu lado, quando viu o tio e o pai instalados no paço da Vila, que a Pena estava com a viúva do avô, decidiu dar uma saltada a Paris. Tudo aquilo lhe era demasiado penoso de acompanhar e se arrastava para já sem termo à vista.

O pai, sentindo algumas forças, chamou-o antes dele partir. Sentia-se acabado e precisava quanto antes falar com ele. Chegara o momento de lhe aconselhar moderação e modéstia. Tinha consciência do estado em que estava; além das dificuldades em respirar, apodrecia de alto a baixo. Cada dia que passava se dava conta que uma nova parte do corpo escurecia e se preparava para gangrenar. Era inevitável a corrupção rápida e total do corpo em pouco tempo. As pernas por exemplo estavam podres e inúteis; dentro em breve, se os médicos não interviessem, começariam a largar pedaços. Nesta miséria achou por bem reduzir ao mínimo a conversa com o filho, apertando tudo numa máxima. Quando o viu, depois de lhe dar a mão a beijar, pediu-lhe para se sentar. Fitou-o durante um largo momento, com aqueles olhos embalsamados em névoa, cobertos por uma película fina de vidro, e disse-lhe por fim, num fio partido de voz.

– Sê no futuro o Carlos, o Carlos que tantas vezes és sozinho, e nunca queiras parecer mais do que isso.

Era o seu testamento, a sua lição, a sua pérola. Fora criado numa grande casa burguesa, por uma mãe que bordava lenços para os filhos ao serão e por um pai que se preocupava em tirar da terra com as suas mãos algum sustento, e tinha por isso uma reserva, que não sendo pudor nem avareza se fizera ao longo de algumas tribulações ausência de orgulho e prudência de luxo. Carlos ao invés fora criado por uma mãe gastadora e empoada, incapaz de pegar em agulha ou dedal, habituada a explodir com o pai, e dela tomara para si um sentido da autoridade, que era o contrário da humildade.

O pai, tomando conta da frieza ou da incompreensão com que o filho recebera as suas palavras, arranjou ainda forças para traduzir aquilo numa outra frase.

– Sê modesto, sem pareceres ignorante. É a primeira qualidade que terás como rei.

Vendo-o indiferente, Luís recaiu na sua sorumbática modorra de agonizante. Lá fora – percebeu – acumulava-se um denso nevoeiro sobre a serra. Se eram ou não as sombras do futuro próximo não lhe interessava. Queria atenuar as dores, mergulhar no delírio, acabar em silêncio. Só tinha ainda uma derradeira preocupação, o Tubinho, o irmão mais novo, que a mãe guardara sempre ao colo e o pai ao morrer lhe pedira em lágrimas que nunca o abandonasse. Do mais se desinteressava.

Partiu Carlos para desenfadar do murcho e repugante ambiente que se vivia na família. Em Setembro, quando gozava no Pigalle uma cachopa azul acabada de chegar do Limousin, filha dum soldado de Mac-Mahon, chamaram-no pelo telégrafo. O tio regressara às Necessidades e estava a render a alma, numa agonia final. O pai fora para a cidadela de Cascais, aos cuidados da mãe, que não poupava agora atenções para com ele. Carlos bem lhe percebia as intenções.

– Ratice. Topo-a tão bem.

Veio de imediato para Lisboa. Se o tio morresse, ele não podia faltar às exéquias, tanto mais que o pai estaria em condições muito difíceis para comparecer. Uma semana depois, a 27 de Setembro, morria o infante e ele lá foi, cabisbaixo e de luto, na companhia da condessa d’Edla, ao panteão da família, em S. Vicente, deixar o corpo do tio. Depois seguiu para a cidadela de Cascais disposto a dar a notícia ao pai. Era rapaz ainda vistoso e brilhante, que acabara de fazer vinte e seis anos.

O pai, quando recebeu a novidade, estava no seu quarto da cidadela, recostado num amplo cadeirão, com as pernas tapadas por uma manta de lã, perto duma janela envidraçada. Viam-se lá fora as águas revoltas e escuras do equinócio a cachoar na baía. Recordou-se imediatamente dos aziagos dias da morte dos três irmãos – Fernando, Pedro e João – e do momento da sua chegada a Cascais no paquete Oneida, em Novembro de 1861. Ele, o songamonga, já vinha rei sem saber. Tão longe e tão perto, pensou ele. Havia nas águas que agora subiam e formavam cachoeira a mesma tonalidade negra, lamacenta, que então observara. Uma escuridão que nessa época alastrara ao céu e que só se desvaneceu muito mais tarde. Era uma fuligem preta e viscosa, como a das fábricas de Alcântara e Sacavém. Regressava agora, decerto por causa da partida do irmão.

– Infeliz Augusto! Agora é a minha vez – exclamou ele.

Depois disso mergulhou numa atonia aparente. Estava lúcido, mas macabúnzio. Era capaz de recordar tudo o que se passara no intervalo do seu reinado, mas sem interesse na vida. Falava pouco, quer porque se cansava muito, com nevralgias agudas no coração, quer porque preferia vogar no oceano da sua exaltação interior. A morte do irmão, apesar de dolorosa, libertou-o da sua derradeira preocupação e deixou-o livre para desta vez nem sequer precisar de lutar para se manter em vida. Tal como ele previra, as pernas começaram a desfazer-se; foi preciso intervenção imediata, removendo-lhe grandes pedaços de carne. Chegava ao fim; lembrou-se que a mãe o comparava ao avô por causa do jeito do beiço. Ele viu em síntese a história do país e pensou na morte daquele antepassado num quarto da Bemposta, em Lisboa. Deixava dois filhos, Pedro e Miguel, uma esposa, Carlota Joaquina, como ele deixava Maria Pia, Carlos e Afonso. Mas a comparação terminava aí, porque ele legava um trono respeitado e um herdeiro sólido enquanto o antigo avô morrera no meio de incertezas e dúvidas, entregando o país à guerra civil.

Pobre Lipipi, como te enganavas nessa última hora da tua vida. Mais futuro houve para as hesitações do teu antepassado que para a grave segurança que tu fazias questão de mostrar. Nem duas décadas eram passadas e já o teu herdeiro tombava debaixo das balas do Costa e do Buíça; nem vinte anos haviam decorrido e já a tua monarquia começava o seu estertor de morte, para nunca mais até hoje ressuscitar. Como te enganavas, Lipipi, e como nos enganamos todos nós. Somos ignaras cigarras a cantar ao luar de Verão, sem saber que na noite seguinte já fazemos parte dos mortos, com os ossos à mostra na terra branca. Mas ainda bem que é assim e que tu pudeste gozar à hora da morte um derradeiro momento de satisfação.

Entrou o mês de Outubro com as primeiras ventanias e aguaceiros. O rei continuava no seu cadeirão da cidadela de Cascais. A rainha fazia-lhe companhia, experimentando o que lhe pudesse avivar o ânimo ou despertar o interesse. Ele, amorfo ao mundo, sentia-se um coração vivo e um cérebro desperto dentro dum corpo apodrecido antes de tempo. Já nem dores era capaz de sentir; estava desejoso de pôr um ponto final naquela excêntrica e ridícula farsa. Vieram os médicos que lhe lancetaram e removeram mais carne. Começou então a ter perdas momentâneas de consciência; nesses instantes delirava alto, falando das famílias que conhecera em Paris nos tempos do segundo império, das traduções latinas do irmão, dos vestidos da mãe, do primo Alberto de Inglaterra que conhecera na sua primeira viagem, do duque de Beja que era o seu mano João e até do estranho barão von Eschwege, com quem ainda convivera no tempo da mãe.

Momento houve em que delirou na língua de Dante, falando com ardor no nome da esposa. Ela, que o assistia como sempre fazia, quando tal ouviu, ficou histérica, desesperada, aos gritos. Recordou-se num repente da dolorosa e fria vingança com que se desforrara das leviandades que lhe descobrira. Nunca mais lhe permitira, durante quase vinte e cinco anos, um beijo sequer, massacrando-o com ditos e desfeitas. Agarrou-se a ele às carícias sôfregas, recebendo no rosto o cheiro nauseabundo e sentindo-lhe nas mãos a carne mole a desfazer-se aos bocados. Recuou, berrando com todas as suas forças, assustada e horrorizada com aquele cadáver que teimava em ficar vivo. Levaram-na de rastos, esvaída e branca, para os seus aposentos.

Aquela agonia transtornou-a para sempre. Nasceram-lhe nas convulsões daquela despedida os primeiros tufos brancos na cabeça, apagando-lhe a luz fulva e intocada que lhe coroava de esplendor a brancura de madrepérola do rosto. Também este esmoreceu e em lugar daquela visagem tesa e altamente electrizante que ela trouxera muitos anos anos antes para Portugal desenhou-se-lhe um esgar de medo e de loucura que por lá ficou para sempre. Estava cheia de remorosos e de visões horrorosas; o seu passado era pior que uma sala do inferno. Um pavor imenso tomava conta da sua alma. Envelhecera dum dia para outro; estava só, acabada e irreconhecível. E para mais sofrer, temia as desforras que a nora agora podia querer tirar dela. Mas entre a primeira Maria Pia, escultural e esplêndida, e esta, desfeada e doida, eu prefiro a segunda. Há muito mais consciência e grandeza nesta que naquela. Troco de boa vontade a perfeição dos teus seios, dos teus lábios, dos teus cabelos, das tuas formas por essa inquietação interior que te abocanhou durante a agonia do teu esposo e que nunca mais te largou.

Luís recebia passado pouco das mãos do cardeal-patriarca a extrema-unção, mas mostrava-se tão lento a acabar como antes se mostrara mole a viver. Era um monte de esterco que insistia em não fechar os olhos.

No dia seguinte vieram fazer o curativo ao rei. Lavaram-lhe as podridões com água morna e desinfectante; quando estavam para lhe colocar a gaza com que lhe protegiam as feridas, ele saiu da letargia em que parecia estar imerso e, forçando muito a respiração, abriu os lábios e pronunciou as suas últimas palavras, vindas não se sabe donde.

– Deixem-me sossegado.

Faleceu pouco depois, no dia 19 de Outubro, ao fim da manhã. Começara a chover, num turbilhão de redemoinhos que vinham batidos pelo irritante e muito nocivo vento sul.

Estiveram mais de dois dias sem saber o que fazer com aquela desfigurada imundíce em que se transformara o corpo do rei. Por fim decidiram embalsamá-lo e levá-lo para os Jerónimos, onde ficaria em câmara-ardente, disponível para uma última genuflexão, seguindo daí para o panteão da família, em S. Vicente.

Saíram quase em segredo na noite do dia 21 de Cascais, por estrada batida, pelo meio dos lugarejos, à procura de Belém. Continuava a chover e a ventar de sul. Era um vento nauseabundo, quente de miasmas, trazendo no seio um holocausto de água podre, que obrigava a rainha a exclamar enjoada.

– Bah… Quelle puanteur!

A noite estava escura e fuliginosa como carvão preto. Fazia medo. A família meteu-se à estrada, numa marcha lenta e lutuosa, com o esquife do morto no meio deles; viam-se apenas no meio das cordas grossas da água as lanternas dos coupés a baloiçar no vento, num choro triste, silencioso, compassado. Nem uma estrela, nem uma tocha, nem uma brasa, nem uma alma. Soprava só aquele vento lúgubre, cheio de emanações mórbidas. Era a tragédia fria, molhada, solitária, de três ou quatro humanos em torno dum morto. Primeiro via-se uma rainha repelente, envelhecida de repente, atormentada pelos erros da sua vida, tapada por uma tule negra; depois aparecia um casal que acabava de herdar um reino e por fim um tarado chamado por cinismo ou involuntária ironia Afonso Henriques. O casal, que levava nos braços uma criança loira de dois anos e esperava um recém-nascido como quem espera um lance do jogo, fazia planos e tecia sonhos para gozar a herança; por seu lado, o defeituoso, cujo único entretém aos vinte e quatro anos consistia em vir para rua montado em grandes alazões bravos atropelando os transeuntes e gritando, arreda, arreda, punha o sentido para se distrair nas suas brincadeiras e deitava os olhos à mãe, a quem chamava com lamúria infantil, pegando-lhe nas mãos e pedindo-lhe um beijinho,  petite maman. Mesmo no meio daquela tragédia ingente, com a assustada velhice da mãe a desenhar-se-lhe diante dos olhos, o pai malcheiroso fechado num caixão de pau, o irmão e a cunhada ao lado, ele, a pobre criança de vinte e quatro anos, não podia passar sem um jinho da sua querida mamã. Eis o pior ou o mais escarninho horror desta tragédia! Não há nada de mais irrisório que um matulão a fazer de anjinho!

Com estas figuras, num cenário áspero de Outubro, com as tintas escuras da noite, se pintava um presépio humano. Tinha por centro um ataúde e por figurantes as mortuárias figuras, tenebrosas, negras, chorosas que já conhecemos. Com elas em breve se podia montar o mais formidável drama da História de Portugal.

 

 


2

A MULHER DE NEGRO E O DEUS DO MAR

(1889-1908)


Depois da morte e do enterro do rei, os figurantes do tétrico presépio movimentaram-se, acabando por dispersar. Uns foram para Belém e outros para a Ajuda. A morte os reuniu, a vida os separava. Carpiam todos, mas uns por ofício e por dever, outros por pânico e por remorso. Era visível a quebra da rainha, muito lívida e cadavérica, sempre escondida por um enorme e funesto véu. Via-se reduzida a ser a nova teia-de-aranha da corte e precisava muito das boas graças da nova rainha. Enquanto tivera o marido, vivera como se o futuro não existisse; agora, que ele partira, estava capaz de mendigar uma gota de água ao próprio Diabo, quanto mais a Maria Amélia, la grande. A nora percebeu-lhe o retraimento e avaliou-lhe o medo, mas como era serena e muito pouco de vinganças, ainda que dura de carapaça, deu-lhe de imediato sinais de desanuviamento. A sogra, naquela hecatombe de fogo, esqueceu o feitio genioso e agradeceu-lhe o céu azul, fazendo-se prestável e serviçal e muito se interessando pela gravidez da nova rainha.

Pouco depois, em meados de Novembro, Amélia entrava em trabalho de parto. A 15 de Novembro, num dia também escuro e feio, tocado pela repelência da humidade, nasceu um rapaz de olhos sombrios, ar assustado, nariz tímido, quase medroso. Chamaram-lhe Manuel, por sugestão da avó paterna, Maria Pia, em homenagem a um príncipe da casa de Sabóia. Era a figura que fazia falta para que tudo ficasse completo ao mais violento e dramático choque da História portuguesa. Esta criança viveu tudo como os outros. Até o préstito fúnebre do avô Luís, da cidadela de Cascais para os Jerónimos, em Belém, ele acompanhou. Ia no ventre da mãe, aos pontapés, muito perto de nascer. Controverso destino o seu! Era o mais novo de todos, o princípio dalguma novidade desconhecida, mas era ao mesmo tempo aquele a quem estava destinado o Fim.

Nesse mesmo dia – o do nascimento do infante Manuel – veio o condimento trágico da ceia, o sal daquela amarga comida. Chegou por telégrafo e veio do Brasil. Uma revolução republicana, chefiada pelo marechal Deodoro da Fonseca, depusera o imperador Pedro II, um velho de sessenta e quatro anos, irmão da portuguesa Maria II, que durante meio século governara o Brasil com espírito conciliador, liberal e maçónico. Tinha menos da mana que reinou em Portugal que do sobrinho Pedro. Era popular e reconhecido, mas tinha a seu desfavor a descendência. Só tivera uma filha, casada agora com um Orleães, futuro imperador, o que não era do agrado do exército. Fora obrigado a deixar o palácio imperial de Petrópolis e pedia asilo aos parentes Portugueses. A notícia caiu como uma bomba junto de Maria Amélia que contava ver em beve Gastão de Orleães, seu parente chegado, governar o Brasil. Ficou acabrunhada, pesarosa, amedrontada. Viu um sinal funesto na coincidência do nascimento do seu filho com a deposição dos Braganças no outro lado do Atlântico. Carlos, por de mais ocupado com a cerimónia da aclamação, aliviou-lhe o espírito com dois ditos leves de humor, lembrando-lhe depois os compromissos próximos e mostrando um olímpico desprezo pelo caso.

– Ele que venha depressa de modo a estar em Lisboa no momento do baptismo do infante e da aclamação.

Estava desejoso de se ver rei e não era capaz de alcançar nada mais por aquele tempo. Esperara e sonhara aquele momento demasiado tempo. Agora, chegada a altura de subir os degraus do trono, nem o Diabo em pessoa, caso lhe aparecesse, lhe  desviaria a atenção, quanto mais a República no Brasil. E no fim de Dezembro, logo depois da festa do Natal, já com o filho baptizado, o parente brasileiro instalado em casa, foi às Cortes jurar a Carta e fazer o seu discurso de circunstância. Tinha Francisco como mordomo-mor, Sabugosa como alferes-mor, Bernardo como secretário privado. Tudo o que por ora queria, depois do Sabugosa o proclamar rei segundo a fórmula da praxe na varanda do palácio de S. Bento, era regressar a Belém e preparar o beija-mão do Ano Novo na sala do trono, na Ajuda. Embora um antepassado recente seu tivesse abolido a cerimónia, ele estava desejoso de se espamarrar no trono, apoiando os pés numa banqueta, olhando distraidamente para o lado, enquanto estendia a mão, dando-a a beijar.

Em seu redor pintavam-se quadros com cores felizes; o pai – diziam-lhe – legara-lhe um trono popular e sólido; as instituições políticas estavam firmes, a família real unida em torno da sua figura; tinha dois herdeiros saudáveis, especialmente o primeiro, Luís Filipe, que lhe guardava os traços e a robustez. Demais, havia a mulher com o seu apurado sentido de Estado, que nunca lhe faltaria nas cerimónias públicas, e a mãe, que amansara o seu tanto com a morte do rei. E estava lá ainda o seu grupo de amigos, agora a primeira nata da Casa Real, com ideias desempoeiradas, contactos estreitos com os escritores de maior público e os artistas de mais prestígio e consagração, interesses fortes na melhor imprensa de Lisboa, e que prometiam uma rajada de novidades para os próximos tempos e uma entrada de vento em popa no novo século que se avizinhava.

O telefone acabara de chegar a Lisboa e ao Porto; a primeira corrida de bicicletas vira a luz no hipódromo de Belém há três ou quatro anos; a avenida da Liberdade, que substituía o pacóvio Passeio Público, estava quase concluída, dando um ar de grande e rasgada metrópole a Lisboa; uma via férrea acabara de ser inaugurada entre Lisboa e Cascais. Carlos confiava que ia ter um reinado fácil, afortunado, moderno, inovador, introduzindo uma viragem decisiva na monótona vida política portuguesa da segunda metade de oitocentos.

Pobre Carlos também tu, como o teu pai, confiavas demasiado nas aparências. Não sabias que um furacão se pode formar num dia sem vento, de céu azul e folhas paradas? É verdade, meu amigo, uma tempestade não se antecipa, apanha-se de surpresa, dum momento para o outro, sem se perceber porquê. Assim tu, no final de Dezembro de 1889, indiferente, seguro, dissipador. Em menos de quinze dias, estavas no meio duma borrasca tão grande que não havia ninguém por essa Europa fora, calcula, que estivesse disposto a pôr um vintém pelo teu trono. A roda da vida gira tão depressa e tão às avessas, mostrando-se tão insensata, que nenhum cálculo a pode domesticar. Quem isto assim sabe, tem o dever de admirar neste mundo aqueles que andam ao Deus-dará, pois só estes vivem como sábios.

Uns dias depois do beija-mão da Ajuda, estava o novo rei gozando os seus planos de novidade, quando lhe chegou a Belém um telegrama lacónico de Barros Gomes, o ministro dos Estrangeiros, pedindo-lhe audiência. Era domingo, 11 de Janeiro, tarde mole e fria, e ele entretinha-se na sala, de chaminé bem aquecida, a aguarelar e a passar os olhos pela sonolenta imprensa da semana. Não havia a registar de tudo o que vira um facto vivo, de interesse.

– Que me há-de querer num domingo assim este patusco – perguntou-se o rei, aborrido e incomodado.

Recebeu-o ainda assim. O homem chegou esbaforido e com um ar de pânico.

Tratava-se dum baronete de Anselmo Braamcamp, que começara por fazer carreira no banco de Portugal e na pasta da Fazenda, ligando-se depois da morte do seu chefe a Luciano de Castro. Na pasta dos Estrangeiros desde 1886, fizera no governo progressista deste uma política agressivamente africanista, aproveitando a dissidência de interesses da Alemanha e da Inglaterra. Pela cegueira africana, pela obsessão das cartas e dos mapas, era alvo predilecto da má-língua dos Vencidos da Vida; por isso o rei o tinha à distância, sem se lhe mostrar gosto ou proximidade. Assim como assim, não se atrevera a mexer no governo que vinha do tempo do pai e que de resto governava desde há cerca de quatro anos, mostrando-se um dos mais estáveis e duradoiros governos constitucionais de sempre.

Era esse pois o homem que lhe entrava por casa dentro, de olhos amedrontados, um esgar de pavor nos lábios e um papel amarrotado na mão. Era em geral homem dúbio, de meias palavras, habituado aos duelos e às flores das bancadas da câmara de deputados, mas desta vez foi direito ao assunto com uma frontalidade que feriu de imediato.

– Tenho comigo, Sua Majestade, uma declaração de guerra da Inglaterra.

O choque foi tão grande, que Carlos precisou de se certificar do que acabara de ouvir. Dera com as palavras mas parecera-lhe no meio da sua sonolência dominical tão incongruente o seu sentido que temeu que o homem se tivesse embrulhado. Por fim, ele gritou-lhe quase desesperado ao pé da cara, agitando diante dele o papel que tinha nas mãos.

– Oiça, Sua Majestade, é mesmo uma declaração de guerra da Inglaterra que aqui tenho.

Arrancou de imediato das mãos do ministro o papel e deu um primeiro vislumbre. Era um telegrama, a que o ministro por cautela anexara um curto memorando sobre as relações luso-inglesas em volta dos territórios do Niassa e do Zambeze que faziam a ligação por terra entre Angola e Moçambique. Vinha assinado pelo representante inglês em Lisboa, em nome de Lord Salisbury, primeiro-ministro inglês. Leu depois mais atentamente o encadeado do discurso e percebeu que a Inglaterra exigia a imediata retirada dos territórios do Niassa, do Zumbo, do Chire e da terra dos Macololos, ameaçando em caso negativo com a saída do seu representante diplomático e, pior, com acções militares contra Moçambique e Portugal. O rei avermelhou de imediato; tinha nas mãos uma vasilha de pólvora prestes a estoirar. Era de feito um ultimato que deixava Portugal à beira da guerra com a Inglaterra. Não sabia por onde podia começar; por fim, lá arrancou uma preocupação que era uma preterição das decisões a tomar.

– Diga-me o que conhece para além do que aqui está.

Tudo o que Barros Gomes sabia era o que o legado tinha as malas feitas para deixar Lisboa; havia navios Ingleses no Tejo com ar ameaçador e, dizia-se, uma grossa armada inglesa deixara Gibraltar a caminho do Tejo. Além disso, falara já com o presidente do ministério e Luciano de Castro, com o seu modo fechado e calado, contava com o apoio da França e da Alemanha na questão, já que estas duas potências haviam reconhecido em 1885 e 1887 o direito de Portugal a ocupar os territórios compreendidos entre a fronteira leste de Angola e o ocidente de Moçambique. Esperava-se pois uma negociação das potências europeias em torno do caso. Fora isso que acontecera na Conferência de Berlim e era isso decerto que ia acontecer agora. Nesse sentido, Luciano de Castro permitira-se já um contacto com as duas principais potências europeias continentais, na esperança que elas se imiscuissem de imediato nas ameaças da Inglaterra, pedindo novas conversações internacionais sobre as fronteiras da África austral.

– Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas – concluiu o ministro, confiando que a estratégia do chefe produziria resultados.

Mas daí a pouco chegou um telefonema de Luciano de Castro. Os alemães e os Franceses davam o dito por não dito, faltavam aos compromissos, davam a entender que não se iriam meter em trapalhadas diplomáticas com a Inglaterra por causa dos pequenos e incómodos interesses de Portugal.

– Estamos nisto sozinhos. Não querem saber de nós ­– desabafou o maioral dos Progressistas.

O rei apertou as mãos com aflição. Estávamos em Janeiro, soprava uma nortada fria dos lados de Sintra, mas ele sentia na pele escorrer um suor quente, de desespero. Lembrou-se então por milagre da rainha de Inglaterra, a velha rainha Vitória, que ainda conhecera a sua avó e com ela se correspondera com tanta e tão próxima familiaridade. Ele próprio tivera o gosto de ser por ela recebido em Londres nas festas do seu jubileu, no ano de 1887. Era preciso entrar em contacto directo imediato com a rainha de Inglaterra e pedir a sua intercessão pessoal no caso.

– Sua Majestade atenderá à inconveniência dum ultimato como este, aceitando conversações amigas entre os dois aliados. O esforço lusitano – acrescentou o rei – na guerra contra os Franceses, que foi o princípio do fim de Napoleão, não se deixará agora manchar por episódio tão sem crédito.

Telegrafou-se de imediato para o palácio Buckingham em Londres pedindo uma palavra da rainha inglesa a favor de conversações amigas. A resposta veio de seguida, como se o pedido fosse já esperado. A rainha inglesa lamentava muito a situação do primo português, mas nada podia fazer; era obrigada a vergar-se à razão de Estado apresentada por Lord Salisbury.

Cresceu o desespero em Belém. Entretanto apareceu Luciano de Castro, um homem calado, de cinquenta e cinco anos, que ocupara a sua primeira pasta há mais de vinte anos, num dos governos do duque de Loulé. Anoitecia e era preciso tomar decisões, tanto mais que a nota inglesa do legado era categórica: instruções telegráficas imediatas, quer dizer, na hora, para Moçambique, exigindo a retirada da administração portuguesa dos territórios em causa. Os sinais dessa retirada deviam ser visíveis nas próximas horas; caso assim não fosse, viria o bombardeamento de Lourenço Marques, o cerco de Lisboa, o aperto do Porto.

– E nisto já se passou a tarde – exclamou o rei, enervado, quando viu sentar-se o chefe de governo de carão cerrado.

Foi ver a hora do telegrama; deitou as mãos à cabeça, alarmado. Havia mais de três horas que fora enviado. Ele, por ele, não hesitava e satisfazia de imediato as exigências do governo inglês.

– Meus amigos, isto é fácil de entender. Não há volta a dar-lhe. É telegrafar para o governador de Moçambique e dar o caso por acabado

E dentro dele, só por dentro, lembrava as palavras do selecto Soveral, glosando-as com energia.

– Era o que faltava uma guerra com os Ingleses por causa dos Macololos. Os Macololos, Deus meu! Enlouquecemos todos.

Mas Luciano de Castro não se ajustava ao plano do rei. Tinha vinte anos de ministério e alguma ronha a seu favor. Sabia que se cedesse assim dum momento para o outro às exigências de Salisbury, o partido da oposição não hesitaria em explorar a cedência a seu desfavor. António de Serpa Pimentel e Hintze Ribeiro estavam desejosos de regressar ao governo e não deixariam passar o caso sem uma ruidosa algazarra. Não era a África que lhes interessava – nunca a África importara muito para os Regeneradores de Fontes – mas a queda dos Progressistas. E percebia-se de antemão que a perda daqueles territórios levava à ruína de qualquer governo, caso se orquestrasse do outro lado uma campanha de denúncia e acusação bem montada. Por isso Luciano de Castro abanava a cabeça em sinal de negação, enquanto o rei, falando e gesticulando, manifestava pressa em pôr cobro à situação.

– A situação é grave de mais para uma tal decisão ser apenas tomada pelo governo – disse por fim Luciano de Castro. – Convoque-se de imediato o Conselho de Estado para se auscultar a sua vontade e se deliberar de acordo com ela.

Era uma saída de mestre. No Conselho de Estado estavam representados os vários partidos e o que de lá saísse tanto responsabilizava Progressistas como Regeneradores. Pimentel ia ficar quieto, de mãos atadas, qualquer que fosse a decisão do Conselho de Estado. Não podem fazer campanha contra si próprios, pensou ele.

A contrariedade do rei foi evidente, mas esbarrou com a firmeza de Luciano de Castro, insensível que se mostrou a todos os argumentos para de imediato dar saída ali aos pedidos do governo inglês. Estava inflexível; não assumia por nada a decisão de mandar retirar os sinais da administração portuguesa dos territórios reivindicados pelos Ingleses sem ouvir o Conselho de Estado. Aceitava a retirada como a única solução formal possível, mas queria o parecer do Conselho. Convocou-se pois este com carácter de urgência para a noite desse domingo no paço de Belém e despediram-se Barros Gomes e Luciano de Castro.

Entretanto o rei telefonou aos seus amigos pondo-os ao corrente da situação. Compareceram estes com um ar inconsolável em Belém.

– Eu sabia! – exclamou Bernardo Pindela, quando apertou Carlos nos braços – Esse Barros Gomes é o homem dos aborrecimentos.

– Que chatice, menino – replicou-lhe o rei, com ar carregado. – Imagina só uma guerra com a Inglaterra. Esta gente não sabe o que faz e nós é que temos de os aturar.

Por volta da dez da noite reuniu-se o Conselho de Estado sob a presidência do rei. A nota inglesa da tarde já era conhecida dos partidos e não sobrava dúvida a ninguém que tudo o que restava fazer era telegrafar para Moçambique e dar as ordens indicadas pela Inglaterra. Mas o chefe dos Regeneradores era tão matreiro como o dos Progressistas e não se quis comprometer numa decisão final sem um aditamento, uma nota de resistência, posto que falsa. Não podia deixar passar aquela ocasião de oiro sem ficar com um pretexto, pequeno que fosse, para no dia seguinte bater no governo, exigindo a sua queda. Eram assim os políticos e eram e são assim as suas manigâncias. Insistia assim numa arbitragem internacional, mesmo sabendo que a Alemanha e a França se haviam desinteressado do caso. Pouco depois da meia-noite deu-se a reunião por acabada, lavrou-se e assinou-se a acta e foram todos dali para casa de consciência aliviada. Barros Gomes estava porém amedrontado ainda pelo susto que apanhara a princípio da tarde.

– Isto é caso encerrado – sossegou-o Luciano de Castro à despedida. – Amanhã ninguém se lembra disto.

Nenhum deles fazia de feito planos de se lembrar muito mais do assunto. Só António de Serpa Pimentel alimentava ainda uma vaga esperança de explorar estrategicamente o caso na imprensa a favor do seu partido. Tinha uma ponta para no dia seguinte fazer algum barulho, mas pouco mais. Aquilo apagava-se depressa.

Mas no dia seguinte aconteceu o inesperado. Primeiro, a imprensa dos Progressistas noticiou extensamente os acontecimentos do dia anterior, atirando para cima do governo de Luciano de Castro e de Barros Gomes as culpas do fracasso e clamando por justiça. Os eventos começaram a ser comentados nas ruas, nos comércios, nos cafés. O tom começou por ser de surpresa; depois passou a crítica e por fim a indignação.

– A Inglaterra continua a tratar-nos ao bofetão – constatou alguém.

– Desta vez, calçamos a luva de pugilato e vamos à luta – replicou outro.

Nessa noite uma multidão reuniu-se na Baixa da cidade e dirigiu-se para a casa de Barros Gomes, aos gritos de traidor e de cobarde. O ministro jantava tranquilamente com a família, pouco se lembrando já do susto do dia anterior. O telegrama seguira de madrugada para Moçambique; certificara-se umas horas depois que as ordens estavam a ser cumpridas e um peso de chumbo saíra-lhe dos ombros. Ao almoço, já mais leve e desassombrado, falara com o representante inglês em Lisboa que se mostrara satisfeito com as diligências que o governo estava a fazer. Passara os olhos pela imprensa dos Regeneradores mas nada daquilo lhe parecera preocupante ou excessivo; era mesmo previsível que o partido da oposição fizesse do caso do Niassa uma cunha de ataque ao governo. Agora, com una milhares de populares na rua, defronte da sua casa, aos gritos de traidor e de cobarde, o seu espírito voltou a enublar. Atreveu-se a tomar a janela. Aí os urros cresceram e choveram as primeiras pedras. Estalaram com estardalhaço de imediato os primeiros vidros. Ele recuou assustado, escondendo-se. Continuaram a chover impropérios e pedras.

Quando não sobrava já um único vidro inteiro nas suas janelas, a multidão deu sinais de retirar. Estava furiosa e determinada a actos mais ousados e vistosos. Ouviram-se vozes em coro gritar no escuro da noite.

– Fora os Ingleses! Fora os Ingleses!

Depois uma voz isolada, contraponto inesperado daquele coro, gritou com fôlego.

– Todos ao consulado!

Um estremecimento de embriaguez, um rosnido de entusiasmo e ira correu pela multidão. Aos gritos furibundos, aqueles milhares de pessoas puseram-se em movimento em direcção do consulado inglês, onde desarmaram o guarda, arrombaram portas, partiram vidros e arrancaram por fim o escudo inglês do edifício, arrastando-o aos risos de escárnio na lama das ruas.

Já se gritava vitória sobre a Inglaterra, quando alguém se lembrou de ir ao teatro São Carlos interromper o espectáculo que por lá se estreava.

– Amigos, hoje é dia de luto. É uma afronta que uma casa de espectáculos esteja aberta.

Foram. Interromperam a encenação, proclamando o nojo da nação diante da cobardia do governo, e deram o teatro por fechado e os artistas por dispensados nos dias próximos. Quando se preparavam para sair, depararam com o edifício rodeado pela guarda. Esta avisada dos desacatos que entretanto haviam ocorrido junto da casa de Barros Gomes e do consulado inglês comparecera em força com o propósito de dispersar a multidão e de prender os chefes. Houve confrontos e largas dezenas de pessoas presas e transportadas para os calabouços da municipal. Ainda assim, mais tarde, no Rossio, o grupo reorganizou-se e partiu desta vez para os principais quartéis da cidade a pedir o levantamento das tropas contra os Ingleses e o governo traidor.

No dia seguinte, o paço e o governo acordaram estupefactos com estas notícias. O inimaginável acontecera, o caso não caíra no esquecimento e uma multidão andara amotinada durante a noite.

Quem era aquela gente? Quem era aquele poviléu, que enxovalhara os símbolos ingleses, interrompera um espectáculo público, apelara à insubordinação dos soldados e dos oficiais? Seriam os mesmos que haviam pateado o imperador no teatro São Carlos depois da convenção de Évora Monte ou os mesmo que haviam apedrejado o palacete de Palmela no Chiado depois da morte de Augusto de Leuchtenberg, segundo marido de Maria II? Seriam os patuleias de novo em pé de guerra?

Não eram. A cidade mudara muito no último meio-século, entre 1840 e 1890. A inauguração da via férrea em Portugal em 1856, o seu rápido desenvolvimento nos anos seguintes, apertando o país numa cerrada rede de milhares de quilómetros, e em paralelo a abertura de muitos milhares de quilómetros de estradas de macadame, haviam alterado a fisionomia do país e as relações do campo com a cidade. Aproveitando as novas vias de comunicação, um importante êxodo rural tivera lugar, ao mesmo tempo que um novo impulso industrial se concentrara no litoral e a circulação de mercadorias se multiplicara em todo o país. Por exemplo, Lisboa que não tinha em 1840 mais de cem mil habitantes, tinha em 1890 mais de trezentos mil e o Porto que antes da Patuleia rondava os setenta mil habitantes tinha no ano da aclamação de Carlos de Bragança cerca de cento e cinquenta mil. Era pois um mar novo que se agitava agora nas ruas.

O rei e o chefe do governo mantiveram-se em contacto estreito durante o dia. Logo pela manhã Barros Gomes teve o cuidado de pedir desculpas ao legado inglês dos desacatos da noite anterior, dando os culpados como presos e incriminados em penas graves. Luciano de Castro, pelo seu lado, preocupou-se em averiguar as ligações dos motins com gente conhecida dos partidos mas nada tirou de particular. Tentou ainda indagar sobre aquilo que se antecipava para a noite daquele dia e para as seguintes.  Prognosticavam-se mais manifestações adversas ao governo e ao paço mas não se sabia dizer com segurança donde vinham e quais os seus propósitos, a não ser que o associativismo estudantil e comercial se associavam ao acto. Decidiu esperar a conselho do rei. Este estava convencido que tudo se desvaneceria e que as cenas da noite anterior não se repetiriam.

– Não te preocupes. Verás que nas próximas horas a calma será total. Não há motivação de inquietação.

Mas nada se passou como o rei esperava. Por volta da hora do jantar, pouco depois dos comércios da Baixa encerrarem portas, uma multidão concentrou-se nos cafés vestida de preto e desfilou pelas principais ruas da Baixa enaltecendo Portugal e apoucando a Inglaterra. Aos milhares que desfilaram na rua numa carregada manifestação de pesar, juntaram-se ainda os que vieram às janelas e às varandas enfeitadas com grandes panos escuros. Logo depois do jantar, embalados por aquele cortejo massivo, reuniram-se as associações académicas e empresariais e comerciais de Lisboa, que decidiram repudiar o ultimato feito pelo governo de Salisbury, apelando à resistência e à não retirada dos territórios exigidos pelos Ingleses. Os estudantes rugiam como leões e os empresários do comércio e da indústria arreganhavam o dente como lobos; os primeiros ofereciam-se como voluntários para Lourenço Marques, dispostos a juntar-se ao exército regular para combater os Ingleses; os segundos cancelavam de imediato as importações inglesas e recusavam-se a manter no futuro relações comerciais com a Inglaterra. Nessa mesma noite, os comércios da Baixa exibiam quase todos placas de madeira onde se lia em vistosas letras vermelhas: não vendemos nem compramos a ingleses. Era a guerra, ou pelo menos um desafio de provocação.

No dia seguinte chegavam notícias do Porto, falando de manifestações populares enlutadas e patrióticas, encabeçadas por estudantes das escolas superiores da cidade, que repetiam o que se vira em Lisboa. O clima de indignação popular que a nota inglesa produzira na opinião pública de Lisboa parecia alastrar, sem que se percebesse quem de dentro dos partidos a ajustava. Diante de tantas incertezas, pelo sim, pelo não, Luciano de Castro julgou-se sem condições para continuar e apresentou nessa manhã a demissão ao rei. Este ficou estupefacto, pois fechado em Belém ou na Ajuda não se dava conta do que ia pela cidade. Também os amigos não lhe serviam de muito.

– Que coisa insuportável, menino. O pirismo desceu à rua – disse-lhe por exemplo nessa manhã Bernardo Pindela, ainda mais estrábico do que o costume, quando o abraçou.

– E você nem calcula o cheiro daquela gente ­– replicou o Macaco Azul, com ar de repugnância.

O luto que por ali ia era outro. Era mais o escândalo duma irreverência que a revolta duma humilhação. O que mais custava ao rei e aos amigos era apanharem um governo demissionário à mão e não poderem usar os seus planos de pós-rotativismo. Naquele quadro de dificuldades, o reforço do poder real, o tal socialismo de Estado, cesarista e militar, tinha de ficar adiado para outra ocasião, pois na verdade não passava de brincadeira de ociosos, que depois de melindrarem as velhas afectadas dos Estoris pretendiam escandalizar o país do alto da sala do trono. Foi assim chamado para tomar conta do governo António de Serpa Pimentel, o chefe Regenerador que se dava ares de concertar a agitação das ruas.

Nessa noite, antes de recolher ao quarto, e depois de folhear os jornais, o rei foi até uma das varandas do paço de Belém. Amélia estava recolhida com as crianças, os amigos haviam debandado para Lisboa, ele não sentia sono algum nem vontade de se enfiar nos lençóis. Estava nervoso, queria fumar e beber o frio da noite. Lá fora, no rio e na Outra-Banda não se vislumbrava uma luz; era tudo escuro como carvão preto até ao infinito. Só no cais de Belém, a dois passos, se distinguiam duas candeias tardias. Ele aspirou o ar frio e seco e puxou dum grosso charuto que acendeu, protegendo a chama do fósforo com a palma arqueada da mão. Chupou uma larga baforada de fumo e sentiu na boca o travo doce da folha seca do tabaco. Apagou o fósforo e com o peito aquecido pelo fumo pôs-se sem saber por quê a pensar no pai. Reviu a sua expressão desfigurada dos últimos tempos, quase apalhaçada, com os olhos apagados e enevoados, os lábios caídos e necrosados, os cabelos crestados. Ficou interdito quando se deu conta que morrera há menos de três meses.

– Chiça! Fui aclamado há coisa de quinze dias – exclamou ele de si para si, enquanto rodava nos dedos o maciço charuto.

Pareciam-lhe quinze anos aqueles míseras duas semanas que iam do seu juramento em Cortes até ao esfumaçar daquele rolo de tabaco que apertava entre os dedos. Pelo meio vivera nada menos que uma impensável declaração de guerra da Inglaterra e assistira ainda ao princípio dum levantamento popular, com um governo demitido e outro a entrar em funções. Em quase trinta anos de reinado o pai não havia decerto vivido emoções tão desencontradas como aquelas que ele acabara de viver em quinze curtos dias. Se uma bruxa lhe houvesse predito tais eventos no beija-mão do Ano Novo, ele ter-se-ia rido, incrédulo e risonho. Não havia lógica no mundo dos homens que comportasse tal distorção do tempo e do espaço. Era o inaceitável, melhor, o impossível que ele estava a viver, sem que o pudesse explicar ou compreender.

No dia seguinte, novas manifestações em Lisboa e no Porto. Em Lisboa a estátua de Camões foi enlutada de cruzes negras e no Porto os estudantes seguiram o exemplo dos de Lisboa, apelando à resistência dos militares e oferecendo-se para lutar a seu lado contra os Ingleses. A comunidade inglesa do Porto, importante devido à exportação dos vinhos do Douro para as ilhas britânicas, sentiu-se ameaçada e deram-se as primeiras fugas. A atmosfera patriótica das duas grandes cidades do litoral português chegava ao conhecimento do resto do país; comentavam-se os principais acontecimentos e palpava-se até nos recantos mais recuados do interior uma indignação contra o despotismo da Inglaterra e a submissão do governo português às suas regras de ferro. Luciano de Castro e Barros Gomes estavam queimados e não se acreditava que o Pimentel fosse capaz de fazer diferente. Restava o rei, que era conspícuo mas incógnito.

– E o rei…? – perguntava-se por todo o lado. – Ele que apareça e nos valha em hora de tanto aperto.

Pouco ou nada se sabia dele. Era um rapaz de vinte e seis anos, casado com uma descendente da casa de Orleães, com dois filhos, que passara por ter uma primorosa educação com Martens Ferrão. Conhecia-se vagamente o seu dom artístico para o desenho e para a pintura e a sua inclinação para a literatura e para a ciência. Demais, tudo o que se sabia era o que em tempos aparecera na imprensa selecta de Lisboa a propósito da vida elegante de Cascais e depois dos jantares elegantes do Tavares e do hotel Bragança. De resto ele nunca aparecia em público, salvante dois ou três lugares de passagem obrigatória, como o barracão de embarque para o Barreiro no Terreiro do Paço ou um pouco mais adiante a estação de comboios de Santa Apolónia. Era por isso um desconhecido incogitável para a maior parte dos Portugueses.

O rei não estava porém interessado em valer a ninguém naquela crise. Tudo o que lhe parecia de proveito era um acordo rápido com a Inglaterra, desenhando-se um novo mapa que substituísse o do caricato Barros Gomes e pussese termo àquele perigoso conflito. Por isso insistia com o Pimentel para que o seu governo, pela mão de Hintze Ribeiro, que tinha a pasta dos Estrangeiros, e de Barjona de Freitas, legado português em Londres, concretizasse em poucos dias um acordo com a Inglaterra. Ainda assim, o governo tinha o terreno minado à sua volta: por um lado sentia a urgência de conversações com Londres, dando por fechado o caso, por outro experimentava a pressão das ruas, em manifestações massivas, apelando à guerra contra a Inglaterra e à reocupação dos territórios exigidos pelos Ingleses. Na verdade, o governo português estava numa nesga de terra cada mais instável e minúscula; nem podia governar contra os ditames da Inglaterra nem reger contra a vontade do seu próprio povo.

Quando o rei alguns dias depois, com impaciência e nervosismo, pediu contas ao chefe do governo sobre o avanço das negociações, António de Serpa Pimentel foi evasivo.

– A temperatura está muito alta; baixa porém com certeza nos próximos dias. Em clima ameno teremos mais condições para falar com Londres.

O rei, que tinha as rabugices de quem sempre satisfizera os mais pequenos caprichos, amuou e foi carpir as suas cóleras com os amigos. Não entendia como a rua podia condicionar a urgência da política do governo. Sentia-se diante dos cortejos cívicos de Lisboa e Porto como a avó se reconhecera diante das manifestações da Guarda Nacional. Se aquilo continuasse assim, ele estava disposto a perder a paciência e a dar uns tantos pontapés.

– Não é a ralé que dita a lei – disse ele comentando o caso com o Sabugosa. – Que regresse depressa às alfurjas donde saiu; a não ser assim teremos de tomar medidas.

Mas a agitação nos dias seguintes não abrandou, antes consolidou numa rotina que depressa se fez um hábito e depois uma necessidade. Os cortejos enlutados prosseguiram em Lisboa e no Porto, ainda mais participados e entusiásticos. Depois dos comércios fecharem, uma multidão vestida de preto ou de tarjas negras enroladas no braço tomava conta das ruas, desfilava em passo lento e fúnebre, vociferando contra a insolência inglesa e bradando pelo pequeno Portugal humilhado pelas potências. Organizavam-se comícios depois de jantar nos principais teatros das cidades, onde se apelava à guerra e à recusa da entrega dos territórios africanos. Formavam-se corpos de voluntários entre a juventude, organizavam-se subscrições para a compra de armamento, apelava-se à expulsão imediata dos Ingleses que viviam em Portugal.

A 23 de Janeiro, numa assembleia no teatro da Trindade em Lisboa o entusiasmo subiu tão alto que se criou ali mesmo uma Comissão de Defesa Nacional paralela ao governo encarregada de adquirir navios de guerra para responder às ameaças inglesas. O mesmo clima de euforia levou três dias depois no Porto à criação da Liga Patriótica do Norte, cuja missão era fomentar o desenvolvimento do país, a sua reorganização financeira e económica, de modo a garantir a sua defesa e independência. Desde o fim do reinado de João VI que não se via um movimento cívico no país tão vasto e tão determinado em prol duma causa. Começava a falar-se com espanto e interesse do renascimento da cidadania em Portugal depois dum largo período de abatimento e desinteresse.

O governo sentia-se paralisado. Em Londres fingia negociar com os Ingleses, oferecendo-lhes sem resistência tudo aquilo que eles pediam; em Portugal arremedava compreender os sentimentos patrióticos que a mobilização popular exaltava, prometendo um investimento capital na modernização do exército e do armamento. Simulava tanto num caso como noutro, pois por um lado sabia que não podia dar aos Ingleses o que eles pediam sem abrir uma trincheira na frente interna e não podia dar aos Portugueses o que eles exigiam – a manutenção do mapa cor-de-rosa – sem entrar em guerra com os Ingleses. Pimentel, Hintze e Barjona percebiam que tudo o que havia por ora a fazer era procrastinar decisões, entretendo o desdém duns e o entusiasmo dos outros.

Mas depressa Barjona em Londres se deu conta que os Ingleses não estavam na disposição de andar muito mais tempo naquele jogo do gato-sapato, iludindo um tratado que regulasse de forma instantânea e segundo as suas conveniências os territórios de Moçambique. Pimentel, usando de toda a sua astúcia, em conversa com Hintze, tentou então inverter os papéis, dando à Inglaterra um novo protagonismo.

– Aceitemos numa base de ficção a mediação internacional. Trata-se apenas de salvar a face do governo diante da opinião interna. Não haja engano, nessa mediação o governo português estará na disposição de tudo assinar por baixo.

Mas nem isso a toda poderosa Inglaterra consentiu. Exigia os territórios que os Portugueses tanta relutância mostravam em largar e não queria dar qualquer imagem de fraqueza. Ora convocar um arbítrio internacional para regular o caso, mesmo sabendo que era apenas brincadeira, coisa de ficção, de modo a ajudar o governo português a resolver as suas dificuldades, era passar uma ideia de fraqueza do governo de Londres. Na verdade, para bem dizer, Salisbury, estava cansado das manobras do governo português e muito irritado por tanta insistência em pormenores que lhe pareciam irrisórios e que não tinham outra utilidade a não ser dilatar o prazo de qualquer decisão. Estava farto de expedientes dilatórios; não lhe bastavam os esforços da administração portuguesa nos territórios da África austral, abrindo caminho às forças de ocupação inglesas; queria um tratado que definisse por escrito e para sempre a área de influência dos dois países.

O rei, quando foi posto ao corrente destes desenvolvimentos, percebeu que o governo do Pimentel estava tolhido por causa da agitação dos cafés, dos teatros e das ruas. Só ela impedia um rápido acordo de cavalheiros com a Inglaterra. Também ele estava irritadíssimo por ver o que se passava e que o caso inglês continuava por resolver. Não hesitou pois em propor medidas duras que desimpedissem as mãos ao governo para negociar com a Inglaterra.

– O regabofe já dura há demasiado tempo. Chegou a altura de acabar com o pagode e limpar de vez as ruas.

Começou então a repressão. Era de longe preferível para Pimentel pôr na rua a polícia, mandar prender uns tantos agitadores mais conhecidos, dissolver associações e proibir reuniões do que enfrentar os cruzadores ingleses no Tejo e no Douro. Criaram-se dificuldades aos cortejos cívicos, puseram-se entraves às assembleias dos teatros, mandaram-se vigiar as associações onde se promovia a propaganda contra os Ingleses. Ainda assim a agitação engrossava, não dando mostras de querer abrandar.

A 11 de Fevereiro o governo cansado das marchas e das assembleias patrióticas decidiu proibir todas as manifestações, dando ordens à Guarda Municipal para ocupar as ruas da cidade e pondo de prevenção os quartéis. Mesmo assim a multidão tomou o centro da cidade e insistiu no desfile. Era uma onda negra, ondulante, grossa, compacta, constituída pelos estudantes das escolas superiores de Lisboa, pelos caixeiros dos comércios da Baixa lisboeta e pelos descamisados que haviam chegado à cidade nos novos transportes e se haviam empregado nas novas indústrias e nas obra públicas, britando pedra para as estradas, fabricando chulipas para as vias férreas ou fundindo ferro nas novas fundições. Outros viviam desamparados de tudo e sem trabalho, deambulando pelo centro da cidade e vivendo num barraco dos arredores, onde amanhavam uma curta jeira de terra donde tiravam as couves e as batatas com que faziam todas as manhãs o caldo para enganar o estômago. Amontoavam-se nas ilhas operárias de Alcântara, de Xabregas, da Ajuda, do Poço de Bispo ou do Alto do Pina; a sua adesão ao movimento patriótico não fora imediata e só nos últimos dias a sua presença se fizera sentir em força, engrossando as marchas e os comícios.

O cortejo desta vez confrontou-se com as ordens de dispersão da Guarda e os confrontos fizeram-se fatais e duma violência inesperada. Os duros proletários dos novos subúrbios industriais, habituados que estavam a arruaças frequentes, donos que eram duma força física excepcional, opuseram uma resistência feroz à Guarda, redundando o cortejo numa furiosa batalha campal. Houve muitos feridos e mais de duzentas pessoas foram levadas para os barcos de guerra que estacionavam no Tejo para serem apresentadas no dia seguinte aos tribunais e multadas por tumultos públicos e desobediência civil.

Viram-se então pela primeira vez as imagens a preto e branco de homens de alpergatas nos pés, camisa suja e aberta, boné encarvoado, segurando as calças remendadas de cotim com uma corda de sisal passada na cintura, barba por fazer, bigodes célticos enrolados nas pontas tesas e levantadas, braços passados atrás da cabeça, seguindo em fila, uns atrás dos outros, guardados por duas alas de soldados atentos, de carabina moderna nas mãos. Eram as imagens do Portugal urbano que começavam e que só desapareceram porventura já nos nossos dias. Substituíam as mais antigas, que o leitor viu nos primeiros painéis deste livro, com soldados de casacas coloridas, calça branca, boldrié com espada, penacho colossal na barretina e espingarda de grande baioneta nas mãos, atravessando campos desertos, onde camponeses assustados, acabados de sair das grutas da última glaciação, se confundiam com a escuridão da terra. São as imagens que vão das invasões de Godoy e de Junot às correrias de Sá da Bandeira e de Saldanha no tempo da Patuleia.

Três dias depois o governo dissolvia a Associação de Estudantes de Lisboa, que passava por ser a dianteira da agitação em Lisboa. A excitação popular vendo-se impedida de proceder livremente recolheu-se mas tornou-se muito mais furiosa e violenta. As ruas ficaram por momentos desertas mas de quando em quando rebentava um grito de desespero, que riscava os ares como o relâmpago dum tiro. Os esfarrapados corriam em todas as direcções, fugindo dos holofotes do dia e procurando o refúgio dos umbrais escuros da noite. Juntavam aos protestos anti-Ingleses as reivindicações operárias, as questões sociais, exigindo melhores condições de vida e de trabalho. Enrolavam assim uma formidável onda de revolta que ameaçava tudo submergir num banho de sangue e gritos de desespero.

Surgiram os primeiros ataques ao rei. Responsabilizavam-no pela política de Serpa Pimentel, já que, com a permissão do rei, o novo ministério governava em ditadura, sem prestar contas às Câmaras, enquanto se esperava uma nova empreitada eleitoral que desse a maioria aos Regeneradores.

– Em vez de nos valer nesta hora de aperto, o rei ainda mais nos comprime – dizia-se amiúde nas praças e nos cafés.

De repente todos conheciam o rei. Afinal o incógnito de há poucos dias era topado de há muito nas suas manhas. Não enganava ninguém. Começavam a circular as suas primeiras caricaturas; era um rapaz robusto de vinte e seis anos, que nunca se separava do grosso havano, com ares arrogantes, que matava fieiras de pombos logo pela manhã, com um batalhão de bastardos lá pelo Alentejo, cuja vida se centrava num grupo de selectos diletantes que haviam passado a sua adolescência numa escolhida estância de férias chamada Cascais, que poucos conheciam e que ficava no fim de todos aqueles miseráveis lugarejos marítimos que se espalhavam pela costa de seguida a Belém. Os lugares preferidos eram o hipódromo de Belém, o Turf clube, a gare de Santa Apolónia onde apanhava o Sud-Express para Paris e o cais de embarque para o Barreiro, onde tomava a real carruagem para Vendas Novas ou Estremoz. Com isto se teceram os primeiros laços da lenda negra deste rei, merecida em parte, injustiçante noutra fracção.

Tudo servia para o enredar numa teia de denúncias. O que sempre sobressaía era o seu pouco apego a Portugal, o seu desinteresse pelos problemas do país, a sua pusilanimidade diante da Inglaterra, o seu estrangeiramento mental. Descobriu-se que Maria Pia, a rainha mãe, que vivia para a Ajuda com o filho mais novo, um mentecapto que passava os dias na borga nas casas afadistadas de Lisboa, nunca havia falado em português com os filhos e ainda hoje só em francês se lhes dirigia. Foi o escândalo. Nas ruas perguntava-se com veemência e reprovação.

– Como é que o rei pode amar o seu país se foi educado por uma estrangeira que nem sequer lhe fala na língua que é a nossa?

Carlos conferenciou com os amigos, quando se deu conta que os protestos o atingiam. Estava disposto a pegar no revólver e a juntar-se à Guarda para dar cabo daquela malta. Abatia-os um a um como fazia todas as manhãs aos pombos. Aquilo não era gente; eram javardos.

– Como chamar pessoas, a javardos que prendem as calças com fio de palma e têm os pés mais duros que cascos?

Bernardo inquietou-se e levou o dito para o burlesco, cruzando ainda mais por brincadeira o olhar.

– Isso é falar de alto, menino. Suportavas lá tu o cheiro daqueles desgraçados. Mais te valem as javalinas que tens lá pela Vila… Viciosa. Essas ainda as podes mandar esfregar na tina.

Mas o Soveral, que era dissimulado e insinuante, e visava já obter o seu lugar em Londres, levou a coisa para a diplomacia.

– Deixa a pocilga e ocupa-te de ti. Precisas de fazer uma campanha na Europa pedindo atenção e condescendência para a situação do trono português.

Carlos aproveitou o conselho. Depois daquele primeiro contacto com a prima Vitória nas primeiras horas da nota oficiosa do governo inglês, pouco ou nada fizera. Era altura de se pôr a correr. Escreveu de imediato para a Alemanha, para a Inglaterra, para a Itália e até para a França republicana mas nada obteve, nem mesmo promessas. Tudo se condensava numa linha prosaica: a Inglaterra exigia o tratado bilateral e as potências não se desinquietavam por causa da inqualificável terra dos Macololos. Restava pois prosseguir a compressão da excitação interna para o governo negociar em sossego a convenção escrita que poria termo a tão absurdo conflito.

As ruas continuavam a agitar-se. Uma grande subscrição nacional para a aquisição de armamento estava lançada e mobilizava até as classes mais conservadoras e recatadas. Nas assembleias, nas reuniões, nas marchas começara a cantar-se uma peça musical de ânimo marcial exaltado, chamada  “A Portuguesa”, que alguns vaticinavam vir a ser o hino de todo o português e cuja fonte de inspiração era nada menos que o canto de guerra da primeira República francesa. Aí se apelava à honra do português, à revolta contra os Ingleses, ao passado heróico. O governo amedrontado mandou dissolver a vereação municipal de Lisboa que desde os primeiros dias alinhara ao lado do movimento cívico popular e que nos últimos tempos tivera o atrevimento de protestar contra o encerramento da associação das academias de Lisboa. Foi um estrondo, que levou a imprensa independente a clamar contra a tirania do governo.

Poucos dias depois, a 15 de Março, uma multidão de estudantes de Coimbra desembarcou na estação central do Rossio. Vinha enlutada, envolvida nas capas estudantinas, que adejavam ao vento frio de Inverno como asas negras. Daí se dirigiu ruidosamente para Belém, levando à frente uma comissão que exigia ser recebida pelo rei. Este, incomodado, estava inamovível na sua recusa, mas Ficalho, que seria de seguida seu mordomo-mor, intercedeu pelos estudantes.

– A academia de Coimbra não se confunde com os patifes que têm provocado desacatos na Baixa de Lisboa. É uma real instituição, antiga e venerável, que vosso tio, Sua Majestade, o senhor Dom Pedro V, recebeu por várias vezes.

O rei acedeu então em deixar vir ao paço de Belém a comissão dos estudantes de Coimbra. Antes de os receber foi mudar o completo que envergava e mandou chamar o barbeiro do paço para lhe aparar o cabelo e escanhoar o rosto pela segunda vez nesse dia, muito precupado com o seu aspecto. Estava convencido que os rapazes de Coimbra poriam o máximo interesse na sua toilete. Queria pois impressionar pelo traje e pelo arranjo. Na verdade, era a primeira vez que ia encontrar cara a cara os seus súbditos. Graças a Deus que eram rapazes de boa condição e da sua idade – parece que o presidente da comissão era até um pouco mais velho – que lhe apareciam pela frente.

Mas quando os mandou entrar para a sala de bilhar, julgando dar-lhes um jeito de familiaridade, desiludiu-se; um vento de desespero varreu-lhe o rosto. Percebeu que ninguém se preocupara pouco que fosse em lhe apreciar a casaca fina, assertoada, de bom fio inglês, que lhe caía gentil e airosa sobre a calça escura, delicada, impecavelmente vincada. Nem mesmo a flor branca que pusera na lapela, e lhe dava uma distinção tão elevada como marota, fora motivo do mais pequeno olhar de curiosidade ou cobiça. Era deprimente. Para carregar o quadro, aqueles rapazes, nascidos no seu país e pelos mesmos anos do que ele, usavam um tal desconcerto de roupas, onde até o surrobeco da Covilhã se apanhava, que ele se sentiu um marciano no meio deles. Preferiu por isso desviar o olhar. O impensável acontecera – o pirismo entrara-lhe pela porta dentro.

Foi incapaz de prestar a mais pequena atenção à conversa dos rapazes. Depois de primeira impressão tão tristonha e decepcionante não conseguiu recuperar a mais pequena parcela de interesse por aquela reunião. Ouvia de quando em quando uma palavra solta referindo-se aos Ingleses como ladrões e era tudo. Fez um esforço para não abandonar a sala, mas não conseguiu esconder o desinteresse, a decepção, a repugnância viva por tudo aquilo. Mas ao lado desse modo sobranceiro, diante duma dúzia de rapazes afogueados pela exaltação, não foi capaz também de calcar, ou tão-só encoquinar, timidez e receio. Avermelhou, exsudou grossas bagas de água incómoda, mexeu as mãos, molestado e sem saber onde se meter. Por fim, perlado de suor, parecia uma alagostinada estátua a quem tivessem empedernido os movimentos com um jorro de verniz.

Os rapazes quando se apanharam cá fora, nos jardins do paço, reunindo-se aos camaradas, perderam-se na risota. Então aquele crustáceo de água doce é que era o rei. Só por anedota grotesca um tal lavagante empunhava o ceptro e usava coroa e manto real.

– Sabeis quem é que o fulano me pareceu? – perguntou por fim um com ar de caso.

Entreolharam-se todos, curiosos e expectantes.

– O Carlos da Maia, do romance do Eça de Queiroz. Parece que foi este Carlos que forneceu a carne para o retrato do outro. A mesma displicência, a mesma sobranceria, a mesma demissão. Não duvideis, este se tivesse uma irmã, também se metia com ela no ninho.

Não haviam passado sequer dez dias e um dos estudantes recebidos em Belém fazia publicar num jornal académico de Coimbra um acerbo e sarcástico artigo sobre o rei. Chamava-lhe o último animal de Bragança e sem ver muito bem o que podia fazer com tal espécime dava como conselho aos seus concidadãos aprisioná-lo e metê-lo numa gaiola do Jardim Zoológico, deixando o anormal lá dentro a dormir sossegadamente numa cama de palha. Era o seu autor um jovem de vinte e quatro anos chamado António José de Almeida, beirão de Penacova, estudante de medicina, desassombrado associativo e arrebatado eloquente, cheio de verve e de energia vivificante nas palavras.

O sarcasmo azedo do jovem estudante beirão correu o país. A agitação subiu de tom, mais provocante e ameaçadora. Os farroupilhas faziam pilhas de pedras para lançarem à Municipal, as senhoras da burguesia recolhiam os fundos das subscrições nacionais, os publicistas deitavam todos os dias aparas secas na combustão gigantesca em que se estava a tornar a questão africana. O rei era acusado de traição e cobardia. O governo diante das palavras electrizantes de António José de Almeida mandou-o de imediato incriminar nos tribunais. Ao mesmo tempo, deitou cá para fora leis apertadas para conter o incêndio: proibiu reuniões públicas sem autorização prévia, classificou de crime os ataques ao governo e ao rei em espectáculos públicos, criou penas pesadas para os abusos de imprensa, deu ao governo o direito de nomear os juízes de paz.

Mas mais uma vez a pressão impedida de se estender se retraiu para logo de seguida se tornar mais explosiva. Bradava-se que diante de tais leis tanto fazia ser regido pelo neto de Maria II como pelo filho do arcanjo loiro, dez anos mais velho do que Carlos e pretendente legitismista do trono português. Era o regime fundado pelo imperador que aparecia assim sem remédio posto em causa. A 10 de Abril um jornal estudantil do Porto, de boa circulação, apelava ao regicídio, escrevendo em caixa alta na primeira página: o regícidio passa a ser um direito. No dia seguinte, era a vez dum antigo Vencido da Vida, deputado Progressista, Guerra Junqueiro, sair com um poema, “O Caçador Simão”, em que validava por meio de imagens eficazes o regicídio, vaticinando para muito breve, no meio de hinos exaltados e fúrias fulvas, a queda ruidosa do trono. Em menos de dois meses, a monarquia portuguesa parecia arruinada e condenada a desaparecer estrondosamente no seio daquele furacão enraivecido em que se tornara o ultimato feito por Salisbury.

A princípio, no dia 12 de Janeiro e seguintes, a tempestade formara-se espontânea e natural no céu, inspirada apenas por um desagravo do brio patriótico; depois, à medida que se percebera que o novo governo estava manietado aos interesses Ingleses, ganhara extensão e movimento, arregimentando para o seu seio uma coluna de gente insuspeita; agora, desde que o rei aparecera como aquele que mais açulava os partidos a assinar de cruz com a Inglaterra, a borrasca surgia como uma autêntica insurreição revolucionária anti-monárquica. Nunca fora tão popular achincalhar os Braganças, apontando a sua inépcia, a sua indolência, a sua estultícia, a sua indiferença para com os interesses da Pátria. Fora assim com os Franceses e assim fora com o Brasil.

Contavam-se as mais incríveis histórias da família; falava-se da loucura de Maria I nas salas de Queluz, das indecências de Carlota Joaquina no Ramalhão, das imbecilidades de João VI em Mafra e em Belém, da malvadez de Pedro no Brasil, do autoritarismo sangrento de Maria II; inventavam-se pormenores sobre a vida do actual rei, que o tornavam tolaz e boçal. Era um janota, jogava ténis, fumava charuto, pagava as prostitutas que frequentava em Paris com as jóias da mãe, casara com um jesuíta de saias – uma mulher que sempre andava de preto – e tinha o nome mais ridículo e desajeitado que um homem podia imaginar. Que pensar, perguntava-se com velhacaria nos cafés, dum inútil que tinha o desplante de gastar, só em nomes próprios, uma fileira assim de palavras, Carlos Fernando Luís Maria Vítor Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis José Simão? Ninguém aceitava ser regido por um tal banana. O caçador Simão era pábulo de maganos.

Um único partido estava assim em condições de aproveitar o estado de ânimo que marcava a perturbação social em curso. Esse era o partido Republicano, tanto mais que os seus líderes históricos, aqueles que haviam aceitado a monarquia liberal como uma República coroada, arredando com determinação qualquer rasgão revolucionário, ou já tinham falecido, como Oliveira Marreca ou estavam quase à beira do túmulo, como Elias Garcia e Latino Coelho. Uma nova geração de militantes Republicanos, frequentando as escolas superiores do país, muito jovem e resoluta, como se percebera com esse António José Almeida que dera o primeiro enxovalho valente ao rei, encontrava no seio da agitação patriótica do ultimato inglês o seu primeiro leite. Era uma geração marcada por um impulso revolucionário até aí desconhecido, por uma capacidade de mobilização popular que os antigos próceres Republicanos nunca haviam sonhado, e que nascia além disso com ambições de mando. Acreditava-se pela primeira vez que a monarquia dos Braganças podia ser abatida a golpes de machado e substituída por um regime político novo. Bastava que o machado malhasse com braço de ferro até derrubar o trono. Os esfarrapados das ilhas operárias mostravam-se o músculo firme capaz de aguentar a pressão.

Enquanto isto assim se passava no país, o governo em Londres negociava com a Inglaterra. As ordens que tinha eram estreitas e não davam margem a exigências. Barjona assinava de cruz tudo o que os Ingleses quisessem. E estes, indiferentes às dificuldades internas do Bragança, aproveitavam a fraqueza dos Portugueses para pedir sempre mais. Agora já não se tratava apenas de quebrar o famigerado mapa de Barros Gomes, libertando um largo corredor para a passagem das hostes inglesas; queriam facilidades em Moçambique e em Angola. E tais comodidades pediam que era como se as províncias fossem deles. Abriam-se os portos ao seu comércio, isentavam-se de impostos os seus produtos, permitia-se a entrada dos seus capitais e das suas companhias para a construção de estradas e de vias férreas que ligassem os portos das duas províncias portuguesas à África austral inglesa. Tão convencidos estavam do poder da sua pressão, que impunham até a Portugal a obrigação de obter uma autorização prévia da Inglaterra em caso de venda das colónias.

Barjona, o antigo delfim de Fontes, telegrafava angustiado e aflito para Lisboa sem saber o que fazer com os Ingleses. Levavam-lhe os brincos e as orelhas e nem os pintelhos se mostravam dispostos a deixar-lhe quietos. Pimentel, desesperado por tantos apertos, insistia que se adiasse ao máximo a assinatura do tratado.

– Deixa-me ver se limpo as ruas – dizia ele, oprimido mas sempre astuto, para Londres.

Nisto se passou a Primavera e entrou o Verão de 1890. Lisboa e Porto, apertadas pelo calor e pela intensa luz do solstício, esvaziaram-se o seu tanto. Uns foram a águas para as aldeias, outros fecharam-se em casa na sombra, outros ainda apanharam os comboios e foram distrair pelo país. Hintze, também ministro das polícias, deu o ambiente por desanuviado. Era a primeira vez desde Janeiro que se sentia alguma acalmia na atmosfera; os cafés estavam às moscas, as ruas quase vazias, os teatros fechados. Houvera no princípio de Agosto manifestações operárias em Lisboa, mas nada que mostrasse o mesmo porvir dos grandes cortejos do Inverno e da Primavera. Pimentel esfregou as mãos e deu o assunto por arrumado. Barjona em Londres assinou de cruz a 20 de Agosto a malfadada convenção definindo os territórios Portugueses na África austral e os privilégios que as companhias inglesas neles passavam a ter.

O rei, que passara o Verão agarrado ao telefone e ao telégrafo, quando teve notícia da assinatura do tratado em Londres, respirou de alívio. Foi até à varanda principal do paço de Belém, encantou-se com os jardins em flor que os seus jardineiros entretinham com desvelo, tirou do bolso do colete um cerrado havano, chupou-lhe a ponta com gosto visível e ficou-se a apreciar o azul das águas do rio, onde de quando em quando cruzava uma vela branca, triangular, latina. Ao fim da tarde, recebeu os amigos. Mudara de roupa, perfumara-se, aparara as cerdas do bigode e o fio achatado e largo do cabelo cerca das orelhas. Todas as nuvens se lhe haviam ido do olhar e da testa saíra aquele vinco fundo que por lá carregara nos últimos meses. Estava mais jovem, desejoso de borga e passeatas. Depois de tantas preocupações, queria gozar a vida. O Sabugosa, que tinha pretensões a historiador, conhecia lá para Setúbal, num pontal de areia, umas ruínas patuscas, que encobriam uma extensa povoação romana.

– Preparem-se. Amanhã partimos para Setúbal. Tomam-se uns banhos, saboreiam-se umas sardinhas, bebe-se um Palmela fresquinho, matam-se uns pombos e exumam-se uns sestércios.

E lá foi com os amigos espairecer para a península de Tróia, a ver se dava com umas preciosidades romanas, enquanto o país se dedicava aos piqueniques nos pinhais, às corridas de toiros nas praças móveis e às burricadas na praia, com as senhoras de testo na cabeça, saias largas de amazona, bota alta e casaco de algodão justinho, aberto, com bandas curtas e rendadas. Ele, o rei, aos vinte e muitos anos, não poupava no incenso quando  de banhos de mar se tratava. Não lhes perdera o sentido, desde que lhes apanhara o sabor na infância. Aquele gostinho a sal que ficava depositado nos lábios depois dos mergulhos continuava a fazer a sua delícia e o seu desejo de adulto.

Mas, quando Agosto chegou ao fim e os recreativos regressaram da vilegiatura, a convenção bilateral entre Portugal e a Inglaterra tornou-se no assunto mais discutido do país. Pedia-se a pele do governo e sobretudo do responsável pela assinatura do tratado, Hintze. Recomeçaram ainda mais ardentes e histéricas as marchas em Lisboa, Porto e Coimbra. À medida que se anunciavam as primeiras nuvens de Outono, davam-se a conhecer também os primeiros dissabores para o governo e para o rei. Voltaram os ultrajes aos Braganças, as gritarias exaltadas contra o governo, as acusações odientas aos Ingleses.

E quando o governo anunciou que ia apresentar e fazer aprovar nas Cortes o tratado luso-britânico, arranjou-se um motim público para esse dia. Os populares acorreram aos quartéis a pedir em nome do brio nacional a sublevação do exército e os militantes de dianteira convocaram um cerco popular ao palácio de S. Bento para protestar contra a aprovação do tratado. O governo civil proibiu a concentração; muitos oficiais dos regimentos lisboetas foram transferidos para lugares distantes, na província ou na fronteira; o quartel de Artilharia 1, o mais suspeito, foi cercado por uma força dos lanceiros do regimento de cavalaria 4. Mesmo assim no dia 15 de Setembro, enquanto Hintze justificava e fazia aprovar o seu tratado, o comércio fechou as portas em sinal de protesto e uma multidão desceu à rua disposta a cercar as Cortes e a levar de roldão a Guarda Municipal. O resultado foi catastrófico: centenas de feridos, entre eles quinze polícias, um morto e dezenas de prisioneiros levados para os barcos de guerra. Dois dias depois o incêndio estava longe da extinção; a cidade continuava ocupada pela Guarda Municipal, ouviam-se tiros na Baixa, engrossavam nas ruas os cordões de prisioneiros com destino aos porões do Tejo. E no Porto repetiam-se as cenas que se viam por Lisboa.

O tratado fora discutido à porta fechada, enquanto cá fora alguém abrira uma torneira. Jorrara dela um jacto de sangue, espesso, vivo, denso, jactante, que ninguém soubera deter. Manchava de vermelho o papel que Barjona trouxera de Londres, alastrava à cidade, às águas do rio, ao país distante, sujava o próprio céu de Outono. Aquilo ou findava numa fuga de silêncio, em que todos voltavam costas às obrigações, ou numa tragédia de berros, em que todos morriam abraçados.

E o rei o que fazia entretanto? O rei, o pobre Carlos, que estivera nos beirais da morte, mal se podia levantar. Imprudente e fanfarrão como era, no dia da excursão a Setúbal não ouvira ninguém e quando se apanhara na ponta do areal de Tróia, debaixo dum Sol escaldante de Agosto e com o tal gostinho a sal nos lábios, insistira em beber água dum poço. À noite, no regresso, sentira as primeiras sezões. Fizera-se forte porém. Quando vieram os primeiros suores das febres e os amigos lhe apontaram com preocupação a palidez do aspecto, mostrara prosápia de rei.

– Não estou voltado hoje para maleitas – respondera ao Bernardo, no momento em que este notara com preocupação o rosto descorado do monarca.

No dia seguinte, insistira em ir para Sintra. Estava feliz com o desfecho recente do litígio em volta do palácio da Pena. Fernando deixara-o em testamento à condessa d’Edla, mas já no seu reinado uma carta de lei autorizara o governo de Luciano de Castro a adquiri-lo, passando o usufruto para a família real. Estava agora, desde há dois meses, à sua disposição, qual gulodice de açúcar cristalizado. Quando chegara a Sintra, as pernas tremiam-lhe com um febrão desmedido. Caíra de imediato de cama, num delírio inconsequente. Tinha dores no ventre, fluxo líquido intestinal, náuseas aflitivas. Fora-lhe diagnosticado um tifo abdominal, como aquele que levara os tios nos dias sinistros de 1861. Agonizara durante cerca de quinze dias, sem que a febre descesse e o delírio cedesse. Trataram-no a banhos frios e bebidas nutritivas e quando já lhe começavam a rezar pela alma a febre baixara milagrosamente e ele começara a recuperar o tino. Lá por onde andara não havia tratados luso-Ingleses nem marchas patrióticas; era tão-só uma névoa baixa de indistinção e inércia.

Fora isso três ou quatro dias antes da ida de Hintze às Câmaras e pouco depois, já com a noção da importância do momento, regressara a Belém. Ia muito fraco, ainda incapaz de comer, ou sequer andar com firmeza, mas levava ânimo. Esperava ver resolvido de vez o diferendo com Londres e isso atiçava-lhe a vontade de voltar depressa à vida. Agora, com as zargatas de S. Bento e o assédio na Baixa lisboeta, chegavam as piores previsões de Janeiro e Fevereiro. O rei, que secara todas as carnes enquanto estivera acamado, e que não se atrevia sequer a mostrar-se em público tão desfigurado estava, insistiu forte para que o tratado se mantivesse. Para ele as desordens de rua nada valiam e bastava o seu revólver de seis balas para abater os desordeiros da Baixa.

Nos cálculos que fazia com os amigos sobre os sucessos do momento, fazia lembrar muito a rainha velha, sua mãe, vinte anos atrás. Os comentários que agora deixava cair sobre as desordens na cidade repetiam quase à letra aqueles outros que a mãe fizera nos momentos de surpresa em que as notícias da bárbara entrada de Mac-Mahon em Paris chegaram a Lisboa. Quando lhe deram a informação dum morto no cerco das Cortes, mostrou-se truão e nada compassivo.

– Morreu um nas Cortes? Pois se lá estavam dez mil, bem podiam ter ido mil pela borda fora. Ainda por lá sobravam nove mil. Achais pequeno número?

Mas uma tal jactância, se dava saída aos aspectos mais sobranceiros da natureza de Carlos, não resolvia a crise. Esta agravava-se de momento para momento. O governo conseguira satisfazer os Ingleses e assinar um tratado, mas não se mostrava capaz de vencer a perturbação das ruas, cada vez mais avassaladora e perigosa. O velho dilema de Pimentel mostrava toda a sua agudeza: satisfazer a opinião pública portuguesa era abrir uma guerra com os Ingleses; apaziguar estes era voltar o país contra o governo. Hintze e Pimentel perceberam que se queriam acalmar a luta que tomara conta das ruas precisavam de se ir embora, dando de barato o tratado assinado com os Ingleses. O rei, quando ouviu a 18 de Setembro o pedido de demissão do chefe dos Regeneradores, arregalou os olhos, sem entender. Mas Pimentel estava inexorável.

– Não temos condições para continuar – insistiu. – Só a demissão pode conter a contenda.

Voltaram as nuvens ao olhar do rei e regressou-lhe à testa aquele vinco fundo que de lá saíra em meados de Junho. Estava tudo de novo como em Janeiro: sem governo, sem tratado, sem orientação. Desta vez, a crise era ainda mais grave; o seu caudal era grosso e premente, recebia afluentes poderosos dum e doutro lado, mostrava-se capaz de tudo arrasar no movimento da sua passagem. Os Republicanos mostravam-se cada vez mais explosivos; um frémito de exaltação revolucionária tomava os seus militantes, fazendo as vezes do legalismo anterior. Os que aceitavam o constitucionalismo monárquico eram afastados; um extracto juvenil disposto a apear com estrondo e pela violência a monarquia punha mão no partido. Também o movimento operário se apresentava cada vez mais exigente e agressivo; o primeiro de Maio fora comemorado com ruído pela primeira vez em Portugal nesse ano, um surto de greves selvagens mostrava-se capaz de paralisar sectores importantes da indústria, manifestações de rua pressionavam o governo a aceitar o associativismo operário, proibido ainda por lei.

Em França a carnificina de Mac-Mahon deitara por terra a organização operária; associações interditas, militantes fuzilados, clubes dissolvidos. A resposta demorara, mas dez anos depois surgira sob forma de desespero. Começava a época dos atentados à bomba e a tiro contra a era de insensibilidade e frieza que saíra da guerra franco-prussiana e que tão feroz se mostrara para com a experiência municipalista de Paris.

O rei e o seu meio perceberam que não bastava apenas recorrer ao rotativismo para resolver o vazio que se instalara. Estava também fora de questão um governo supra-partidário, de iniciativa do rei, como se chegara a pensar no tempo dos Vencidos da Vida. A única forma era um governo de fusão, com Regeneradores e Progressistas, liderado por pessoa cujo consentimento fosse geral. O rei chegou a pensar no seu velho instrutor Martens Ferrão, mas este diante de tantas dificuldades recuou. Em seu lugar, foi chamado o general João Crisóstemo de Abreu e Sousa. Tinha oitenta anos e fazia as vezes da mais velha relíquia da política portuguesa de então. Vivera ainda a guerra entre o arcanjo loiro e o moleque brasileiro; era um militar respeitado no exército; fazia política desde o reinado de Pedro V ao lado dos Progressistas, ou em gabinetes de fusão, mas sem filiação partidária positiva. Era pois a individualidade que mais condições apresentava para responder aos problemas do momento.

Uma das primeiras medidas que o governo tomou para fazer baixar a pressão das ruas foi renegar o tratado luso-inglês. O dilema que tinha era o mesmo do anterior governo: ou cedia aos Ingleses e entrava em guerra com o país ou dobrava-se às ruas e ficava mal com os súbditos da rainha Vitória. Naquele momento, a desordem nas ruas era tão urgente que o repúdio do tratado era a única saída. Assim como assim, o governo apressou-se a sossegar a Inglaterra; a situação prática anterior – um largo corredor de passagem no interior da África austral disponibilizado pela administração portuguesa – não estava em causa. Tratava-se tão-só de acalmar a agitação interna e de renegociar duas ou três cláusulas mais ofensivas, antes de mais aquela em que Portugal se comprometia a não vender as suas colónias africanas sem prévio consentimento da Inglaterra. Com uma formulação tão ostensiva e tão humilhante o tratado arriscava-se a ser em Portugal uma fonte crónica de revoltas e insatisfações.

O rei ajudou, pressionando as potências com a fraqueza em que o trono estava. Na realidade não acreditava nessa tremura mas servia-se dela para colher simpatia e apoio. Entre os seus amigos esta política colhia assentimento. Soveral, que fora o seu principal advogado, contestava Barjona. Parecia-lhe inadmissível que ele se mantivesse no lugar. Desfiava depois todo um conjunto de ideias para o novo convénio. Bernardo, em privado, defendia junto do rei as qualidades diplomáticas do amigo.

– O Soveral é o homem indicado para ir para Londres. Tem ideias e figura.

O rei, que conhecia bem por onde costumavam andar as cerdas negras do bigode farto do seu donairoso amigo Luís Maria Pinto de Soveral, e que andara escaldado com ele por causa dumas saias doidas em Madrid, desconfiava. E como não era de dissimulações, e muito menos de resevas, um dia replicou meio frívolo, meio sério ao Bernardo.

– Olha lá, menino, tu acreditas mesmo que o Luís Maria apanhando-se em Londres faz alguma coisa de útil a não ser flirtar?

Mas lá o recomendou ao governo, que o despachou de seguida para Londres, onde ele chegou nos primeiros de Janeiro de 1891 em substituição de Barjona.

A Inglaterra olhava perplexa para o caso português. O marquês de Salisbury não sabia o que pensar daquela valsa. Avaliava os Portugueses no seu geral com displicência, como de resto já antes dele fizera Beresford, que passara uns anos largos em Portugal. Era uma nação de incongruentes, sem um pedaço válido de juízo, que não tinha sequer vergonha de se avaliar a si mesma como a cafraria da Europa. Que pensar duma pátria, em que os seus melhores filhos faziam questão de adoptar os costumes Franceses e Ingleses, desvalorizando e achincalhando os seus e chamando-se a si mesmos com pompa e convicção estrangeirados. Uma tal casa ou estava destinada a arder por incúria ou a durar por sorte. Mas cafres ou não, preciso era abrir bem os olhos; manhosos como ratos, e isso se via nas Índias ou nas Américas por onde fossavam, se os Ingleses não acautelassem os seus interesses ainda eram esbulhados da primogenitura dos mares como Esaú o fora pelo pobre diabo do irmão segundo.

Por isso, Salisbury suspeitava daquela fraqueza, duvidava das queixas de Carlos, desconfiava da agitação das ruas. Para ele – e para os serviços secretos Ingleses – tudo aquilo não passava dum choro orquestrado que no fim havia de ser o prato de lentilhas com que Portugal, qual outro Jacob, o queria enganar, sonegando-lhe, com apenas quatro soldados e um cabo, o rico morgadio do mar e do mundo.

Mas os acontecimentos Portugueses de finais de Janeiro de 1890 atenuaram o seu tanto a obstinação inglesa. Os jovens Republicanos, sentindo o vazio de poder que se instalara com a queda do governo de Serpa Pimentel, percebendo a capacidade de mobilização popular de que dispunham, da insatisfação do exército e da marinha, da impopularidade dos Braganças, arriscaram lançar uma revolução. Não se tratava mais de marchas ou de reuniões nos teatros, nem tão-pouco de motins isolados, mas duma revolução incontestada, que se destinava a derrubar a casa reinante dos Braganças, substituindo a monarquia por uma República avançada, com bandeira vermelha e verde e tendo como hino o canto de guerra de Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça. A cidade preferida foi o Porto, onde setenta anos antes rebentara o primeiro movimento revolucionário português e se começara a torcer o pescoço das duas cabeças da hidra de Lerna do miguelismo, Teles Jordão e Póvoas.

Na fria madrugada do último dia de Janeiro convergiram para o Campo de Santo Ovídio as unidades militares sublevadas, as mais importantes da cidade. Cerca dum milhar de soldados, comandados por um punhado de sargentos, estavam dispostos a galvanizar o país, como acontecera com o pronunciamento militar no dia 24 de Agosto de 1820. Oficiais só havia três, um capitão, um tenente e um alferes. A coberto da noite, as colunas dirigiram-se para os Paços do Concelho, no centro da cidade. À frente seguia uma fanfarra militar que tocava a ‘Portuguesa’. Ao raiar da manhã, os Paços foram ocupados e uma bandeira verde-rubra do Centro Democrático Federal 15 de Novembro subiu no mastro. O povo, desperto entretanto pela festiva agitação das tropas nas principais artérias orientais da cidade, desceu à rua para secundar o propósito militar. Quando os paços do concelho foram ocupados pelos tropas e a bandeira revolucionária içada, a multidão de civis que cobria a antiga praça Nova, agora Pedro IV, desatou aos vivas à República.

Depois Alves da Veiga, chefe civil da revolução, apoiado por Sampaio Bruno, o doutrinador do movimento, proclamou da varanda a deposição da monarquia e a fundação da República. Em baixo, na praça, o povo rompeu de novo em vivas à República e ao Portugal republicano, enquanto as fanfarras militares tocavam o hino da sedição contra os Ingleses. As tropas subiram então a rua de Santo António no meio dos civis que agitavam bandeiras vermelhas e verdes, dirigindo-se depois para a praça da Batalha, onde deram de frente, nos degraus da igreja de Santo Ildefonso, com a Guarda Municipal. Trocaram-se tiros e os insurrectos recuaram de novo para os Paços do Concelho, onde foram apanhados pelo tiro da artilharia da Serra do Pilar. No chão ficavam dez mortos, entre eles cinco civis, um deles uma modesta costureira da Cedofeita.

Ao fim da manhã a primeira tentativa de banir a monarquia dos Braganças estava acabada. Os soldados, bisonhos e desnorteados, apanhados entre fogos cruzados, haviam sido quase todos encurralados. Cerca de oitocentos praças, num retinto estado de abatimento, foram amontoados à força de coronhada nos apertados porões dos navios de guerra que estacionavam na Foz, ficando a aguardar julgamento de guerra. Os principais chefes civis e militares do movimento conseguiram ainda assim escapar, a resguardo da multidão que acorrera à antiga praça Nova às primeiras notícias da queda da monarquia.

Não posso deixar passar a revolução do 31 de Janeiro de 1891 sem uma dura invectiva àqueles que têm apoucado o significado e o heroísmo desta data. Essa revolução é a essência do espírito de cidadania que abanou o Portugal ronceiro e estrangeirado de 1890. Se quisermos venerar ou tão-só aprofundar os símbolos do Portugal de hoje – bandeira verde-rubra e hino de Alfredo Keil – não nos podemos continuar a satisfazer com umas poucas e rápidas banalidades sobre o 31 de Janeiro de 1891. Aquela revolução merece palavras gradas e compreensivas e as suas figuras respeito e consideração. Eu, que já não uso chapéu, inclino-me reverenciosamente diante do movimento e tenho a pequena costureira que aí morreu como uma das heroínas do Portugal moderno. Sinto esta costureirinha como parte do meu tempo. Logo choro por ela e cultivo a sua memória como se comigo tivesse parentesco próximo. Não assim Deuladeu Martins ou a Padeira de Aljubarrota. Estas deitaram grelo num mundo tão antigo que já não pode ser meu. Por isso não me fazem sofrer nem vibrar como a modesta costureira que perdeu a vida no 31 de Janeiro de 1891.

O pronunciamento durou apenas umas horas, mas chegou para provocar um abalo sério à sua volta. Para a juventude das escolas superiores do país foi o primeiro ruído audível dum moribundo, de que eles haviam sido os primeiros a prognosticar o passamento; o exército sentiu-o como o primeiro grito de revolta contra a monarquia e por isso o mais brioso e audaz; os operários perceberam nele um exemplo a seguir e dele receberam um incitamento à violência; as potências europeias viram no caso um sinal de alerta sério para as graves dificuldades que o trono português atravessava; as companhias estrangeiras sentiram no pequeno sismo o indício dum alvoroço que nenhumas garantias dava ao seu investimento. Por fim, para Carlos o espectáculo da Baixa portuense foi o primeiro susto real da sua vida.

Ainda assim, o rei, em vez de se amedrontar e fazer uma política discreta, de acalmia, como alguns dentro da monarquia defendiam, pedia corda apertada. Queria prisões e degredos. O governo apressou-se a fechar jornais e clubes republicanos, a prender estudantes, a fazer sair legislação limitando a liberdade de reunião, a reforçar a vigilância policial. O rei, sempre chocarreiro e  gabarola, não perdia ocasião para alardear valentia. Uma tarde, o presidente do ministério, que já vira muito mundo passar pela terra portuguesa, estava inclinado a ponderar mais do que o habitual as medidas a tomar. Palavra daqui, palavra dali, acabou por perguntar ao rei com a ênfase e a aflição próprias dum homem de oitenta anos.

– Que faria Sua Majestade se a populaça de Lisboa e alguns regimentos da cidade quisessem assaltar Belém? Em casos assim, as hesitações são louváveis nos homens prudentes.

Carlos olhou para o velho militar com ar de surpresa. Nunca concebera que tal pudesse suceder, mas visto que se podia calcular tal sucesso, também havia com certeza resposta para a pergunta. E saiu-se, muito lambão, com esta.

– Ó João, tomara eu que isso acontecesse. Punha-me à frente dos lanceiros da Ajuda e corria tudo à cachaporra. Era um banzé de meter medo aos anjos. Não deixava um para o mostruário.

Era assim o rei. Nele se via um misto de ousadia e de inconsciência, muito ao jeito de sua avó paterna, a rainha portuguesa que nas duras condições da revolução de Setembro preferira ver-se cercada em Belém a fugir para os barcos estrangeiros do Tejo como lhe aconselhava a prudência pela boca do assustado marido. Não se esqueça o leitor como tal personagem se finou. Era bicho de peso e força, que para morrer não soltou sequer um gemido. Rendeu a alma ao Criador de faca espetada no ventre sem uma agitação, sem um trejeito de dor na face, enquanto os seus familiares se desfaziam à sua volta em lágrimas e lamentos de horror.

Em princípios de Abril, correram os julgamentos dos bisonhos soldados da conjura republicana de Janeiro. Era um magote de camponeses fardados, analfabetos, roídos de saudades do torrão onde haviam deixado as bouças e os familiares e que de política o que conheciam era a indiferença do rei diante das humilhantes exigências da Inglaterra. Foram obrigados a descer aos porões de três barcos de guerra em Matosinhos, onde estavam instalados os tribunais de guerra. Responderam desconfiados, mas ingénuos e sinceros, ao agressivo interrogatório dos juízes. No fim, condenados ao degredo em África, desfizeram-se em azedas lágrimas de aflição, enquanto as pobres mães embrulhadas nos esburacados xailes pretos os esperavam no cais de Leixões, com um razoável quinhão de esperança de os levarem consigo sãos e perdoados para as aldeias do interior. Toda esta gente miserável se já desconfiava do janota que os regia, ficou depois disto a odiar com um aversão funda e venenosa esse rei miserável que atirava os vencidos para as febres de África, essa África que ele abominava, a ponto de fazer dela presente gracioso aos Ingleses.

– Deixou os Ingleses roubarem à tripa-forra e ainda lhes beijava o cu se preciso fosse – dizia o povo da Invicta, depois de conhecer as sentenças. – A estes desgraçados manda-os torrar para o inferno sem uma palavra de alívio. Nem rei, nem pai; é peste e diabo.

Em Londres, os Ingleses confrontados com este panorama de insubordinação atenuaram as exigências. Demais, Soveral, falando um inglês impecável, estrangeirado mas sedutor até à medula, impressionara bem, confirmando de vez o seu exótico sobrenome; tornara-se um interlocutor solto, muito mais apetecido que Barjona, este sempre assustado e desconfiado. Demais Soveral caíra no gosto de Bertie, o futuro Eduardo VII, filho de Vitória e Alberto, que ainda tivera o seu quê de convívio em 1854 com os filhos de Maria e Fernando.

Por tudo isto, não foi custoso chegar a um novo acordo. A habilidade de Soveral chegou para limpar o acordo de artigos ostensivamente humilhantes para Portugal, dando em troca facilidades financeiras no terreno aos Ingleses. O tratado ficou pronto em meados de Maio e foi apresentado nas Cortes portuguesas a 2 de Junho. Fácil foi desta vez ao governo, depois de tanta desordem, apresentar o novo ajuste como uma grande vitória da diplomacia portuguesa. Houve assim condições para a sua aprovação e para a sua assinatura em Londres nove dias depois. O caso africano parecia encerrado depois dum furacão feroz de dezassete meses.

O rei, vendo-se com um instrumento legal capaz de regular o diferendo luso-inglês, deu os parabéns a Soveral por uma vitória tão larga. Era tempo de esquecer o assunto e dar de barato tanto desassossego. Para bem dizer, desde que pusera manto e coroa não tivera um minuto de tranquilidade. Estava desejoso de voltar a Cascais para as suas temporadas de banhos e ténis, revivendo os tempos leves e descontraídos de rapaz. Os banhos de mar eram a sua loucura e afinal naquele tempo todo não se lembrava dum banho decente. O último, em Tróia, diante de Setúbal, ia-lhe custando o coirão. Chiça, exclamava ele sempre que recordava o caso. O Verão estava a chegar e precisava de deixar Belém. Falou no facto a Bernardo, seu secretário particular. Este fez questão de estranhar com bonomia a vontade do rei.

– Cascais converteu-se ao pirismo. Nem sabes, menino, os estragos que por lá faz o comboio. Todos os dias uma multidão de estranhos toma a baía.

Não queria saber. Já não tinham idade para brincadeiras estouvadas. Agora recolhiam-se e estava tudo arrumado. Andava ansioso de se apanhar na cidadela, para ir de tarde à rola nos pinhais da Guia e bater umas bolas no Clube. Quanto à praia, o Mexilhoeiro continuava por sua conta, nada de preocupações. Se quisessem, até nudismo podiam fazer. E depois havia sempre umas senhoras para galantear e o Casino à noite para apostar vivo, com emoções fortes.

– Olha – piscou ele o olho com travessura – e se aquilo estiver assim com tantos lepidópteros, vamos para os densos bosques da Pena viver como faunos.

O rei acreditava que o pesadelo acabara. E tirando talvez João Crisóstemo, o optimismo era geral no meio da corte. A rainha velha voltava às suas despesas insensatas; Afonso Henriques, o duque do Porto, regressava aos seus desacatos de indigente e perdulário; Maria Amélia, altiva e solipsista, cuidava dos filhos e respirava de alívio, cada vez mais arrumada nas tesas mortalhas negras dos seus vestidos. Luís Filipe era um rapaz de quatro anos, muito pomposo, um jovem lobinho ciente já do seu lugar cimeiro na sociedade, enquanto Manuel era um menino de dois anos, com uma fragilidade desarmante de esquilo assustadiço, a quem ninguém tivera ainda coragem de cortar os longos cabelos castanhos e que estava a ganhar o hábito de viver agarrado ao braço do irmão.

Mas tantos meses de instabilidade haviam de deixar a sua marca na fisionomia do país. Não tardaram a surgir novos problemas. O investimento estrangeiro baixara muito depois das primeiras marchas no mês de Janeiro de 1890 e quase desaparecera um ano depois, no seguimento da revolução republicana do Porto e dum ano de motins e incertezas. As praças financeiras europeias assustaram-se com a perspectiva duma guerra entre Inglaterra e Portugal, com resultados mais que prevísiveis a favor dos Ingleses, e os investidores foram-se retirando pouco a pouco.

Ao mesmo tempo, o choque financeiro da queda do império no Brasil, com uma política inflacionista incontrolável do novo governo republicano, teve consequências imediatas nas remessas dos emigrantes portuguesas, que baixaram muito. Os dois factos juntos – a que se acrescentava a reduzida dimensão das exportações vinícolas portuguesas neste período em direcção a Inglaterra – deram lugar a um caos financeiro em Portugal. O país deixou de poder pagar os juros dos empréstimos internacionais antes contraídos, perdendo assim a possibilidade de aceder a novas ajudas. Antecipou-se logo nos primeiros meses do ano de 1891 um colapso financeiro, com bancarrota do Estado, que nem o novo tratado luso-inglês de Junho conseguiu barrar. Assistiu-se de imediato a uma corrida a tudo o que fosse moeda, com um entesouramento ávido do metal circulante. A falência financeira do Estado parecia inevitável.

Mas mais grave do que isto, era a imagem do rei no país. Se o novo tratado não resolveu o problema financeiro, também não limpou a figura do rei dos seus aspectos negativos, sobretudo junto das novas populações urbanas, cada vez mais azedas e ofensivas para com a família real. Os jornais, que chegavam a todos os recantos do país, criando pela primeira vez uma corrente de cultura idêntica, carregavam nas anedotas e nas caricaturas, vulgarizando junto das populações rurais uma imagem gastadora e inútil da família real. Maria Pia tinha uma aura de adultério e dissipação que vinha desde os primeiros anos do reinado de Luís; Afonso era um bonachão sem préstimo, que continuava a viver debaixo das saias da mãe na Ajuda, comportando-se aos vinte e seis anos como um adolescente mal-educado de dezassete ou dezoito; Amélia era vista como uma mulher arrogante, astuta, falsamente recatada, enganosamente pudica, cujo único desejo era ter a vida política na mão; Carlos, por seu lado, era retratado como um peralvilho, que fazia filhos por todo o lado e com um desinteresse olímpico pelos problemas do país. A anedota de António José de Almeida de Março de 1890 fazia escola. O rei e a sua família faziam-se sem remédio pasto de maganões.

No fim de Verão de 1891, depois da assinatura do tratado luso-inglês, o rei sentiu-se forte para viajar pelo país. Foi à Beira Baixa inaugurar uma via férrea. Levava Amélia a seu lado e saiu-se bem. As populações rurais do interior do país, ainda mal informadas do que se passava por Lisboa e Porto, acorreram a receber o rei com curiosidade e simpatia. No regresso a Lisboa sentiu-se forte para planear uma viagem ao Porto. Era um dos perigosos centros da agitação republicana e operária, mas era também o velho centro do liberalismo português que continuava a dar provas de estar disposto a verter sangue para defender os Braganças e o seu trono. Era preciso lá ir fazer o reconhecimento da praxe. Ainda assim não se livrou de manifestações adversas à partida de Lisboa e à chegada ao Porto. Na noite em que planeou ir ao teatro de S. João, para evitar alguma surpresa, mandou comprar todos os lugares mas mesmo assim teve de ouvir gritos de aversão e fúria na galeria de entrada.

No geral, estas viagens não lhe foram tão favoráveis quanto se podia esperar, pois uma parte do país pôde apreciar ao vivo a figura do rei, comprovando com algum desgosto o que a má-língua republicana dele punha a correr em anedotas porcas. Era um casquilho original, que em nada se identificava com o grosso do país; tinha olhos tímidos e azuis, faces redondas e rosadas, cabelos loiros e luminosos, pele fina e nitente, leitosa ou avermelhada, num tipo nórdico puro, absolutamente divorciado do escuro e misturado português de casta.

Depois do Verão e do Outono de 1891, pareceu ao círculo do rei que estavam criadas as condições para mudar de governo. A Inglaterra estava satisfeita, os Republicanos andavam desterrados ou homiziados, a família real voltara a recuperar alguma da popularidade perdida com o Ultimato. O problema agora era o défice das contas públicas. Bernardo Pindela acicatava o rei com as lembranças dos jantares dos Vencidos da Vida e com as ideias duma política cesarista. Uma manhã, quando lhe levou os jornais, deixou cair.

– João Crisóstemo está velho. Passou dos oitenta anos e está desejoso de se retirar.

Era cedo para um governo de iniciativa do rei, mas ainda assim não seria difícil para já encontrar um ministério de independentes, que contasse no Parlamento com o apoio dum dos dois grandes partidos. Bernardo intercedeu junto do rei por uma das mais singulares figuras da geração das conferências do Casino e que se notabilizara depois nos jantares do Tavares e do Bragança, Oliveira Martins.

– O Joaquim Pedro tem ideias para o défice. Depois do Soveral em Londres ter resolvido o diferendo com a Inglaterra, é ele o homem indicado para pôr as contas em dia.

– Cáspite! Isto assim vai de vento em pompa, ó menino!

E foi assim que Oliveira Martins abraçou a pasta da Fazenda em Janeiro de 1892, num governo presidido por José Dias Ferreira, um radical que ocupara a pasta da Fazenda depois dos motins anti-fiscais do início do ano de 1868. Era este Ferreira um individualista, tão autoritário como ambicioso, que fizera colisão outrora com os Históricos mas não se importava agora de governar com o apoio dos Regeneradores. Gisou-se uma apertada política de austeridade financeira, que mesmo assim não evitou a bancarrota. Oliveira Martins, que acabara de publicar Os Filhos de D. João I, andava agora demasiado febril em encher as resmas da sua biografia do santo condestável para aparecer com regularidade no ministério. A Vida de Nuno de Álvares viria de feito a lume dentro de poucos meses, mas o seu autor não chegou sequer a aquecer o lugar na política portuguesa. Nada lá fez, a não ser umas passeatas, pelo lusco-fusco, para aliviar o espírito, ao Terreiro do Paço. Por seu lado, José Dias, incapaz de levar por diante as reformas financeiras, tão impopulares como demagógicas, teve de aceitar a falência do Estado e declarar a impossibilidade de pagar aos credores estrangeiros.

Depois desta experiência, o rei voltou-se de novo para os dois grandes partidos rotativos, entregando-lhes a governação. Era o mais simples. Os políticos da Regeneração eram a nação em ponto pequeno, um escol minúsculo, e por isso mesquinho e vicioso; cabiam numa apertada gaveta de cómoda e faziam as vezes de coloridos e úteis lenços de assoar. Mas lá podia escolher o rei as correntes de opinião ou as personalidades que lhe pareciam mais adequadas à resolução dos problemas do momento. Pilantras ou não, o paço e o país não podiam passar sem eles. Eram eles que garantiam o princípio da rotatividade, que nesta época era o opíparo sinónimo de liberdade. Mas a sua força era também a sua pobreza, porque uma liberdade apertada num círculo tão restrito era uma caricatura defeituosa e necrosada, não uma paisagem desimpedida e fresca.

Inclinou-se então para os Regeneradores. Hintze e António de Serpa Pimentel, que haviam sustido a agitação interna, negociado o primeiro tratado com a Inglaterra e garantido com confortáveis maiorias parlamentares os governos de José Dias, pareceram ao rei bem escudados para governar. Pimentel acabou por aceitar Hintze para presidente do ministério por indicação de Carlos. O rei queria ainda assim um governo atípico, irregular, com independentes, sem filiação partidária, posto que prontos a aceitar a orientação dos Regeneradores, como Augusto Fuschini, Bernardino Machado ou Carlos Lobo de Ávila.

Pimentel, que ficou de fora, não se importou então de promover um jovem político, na casa dos trinta anos, João Franco Pinto Castelo Branco, que lhe parecia ter grande futuro no pequeno círculo da política nacional. Era um beirão, natural do Fundão, fechado, nervoso, e tão duro e contumaz como a pedra da sua Gardunha natal. Entrara para as cortes ao serviço dos Regeneradores com apenas trinta anos, em 1886, pouco antes da morte de Fontes e impressionara desde logo pelo desassombro e pela segurança. Pimentel, quando desalojara os Progressistas, depois da crise da nota inglesa de 11 de Janeiro, rodara-o pela primeira vez no governo. O rei, aflito com a delicada questão inglesa, mal reparara no ministro, mas a sua passagem pelos ministérios da Fazenda e das Obras Públicas revelara aos pares um trabalhador casmurro, combativo e indefesso.

Agora, nos finais de 1892, quando se procurava uma alternativa a José Dias, e um parceiro para Hintze, Pimentel julgou chegada a altura de catapultar Franco para um lugar cimeiro, visível, que lhe aproveitasse as qualidades de autoridade e mando, indicando-o para a pasta do Reino. Demais sabia que Hintze e Franco eram lastro em excesso para o mesmo barco; nem um nem outro estavam talhados para cooperar, menos ainda para se subordinar. E se na chefia dos Regeneradores Hintze concorria com Pimentel, Franco podia assim prestar a este bons serviços na luta contra o rival.

Aconteceram então na Europa os dementes atentados de Ravachol, Auguste Vaillant e Émile Henry; as organizações operárias, quase na clandestinidade, trilhavam com cada vez mais raiva o caminho da violência. Era uma resposta desesperada à dura repressão que começara com Mac-Mahon e se prolongara depois com a dureza das leis anti-operárias da terceira República francesa e a severa intransigência dos seus magistrados. Desde os anos oitenta que os novos descendentes de Proudhon se entregavam à cólera, respondendo ao terror com o terror. Roubavam, incendiavam, assassinavam. Prescrevia-se a violência como resposta aos males sociais e como vingança contra os abusadores; o terrorismo fazia parte da lista de urgências do movimento operário. Nas comemorações do primeiro de Maio de 1891 a polícia fizera fogo sobre cortejos pacíficos e deixara nove mortos espalhados no chão, entre eles duas mulheres e duas crianças. Três militantes anarquistas, gravemente feridos, foram julgados e condenados à morte. Logo começaram os atentados à bomba de Ravachol, dirigidos contra os magistrados do ministério público, que haviam exigido as impiedosas penas para os libertários. Preso e condenado à morte, Ravachol foi guilhotinado a 11 de Julho de 1892, dando lugar de seguida aos vingativos atentatados terroristas de Vaillant e Henry, também guilhotinados em 1894. Semanas depois, tirando desforra destas duas execuções, o presidente da República francesa Sadi-Carnot era assassinado por um anarquista italiano, Jeronimo Caserio, julgado e executado também ele.

Esta onda de violência impressionou mais em Portugal que os vinte mil mortos de 1870. Os jornais eram agora de maior circulação e a organização operária estendera-se a Portugal, constituindo um corpo intorneável. A questão social saíra do apertado círculo de pedantes que havia feito as conferências do Casino e ramificara-se em associações operárias cada vez mais participadas e genuínas, que nada tinham a ver com o ambiente elegante e avançado, à la page, que a geração coimbrã procurara introduzir na questão operária. Publicavam-se jornais, convocavam-se marchas de protesto, faziam-se greves. O governo de João Crisóstemo diante deste panorama fora mesmo obrigado a reconhecer o direito de associação da classe trabalhadora, sem admitir embora o direito à greve, que continuou por lei proibido e sujeito a sanções legais. Temia-se pois o contágio a Portugal daquela violência demencial que tomara conta de Paris e que parecia estar a tornar-se uma autêntica epidemia por todas as cidades francesas. E não se esquecia uma tentativa de agressão ao rei no lugar do antigo Passeio Público, em Abril de 1893.

Franco mostrou então uma contumácia inusitada. Hintze era um velho cabide míope, que tinha a serena civilidade do ilhéu açoriano, mas não mais; só prestava para formalidades paulatinas e cerimoniosas. Franco por seu lado valia uma funda vigorosa e intrépida; sabia atingir o seu alvo com precisão e rapidez. Insistia, sem desistir. Vigiou associações, limitou a liberdade de reunião, policiou as cidades, incriminou qualquer apelo à desordem. A sua política foi tão determinada que no início de 1894, quando surgiram apelos a motins anti-fiscais, ele não hesitou num braço de ferro. Dum lado estavam as associações do comércio da Baixa lisboeta, poderosas e influentes, apoiadas pelas associações dos caixeiros e empregados de balcão, e do outro o governo com a sua política de austeridade financeira, visando satisfazer as exigências pesadas dos credores externos. Um comício de protesto marcado a 29 de Janeiro para o Coliseu dos recreios de Lisboa foi proibido; no dia seguinte, o comércio fechou as portas, numa vistosa manifestação de força e protesto. Franco, insistente e rábido, mandou de imediato dissolver as associações comerciais da Baixa.

No paço, quando estas notícias se souberam, correu um vento de agitação. Dividiam-se as opiniões. Ficalho, que era o mordomo-mor da Casa Real, desconfiava desta política de compressão e má-vontade.

– Há uma cadeia de fatalidades nestes gestos – desculpava-se ele, lembrando-se da política francesa e do duelo de terror entre radicais e governo. – Depois duma prisão, vem sempre uma revindicta.

Pelo contrário, Carlos Lobo de Ávila e Bernardo Pindela estavam intransigentes na sua justificação. Quando as associações dos comerciantes foram desfeitas, Bernardo aprovou, exclamando com o seu sorriso malicioso de estrábico.

– Não fosse um homem assim decidido, e ainda hoje lamentaríamos o trono de Sua Majestade, a senhora dona Maria II.

O rei partilhava da opinião destes últimos e por isso caucionava a política do ministro. Ele próprio o incentivava com palavras grossas.

– Ó João, não te mostres tíbio. É malhar até que aprendam o respeito e as boas maneiras.

Não sabia se este Franco era ou não era outro Costa Cabral e se aquele gesto contra a escumalha da Baixa, responsável por parte da agitação dos anos anteriores, tinha ou não o valor da chacina que em Março de 1838 o futuro ministro da avó ousara cometer no Rossio contra a Guarda Nacional e os arsenalistas armados. Eram contos passados, mas pelo sim, pelo não também ele mandou aparelhar um coupé para no dia seguinte passear em carruagem descoberta pela Baixa de Lisboa, seguindo o exemplo da avó. Ela fora pisar o sangue de quem tanto a pisara; ele pelo seu lado queria chicotear com o olhar sobranceiro e cortante de germânico frio a cara humilhada dos ávidos e sujos comerciantes que tanto o haviam desafiado com gritos e vituperado com anedotas.

Pouco depois o rei sofria uma agressão na calçada do Sacramento. Era decerto o corolário da sua ousadia. Um anónimo dos arrabaldes, com ar de farroupilha, dando vivas à anarquia, atacou à pedrada na calçada do Sacramento a carruagem do rei. Foi de imediato imobilizado e internado em Rilhafoles, onde se tomavam os presos por loucos, numa confusão nada recomendável para os Lombrosos da época. A imagem do rei parecia ir a pique. Ninguém em Lisboa o queria. Raros os que por ele se punham e quase sem convicção. No desagrado da sua figura andava antes de mais a classe dos comerciantes, onde o rei era particularmente mal aceite, mas vinham logo de seguida os médicos, os militares, os advogados e muitos funcionários públicos. A esta massa de gente, juntavam-se ainda os proletas recentes, que se arregimentavam em manifestações corporativas próprias cada vez mais sólidas e onde a sanha ao rei era ainda mais desbragada que entre os comerciantes.

Não fosse um facto novo, entretanto ocorrido, e toda esta tensão rebentaria dum dia para o outro num crime grave de sangue, a que se seguiria uma inevitável revolução política, como alguns anos depois veio a suceder, sem que nenhum facto exterior se interpusesse de permeio, desviando o curso dos tiros e salvando a queda estrondosa do trono.

Foi o caso salvador o seguinte. Os Ingleses depois do tratado negociado com Soveral viram-se o seu tanto ludibriados ou assim se preferiram sentir. O convénio fora assinado a seu contento, mas ainda assim, dada a fraqueza de Portugal, sentiram que pouco haviam obtido do tanto que podiam ter conseguido. Na verdade, o cobiçado porto de Lourenço Marques, mesmo ao pé do Transval inglês, continuava em mãos portuguesas e isso lhes parecia imperdoável. Não perdiam de vista que por baixo da mesa o Soveral lhes acenara – não sabiam se com o soberano desinteresse dum estrangeirado enojado com a sua pátria, se com a ronha dum bigodudo tomba lobos – com compensações no terreno. Procuravam agora essas indemnizações sobresselentes e para isso forçavam os portos portugueses com as suas forças. Os Ingleses acreditavam que a política determinada e belicista de Salisbury em 1890 havia deitado a perder os territórios coloniais portugueses em África. Portugal estava de saída de Moçambique e de Angola, guardando apenas neste último uma magra linha de costa. Dispostos a apressarem esta partida, agentes ingleses infiltravam-se no poroso território do sul de Moçambique e voltavam as tribos indígenas contra a admnistração portuguesa, desvalorizando a sua capacidade militar e desprestigiando os seus homens.

A sublevação das tribos em Moçambique atingira nos finais do ano de 1894 um ponto de saturação difícil de conter. Os Vátuas – que haviam feito o maior império negro da África austral – recusavam a administração portuguesa e mostravam-se dispostos a aceitar uma aliança futura com os Ingleses. Tratava-se dum povo belicoso, com tradições de guerra memoráveis na região, capaz de mobilizar muitas dezenas de milhares de homens para a guerra. Eram comandados por um guerreiro experiente e muito prestigiado, Gungunhana, conhecido como o Leão de Gaza, filho do régulo Muzila e neto do grande Manicusse. Aproveitando as divisões entre Portugueses e Ingleses a propósito dos territórios do interior do Zambeze, uma insubmissão Vátua contra as autoridades portuguesas tivera lugar nos três últimos anos, lançando ataques aos postos Portugueses, interditando o trânsito das colunas nos caminhos do interior e atrevendo-se mesmo a  estender os ataques às localidades do litoral. E à sublevação dos Vátuas, juntara-se a dos Tongas, outra poderosa etnia do sul de Moçambique, que vivia nas margens do Incomati, a poucas léguas a norte de Lourenço Marques.

Em Outubro de 1894 Lourenço Marques foi massivamente atacada por cerca de milhar e meio de guerreiros e em Janeiro de 1895 nova tentativa, com a morte de dois brancos e a chacina de dezenas de trabalhadores negros. O prestígio do exército português junto dos regulados negros do sul de Moçambique batia fundo. Ninguém acreditava na sua capacidade de resposta; os legados estrangeiros na cidade aconselhavam por exemplo Portugal a retirar, mostrando-se muito cépticos sobre o equipamento das suas forças militares. Depois dos ataques a Lourenço Marques, um régulo atrevera-se mesmo a berrar feio num mercado de Lourenço Marques, apontando com o dedo os expedicionários Portugueses.

– Galinhas brancas!

O epíteto ficou. Não havia dia em que por brincadeira malévola ou desprezo sincero as forças portuguesas não fossem assim tratadas. Os militares Portugueses, que haviam sido humilhados pelos Ingleses no norte e desatendidos pelas tribos negras no sul, eram agora o fim da troça das populações locais. Ou se passava rapidamente à ofensiva ou os Portugueses eram em pouco tempo lançados ao mar como carga sem préstimo.

E a partir de Fevereiro de 1895 veio a contra-ofensiva portuguesa, protagonizada por jovens oficiais africanistas, sedentos de provarem a sua bravura aos Ingleses da África austral que abundavam nesta época por Lourenço Marques e seu termo. Humilhados pelos ditames de ferro do Ultimato, haviam sido os primeiros a sofrer na cara o fim do mapa de Barros Gomes. Tinham pouco mais ou menos a idade da juventude que estivera na dianteira do levantamento patriótico de Janeiro de 1890 e sentiram também eles desejos fundos de tirar a sua desforra da situação. Viam agora chegada a ocasião e por nada a queriam perder; ou morriam ou matavam. Não lhes interessava al.

Logo em finais de Janeiros os corpos expedicionários portugueses convergiram para as margens do Incomati, com a missão de ocuparem Marracuene, um ponto estratégico na margem direita do rio, a norte de Lourenço Marques. Eram comandados por um major, Caldas Xavier, e por lá se viam jovens oficiais de baixa patente como Aires de Ornelas e Paiva Couceiro, que tinha então trinta e três anos e era um simples tenente, sem passado relevante. A 29 de Janeiro montaram acampamento na zona. Eram cerca de oitocentos homens, dispostos em quadrado, contando com o apoio de quatro canhões, duas metralhadoras e três lanchas armadas no Incomati. Houve assaltos a aldeias vizinhas para roubar gado e fazer provocações. Três dias depois, na madrugada do dia 2 de Fevereiro, os guerreiros tongas apareceram aos milhares. Vinham armados de carabinas e de zagaias, alguns fardados com uniformes do exército português. Ao fim dalgumas horas de combate, uma das frentes do quadrado português vacilou. Previu-se uma chacina imediata dos oitocentos homens que ali formavam, caso o quadrado rompesse. Num arranque foi possível recompor a frente desfeita e repelir o ataque. Os atacantes deixaram cerca de duzentos mortos no terreno, contra vinte e quatro do lado português.

De imediato, Caldas Xavier deu ordens a tribos neutras para massacrarem as povoações dos régulos insubmissos. A chacina foi pavorosa com a degolação dos guerreiros vencidos e exaustos por muitas horas de combate e das suas mulheres. Os que sobreviveram refugiaram-se no ocidente, em volta do rio Limpopo, na província de Gaza, controlada pelos vátuas, cujo domínio se estendia para norte, até Manica e Sofala. Os soldados de Caldas Xavier regressaram a Lourenço Marques com o riso embriagado de sangue. Era tão-só o princípio da desforra; depois dos Tongas, era preciso ir aos Vátuas. Os estudantes em Lisboa, Porto e Coimbra tiravam o seu desforço da humilhação inglesa atacando à pedra a Guarda Municipal e achincalhando com anedotas sujas o Bragança; eles matavam a tiro pretos. Era um exercício muito mais excitante e ainda por cima – afirmavam eles – duma utilidade larga ao país.

Desde há meses que o comissário régio em Moçambique, António Enes, um prócere Progressista, pedira para Lisboa corpos expedicionários para sufocar as revoltas tribais no sul de Moçambique. Depois da vitória de Marracuene, embarcaram em Lisboa cerca de dois mil soldados com destino a Moçambique, um deles Joaquim Mouzinho de Albuquerque, um jovem capitão de quarenta anos, neto do velho Mouzinho de Albuquerque, o amigo de Sá da Bandeira, morto em 1846 ao serviço da Patuleia. A campanha contra os vátuas fiava mais fino. A extensão de território que abarcavam, as vassalagens que haviam espalhado, a rígida organização militar em que se hierarquizavam desde há décadas, com um exército regular disciplinado e bem treinado, faziam deles inimigos temíveis e, segundo as previsões dos peritos estrangeiros, impossíveis de vencer. A ideia de António Enes era tão-só conter o seu poderio, obrigando-os a reconhecer a autoridade portuguesa e dando-lhes em troca contrapartidas favoráveis.

Iniciou para isso conversações com Gungunhana, ao mesmo tempo que enviava três colunas de expedicionários, uma pelo sul, subindo o Incomati, comandada por Paiva Couceiro, outra pelo Limpopo, para partir em duas metades o território dos vátuas, e a última pelo norte, em direcção de Inhambane, a norte de Manjacaze, onde Gungunhana tinha o seu acampamento privado, comandada pelo coronel Eduardo Galhardo e tendo como ajudante Mouzinho de Albuquerque. Pedia-se ao Leão de Gaza a entrega de dois régulos rebeldes e o estatuto de vassalo do rei português. Gungunhana entretinha as negociações com Aires de Ornelas, delegado pessoal do comissário régio, afirmando-se disposto a entregar os régulos e a dar aos Portugueses facilidades na curva norte do Incomati, mas recusando a ideia duma vassalagem ao rei português e exigindo a retirada imediata dos expedicionários portugueses dos seus territórios.

Estava-se nisto, quando Couceiro, intrépido, ousado, cego, desejoso de morrer em combate, decidiu avançar por sua conta e risco para o acampamento de Matibejana, um dos régulos rebeldes exigidos pelos Portugueses. Entrou na planície do Magul, a norte do Incomati, uma zona perigosa e desconhecida, onde se reuniam os pequenos regulados vátuas do sul e para onde haviam convergido os restos dos guerreiros tongas bem como outras tribos guerreiras que prestavam vassalagem ao Leão de Gaza. Tratava-se para efeitos práticos da fronteira sul do império de Gungunhana. Couceiro tinha consigo cento e trinta soldados brancos, uma metralhadora e cerca de mil assustados auxiliares negros. Pelo caminho Couceiro chacinou impiedosamente as populações das aldeias, vitimando mesmo familiares directos de Gungunhana. Recebeu pouco depois reforços e contou com os homens de Freire de Andrade que andavam por perto. Dias depois, a 8 de Julho, com uma coluna de cerca de trezentos homens formou um quadrado de quatro filas de dezassete homens e aguentou o ataque de seis mil e quinhentos guerreiros. Tinha quatro metralhadoras, cada uma delas num dos ângulos do quadrado; duas delas encravaram mas as outras deram conta do recado. Em poucas horas havia mais de meio milhar de atacantes amontoados pelo chão, enquanto Couceiro perdera apenas cinco homens. Seguiu-se a debandada e a chacina.

A vitória de Magul, obtida pela coluna de Couceiro, desarticulando por inteiro a fronteira sul do império vátua, estimulou a coluna do norte a tentar idêntica aventura. As negociações foram abandonadas e ambas as partes se prepararam para a guerra. Enquanto o Leão de Gaza mobilizava os seus regulado, os Portugueses conseguiram subir de surpresa o Limpopo com duas canhoeiras e limpar a tiro cerca de centena e meia de aldeamentos onde o chefe vátua se esperava nutrir de guerreiros. O reencontro final deu-se nos primeiros dias de Novembro na localidade de Coolela, cerca da capital vátua de Manjacaze. De novo se viu o que antes acontecera em Marracuene e Magul; uma coluna de poucas centenas de expedicionários Portugueses, protegida por um punhado de metralhadoras, alinhava em quadrado e sustinha calmamente, em boa ordem, durante horas, as linhas dos atacantes, cerca de dez mil, que caíam às centenas, sem se aproximarem com perigo. No fim do combate Eduardo Galhardo mandou chacinar as povoações em volta e entrou vitorioso de espada em punho, a brilhar ao Sol, no cimo do seu alto cavalo branco, em Manjacaze, sem contudo conseguir aprisionar o chefe vátua que fugira a tempo.

Entre os régulos da região correu um tremor de surpresa. Muitos decidiram depois da queda da capital vátua trocar Gungunhana pelo comissário régio português. Começavam a correr ditos chocarreiros sobre o grande chefe negro,  muito desprestigiado pelas sucessivas derrotas militares dos últimos meses. Um deles foi muito repetido.

– As galinhas brancas partiram os dentes ao Leão de Gaza.

Mouzinho de Albuquerque, que passava por impulsivo e feroz, muito ao género de Couceiro, ficou porém insatisfeito com os resultados da campanha. Gungunhana, depois de tantas tropelias às portas de Lourenço Marques, estava vivo, livre e bravo. Recolhera-se num outro acampamento e reunira já à sua volta umas dezenas de milhares de guerreiros, prontos para recomeçarem a campanha contra os Portugueses. Mouzinho estava insatisfeito com este desfecho, pois acreditara sempre que a tomada de Manjacaze significava o fim de Gungunhana. Agora diante da realidade enfurecia-se, disposto a tomar medidas extraordinárias. Um dia, em que o ar estava mais húmido que o habitual, o seu desânimo tocou as fronteiras do desespero e do desvairamento.

– Em menos de dois meses ponho a ferros esse preto anão e mando-o numa jaula de presente ao rei.

António Enes, confiado em tanta filáucia, nomeou-o nos primeiro dias de Dezembro governador militar do distrito de Gaza. Mouzinho não descansou enquanto não desenhou um plano para deitar a mão ao chefe vátua. Pensou primeiro reunir uma forte coluna de homens e bater nos tambores de guerra chamando os guerreiros negros para mais uma batalha. Percebeu que isso era arriscar a sorte das armas e que mesmo com uma nova vitória a favor dos expedicionários Portugueses o chefe dos vátuas se escaparia outra vez. Eram os seus generais que tomavam o comando das batalhas, não ele. Deixou por isso de lado o projecto e decidiu um golpe de ousadia. Ele próprio iria com uma pequena coluna de destemidos, apoiada por auxiliares negros, aprisionar Gungunhana no seu novo acampamento, em Chaimite, no leste.

A notícia quando foi conhecida no meio do estado-maior português foi tida por loucura. Mouzinho tinha fama, além de irreflectido, de sanguinário; corria que havia participado pessoalmente nas chacinas que Galhardo mandara fazer depois de Coolela. E que punha um brilho particular de ferocidade no olhar quando puxava o gatilho ou baixava a espada, dando ordem de fuzilamento. Havia até histórias macabras a seu respeito, como aquela que adiantava que degolava com as suas próprias mãos os negros mais bravos e conservava em formol, dentro de grandes frascos de vidro, esses crânios, onde os olhos dos desgraçados ficavam a boiar com um ar de surpresa e pavor.

Reuniu à sua volta meia centena de praças e três oficiais e obrigou-os a jurar fidelidade para a vida ou para a morte. Não lhe passava pela cabeça questionar o sucesso da operação, mas queria homens prontos a morrer, sem moverem pé. Arrancou em direcção a Chaimite, sem sequer se preocupar em responder aos últimos pedidos do comissário régio. Ia de passeio e estava de regresso dentro de dias, nada mais. Levava com ele ainda umas centenas de auxiliares negros. Corria o mês de Dezembro e começou a chover. Cordas finas de água desciam do alto e o céu parecia pedra estalada a dinamite. Os homens no meio da floresta enterravam-se na lama e contraíam febres violentas. Alguns tiveram de regressar, em maca, incapazes de se aguentarem de pé. Os auxiliares negros, à medida que se aproximaram de Chaimite, amedrontaram-se; julgavam ver na electricidade do céu o lampejo das fogueiras de guerra de Gungunhana. Nem um chegou ao fim; debandaram todos, abandonando as bagagens e os carros.

Quando Mouzinho avistou Chaimite, a coluna que levava consigo não chegava sequer aos quarenta homens. Era a altura do Natal e os homens, esfarrapados e imundos, pensavam com nostalgia nas noites de consoada à volta da mesa com a família reunida, rilhando o bacalhau e saboreando a filhós e o licor. Chaimite era um acampamento gigantesco de trinta a cinquenta mil almas, uma autêntica cidade erguida no meio do capim, com palhotas e paliçadas fortificadas, onde se penetrava por uma apertada abertura de meio metro. Ou regressavam de imediato, ou morriam todos ali, sem verem consoada mais alva pela frente.

Voltaram a Mouzinho os desesperos fundos em que era tão prático. E com as aflições, vieram os desvairamentos, que tanto o cegavam para o mundo do pensamento como para as paralisias do medo. Perdida a razão, teve Mouzinho um clarão de firmeza.

– Não saímos daqui sem termos diante de nós, de joelhos e pulsos atados atrás das costas, o preto que aqui viemos buscar. Ele se há-de baixar aos nossos pés, nem que seja à dentada.

Exigiu nova jura de fidelidade aos homens que lhe sobravam e avançou com eles de espada em punho, em cima do seu cavalo baio, transpondo de surpresa a porta da cidade negra. Foi a estupefacção na população do povoado, que se entregava às tarefas domésticas do seu pacato dia a dia, tecendo pano, pilando grão, amamentando ao colo, enfiando esteira. Num repente, com uma ousadia inexplicável, a coluna de Mouzinho estava no centro da povoação, cercando as palhotas onde o chefe vivia com os conselheiros e as mulheres. Esboçou-se uma primeira tentativa de resistência, mas os doze artilheiros de Mouzinho limparam à bala umas largas mangas de negros. Houve gritos e fugas e no tempo dum relâmpago o povoado quase se esvaziou com medo duma chacina.

Gungunhana viu-se aprisionado sem perceber como por três praças e levado à presença de Mouzinho, que lhe atou raivosamente os pulsos atrás das costas e o mandou sentar no chão com um gesto seco da mão. Correu um fundo lamento de luto nos poucos milhares de negros que haviam ficado a assistir à cena; era a suprema humilhação verem o seu chefe, depois de derrotado no capim, manietado como um porco na eira da sua casa. Mouzinho mandou fuzilar dois conselheiros militares do chefe e, tomando um magote das suas mulheres e familiares, mandou formar a coluna militar em duas alas, de modo a proteger os prisioneiros. Antes de abandonar o povoado, deu ordens para passar  tudo a ferro e fogo.

Mouzinho entrou triunfante em Lourenço Marques. Teve uma recepção de herói; foi comparado ao Gama e ao Cabral. Os jovens africanistas da época, espicaçados pelo vexame de Janeiro de 1890, mostravam-se tão brutais e determinados como os velhos capitães portugueses da idade da pimenta. Enviou o Gungunhana de presente ao rei e pediu mais poderes para continuar a sua campanha militar. Veio de imediato uma promoção da metrópole; logo depois chegaram condecorações que o rei, ele próprio, estava desejoso de passar ao pescoço do herói, apertando-o ao peito. Em Maio de 1896 fizeram-no governador-geral de Moçambique e em Novembro comissário régio. Ele, que detestava a vida dos gabinetes e a rotina administrativa, aproveitou para pôr a província em polvorosa. Não queria senão retomar as batidas pelo capim dentro com as colunas de jovens e aguerridos expedicionários Portugueses que pareciam saídos dum retrato antigo, medievo e escuro, com os seus rituais de sangue e fidelidade.

Os Vátuas, depois da vergonha de Chaimite, ansiavam por uma desforra, organizando os restos do seu esfrangalhado império sob o comando dum herdeiro de Gungunhana, Maguiguana. Mouzinho deu-lhe combate por várias vezes, vencendo sempre as suas hostes. Por fim, depois da batalha de Macontene, em Julho de 1897, perseguiu-o como se faz a um lobo ferido, carregando no riso e na maldade. Acabou por alcançá-lo com algumas demoras propositadas no mês seguinte, matando-o aos pés e guardando-lhe dois dedos como troféu. Os Vátuas dissolviam-se sem mais, desaparecendo de cena, enquanto o seu chefe histórico, o filho de Muzila, se transformava nas jaulas de Lisboa numa atracção de Jardim Zoológico.

Em Portugal estes acontecimentos transtornavam. Depois da vexação do ultimato da Inglaterra, tanto se vivia o pânico de novas humilhações como o denodo de ferinas vinganças. Raro era o dia em que não se apresentavam voluntários para partirem para África ou para irem contra os Ingleses. Muitos foram alimentar as colunas de Couceiro, de Galhardo, de Mouzinho ou de Alves Roçadas, habituando-se a matar pretos e esfolar crânios. Vingavam nessa massa altiva de gente, ciosa da liberdade ancestral dos seus lugares, a frustração que levavam da civilização. Por isso, as vitórias contra os tongas e os vátuas tiveram um efeito certo na estima dos Portugueses da época, escondendo-lhes o temor, aliviando-lhes a vergonha, apaziguando-lhes a fúria. Aquelas operações dum punhado de homens contra sucessivas linhas de enfurecidos africanos chegavam para empolgar a alma dos contemporâneos, levando-os a esquecer as afrontas que os Ingleses lhes haviam obrigado a engolir. E lá iam muito pundonorosos, com as crianças pela mão, aos domingos, dar amendoins ao pobre Gungunhana enjaulado. Fora isso, pediam com palavras grossas e excitadas mais e mais sangue aos expedicionários das florestas africanas.

O rei por seu lado seguia o curso do sentir geral dos seus conterrâneos. Depressa se deu conta que aquelas notícias que chegavam de Lourenço Marques tinham um efeito benéfico nas populações urbanas, refrescando-lhes a temperatura e temperando-lhes a paixão. Os motins desceram o seu tanto de intensidade; a Casa Real deixou de ser o único vazadouro do malogro dos Portugueses; o apreço pelo país, a começar pelas suas vitórias, subiu. Dum dia para o outro, os jornais mostraram menos acrimónia contra os Braganças e os comerciantes variaram os temas das suas conversas, até aí dedicadas em exclusivo ao desinteresse do rei pelos destinos da pátria diante da voracidade da Inglaterra.

A África, que antes merecera tanta chicotada de ironia e desprezo no círculo do rei, era agora nessa assembleia um tema de eleição, cheio de candura, que merecia todos os carinhos e muita atenção. Bernardo, que tinha uma vaga formação militar e chegara a ser na juventude colega de Mouzinho, apresentava-se agora como um dos mais entusiastas da presença portuguesa em África. Falava da gesta africana, citava Camões e Zurara. Um tarde, apareceu exaltado e visionário; tinha novidades importantes. Eça de Queiroz estava a escrever um livro sobre a África portuguesa, A Ilustre Casa de Ramires. O velho felino que tanto metera o dente na carne macia da igreja e tanto arranhara o pirismo da Baixa lisboeta estava agora empolgado com as vitórias portuguesas em Moçambique.

– Fica ciente disto, menino, nas mãos do José Maria, a África vai dar nova epopeia heróica.

Carlos, que também tinha bazófia artística, mas era tão malévolo como desconfiado, preferia na intimidade brincar com o assunto. Deixava a pose para os actos públicos, que eram raros e aborrecidos, tão contrários ao seu feitio gozão.

– Ouve lá, Bernardo, julgo que não ouviste bem. Não será antes A Ignara Capa do Ramires que o José Maria está a escrever?

Mas o caso era sério. Até Soveral, em Inglaterra, quando teve notícia do que se passava pelo Incomati e por Gaza, se prestou a trocar a civilização pela cafraria, para dar os parabéns ao rei, assegurando-se que a imprensa amansara e o exército andava calmo e entretido. O próprio rei, embriagado por tanto heroísmo, chegara a enviar o irmão, o duque do Porto, depois da vitória de Couceiro em Magul, à Índia com a missão de sufocar com mão de ferro uma revolta marata. Mas a campanha do duque acabara em curto tempo num redondo e ridículo fiasco. Ele andava louquinho em excesso pelos modelos de automóveis que começavam a aparecer então por Paris; nem cabeça tinha para pensar numa campanha militar.

À distância de mais de cem anos, bato amigavelmente nas costas deste Afonso e digo: ainda bem que assim foi, Afonso, pois prefiro um louco manso a um herói sanguinário. Mouzinho não me impressiona por aí além, com as sua vitórias e as suas crueldades contra negros armados de zagaias e carabinas que mal sabiam administrar; tu, trocando uma campanha militar pelas azougadas imagens dos automóveis de Paris, abalas-me pela positiva muito mais, imagina. Mas ainda mais me comove o teu avô, de quem herdaste decerto o espírito pacífico, que trocou uma batalha por uma ária de ópera. Eis a permuta ideal, ó sublime Fernando, que visionaste a humanidade vivendo em paz, como confraria de irmãos artistas.

A família real vivia agora no palácio das Necessidades. Mudara-se em 1892, quando a tensão com a Inglaterra baixara de intensidade, com o acordo conseguido pelo governo de João Crisóstemo. O paço andara desabitado desde a grande epidemia de 1861, que ceifara o rei e os seus dois irmãos, deixando ainda sequelas graves em Augusto. Fernando, o mágico faustoso, o pacífico filantropo, vivia já então retirado numa ala superior do palácio, quase sem comunicação com o sector do paço e assim continuou depois da morte dos filhos e do casamento com Elisa Hensler. O horror, o inesperado, o macabro que se misturaram à morte de Pedro V e de seus dois irmãos haviam feito das Necessidades um lugar maldito, traumático, odioso, que a família raramente se atrevia a visitar. Só no momento do casamento de Carlos e Amélia, quando fora preciso alojar umas largas dezenas de pessoas vindas de França, ousaram visitar os quartos dos antigos defuntos. No quarto do rei até o manto real, traçado e bafiento, se encontrava ainda passado por cima dum cadeirão estilo império. Na sua cómoda de pau-santo encontraram-lhe as cartas de Estefânia e as últimas pétalas da rosa que ela lhe dera à despedida para o Alentejo. Era comovente e sinistro. Retiraram-se tocados de pavor, indispostos, incapazes de suportarem a visão daqueles objectos, que pareciam relíquias sagradas duma história profana e antiga de santidade.

Só recentemente, Carlos, mais solto, sem memória directa dos antigos e fúnebres acontecimentos, picado ainda pelas formas de apresentação e convencido que o reinado ganhara estabilidade e cor com o acordo com os Ingleses, quisera trocar o pequeno palacete de Belém pelo grande paço das Necessidades. Mandara desinfectar quartos e corredores, substituir soalhos, picar paredes, empacotar os haveres dos parentes antigos e para lá se mudara depois das obras feitas com a rainha e os dois príncipes.

A mudança alterara o seu tanto o rei. Belém era o seu paço ducal, de rapaz fino e pândego; as Necessidades começaram por ser o seu paço de rei, para se tornarem depois num lugar de retiro e cogitação. O facto de estar mais perto de Lisboa em nada modificara a sua vida. Detestava actos públicos, dava de barato a mania da popularidade do pai, raramente aparecia; cumpria em S. Bento os discursos da regra, na abertura das Câmaras, no aniversário da Carta, na tomada de posse do governo, sempre com algum incómodo bem visível na inquietação das mãos e no olhar enfadado; de resto, dava de quando em quando o seu passeio pela Baixa e pela avenida nova, no lugar do antigo Passeio Público, desatento, sonhador, embalado pelo movimento da carruagem descoberta em que seguia. Era raríssimo acenar com os dedos a alguém; muitas vezes, quando a carruagem avagarava, as mães abeiravam-se com os filhos pela mão da portinhola do carro mas ele limitava-se a fazer um vago sorriso para o ar, sem sequer descer o olhar que pairava lá pelo azul do céu.

Um dia, à entrada da calçada do Sacramento, de cartola e cigarro de papel na mão, reconhecera Eça de Queiroz, que entretanto se ligara à família dos condes de Resende, uma das mais antigas do reino, e achara simpático corresponder à sua saudação de cartola na mão, levantando dois dedos e descendo lá do alto o olhar sobranceiro, majestoso, para lhe fazer um sorriso menos vago e mais directo. Mas tal condescendência era nele raríssima e só um caso como o de Eça, amigo de amigos seus, ligado pelo casamento à aristocracia antiga, artista consagradíssimo, lhe fazia abrir uma clareira na densa sombra da sua indiferença. A sua ideia do liberalismo, aceitando o ingrediente da liberdade na vida das sociedades, não alcançava porém as classes sociais, tão marcadas, tão distintas, tão inconciliáveis para ele como castas hindus.

Ganhara com a mudança o hábito de comer sem medida, pondo um requinte, um gosto e uma vontade na mesa que seria exagero lendário se não fosse excepção. Também aqui, nestas pançadas de antanho como dizia o Sabugosa, o neto repetia a avó, essa Maria II que pagou com a vida a gordura com que foi enchendo. Carlos era capaz de se sentar à mesa às duas da tarde e comer de enfiada, ao longo de larga temporada, cinco ou seis pratos. Ele próprio desenhava e aguarelava as ementas, requintando na apresentação e no adorno. Punha na comida toda a sua arte, considerando a gastronomia como uma actividade transcendente. Começava com entradas de ovos ou de enchovas, continuava com pratos de peixe e carne e acabava com colheradas de leite-creme ou de pudim, bem regadas de caramelo líquido. Depois vinham os licores e o café. Nisto se passava a tarde e a entrada da noite. Quando um dos amigos lhe chamava a atenção para as horas, ele espevitava, punha um sorriso malicioso de quem conhecia todos os truques do serão e dava ordens de comando.

– A noite está por nossa conta. Toca a preparar as apostas para o  Bridge e o Whist. Meus senhores, hoje é até de madrugada; doa a quem doer.

Os amigos entravam nestes excessos com a mesma sublime excitação dos argonautas de partida para a Cólquida. Sentiam-se excepcionais em tudo, até na comida e no jogo. Comezainas assim, encavalitando as refeições umas nas outras, durando dias, só o mítico Gargântua, que para regozijo de todos era filósofo e epicurista. Fizeram-no assim o patrono da confraria, que tinha tanto duma não divulgada secretividade como dum histrionismo rabelesiano.

– Gargântua é o nosso pai – brindava um com o cálice cheio dum Colares bem fresquinho, como se estivesse na abadia de Telémia num dia de insuportável calor

– E Pantagruel é o nosso irmão – respondiam todos a uma só voz, elevando os estonteantes cálices.

O rei juntava ao volumoso Rabelais o delicado Brillat-Savarin. Quando vinham à mesa os negócios públicos, ou um dos amigos puxava de publicação onde se lia uma catilinária contra o paço, o rei ouvia tranquilamente e do alto da sua prosápia rematava majestosamente com uma conhecida citação do magistrado francês.

– Rien n’est capable de troubler mes digestions.

Sentia-se bem naqueles calorosos e emocionantes conciliábulos, mas não esquecia a graça, que era por obrigação a suprema deusa daquela assembleia. Estava sempre pronto para meter a sua anedota no meio dos amigos.

Um entardecer o Arnoso, cada vez mais aristocrata e fino, muito limpo e transversal, brindara ao segredo da assembleia.

– Esta nossa irmandade é uma secreta, uma secreta sociedade de amigos, uma secreta…

O rei, sempre espevitado, sempre atento, interrompera-o, pedira a palavra, limpara os lábios da lampreia, e atirara a sua piada, muito sério, sem se descair.

– Ó Bernardo, tem lá tento na língua. Então tu achas que somos uma latrina?

Engrossara pois o seu tanto Carlos nestes últimos anos, mostrando aquele ar abarrilado de quem  começava a ganhar a largura sem crescer em altura. Gingava já pesadamente quando andava, bamboleando as carnes cheias dos quadris e pondo atraso no andar. O rosto, como uma bolha de ar, de tão cheio, parecia querer rebentar; bastava picá-lo ao de leve com um alfinete. Ainda assim, mostrava-se intrépido, arruaceiro, fanfarrão, viril, sensual, fescenino. Domava potros, toureava bichos de muitas arrobas, monteava caça grossa e prosseguia com o seu fado de conquistador, desflorando a eito raparigas nas aldeias do Alentejo ou metendo na cama todas as criadas do serviço que lhe pareciam ter algum jeito. E continuava a adorar as brincadeiras duras, cruéis, a que chamava pirraças, no género daquela que um dia fizera na Ajuda, quando ainda vivia com os pais, introduzindo nos corredores do palácio uns garraios negros e selvagens que deixaram em pânico o pobre e estouvado Afonso Henriques.

A par disto outras transformações se deram porém na vida do rei. Com a mudança para as Necessidades chegara na verdade a sua idade adulta. Sem nunca perder aquela inclinação para o gracejo, que era o sinal da sua intimidade a que só os privados tinham acesso, ganhara porém uma maturidade nova, atingindo o completo desenvolvimento das suas possibilidades. Os seus trabalhos de desenho e pintura aprimoraram-se, mostrando-se dignos, correctos, originais. Fora nesse período que começara a pintar pequenas obras talentosas e intensas, sobretudo com tintas diluídas, que o podiam impor em qualquer lado como um artista de qualidade. Atrevera-se mesmo a mostrar a obra no Grémio Artístico, por vontade dos amigos, já que ele não queria provar nada, tendo obtido logo de entrada críticas tolerantes e benignas, mesmo de opositores bravos e imparciais como Fialho de Almeida.

Ao mesmo tempo, planeara ocupar uma parte do ano em explorações oceanográficas. Desde criança que o mar lhe era de convívio próximo. Habituara-se a passar longas temporadas nas praias de Cascais, observando de perto a vida dos pescadores, a caprichosa forma dos peixes que chegavam à praia, o molusco invertebrado e mole que era arrancado às rochas, a coloração reforçada das algas aveludadas. Os banhos de mar haviam sido o seu primeiro entusiasmo e ainda hoje, tantos anos depois, se excitava diante dum bom mergulho nas águas mordidas do Atlântico. A primeira aguarelada que fizera, ainda antes dos dez anos, fora uma marinha, com barco. Depois vieram com Martens Ferrão os primeiros rudimentos da taxionomia zoológica e a consciência da importância cultural e económica que o mar tivera na História de Portugal. O pai, Lipipi, oferecera-lhe aos quatorze anos o primeiro barco, o Nautilus. Agora, feitos os trinta anos, nascera-lhe o desejo de dar um contributo para o estudo dos oceanos, desenvolvendo estudos de oceanografia e de ictiologia nas águas portuguesas, tão extensas, tão creditadas e tão mal conhecidas no tempo.

Ficalho, autor de eruditos estudos históricos e botânicos, engenhoso contista, além de mordomo-mor do rei, mostrara-se de imediato o mais entusiasta adjutor do projecto, zelando pelo seu contacto com o príncipe Alberto do Mónaco, que desde o início da década de oitenta se dedicava a este género de trabalhos e seria depois no início do século seguinte o fundador do Instituto Oceanográfico de Paris.

E em 1896 iniciara o rei com o seu iate Amélia as suas campanhas no mar português, procurando conhecer com pormenor as suas zonas de eleição, Cascais, foz do Tejo e Cabo Espichel. As campanhas eram anuais, iniciavam-se em geral na época quente e podiam prolongar-se por largas semanas ou mesmo meses. Logo na primeira expedição o rei classificara e conservara um volume invulgar de espécies marítimas, estudara o meio onde viviam, o plâncton que comiam, as migrações e o modo de reprodução, observando ainda as correntes, as temperaturas e os fundos marítimos. As suas pesquisas foram tão largas e inovadoras que Ficalho lhe organizara uma exposição no Museu da Escola Politécnica, onde o antigo Vencido da Vida era lente, e que fora inaugurada a 12 de Abril de 1897.

O rei mostrava assim não ser apenas apenas o brioso descendente da matrona autoritária e severa que dera a mão aos Cabrais e afiançara chacinas com palavras que cheiravam a pólvora de bala mortífera, mas também o sobrinho dilecto dum homem genial e santo, que passara pela Terra com a rapidez e a beleza dum cometa de luz, e lhe deixara a ele no momento em que partira uma centelha do seu bondoso e ingénuo espírito superior. Tu, Carlos, não foste apenas o grosseiro homem das anedotas ou o sensualão desbragado de toda a desprevenida donzela; foste também o sonhador, o artista, o visionário que apreciou como ninguém o mar com desvelo e paixão. Quer dizer, não foste apenas o cevado de muitas arrobas vestido de generalíssimo, que a nação naturalmente depois da engorda mandou executar, mas a criança inocente, o Pierrot enfarinhado, que a multidão massacrou por engano numa pantonima grotesca de sangue e horror. Mas se o primeiro não consegue esconder o segundo, também este não pode limpar a enxúdia repugnante, a graxa suja do primeiro.

No fundo há dois Carlos, o rude canalha, que Guerra Junqueiro retratou a escuro carvão por entre relâmpagos e furacões no poema Pátria, e o idealista talentoso, que Teixeira de Pascoaes pintou a colorido pastel por entre uma cerúlea linha e um fulvo fulgor íntimo no seu D. Carlos.  E os dois são inconciliáveis, sem síntese química possível. E daí a tragédia ingente desta excepcional figura histórica, que nunca pôde encontrar, por mero acaso ou por procurada necessidade, a combinação dos elementos simples que o compunham.

Em Novembro de 1897, depois da morte de Maguiguana e da consolidação interna da situação moçambicana, Mouzinho veio a Lisboa ver a família e os amigos. Há anos que andava em campanha no mato, roto, sujo, esfomeado, remendando roupas, comendo rancho, atrelando carros, matando pretos e feras. Assim como assim, era essa a sua vida de eleição e só a custo vinha a Lisboa, que no íntimo aborrecia, se não detestava. Crescera na adoração interior do avô, o herói da Patuleia, e assentara praça aos dezasseis anos disposto a viver segundo os princípios severos da vida de soldado. Aos trinta partira para o ultramar e só regressara a Lisboa para curtas visitas. Tinha uma péssima impressão dos políticos que em S. Bento se insultavam por profissão; olhava para eles e só era capaz de ver ambiciosos sem medida, de calculadas palavras e falsos raciocínios, prontos a tripudiarem em nome das ambições que tinham o mais elementar princípio humano. O avô odiara os Cabrais e contra eles dera a vida; ele detestava os do rotativismo e contra eles se afastava de Lisboa. Hintze era para ele um adorno e Luciano um bacoco. Preferia viver na ignorância das acções dos homens públicos a ter de as discutir. Vingava-se desse recalcamento pouco natural no seu carácter de impulsivo e de espontâneo praticando a dura vida dos soldados em campanha. Por isso, quando vinha a Lisboa, procurava não se fazer notado, vivendo retirado e anónimo.

Desta vez a recepção foi porém diferente. Vinha como o homem que mandara de presente ao rei o famigerado imperador das Áfricas austrais e que pacificara depois o território de Moçambique. No fundo, chegava a Lisboa como o herói que vingara os portuguesinhos das humilhações inglesas. Era o grande homem do momento; o novo Gama duma nova Índia ou o novo Condestável duma nova Aljubarrota, dizia a imprensa. Foi recebido por isso por uma multidão em delírio, quando desembarcou na manhã de 14 de Dezembro no Terreiro do Paço. O rei em pessoa, acompanhado pelo príncipe real, Luís Filipe, estava lá à sua espera fardado de generalíssimo. Quando ele pôs o pé na escadaria de desembarque, o rei, que o esperava na dianteira, recuou, descendo um degrau. Mouzinho perfilou-se de imediato, fazendo a continência e curvando-se para beijar a mão do rei. Este, num gesto inédito, puxou o herói para si e simulou um abraço com aquela simpatia directa que outrora mostrara a Eça no Chiado. Eça era confrade dos seus validos; Mouzinho era o herói das suas Áfricas. Eram as excepções possíveis na frieza da distância, as clareiras que compareciam de quando em quando nas sombras densas da sua indiferença.

Depois disso o rei homenageou-o com um banquete na Ajuda com mais de duas centenas de convidados. No fim, quando acendiam os charutos e beberricavam os licores, o rei procurou o momento da sua graça. Bernardo e Soveral entretinham-se a falar da época de caça que estivera singularmente gorda naquele ano. Carlos seguia atentamente a conversa de ambos, entrando à vez no relato dalguns casos em que participara. A dada altura, Bernardo virou-se para Mouzinho, seu antigo comensal de colégio, e inquiriu com ar familiar.

– Por que não vens correr connosco as últimas batidas do ano?

O rosto do rei descontraiu-se, mais claro e sossegado, quando ouviu o convite. Pegou ao de leve no braço de Mouzinho e com feição de malícia retomou a deixa do amigo.

– O Mouzinho é o último que nos há-de acompanhar nas batidas. Se for tão bom nas matas portuguesas a matar javardos como é bom em África a matar pretos não deixa um para nós.

Mouzinho não tinha têmpera para aguentar por muito tempo esta atmosfera de zombaria e malícia; era velhaco e cruel, mas não matreiro e falso. Não demorou a partir para Moçambique; quando se despediu de Lisboa, levava já consigo na bagagem a disposição maléva dos políticos Portugueses, que antipatizavam a fundo com o seu feitio cada vez mais irreverente e sobranceiro. O governo Regenerador desmoronara-se no princípio de 1897, devido aos azedumes de Hintze e Franco, sendo substituído por um governo progressista, chefiado por Luciano de Castro. Mas nem assim Mouzinho se viu ao abrigo de vontades capciosas. Os ardis pacóvios foram tantos que em Julho de 1898 pediu a demissão do cargo que ocupava para regressar de novo, desnorteado e amargo, a Lisboa. O rei chamou-o ao paço e quando por lá o apanhou nomeou-o aio do príncipe herdeiro. Foi o pior que lhe podia acontecer. Metê-lo no paço era fechar um abutre das alturas, um condor dos altos cumes, numa gaiola de oiro, pedindo-lhe que cantasse amável como o canário, o pintassilgo ou o periquito. Na corte, um homem como Mouzinho ou se tornava tão anódino como o seu rival vátua enjaulado num Jardim Zoológico ou rebentava com tudo em torno, à força de berros e punhadas.

O governo de José Luciano foi reconstituído por volta desta altura com a entrada de José Maria de Alpoim, que estava para o chefe do governo Progressista como Franco estava para Hintze. Era um ambicioso negro e teimoso como o xisto do seu Douro natal. Entretanto surgiu a convenção anglo-alemã em que se previa a partilha dos territórios coloniais Portugueses em África; uma onda de apreensão correu pelos conciliábulos de Lisboa. O governo tremeu, lembrado do furacão de 1890, e a corte fechou-se, receosa, porque o ponto estava na necessidade de Portugal pedir empréstimos e não os poder pagar. A fiança era doravante a África portuguesa. Ora todos sabiam que uma parte importante dos empréstimos contraídos se destinavam à lista civil do rei e sobretudo aos adiantamentos que a família real desde os tempos perdulários de 1870 consumia vorazmente. As dívidas da Casa Real ao erário público eram espalhafatosas e impossíveis de satisfazer.

Começaram de novo a chover nos jornais as exaltações republicanas, os ataques ao modo de vida do rei, as acusações ao desperdício de Maria Pia e de Carlos, as falsidades de Maria Amélia, os insultos a Salisbury e aos piratas da Inglaterra. Uma bomba isolada chegou a fazer temer um atentado de proporções.

Carlos, confrontado através do seu secretário com estas notícias, encolhia os ombros e deixava-se ficar tranquilo nas alturas do seu mundo olímpico, de havano numa mão e pincel na outra, sem a mais leve perturbação. Parecia-lhe alarme falso tanta agitação em torno de caso tão pacato. Muito mais lhe interessavam as ninfas que andava a retocar na sua oficina de desenho no palácio da Pena e que ainda hoje lá estão, impudicas, luxuriosas, devassas, sensíveis, como o seu autor. Além disso, para ponto tão britânico, confiava no Soveral.

– Ainda nos há-de sobrar muito Luís Pinto depois disto resolvido – transigiu ele numa reunião com o seu secretário.

E Soveral, que era hábil, palaciano, serviçal, e que por nada queria perder as confidências privadas do príncipe herdeiro inglês, aproveitou a guerra dos boers no Transval para fazer ver a Salisbury as vantagens da aliança portuguesa, revogando a convenção anglo-germânica sobre a África portuguesa.

Com o assunto resolvido, o governo descansou e a corte prosseguiu a sua vida de confraria escondida e intemporal. O governo manteve a apertada legislação repressiva de Hintze e Franco, antes de mais a opressiva lei de 13 de Fevereiro de 1896, que proibia a propaganda anarquista, com pena de degredo para quem estivesse em falta. Muitos propagandistas haviam sido já presos e empilhados em barcos de guerra com destino à costa de Angola ou à distante ilha de Timor. Na Europa continuavam os atentados sangrentos e fatais; em 1897 o primeiro-ministro espanhol, Antonio Canovas, fora assassinado a tiro e um ano depois a imperatriz da Áustria, Isabel, caía apunhalada por um anarquista italiano.

Na corte portuguesa estas notícias, que a princípio tanto burburinho haviam provocado, criavam agora apenas um silêncio gelado. As rainhas recusavam falar destas notícias no círculo privado que frequentavam; eram feridas dolorosas que preferiam calar. Sentiam-se vagamente ameaçadas sempre que se noticiava na imprensa um desses atentados e aceitavam o silêncio como uma forma de exorcismo eficaz. Faziam ambas de conta que só ganhava existência real aquilo que passava pela sua boca; o não falado não existia. Era uma táctica que lhes permitia ganhar por dentro algum sossego, deixando-as na inconsciência do mundo que lhes era exterior. O paço era uma fortaleza de muros altos, onde só entrava o que passava pelo crivo da vontade e do interesse das duas rainhas.

Ainda assim, a educação do príncipe herdeiro levava em conta esses eventos, que eram factos políticos tão significativos na época como no tempo da Maria II e Fernando haviam sido as movimentações militares dos primeiros políticos liberais. Luís Filipe, o jovem lobo da monarquia portuguesa, tomou assim consciência desde muito cedo da forma como as classes assemelhando-se a castas rígidas se confrontavam numa explosão de violência. Isso não quer dizer que tivesse benevolência pelo mundo que lhe era alheio; era demasiado parecido ao pai, no seu tipo nórdico e enérgico, para sair do seu universo. O seu irmão, Manuel, o esquilinho, esse, nem consciência tinha daquilo que em seu torno se passava; ficou até muito tarde fechado numa redoma de vidro fosco, que não lhe permitia sequer perceber o desenho do mundo. Tinha os seus lindos cabelos de menina, que lhe caíam pelos ombros num bonito e aberto leque escuro de meia roda, as saias brancas e redondas, que lhe davam o ar de princepezinho russo, e isso lhe bastava. Além disso, só havia a mamã, o mano, o titi, o papá e a avózinha. Era um menino dócil, amoroso, de olhos tristes e peninsulares, que vivia agarrado ao braço do irmão mais velho, em quem via o seu natural e loiro protector. Bem lhe percebia os encarniçados caninos prontos a rosnar ao céu azul.

O aio do príncipe herdeiro, o feroz Mouzinho, ainda tentou afastar as duas crianças, argumentando com razões de natural virilidade, mas foi gentilmente repreendido pela rainha.

– Então, coronel, não vê que é uma coacção forçada apartar essas duas avezinhas tão ligadas uma à outra?!

E Mouzinho, que se sentia agastado, deixou morrer. Andava cada vez mais desinteressado de tudo. Sonhava com as florestas africanas, com os grandes batuques das tribos antes dos combates, com as caçadas no capim, com as paliçadas dos aldeamentos, com a fúria dos embates. Acordava e tinha por cima de si o estuque delicado dos tectos do paço, um cheiro a almíscar e lavanda e um criado de calção e meia de seda, numa etiqueta irrepreensível, a bater-lhe à porta, para lhe deixar a bandeja da primeira refeição na câmara. Bebia o café por uma taça de prata e borrava o pão de manteiga com uma faca de cabo de oiro. Ria-se daquilo tudo e não se importava de tomar atitudes de doido. Um dia apareceu sem dólman no salão, em camisa branca, mangas arregaçadas e colarinho aberto. Outra, saiu em calções para a rua e outra ainda pôs-se aos gritos na sala de armas do paço. A sua pele amarelara, os olhos encruaram, os lábios amoleceram, mas em vez de se tornar um leãozinho de jaula, pacífico e mole, como acontecera com o feroz Gungunhana, Mouzinho, o africano, tornava-se num doido irascível, cuja fúria ninguém entendia onde poderia chegar.

No Verão de 1900, quando o século XIX se despedia, morreu em Paris Eça de Queiroz. Deu o último suspiro num quarto da sua casa de Neuilly, num dia quente de Verão, quase sem um lamento. A condessa chorava a seu lado, um padre francês rezava o responso da extrema-unção, uma prima, que tinha alma de enfermeira, vigiava a respiração do moribundo, as árvores verdes recortavam-se contra o céu azul através da janela ampla, que estava aberta, deixando entrar na brisa morna os calmos aromas do jardim e os alegres pios do passaredo. Dois dias depois celebraram missa numa igreja de Neuilly e realizaram o enterro.

Parecia caso encerrado, mas não. Quando a notícia chegou a Portugal, o paço agitou-se. Os amigos do rei reuniram a sua assembleia e deliberaram, no meio de muitas libações e responsório fúnebre, ao modo do álacre Gargântua e não do duro Pio IX, o autor do Syllabus, deixar marca no caso. Sabugosa, por fim, quando a vivacidade estava ao rubro e muita palavra fora dita, pediu silêncio e ergeu o cálice, para um novo brinde. Em baixo, no Tejo, entre Alcântara e os outeiros da Outra-Banda, passavam três velas brancas. Era a pachorrenta e calma Lisboa espreguiçando-se ao Sol de Verão. Eles, felizes e santos, prestaram-se então a escutar o verbo iluminado do Sabugosa.

– Corações ao alto. Deixou-nos o mais genial dos homens, mas o seu nome está inscrito no céu dos imortais. Neste Portugal ingrato, que despreza os seus maiores, proponho já uma estátua no Chiado ao nosso querido José Maria.

Soveral, que estava a passar o Verão nas praias de Cascais, cofiando as vastas cerdas do bigode azul, ouviu a proposta, sorriu, balanceou afirmativamente a cabeça e acrescentou, piscando cheio de malícia o olho ao rei, que gostava delas assim licenciosas.

– E por favor, meninos, não se esqueçam de pôr nos braços do imortal uma pêssega nua, com a fatal inscrição no bronze: Sob a nudez forte da Verdade o manto diáfano da Fantasia.

Bernardo, que admirava de verdade Eça com a paixão com que se adora um deus,  teve então uma ideia súbita, que lhe pareceu, no calor do capitoso Palmela com que brindavam, genial. A epígrafe do famoso romance queiroziano que contava as pilantrices do Raposão despertava nele um borbulhante mundo de sonhos. Queria fabricar um aparatoso cortejo fúnebre, a que o governo se associaria, mandando vir o caixão para Portugal e organizando um acto público como nunca se vira antes, a não ser nos préstitos da Casa Real.

– Antes mesmo da estátua – disse então Bernardo – se há-de organizar em memória desse nosso famoso amigo o mais memorável cortejo de que há notícia em Portugal.

Dali saiu assim a ideia dum funeral com honras oficiais para Eça, a que depressa o novo governo de Hintze se associou. E a 16 de Setembro desse ano, um mês depois de ter falecido no seu quarto de Neuilly, chegou ao Tejo em navio militar português a urna com os restos ainda quentes do grande escritor. À sua espera, no Terreiro do Paço, estavam os amigos, o governo, os representantes oficiais do paço e uma multidão de curiosos atraídos por tão grave e badalado acontecimento. O arco da Rua Augusta revestido de crepes negras parecia um imponente obelisco negro; todo o trajecto até ao jazigo dos Resendes no Alto de S. João se encontrava decorado a preceito. No Rossio, na varanda do teatro Dona Maria II, uma pequena orquestra de seis instrumentos tocava ininterruptamente uma marcha fúnebre; em S. Domingos, uma cortina negra caía venerável e santa sobre a fachada da célebre igreja e na Rua da Palma as varandas, apinhadas de atentas testemunhas, estavam enlutadas de colchas escuras. A maior parte daquela gente nunca havia lido uma linha do genial escritor, nem sequer lhe conhecia o nome, mas bastava que o paço e o governo se tivessem associado ao cortejo com tão vistoso aparato para pensarem que o morto era tão importante em Lisboa quanto o Papa em Roma.

No Alto de S. João, o ministro da Marinha, um rústico que pesava pelo menos dez arrobas, fez um discurso açucarado, banal, gordurento. Eça, dentro da urna, à espera de entrar no jazigo dos Resendes, assistindo ainda a tudo aquilo, sorria beatificamente agradecendo à corte dos anjos uma sorte tão admirável. O encarniçado combatente das conferências do Casino, o soldado que abrira as valorosas trincheiras da arte realista em Portugal, o displicente que aparecera vestido à inglesa pelo Bragança para jantar galinha e se queixar da choldra, acabava assim premiado por uma catilinária, que empalmava num traço de pena todas as suas ironias mais ferozes. Uma única nota destoava desta absoluta grandeza, a gravatona descaradamente vermelha dum gatázio chamado Fialho de Almeida. Abençoada seja ela para todo o sempre. Sem essa gota de sangue na negra paisagem, sem esse riso salutarmente diabólico no meio da lástima pública, o que seria hoje de Eça no momento da sua partida? Nada mais que o pobre e triste e dessorado homem da Póvoa. Assim, com a dissonância de Fialho, é ele, mais a sua chacota.

A vida política atingia por essa altura um ponto de viragem, como aliás tudo o resto. Os dígitos rodavam cada vez mais depressa no calendário, trazendo com eles o novo século e toda uma panóplia de novidades e pressas. Depois do telefone e da vulgarização da fotografia, chegara a vez do automóvel com motor de explosão, da electricidade, do cinema e até dos primeiros voos. As ruas de Lisboa já não eram as mesmas; uma revolução nos transportes acabara de ter lugar. As velhas tipóias e os americanos puxados a macho de estrebaria estavam a desaparecer; em seu lugar apareciam carros públicos, movidos a electricidade. O novo carro era uma peça única, mecânica, autónoma, alimentada por cabo, com cerca de quarenta lugares sentados. Uma diferença abissal começava a separar o passado do presente na visagem da cidade moderna. Os primeiros carros de motor de explosão saltavam nas ruas de Lisboa. Na dianteira desses novos aerólitos aparecia o Afonso Henriques do paço, danado pelos cromados dos automóveis, que passava agora os dias em correrias loucas pelas ruas de Lisboa, apertando a borracha da buzina e gritando de dentro dos seus bólides para os transeuntes a sua frase preferida, arreda, arreda. Lisboa até já tinha um fotógrafo de rua, que tanto fotografava a corte e o governo como o poviléu nos seus ofícios e desvarios. Era Joshua Benoliel, que mais tarde se apresentaria a si próprio como fotógrafo beduíno, que tanto tira a D. Carlos como a Bernardino.

António de Serpa Pimentel, que entrara para as Câmaras pela mão de Fontes, herdando-lhe depois o lugar à frente dos Regeneradores, acabara de falecer em Março desse ano. As lutas entre o conselheiro Hintze e Franco vieram de novo ao de cima, ainda mais assanhadas e violentas. Desta vez era o trono do chefe que estava vazio e os dois adjuntos bateram-se com ferocidade na disputa do lugarinho vago. Hintze, mais antigo, mais experiente, menos ansioso e menos brigão, alargou apoios e depressa apareceu como o natural herdeiro do assento de Fontes e de Pimentel.

Ao mesmo tempo que esta disputa tinha lugar, Luciano de Castro decidia retirar-se para iniciar tratamentos a uma difícil e dolorosa morbidez degenerativa da medula dorsal. Hintze, quando formou governo, prevendo problemas internos com Franco, com maiorias instáveis e de muita dúvida, preferiu acautelar uma aliança à esquerda com os Progressistas. Conhecia a teimosia do pequeno homem do Fundão e só podia desconfiar; sabia-o irrequieto e ambicioso em demasia para descansar sobre a sua vontade. Não acreditava que depois de vencido o animal – palavra que Hintze guturalizava com a castiça pronúncia de micaelense – se submetesse, domado e manso, votando em boa ordem com o governo.

Franco, depois da derrota, ponderou de feito a sua estratégia. Não aceitava voltar a ser o número dois do partido ou do governo. Boa parte da ossatura legislativa do primeiro governo de Hintze, de 1893 a 1897, fora da sua iniciativa. Dera mostras de grande tacto político, fora considerado pela imprensa uma novidade de faro, fizera-se notar no paço junto dos amigos do rei, falara grosso contra a agitação da Baixa de Lisboa, fizera-se odiar pelos anarquistas, apresentara uma dimensão invulgar de trabalho. O próprio rei se interessara pelos seus gestos e o acarinhara com palavras de incentivo. Não estava pois obrigado a calar-se, escondendo-se atrás do chefe. Queria aparecer, tomar iniciativas, mostrar-se ao comando dum grupo ousado e decidido. Aos quarenta e cinco anos sentia-se suficientemente maduro para começar do zero e bastante novo para nada perder.

Um dia apareceu a Malheiro Reimão, que era deputado do partido Regenerador e seu amigo de confiança. Trazia o ar eufórico de quem havia descoberto uma nova lei da Física ou a solução dum complicado problema algébrico. Gesticulava com agrado e sorria com os lábios escondidos pelo bigode. Por fim, depois de Reimão lhe perguntar o que o trazia assim exaltado, ele respondeu o seguinte.

– Há cinquenta anos que Saldanha foi contra Costa Cabral. A Regeneração é um ente de meio-século, paralisado pelas crises mórbidas da sua envelhecida constituição. Somos nós que, depois do golpe de misericórdia, o vamos empurrar com o bico do sapato para o coval da História.

Ambicionou então acabar com o rotativismo dos partidos tradicionais. Era um projecto ousado, assustadoramente inovador, mas que tinha tanto de real como de estimulante para um homem prático e ambicioso como João Franco Pinto Castelo Branco. O sistema político português estava murcho, corcovado, seco, e precisava a todo o custo que lhe bombeassem sangue fresco e jovem. Franco iluminava-se então a pensar que o novo século ia trazer vida nova e que era nas suas mãos que estava a chave providencial dessa novidade.

Fez contactos e percebeu que uma parte dos Regeneradores estava disposta a romper com Hintze, adoptando o seu projecto. Antes mesmo de se decidir pela ruptura, ainda teve, por iniciativa de Arnoso, que lhe aplaudia as ideias e o introduzia junto do rei, uma conversa com Mouzinho. Este, que era quase tão antigo como a Regeneração, continuava metido no paço, aio do príncipe, mas cada vez mais desenganado e irreverente. Frequentava os becos escuros de Lisboa, acamaradava com rufias, embebedava-se, metia-se em zaragatas bravas, chegava a ser incómodo para o rei. Junto do príncipe, porém, guardava algum recato, tentando fazer dele um rijo e devotado soldado. Corriam por todo o lado as suas violentíssimas imprecatórias contra os políticos do rotativismo. Chamava-lhes a canalha politiqueira e zurzia neles sem piedade. Quando Franco se lhe apresentou para lhe falar das suas ideias novas, não hesitou.

–  Amigo João, não gosta do que vê na Câmara de S. Bento? Pois deixe-me que lhe diga, conta comigo e com umas quantas espingardas que tenho cá guardadas para varrer aquilo tudo.

Franco carregou o sobrolho, a modos incerto. Não percebia até onde aquela linguagem dura de caserna alcançava. Sem rodeios, Mouzinho fez-se explicar.

– O amigo João já me ouviu dizer que este reino é obra de soldados, não ouviu? Pois bem, isto só endireita com um governo militar.

Era outro Saldanha que Franco tinha na frente, ainda mais decidido e furioso que o outro. Franco assustou-se; não era dum Napoleão que andava à procura e não lhe passava pela cabeça que a Regeneração tivesse o seu fim com uma ditadura militar, apoiada no exército, ou no rei que fosse. O que ele queria era no fundo chamar a si o poder sem fazer muitas ondas, respeitando as regras constitucionais que vinham de 1851. Gostava de arregimentar para o seu grupo um homem prestigiado como Mouzinho, que renderia votos e popularidade, mas sem espada na mão e sem exército a espreitar por trás. Ainda lhe tentou dizer que uma ditadura militar era uma aventura doida, sem saída, que voltaria o país contra ele, mas Mouzinho estava inamovível. E malcriado.

– Volte para as Cortes, amigo João. Tem lá o pasto que você precisa para roer.

Franco não precisou que Mouzinho instasse mais com ele. Não era decerto um doido de pele macilenta e olhar esgazeado que lhe iria resolver os problemas com Hintze. Voltou-lhe as costas e regressou às Câmaras, disposto a forçar a sorte por outro meio. E em Maio de 1901, de combinação com Malheiro Reimão, bateu com a porta ao chefe, arrastando com ele uns tantos deputados Regeneradores. Estava criada a primeira dissidência política grave dentro do rotativismo da Regeneração. Hintze não se alarmou – esperava o golpe – e recorreu a Luciano de Castro. Combinou com ele um arranjo eleitoral em proveito dos dois; desse modo barrou a possibilidade de Franquistas e Republicanos elegerem deputados por Lisboa e Porto, onde residia a força do voto dissidente. Com a derrapagem dos Franquistas ganhava Hintze; com a dos Republicanos capitalizava Luciano.

Entretanto, em Janeiro de 1901, morria a imperatriz das Índias, rainha de Inglaterra, velha amiga de Maria II, a pequena Vitória, filha da duquesa de Kent. Estava com oitenta e dois anos e chegava ao fim dum dos mais longos reinados da História, perto de seis décadas e meia. Sucedia-lhe o seu filho, Bertie, com o nome de Eduardo VII, um pesado velhote de sessenta anos, mais estragado do que a mãe. Sempre fizera vida desregrada e por isso se apresentava muito desgastado pelos prazeres da cama e da mesa. Carlos de Bragança, pondo muito orgulho no seu parentesco com a família real inglesa, que a sua avó tanto cuidado tivera em cultivar pelo casamento com os Coburgos, fez questão em estar presente nas exéquias oficiais. Demais, o rei português estava sempre desejoso de passar por Londres e Paris, cortejando umas actrizes, privando com uns artistas locais descobertos em jornais de ocasião, acamaradando com uns aristocratas eslavos de passagem pela Mitteleuropa, desbaratando espalhafatosamente uns trocos. Tinha circuitos marcados, hábitos conhecidos, amigos seguros. Mantinha mesmo em segredo, nos arredores de Paris, algumas senhoras, que o recebiam quando ele estava de passagem e faziam muito gosto em mostrar em público os valiosos brilhantes que o rei português lhes oferecia.

No seu regresso, a luta de Franco contra os Regeneradores de Hintze assestava ao seu ponto de ruptura. Em Maio veio a dissidência e logo depois a lei eleitoral de Agosto, que excluía Franquistas e Republicanos. Franco agitou-se e baptizou a lei na sua imprensa e nos exaltados comícios desse Verão de ignóbil porcaria. Nas eleições de Outubro só conseguiu eleger um único deputado. Mostrou-se então virulento e apocalíptico, dizendo mal de tudo e todos acusando de inépcia e moleza. Falava de si na terceira pessoa, usando termos tais, que se diria estar ali um salvador providencial. O rei, através do Arnoso, seguia à distância com interesse e simpatia esta campanha, que o próprio classificava de profiláctica. Gostava dum homem assim destemido e bravo na luta política; Hintze ao lado desse touro de energia fazia figura de enfezado hipócrita. Franco, percebendo a atenção do rei, expunha-se mais e insistia na necessidade de vida nova na política portuguesa, retomando todos os tópicos que haviam sido da simpatia do grupo que jantara no Tavares e no Bragança.

Mouzinho por seu lado assistia quezilento e chocarreiro a esta ascenção do homem do Fundão. Sentira por ele, a princípio, quando surgira  com o fito de pôr fim ao rotativismo, uma vaga simpatia, mas depressa se desinteressara do fulano, vendo nele mais um videirinho acabado de chegar da província, aflito por escrever História na capital. Nas suas objurgatórias, passou a insultá-lo ao lado dos outros. Não poupava de resto ninguém, a não ser o príncipe real. Mas mesmo este, passou a sofrer as suas repreensões e irreverências. Tinham acabado de correr as eleições da ‘ignóbil porcaria’, quando escudeiro e príncipe partiram para o norte. Mouzinho, aborrecido com o estado do país, onde uma das metades jurava o que a outra detestava, deu em embebedar-se para esquecer aquilo e passar os dias em alegres cantarolices. Em Ponte de Lima, já alcoolizado, meteu-se numa taberna e mandou vir uma prostituta. Foi o escândalo. No dia seguinte, os jornais do Porto pediam a sua pele e o seu afastamento do paço. No regresso a Lisboa, nem sequer se procurou ensejo de se justificar diante da família real. Preocupava-se em demasia com as nódoas do seu espírito, com a inércia do seu alvedrio, para reparar no que diziam os jornais. Houve porém quem o fizesse por ele.

– São mouzinhices – disse Bernardo ao rei, encolhendo os ombros e favorecendo assim o antigo condiscípulo.

Dizia mouzinhices como quem diz esquisitices e assim o aliviava de cargas e culpas. O rei, cheio de pirraça, não era homem que desse qualquer importância a casos como o de Ponte de Lima. Ainda assim, suportava mal Mouzinho. O homem tinha seriedade de mais, sempre carrancudo, para ser da sua simpatia. Um sujeito como Mouzinho, que oscilava entre a cólera mais desbocada e a depressão mais sorumbática, não podia cair nas malhas do seu agrado.

Mas Mouzinho, apesar das atenuantes com que alguns o procuravam limpar, não se aliviava a si mesmo. Nos momentos de lucidez passava a vida no crivo duma peneira fina e desesperava. O que de melhor encontrava no desfilar de si próprio eram as crueldades de sangue em que andara metido na África. Aí fora honesto, ainda que feroz. As aldrabices frias do presente enjoavam-no mais que as ferezas do passado. Trocava de boa vontade os vivos que via no São Carlos ou no Turf clube pelos pretos que havia  trucidado. Um homem assim dificilmente suportava a vida; pesava-lhe mais nos ombros que uma montanha de basalto. Sentia-se fraco, incapaz, desnorteado. Se vivesse há cinquenta anos arrastava uns quantos regimentos para a rua, dava uns tiros e metia-se numa revolução contra a canalha palradora de S. Bento. Tocava logo outra música dentro dele, mais leve e garrida. Fora o destino do seu avô e seria o seu. Nos miseráveis tempos que corriam nem isso podia fazer.

– Se eu saísse para a rua com a tropa, tudo o que me pediam era que devolvesse as armas e fosse para casa dormir – costumava ele dizer aos amigos com um sorriso triste. – Nem coragem tinham para me encostarem à parede, pregando-me dois tiros.

E para dormir humilhado numa jaula como acontecia ao preto anão que  mandara de Moçambique, não valia a pena dar um passo. O certo porém é que não podia continuar a viver naquela prisão doirada em que o haviam imobilizado. Só ela era a responsável pela degradação moral em que vinha caindo.

Por isso, sem poder sacar da arma para punir o meio, decidiu puxar da arma para se vingar de si. No fundo, o suicídio afigurou-se-lhe o gesto heróico que um tempo tão dilemático lhe guardava em reserva. Era a única saída digna para um homem que, entendendo-se a si mesmo como superior aos que o rodeavam, se via momento a momento definhar, ridículo e mesquinho, num meio ordinário que nem o compreeendia nem dele precisava para continuar o seu curso.

Quando assim pensou e decidiu, pacificou inquietações. Despachou os negócios, deixou a bebida, lubrificou o revólver. E, dois meses depois do lamentável episódio de Ponte de Lima, nos primeiros dias do ano de 1902, quando apresentava uma excelente disposição e uma esperança decidida, que aos próximos recordava o velho Mouzinho das campanhas no mato, meteu uma bala na cabeça e ficou-se com um sorriso rasgado e feliz nos lábios. O olhos, esses, que eram penetrantes, inquietos e ferozes como os dum abutre, ficaram por uma vez sossegados e satisfeitos. Foi com certeza a bala mais heróica que disparou, se é que não a única; por isso o sorriso calmo que se lhe abriu na hora da morte, pondo-lhe no rosto e no olhar uma clareira de felicidade e sossego, foi o único da sua triste e severa vida de matador de homens.

Foi a estupefacção geral. Os anónimos da Baixa lisboeta coçavam a mona admirados com tão terrível desfecho. Ninguém acreditava em tal final. Mouzinho tinha excentricidades, grossarias próprias de quem vivera por dentro a vida sem branduras das casernas, mas era um herói, que vingara em Moçambique e entrara no paço. A vida corria-lhe de feição e tinha tudo para ser invejado. No paço, a surpresa foi também a regra. A rainha, a quem Mouzinho deixou uma carta, mostrou-se constrangida e sem explicação para o caso; o príncipe herdeiro gelou de medo, diante do absurdo dum tal gesto; Bernardo, quando recebeu a notícia, pareceu recusar a verosimilhança do acto.

– Agora! – exclamou ele – Quando o Mouzinho começa a mostrar tão boa disposição, ia lá acontecer uma desgraça dessas.

Só talvez o rei percebeu antecipadamente aquele resultado e se desinteressou por isso o seu tanto daquela morte. Estava cansado das traquinices do militar e aliviado com a sua definitiva ausência. Conhecia as teorias políticas do soldado e não lhes dava o mínimo crédito. Não acreditava em aventuras militares e também não desejava o enxovalho das Câmaras. Aspirava a mudanças na vida política portuguesa, reforçando o seu poder, mas com as regras que vinham do tempo da avó. As suas críticas ao rotativismo já não eram tão afiadas e malévolas como no final do reinado do pai, quando os Vencidos da Vida jantavam todas as semanas em Lisboa, zurzindo com sobrançaria no sistema político Regenerador.

– Rapaziadas – dizia ele de si para si, sorrindo, lembrando-se das azedas e toldadas censuras desse tempo.

Aceitava agora as regras que vinham de 1851; tinha nelas prerrogativas que não desejava perder e se revelavam suficientes à limitada renovação que pretendia; podia escolher os políticos, combinar com eles as empreitadas eleitorais que bem entendesse, nomear os pares vitalícios da Câmara extraordinária, e até caso fosse necessário dar poderes excepcionais ao governo para continuar em funções com as Cortes dissolvidas.

Para bem dizer, não lhe serviam para nada as ideias fortes e doidas de Mouzinho. Preferia seguir com atenção a carreira de João Franco, que lhe garantia ordem e autoridade, sem subverter a Carta. Não obstante sabia bem que um político assim ganancioso e trabalhador, revelando uma energia desmedida, só lhe convinha no meio de outros, como parte integrante dum baralho mais vasto, onde, consoante as condições do jogo, ele tanto pudesse ter o lugar do desdenhado joio como do útil grão trigo.

Franco por seu lado prosseguia a sua campanha contra Hintze e o rotativismo. Ganhava forças para fundar em Maio de 1903 um novo partido, o Regenerador Liberal, que prometia canoramente endireitar o país. A retórica era a mesma que se ouvia desde que Guizot chegara pela mão do homem de Fornos de Algodres à política portuguesa: finanças públicas equilibradas, desenvolvimento do país – desta vez assente no telefone, nos fotões ao domicílio, no automóvel privado e no carro público movido a energia eléctrica – e dinheiro, muito dinheiro para obras públicas e empréstimos onde se multiplicasse o ágio. As cidades mudavamn decididamente o seu semblante. Não eram mais espaços rústicos, com vastas cavalariças nas traseiras dos edifícios, donde se elevava todas as madrugadas um odor acre e campestre de estábulo bíblico. Em seu lugar aparecia a gare ruidosa, onde todas as noites adormecia a frota de ferro dos carros eléctricos, que deslizavam durante o dia em carris e se alimentavam de corrente eléctrica por cabo e fios. E vulgarizavam-se os primeiros automóveis de motor de explosão, que se guardavam em garagens privadas e se nutriam dum líquido inflamável obtido pela destilação do petróleo ou dos óleos minerais. Para os demagogos estas máquinas eram um jardim de crisântemos brancos, mas para um esteta que aqui chegasse vindo doutro universo e tudo avaliasse com olhos virgens eram as portas do inferno que se abriam.

Franco conseguira arranjar financiadores de vulto para o novo projecto político e abrira sede na rua Garrett, no coração chique da cidade. Era um lugar espaçoso, quase luxuoso, com um salão onde podia reunir centenas de pessoas. Depressa magnetizou multidões para os seus discursos ardentes e aguerridos, que prometiam ordem e trabalho a troco de mobilização. Apostava agora tudo nas grandes reuniões populares, capazes de impressionarem os seus rivais pelo número, e não se importava de eleger temas gratos aos Republicanos para alargar a sua base de apoio. Gabava-se de ser capaz de reunir à sua volta, industriais, comerciantes, professores, médicos, advogados e operários. Estava criado o Franquismo, que nada mais era do que uma peanha de mármore com o líder em cima, discursando energicamente, de dedo acusador, para as massas do novo século, cobiçosas de chegarem ao telefone, à luz eléctrica, ao crédito pessoal, à bicicleta e aos caixotes fotográficos de fole que começavam a ser tão antigos como as fíbulas.

No Outono desse ano sentiu-se suficientemente forte para deixar Lisboa e fazer um périplo pela província. Conseguira entretanto com financiamento privado abrir dezenas de sedes pelo país e fundar muitos semanários de expansão das suas ideias.  Foi ao Porto, a Guimarães, a Braga, a Coimbra, a Évora, a Beja e a Faro. Em todas estas cidades galvanizava com os seus discursos uma multidão de descontentes ou de surpresos burgueses, que viam naquele homem pequeno e magro, de espesso bigode negro e olhar teimoso e severo, uma fonte nova da política portuguesa. Os seus discursos espantavam pela energia espantosa e as suas ideias agradavam por impolutas e severas. A massa dos seus aderentes cresceu muito. No Porto chegou a discursar para uma assembleia de mil pessoas e em Guimarães arrastou consigo pelas ruas da cidade um cortejo de sessenta carros. Em Faro deu um banquete para duzentas pessoas. A mobilização fazia-se sobretudo nas cidades a partir das associações comerciais, mas os seus aderentes vinham também dos campos, através das associações agrícolas, cansadas da política fiscal dos governos e sensíveis às dívidas da Casa Real. Mas até dos quartéis lhe chegaram adesões de peso, sobretudo da parte dos jovens africanistas, que viam nele o homem que podia limpar S. Bento – os estábulos, diziam eles – das negociatas interesseiras em que se afundavam os Progressistas de Luciano e os Regeneradores de Hintze.

Em privado, com o seu estado-maior, Franco não alimentava ilusões sobre esta imensa campanha de mobilização popular. Por um lado, dava saída à sua necessidade de acção e por outro mostrava ao paço e aos rivais que estava em condições de se tornar numa força mobilizadora temível. Ainda assim sabia que isso pouco representava, pois as eleições não se ganhavam com votos mas com a lei eleitoral do governo. Nunca conseguiria subir ao poder, apenas com a força dos seus votantes. Nem lhe bastava para isso o assentimento do rei; precisava pelo menos do apoio dum dois partidos rotativos. Era um espírito ávido de poder, que se habituara a viver dessa acumulação de vaidade, sem a qual não podia já viver em sossego, mas a cobiça, que nele era excessiva, não chegava todavia para o cegar para o mundo que o rodeava. Foi vítima da sua jactância, mas conservou sempre um raio de clareza, que foi a razão do seu sucesso e do seu desastre.

O rei assistia a tudo isto com um misto de curiosidade e enfado. Bem o Arnoso, lhe apontava a promissora campanha de Franco pelo país e a capacidade de recrutamento que mostrava dentro de Lisboa, onde o seu partido tinha já cerca duma dezena de estabelecimentos abertos, mas ele encolhia os ombros. Sabia bem que Franco nunca poderia governar sem o apoio dum deles. Confiava pois sem mais remédio nos dois políticos que estavam à frente dos dois rotativos, acreditando que todos os outros que surgissem não podiam senão viver à sua sombra.

De resto, Carlos continuava muito absorvido pelas suas pesquisas na arte e na ciência para se envolver com os interesses pessoais do governo. A sua função – sempre lho haviam dito e ele acatava – não era governar, mas apenas reinar. Seguia à risca o seu plano inicial de exploração oceanográfica, investigando as suas duas zonas de eleição, a foz do Tejo e o Cabo Espichel, e estudando e classificando as suas espécies. Não falhara um único ano, ampliara a tonelagem e capacidades de indagação dos seus barcos, fundara o Aquário Vasco da Gama em Algés no ano de 1898, aprofundara o diálogo com o príncipe Alberto do Mónaco, apurara os seus instrumentos técnicos de pesquisa, alargara a sua área de exploração ao Algarve, interessando-se pelo estudo do atum e pela sua pesca, a almadrava. Dera conta em 1899 das suas investigações sobre esta matéria num livro de mais duma centena de páginas, com o título Resultados das Investigações Científicas feitas a bordo do Yatch ‘Amélia’A Pesca do Atum no Algarve em 1898. O livro, com mapas, gráficos e estampas, mostrara-se um precioso auxiliar à pesca do atum, pois estudava no mar do Algarve as rotas de migração do atum, até aí quase desconhecidas.  Em 1902 dera à estampa em francês o primeiro e único volume do Bulletin des campagnes scientifiques accomplies sur le yatch ‘Amelia’ par D. Carlos de Bragança. No mesmo ano mostrara no Palácio de Cristal no Porto algumas das suas colecções, logo regressando ao mesmo lugar no ano seguinte para nova mostra.

Estendera o seu interesse à ornitologia, classificando dezenas de espécies e enviando em 1902 para publicação um primeiro fascículo contendo o resultado das suas pesquisas. O volume surgira no ano seguinte, com o título Catálogo Ilustrado das Aves de Portugal (sedentárias, de arribação e acidentais). Ultimava agora o segundo volume dos Resultados das Investigações Científicas feitas a bordo do yatch ‘Amelia’– Esqualos obtidos nas costas de Portugal durante as campanhas de 1896 a 1903, extraído desta vez das suas notas sobre os seláceos, também de grande importância na economia piscatória do litoral português. O volume estava pronto para impressão, de modo a ser distribuído no Congresso Marítimo Internacional, a acontecer na Sociedade de Geografia de Lisboa em Maio de 1904. A par de tudo isto aperfeiçoava cada vez mais a sua técnica de pintor, que vastamente benefeciou do treino da sua observação de naturalista, notabilizando-se em exposições internacionais de pintura.

Em toda esta possante e esforçada actividade artística e científica se revelava o descendente do engenhoso e visionário Fernando e o parente próximo do dotado e curioso Pedro V. Mas em paralelo, porventura até em ligação próxima com ela, também se manifestava o outro Carlos, grosseiro, mariola, gozão. Não terá sido por caso fortuito que se notabilizou em duas actividades – a ornitologia e a ictiologia – que exigiam alma de pedra em corpo de magarefe. Quer o tubarão, quer o atum eram peixes de vastas dimensões, que ofereciam resistência feroz à captura e demorado sofrimento no momento do estertor. O mesmo acontecia com a maior parte das espécies que apanhava. Depois, para as conservar e coleccionar, era preciso mergulhar as mãos no sangue e escoriar a frio na morte como um carniceiro a esfolar reses. Também no caso das aves de Portugal, todavia uma compilação notável de método e rigor, aflige perceber que todas aquelas pobres avezinhas perderam o pio a tiro de carabina e foram empalhadas para que ele as pudesse anotar. Não há estampa que não refira a acção de matar, quantas vezes na primeira pessoa do singular. Tiro uma à sorte, transcrevo: Conservo desta espécie (Turdus Torquatus; Melro de papo branco, p. 47) magnífico exemplar macho, que matei há alguns anos, e uma fémea caçada na Tapada de Queluz em Novembro de 1890.

Enquanto o seu tio, Pedro V, tocado por uma aspiração de infinito, que era uma mansa e melancólica loucura, se perdia em conjecturas sobre os astros, deitando o seu místico olhar de ternura ao céu e patrocinando um observatório astronómico, ele, Carlos, capturava peixes e aves, para os esfolar e mostrar em exposições. O primeiro via Deus a cintilar na misteriosa ondulação luminosa das estrelas, o segundo descia aos fundos do abismo, à procura dos escamosos monstros que lá moravam. Um era poeta, idealista e visionário, que via talvez no céu a fortuna da Terra, o outro um aventureiro moderno, um naturalista positivo, que apontava com o seu frio dedo para as profundas do inferno. Por isso o tio subiu ao céu com um suspiro imperceptível, aspirando o perfume duma rosa que embalava ao peito e que fora a derradeira flor que a sua princesa virgem lhe entregara com um sorriso angélico antes de se despedir para sempre do mundo, e o sobrinho morreu soltando um berro horrível, numa barafunda errada de tiros e sangue.

O ano de 1904 trouxe uma briga trágica, com muito sangue. Foi o caso que desde há longos anos os Portugueses procuravam ocupar no sul de Angola a zona dos dois sobados do Cuamato, no Cunene, de modo a cumprir as disposições da Conferência de Berlim, que só reconhecia a soberania em territórios ocupados. Uma primeira expedição militar em 1891 fora obrigada a retirar-se. Uma segunda expedição foi organizada no ano ano de 1904, comandada pelo chefe do distrito, João Maria de Aguiar. Uma das dianteiras da expedição era a coluna do capitão Pinto de Almeida, que em Setembro, depois duma esgotante marcha por zona seca e desértica, se internou pela Mata-Bindane, onde lavrava uma revolta contra os Portugueses. Pinto de Almeida formou o seu quadrado de quinhentos homens e deu combate aos milhares de guerreiros nativos que se haviam concentrado na zona. Ao fim de algumas horas, já com escassez de munições, exausto de forças e sem ânimo, o quadrado rompeu, com os soldados logo submergidos pela onda dos atacantes e quase por inteiro massacrados.

A notícia, quando chegou a Lisboa, alarmou. O paço, de luto ainda pela morte de Humberto I da Itália, irmão de Maria Pia, que sucumbira a um atentado anarquista recente, fechou os olhos, para não se agoniar mais. Maria Pia, dobrado o puxado cabo dos cinquenta, estava outra em definitivo. A transformação que se iniciara na cidadela de Cascais, no tempo da agonia do bom rei Luís, consumara-se de vez. O tiro, que derrubara o irmão, também a atingira a ela. Os cabelos embranqueceram todos dum dia para o outro, perdendo as faúlhas fulvas que ainda lhe restavam e que outrora lhe haviam dado a cintilação felina duma labareda; as carnes empalideceram e murcharam, secando nos ossos; o juízo tremera, abalado pelo pavor da morte do marido e depois do irmão; os olhos perderam o azul e gelaram em viscosa cinza incolor; os lábios, outrora tão sumarentos, engelharam, perdendo a última réstea de sol e carmim. Era agora uma imagem desbotada do seu passado de vício e soberba, um fantasma a apagar-se no tempo e a desfazer-se na atmosfera, cada vez mais silencioso e amortecido. De vez em quando, um relâmpago electrizava aquele céu de Outono; eram os seus nervos, gastos e sensíveis, a vibrarem na carne velha.

Ó Maria Pia, minha rainha portuguesa, que até agora não me provocaste mais do que aversão, mas que assim, tétrica e apavorada, me inspiras comiseração e simpatia. Ó minha querida Maria Pia, nunca foste tu tão bela como no momento do teu declínio. O teu corpinho perfeito de menina suculenta e cheia de gozo não vale nada ao pé da grandeza da tua velhice e da tua tragédia de mãe e de rainha.

Só o rei, puxando do seu humor, que podia ser sinistro sem deixar de ser natural, remexia em tudo sem pudor. Aceitara a morte do tio italiano com um encolher de ombros e aceitava agora a chacina do Pembe sem um abalo. Quando se aborreceu de ver Bernardo com cara de caso por causa das três centenas de mortos do massacre, gracejou, faceto e pândego.

– Ainda o Cu…amato se há-de tornar com as pancadinhas da praxe no Cu Amado dos Portugueses.

O governo de Hintze por seu lado desanimou. Andava desde a Primavera a endrominar um contrato sobre o monopólio dos tabacos. Tal convénio era a forma que o Estado encontrara desde Costa Cabral de espaldar os empréstimos estrangeiros que precisava. Desta vez o contrato devia ser renovado com a Companhia de Tabacos, uma companhia privada de capitais franceses que se formara em 1891 e que desde então detinha o monopólio da exploração do tabaco em Portugal. Era o trivial desde 1843. Só que entretanto fora apresentada uma proposta da Companhia dos Fósforos, que fora julgada pela oposição republicana mais favorável ao Estado português e que Hintze recusara. O presidente do ministério, incapaz de aguentar a pressão e o desaire, demitiu-se. Corolário dessa demissão, foi a chamada de Luciano para o governo. Ora Luciano estava numa situação lastimável, vítima da morbidez degenerativa da medula dorsal. Na Primavera desse ano chegara mesmo a temer-se o seu passamento, tal modo grave era o seu estado. Salvara-se mas aos setenta anos apresentava-se muito esfacelado; perdera um olho, estava quase imobilizado das pernas, obrigado a permanecer às vezes em casa e outras a entrar na Câmara em braços, sentado numa cadeirinha de entorpecido paralítico. Não obstante, contumaz, vivia para os negócios de Estado e neles – afirmava – havia morrer.

O governo de Luciano viu-se assim dilacerado por discórdias intestinas, já que os baronetes, vendo o chefe esfacelado, apoiado a uma bengala, se não a caminho do coval, começavam a disputar a herança do partido fundado na Granja em 1876. Em primeiro lugar, desenhava-se José de Alpoim, um truculento e descomunal descendente da pequena nobreza transmontana, e logo a seguir Francisco Veiga Beirão, menos bravio e mais cortesão, mas de igual modo ganancioso. Luciano, muito sabido nestas manobras, deixava de lado sem mais ondas um e outro, preferindo-lhes homens menos ambiciosos e mais submissos; a Alpoim e a Beirão, para os entreter ou para os enganar, dava-lhes lugares vistosos mas menores. Aos amigos, aos correligionários, quando estes o punham de sobreaviso para os dois azougados tenentes, não dizia nada, gesticulando desinteressado, como se não ligasse ao assunto. Mas às escondidas, em privado, tinha uma rede de informadores montada para espiar todos os movimentos dos rivais. Era matreiro, dissimulado, sabido e muito cauteloso.

Alpoim, vendo a resistência do chefe, planeou atingi-lo com um golpe feroz. Esperou o momento em que Luciano fez descer à Câmara o contrato dos tabacos a favor da Companhia dos Tabacos e assentou a pancada. Lá fora, nas hostes republicanas, corria uma virulenta campanha contra o endividamento do Estado às praças financeiras estrangeiras. Os Republicanos tomavam a questão dos tabacos para disputarem a política financeira do Estado português, implicando nisso a família real, muito interessada na rapidez dos empréstimos do Estado, já que era uma das principais beneficiárias, através da prática dos adiantamentos, dos dinheiros deste. Vezes havia que os Republicanos interrompiam as sessões da Câmara berrando acusações contra o chefe do governo. Alpoim, percebendo a delicada influência do momento que passava, arregimentou uns tantos deputados do seu partido que lhe eram próximos e com eles no dia da discussão da lei votou contra Luciano, impedindo a sua aprovação. Foi a chamada dissidência progressista, que depois de Franco foi a segunda dissidência política grave dentro do rotativismo da Regeneração.

Corria o mês de abril de 1905 e Alpoim foi quase de imediato irradicado do partido. Luciano repelia do seu seio uma facção insubordinada, que se recusava votar a seu lado em matérias de significado. O governo, ao perder a maioria na Câmara, claudicou, muito fragilizado, mas continuou em funções.

Com a dissidência de Alpoim, a campanha dos Republicanos subiu de tom. Sentiam-se agora autorizados a levantar a voz contra o governo, apontando o exemplo do dissidente. A figura do rei ficou de novo em causa. Carlos começou logo em 1890, no tempo do governo de Serpa Pimentel, a beneficiar de adiantamentos, quer dizer, de pagamentos antecipados sobre aquilo que no futuro havia de receber. O hábito vinha de trás, pelo menos desde os tempos em que Maria Pia se começou a mostrar voraz nas despesas, imaginando que o dinheiro se multiplicava sem limites. Fosse como fosse, muitos anos depois, a dívida da Casa Real ascendia a medidas que para o comum dos mortais eram mais do céu que da Terra. Espiolhou-se de imediato a vida do rei, à procura dos seus gastos. Vieram ao de cima as suas viagens regulares a Paris, algumas delas encoberto por falsa identidade; soube-se das suas visitas aos cabarés de luxo da cidade, identificaram-se as senhoras que ele mantinha, conheceram-se as histórias que sobre ele corriam. No Maxime, uma casa nocturna frequentada pela aristocracia europeia, o rei português era conhecido pelo hipocorístico Sa Lotion, que ele fazia questão de repetir em privado, pondo nisso todo um frémito de malícia erótica.

Levantou-se uma nova campanha contra a família real. O rei foi visto pelo prisma exclusivo da sua grosseria e da sua ociosidade de inútil. Numa sociedade que só conhecia o trabalho alternado com o sono, o seu ócio de filho-família passou a ser tomado como uma afronta. Voltaram as acusações de anti-patriotismo contra a família real, que haviam surgido no calor das manifestações contra o Ultimato inglês e regressado poucos anos antes, no quadro da convenção secreta entre a Inglaterra e a Alemanha sobre a África portuguesa. Recordou-se o comportamento timorato do rei diante da Inglaterra e dos estudantes; afrontou-se Maria Pia e a sua recusa em falar português.

Esta, cada vez mais solitária e magra, perdida e abandonada nos seus salões da Ajuda, desmemoriada das suas antigas guerras, esquecida do seu antigo esplendor mundano, com os cabelos brancos e os vestidos deslustrados, transformava-se a olhos vistos num espectro do passado, uma outra Maria Francisca Benedita, ainda mais trágica e sonâmbula. Era uma estampa ossuda, nervosa, eléctrica, com a alma atulhada de buracos negros e dois pedaços de gelo que lhe queimavam o pensamento, a morte do marido depois dum quarto de século de humilhação e o homicídio do irmão, abatido a tiro no parque de Monza por Gaetano Bresci. O seu único entretém era encher de água um regador com que espalhava água nas flores do seu jardim. Mantinha-o ao lado da cama, repleto, pois sabia que o pensamento não lhe dava descanso e que os pesadelos, os sobressaltos, as dores da gastrite a arrancavam do sono a horas mortas, quando os mochos piavam lugubremente nas árvores da tapada e as estrelas boiavam monótonas na escuridão do céu. Então levantava-se, atava um lenço na cabeça, vestia um vestido amarrotado, pegava no regador e ia ter com as suas flores. Era o único consolo que tinha numa vida de pressentimentos funestos e de medos espectrais, que não identificava.

Nas ruas, voltava-se a perguntar com veemência e reprovação.

– Que valem os Braganças, se a rainha mãe e os filhos nem sequer falam entre si a língua em que nós mamamos?

Depois identificaram-se buracos no tesouro real e levantaram-se dúvidas graves sobre o destino das jóias de João VI. Descobrira-se que o rei viajara incógnito para Paris no Outono de 1902, fazendo-se passar por conde, e por lá andara três meses na rambóia, gastando dinheiro aos rodos. Viteperou-se o rei de ladrão. Um gigantesco auto de acusação foi levantado contra Carlos de Bragança; convergiam nele as velhas acusações de traição com as mais recentes de burla e de falta de préstimo. As caricaturas imorais, indecorosas, ordinárias do rei faziam furor, correndo os jornais e vendendo-se em qualquer tabacaria sob a forma de bilhete-postal. Era muito desejada a famosa interpretação de Leal da Câmara, retratando o rei sentado, de charuto na mão, rosa branca na lapela, barrigudo, grande papada, perna cruzada, com a legenda por baixo, em francês, como era de obrigação numa sociedade que desvalorizava tudo o que tinha de seu: O rei de Portugal. Pronto para o matadouro.

Assim se criou na alma dessa pequena burguesia que vivia na baixa lisboeta ou no centro do Porto a lenda negra de que o rei era um tratante, que eles não meteriam por nada deste mundo dentro de sua casa e que só merecia que lhe limpassem o sebo. O clima de insubordinação recordava os mais graves momentos do levantamento patriótico de 1890, quando Junqueiro pôs a correr ‘O Caçador Simão’, difundindo a expiação do rei e vaticinando a queda do trono. Toda aquela gente lia em demasia as historietas da França revolucionária e cada pequeno burguês da Baixa lisboeta estava convencido que tinha na barriga o gordo proprietário da estação-de-muda de Saint-Menehould que prendera numa noite quente de Junho de 1791, em Varennes, o rei francês, quando este fugia das Tulherias disfarçado de criado para se juntar ao exército realista do Leste. Não havia na Baixa vendedor de caparrosa que não desejasse ardentemente encontrar um dia um pretexto para meter o rei no chilindró. Todos sonhavam um dia poder atirar para os amigalhaços uma fanfarronada  assim jactante e brava:

– O mariola, pensava que escapava? Para isso era preciso que cá não estivesse, de olho vivo, o Manel dos Ferros.

O rei deixara de ser pábulo de chambões e velhacos nos cafés da má-língua para passar a ser pasto de qualquer sensato e sisudo chefe de família. Todos o queriam no açougue para lhe porem a mão no cachaço. Eram tantos e tantos, que nem a alcatra do cu lhe deixavam, quanto mais o lombo e o acém.

A par disto havia ainda a questão dos tabacos, que continuava por resolver. Um jovem advogado republicano, Afonso Costa, que nem vinte anos havia no momento do ultimato inglês, oferecera os seus serviços à Companhia dos Fósforos e aparecia como um dos próceres da campanha contra o endividamento do Estado ao estrangeiro. Era um beirão da serra, achaparrado e ágil, cabeça quadrada e teimosa, olhar rude e agressivo, chispando lume e ódio. Nascera como tantos outros para as ideias revolucionárias no quadro do levantamento patriótico de 1890 e jurara nesse momento que não havia de chegar a ver um pêlo branco na cabeça sem dar a monarquia por banida do país. Ascendera depois a pulso nas fileiras do partido Republicano, nem sempre de forma equânime, contando com a anuência benevolente e desinteressada duma venerável figura tutelar do movimento, Teófilo Braga, um laborioso e expedito micaelense, que passava por ser o precursor das ideias anti-estrangeiradas de 1890. Depressa Costa se impusera ao lado de António José de Almeida como um dos que advogava a queda da monarquia por via duma revolução armada, que juntasse no mesmo caudal povo, exército e marinha.

Agora estava decidido a concentrar todos os seus esforços na campanha contra o contrato dos tabacos, vendo aí a possibilidade dum salto na  arregimentação republicana. Tornou-se muito popular, frequentando os restaurantes da rua dos Condes, aparecendo nos cafés do Rossio com discursos inflamados e incendiários, tomando poses ostensivas, muito espectaculares, nos jornais e nos tribunais.

O partido Republicano fortalecera-se muito, desde que a crise com a Inglaterra o catapultara para os cimos da atenção. Até em períodos de aparente acalmia, favoráveis à popularidade da monarquia, como aquele que se seguiu à primeira metade do ano de 1895, com a vitória de Marracuene, os Republicanos ganhavam adeptos e alargavam a sua base de propaganda. Em 1896, numa época de oiro para o rei, com o Gungunhana preso em Lisboa e Moçambique quase pacificada, fora da alçada militar inglesa, apareceu a talentosa construção dramática de Junqueiro, Pátria, vitriolando sem dó a figura do rei e cobrindo de duros sarcasmos o seu meio. A primeira edição do poema foi estampada no Porto, em Fevereiro, e esgotou em apenas cinco dias seis mil e seiscentos exemplares. Alimentou a corrente de exprobrações que vinham do levantamento patriótico anterior e tornou-se o fio da má vontade posterior, que desaguou na virulenta campanha de caricaturas contra o rei nos primeiros anos do século XX.

Foi neste período que começou a lenta mas segura sangria dos partidos monarquistas. Viram-se partidários de peso da monarquia, até aí fiéis ao rei, mudarem de campo, aderindo ao partido Republicano. O caso de maior reputação foi decerto o de Bernardino Machado, professor com cátedra desde 1879, deputado Regenerador em 1882, par vitalício do reino em 1890, ministro das obras públicas em 1893, no governo de José Dias, que aderiu aos Republicanos em 1903, emprestando ao partido a sua experiência de propagandista, o seu prestígio de político com provas dadas, a sua habilidade nos negócios públicos. E o caso de Bernardino Machado não foi único; outros houve, talvez menos determinados, como o de João Arroio, mas ainda assim ribombantes.

Ao longo do ano de 1905, depois da dissidência de Alpoim, os Republicanos mobilizaram os seus recursos contra o contrato dos tabacos. Estavam em causa as dívidas do Estado, quer dizer, a seriedade das finanças públicas em Portugal, e os gastos da Casa Real. Cada dia que passava avolumava a questão de se apurar qual a dívida do rei ao erário público, muito se reprovando o desconhecimento vago em que o caso andava. Verberava-se depois o ajuste dos tabacos com a finança europeia, imputada de explorar com elevadas taxas de empréstimo o Estado português. O rei por seu lado era acusado, com a premência dos seus gastos, de ser uma das primeiras razões desta errada escolha, pois a única vantagem do contrato com a Companhia dos Tabacos consistia na rapidez da transferência do dinheiro.

Costa engrossou assim com estes fios uma ardilosa campanha contra o convénio. Tanto envolvia nela o governo, que passou a ser insultuosamente conhecido por tabaqueiro, como arranjava modo de nela prender a figura do rei e sua família. Maria Pia fora a dissipadora adúltera, que nenhum homem de bem podia desejar para esposa, e era agora a rainha velha, semi tresloucada, espectral e descarnada, que regava flores à noite, nos jardins quase abandonados da Ajuda; Maria Amélia, viril e possante, sempre vestida de negro, era acusada de ser a milícia jesuítica francesa, disfarçada em obras de caridade; Afonso, por fim, era pintado como um pulgão inútil que tripudiava ao volante do seu Renault pelas ruas de Lisboa, numa folia idiota e brejeira, aos gritos aplebeados de arreda,arreda. Se o burguês tomara como indesejável para esposa a viciosa Maria Pia, menos ainda queria Afonso para filho; caso tivesse em casa um tal parasita, o burguês seria o mais infeliz dos pais.

O alcance desta campanha visava porém as franjas da dissidência monárquica, nunca perdendo de vista a luta parlamentar contra o governo. Neste sentido, a campanha dos republicanos mostrava-se capaz de cooptar a oposição parlamentar, sobretudo a dissidente. Alpoim estivera com Costa desde o momento em que rompera com Luciano; Franco dele se foi aproximando para não ser visto como tíbio. Nesta urdidura, a habilidade de Costa foi tanta que a 19 de Novembro de 1905 conseguiu reunir num mesmo comício em Lisboa contra o governo tabaqueiro Republicanos, dissidentes Progressistas e Franquistas. A euforia dos Republicanos foi tanta que uns dias depois, nos primeiros dias de Dezembro, Bernardino Machado num outro encontro proclamava que os dissidentes dos partidos rotativos se iriam em breve tornar nos dissidentes da própria monarquia, engrossando as fileiras Republicanas.

Franco, quando foi interpelado sobre estas tergiversações, não pestanejou. Limitou-se a assegurar aos amigos do paço.

– Quem segredos quer saber, busque-os na mesa e no prazer.

Recebia de feito em sua casa a visita frequente de Afonso Costa e de outros Republicanos, com eles discutindo na intimidade da mesa e da sala longas horas a situação política do país. Sabia que Costa o tinha por amigo simpaticíssimo e o recomendava. Também ele conhecia muito bem as historietas da Revolução francesa para perceber que os verdadeiros carrascos das revoluções surgiam de dentro e não por fora. As relações com o terrível Costa – um Hébert que os correlegionários se encarregariam um dia de devorar – faziam-no piamente crer que o destino lhe reservava um grande papel na política portuguesa do século XX e que a sua figura viria a marcar de forma indelével os destinos do país, surgindo como o salvador providencial da monarquia. No meio da tempestade revolucionária em que o reinado de Carlos de Portugal caíra, ele percebia que o modelo dum grande político não se media pelo estalão de Hintze e de Luciano. Esses eram os bois de serviço, indolentes e pacholas, sem novidade e sem invenção, que qualquer sopro revolucionário mais fundo varreria sem deles deixar rasto. Era preciso um homem activo, ousado, descomprometido, capaz de empalmar tudo e todos pela surpresa e antecipação. Só assim se podia salvar a monarquia. Esse homem era ele e chegara do Fundão, que era terra viva, de sorvedoiro e de abismo.

As assembleias, as marchas e os protestos eram agora muito mais caudalosos e concorridos do que haviam sido nos dias do levantamento de 1890. A cidade crescera bastante nos últimos quinze anos. A via férrea ramificara-se e atingira um novo ápice de expansão, as estradas de saibro subdividiram-se, cobrindo quase o território do país, o cordão de gente que se deslocava dos campos do interior para as cidades do litoral engrossara muito. Lisboa, que em 1890 tinha trezentos mil habitantes, aproximara-se em 1905 dos quatrocentos mil, quer dizer, crescera nuns curtos quinze anos mais de trinta por cento. Era agora uma metrópole imensa, populosa, cujos tentáculos se distendiam em todas as direcções, comendo dia a dia novos e novos lugares; os limites deste corpulento animal eram desconhecidos, começando a perder-se numa enorme circunferência adjacente, onde se instalavam os recém-chegados da província e as novas indústrias.

Em cerca de meio século a cidade multiplicara mais de quatro vezes a população e alargara outras tantas a sua área de ocupação. Dessas quatrocentos mil pessoas só duzentas mil tinham ocupação efectiva no comércio, nos serviços, na indústria, nos ofícios, nas profissões liberais ou na finança; mais de metade destes efectivos eram operários ou trabalhadores manuais. Restavam cerca de duzentas mil desocupados, onde se incluíam as crianças, os velhos e as mulheres, que ficavam por regra em casa, mas também vinte e cinco mil ociosos, sem ocupação e sem rendimentos, que vadiavam pelos arredores e pelo centro, vivendo da mendicidade, da magra courela que joeiravam nas traseiras do casebre e ainda de expedientes criminosos. Eram o sub-proletariado, massa de excluídos ou de inadaptados às novas condições de vida e de trabalho na cidade, que fazia a vez de excrescência do êxodo rural. Vulgarmente identificados como a malandrage, acabavam por constituir nos momentos quentes de mobilização política uma força de choque nada dispicienda, singularmente violenta e muito activa na luta contra a polícia.

Os anarquistas franceses, por exemplo, depois do massacre de 1871 haviam-se mesmo voltado para esta casta de marginais, na esperança de nela encontrarem os anjos vingadores dos terríveis acontecimentos de Paris. Ao lado dos atentados violentos, começaram a pregar o ilegalismo extremo, permutando entre si bandidos e revolucionários. Incubavam assim por esta altura, numa casinha solitária dos arredores de Paris, as atrozes proezas do bando de Bonnot.

As características sociais do crescimento da região de Lisboa, determinantes para a maciça mobilização contra o contrato dos tabacos, reproduziam-se em muitas outras localidades do litoral. O Porto seguia de perto a tendência, ganhando no mesmo período quase cinquenta mil novas almas; no perímetro urbano da Invicta  viviam agora perto de duzentos mil pessoas. Mas outras cidades na extensão da costa, à beira-mar, até aí apertadas na sua feição provinciana, pouco mais que rural, estavam em transformação rápida, ganhando um novo fácies urbano e industrial. Por exemplo, Setúbal em pouco mais de quinze anos, devido com certeza à indústria conserveira, crescera quase cem por cento, subindo a quase trinta mil habitantes. Em todas estas localidades, onde se formava um proletariado urbano que deixara os nichos rurais, arrastando em concomitância a expansão dos serviços e dos comércios, aparecia uma opinião pública que seguia de perto o que se dizia nos jornais e nos cafés de Lisboa e Porto. Eram arroios menores, afastados, recentes, mas que corriam para engrossar o curso principal da contestação à monarquia dos Braganças, enriquecendo e diversificando o caudal republicano e revolucionário.

O rei diante da campanha contra o contrato dos tabacos encolhia os ombros e pagava com absoluta indiferença, se não com chacota, o desprezo com que o tratavam. Era homem de espírito, que fora educado por um liberal como Martens Ferrão e que prezava com verdade a liberdade. As suas grosserias contra a pequena burguesia, comuns desde a sua adolescência, e que de resto partilhara com a geração intelectual da sua juventude, as das conferências do Casino,  tinham mais pilhéria que verdade. Sendo o rei um espírito altaneiro mas tímido, esse chiste podia por vezes ganhar o efeito de afronta, até de embate violento, mas nunca se misturava ao ódio contra o espírito. Estimava demasiado a frontalidade para não aceitar a crítica.

Era por isso o primeiro leitor das catilinárias que lhe dirigiam os jornais, e nem sempre para se amargurar ou exprobrar os articulistas. Tinha, a par da presunção própria dum alto aristocrata, a elástica tolerância da curiosidade, que lhe vinha duma tradição ilustrada e liberal que gerara reis como Fernando II e Pedro V. No momento em que Junqueiro publicou Pátria, ele fez questão de ser um dos primeiros leitores do poema. Picou-se mas avalizou o valor estético da obra. O mesmo aconteceu quando quiosques e tabacarias de Lisboa, Porto e Coimbra se encheram de bilhetes-postais que o retratavam como indecoroso, grosso ou imoral. Tornou-se de imediato o melhor coleccionador desses cromos. Quando Bernardo lhe falou da famigerada caricatura de Leal da Câmara, fixando-lhe de antemão o abate, ele olhou-se de relance ao espelho e exclamou com surpresa.

– Tem graça! Pega em dois pintos e manda vir umas dúzias desse cartão. Quero espalhá-lo por aí.

Era como se tivesse reparado pela primeira vez no exagerado peso com que andava e tivesse achado graça ao caso. Estava de feito um sebo; não pesava menos de cento trinta ou cento quarenta quilos. O grupo dos seus amigos diminuíra o seu tanto. Oliveira Martins fora-se, Lobo de Ávila também, Eça seguira o mesmo caminho, Ficalho já lá ia; Junqueiro por seu lado mudara de campo e deixara de aparecer, metido agora num casaco coçado e num chapéu braguês, barbas piolhosas e anarquistas, esquecido de todo da impecável cartola cilíndrica de seda com que aparecera outrora no Tavares e no paço. Sobravam o Bernardo, o António Cândido, o Sabugosa, o Soveral, o Ramalho, o Tomás e alguns outros, mais novos e acabados de chegar. Não obstante os ágapes continuavam, excessivos, licenciosos, endiabrados. Duravam tardes inteiras, entravam pela noite, acabavam às vezes de madrugada, com a luz do dia a surgir dos lados do Montijo. As ementas continuavam a ser apresentadas com as talentosas e artísticas aguarelas do rei; os comensais libavam sonoramente com a taça do coração nas mãos, juntando Gargântua e Pantagruel na doirada abadia do prazer.

Carlos apelava à transcendência quase religiosa daqueles actos de trincadeira e por nada olvidava o seu Brillat-Savarin. Quando chegavam à mesa as notícias azedas da campanha contra os tabacos, o que acontecia ao anoitecer, depois dos licores espirituosos, o rei deixava correr e depois, inalterável e corrosivo, deixava cair num francês irrepreensível a memorável sentença do autor de Fisiologia do Gosto.

– Rien n’est capable de troubler mes digestions.

Guardava as atoardas atrabiliárias, tão da sua simpatia, para os dias em que, levantando-se a horas decentes, passava a manhã no escritório do paço à volta dos discursos das Câmaras e dos jornais. Estava com quarenta e dois anos e caso se cuidasse seria decerto ainda um elegante e ágil rapaz de olho azul, cabelo loiro e pele rosada. Assim não; estava um sebo irreconhecível, que parecia ter em cima mais quinze ou vinte anos. Começara desde há tempos um irreversível processo de envelhecimento; o cabelo enralecia, a pele manchava, os dentes cariavam, os olhos embaciavam, as unhas enfraqueciam, os bigodes perdiam viço. Tinha problemas gástricos frequentes e de quando em quando crises violentas de diarreia, que o prostravam e debilitavam, recordando-lhe os aflitivos dias de Setembro de 1890 em que agonizara em Sintra com um tifo contraído nas praias de Setúbal. A par disso começou a sentir uma sede imoderada e viciosa. Passou a fazer-se acompanhar por um colossal jarro repleto de água; a todo o momento se servia em grandes copos do precioso líquido, que emborcava num trago ávido, não se sabia se por necessidade de desimpedir à força de jactos aqueles corredores internos tão castigados por enchentes de comida, se por outra necessidade fisiológica desconhecida.

Tomás, o conde de Mafra, seu amigo de infância e seu conviva, que era médico, desconfiado, pediu-lhe uma análise à urina. Corria o fim do ano de 1905 e o rei, que era o ponto alto do descuido, procrastinou; diante da insistência do amigo lá acabou por desencravar, já Janeiro ia pelo fim, quando ele condescendeu com a observação. Veio o resultado. Estava com vinte e duas gramas e meia de sacarose por litro de urina o que não permitia ilusões, o rei estava hebético e sem cura. Caso não mudasse drasticamente o regime de vida, os anos que lhe restavam para viver contavam-se pelos dedos duma mão. Ele levou o caso para o gozo.

– Hebético mas não hebetista – não se cansava de repetir, desanuviando o tristonho e pesado ambiente que caiu sobre o paço, quando se soube da sua doença.

Mas diabético, envelhecido, com os dias contados, sequioso e obeso, o rei continuava ainda assim sexualmente activo. Não desistia da sua vida parisiense, onde descobrira um encantador clube nocturno com um curtido nome rabelaisiano, L’Abbaye de Thélème, e amealhava por Lisboa aventuras picantes, algumas arriscadas e duvidosas. Depois do suicídio de Mouzinho, conhecera uma atractiva sul americana, chamada Grimaneza, cabelos negros, sobrancelhas espessas, corpo escultural e quente, casada com um diplomata brasileiro, César Viana de Lima, a quem oferecera versos e pinturas. A mulher, sentindo-se inchada pelas preferências do rei, não se importara de se envolver com ele, deitando o casamento às urtigas.

Carlos, depois que tivera aquela mulher macia nos braços umas tantas vezes, sentira-se logo rejuvenescer; beijava-a longa e ternamente, saboreava-lhe a pele, ensalivava-lhe a concha do ouvido. Ela sorria, revirava os olhos lânguidos, mordia os cantos da boca, passava a língua brilhante pela polpa dos lábios, colava-se a ele, enlaçando-o furiosamente com os quatro apêndices doces e coleantes que lhe saíam do tronco. Ele introduzia-se nela e aliviava todas as tensões antigas e presentes. Eram dois moluscos salivosos, um dentro do outro, rodando na escuridão do mundo, os músculos tensos, o coração a latejar nas têmporas, os olhos assustados. Depois soltava-se, deixava-se cair ao lado dela, vogando por oceanos siderais, de olhos semi-cerrados e lábios entreabertos, respiração funda e arquejante.

– És a praia da minha meninice, com a doçura quente da fina areia alva e o mar bravio a salpicar de espumas as rochas cruas do Mexilhoeiro – costumava ele dizer nesses instantes, de papo para o ar, o Himalaia gelatinoso da barriga levantado ao céu.

Ela movimentava os lábios, lisonjeada e galante, e desafiava-o suavemente para nova volta. Era uma mulher insaciável, que tinha um vulcão dourado entre as pernas. Ele sentia-se preso àquela voragem explosiva de luxúria, vivendo mergulhado num mundo de erotismo e prazer. No ano de 1904 comprara dois prédios na calçada da Ajuda para a ter à mão; não a queria dispensar nem a podia sentir por longe. Precisava dela por perto. O marido entretanto morrera, não sei se de ciúmes, se de tristeza ou se de simples e insuportável vergonha.

Carlos acabara porém por se desprender o seu tanto da viuvinha sul-americana, quando se deixou deslumbrar por uma gaiata de ascendência espanhola, Maria Amélia Laredo e Múrcia, que tinha vinte e poucos anos mas parecia uma adolescente frívola e tenra, acabada de sair da infância. Frequentava o São Carlos, onde o rei a topou pelo olho do óculo a primeira vez. Era uma haste notável, com um semblante de santa da Renascença toscana e uma agilidade toda graciosa e ondulante no bolear do corpo. Depois deu com ela nos relvados de ténis de Cascais, num delicioso preparo, blusa branca muito justa ao busto e saia curta de balão, deixando ao léu duas coxas divinais, de mármore branco polido. Era uma menina mimosa, de forte carnação láctea, tenuemente ruiva, olhos verdes, fosforescentes, um sinalzinho castanho na garganta, largo, saliente, que deixou o rei a tremer de doido desejo. Estava apaixonado.

Não descansou enquanto não a convidou para os bailes do paço. Depois levou-a de carro para a sua oficina na Pena, em Sintra, para lhe fazer o retrato. Aí, rodeado pelas estampas das lúbricas ninfas, lhe caiu aos pés, sôfrego e doido, pedindo para lhe beijar as mãos, os braços, as axilas. Estava louco por lhe trincar os lóbulos das orelhas e lhe mexer no botão escuro da garganta. Dava tudo aquilo que ela lhe pedisse, um carro, uma viagem de paquete ao Japão, um telefone em prata último modelo, um chalé na Parede, um fortim em Vila do Conde, um aeróstato, um pagode na China, um relógio com pêndulo de oiro, uma isbá na Islândia, o que quisesse. Ela, marota e brincona, fez-lhe uma careta feia, deu-lhe um beliscão intratável na ponta do nariz e pôs-se a correr pelas salas vazias do palácio, as saias presas nas mãos, fugindo dele.

Por fim, quando se apanhou na salinha de jantar do rés-do-chão, limpou a mesa de loiças, despiu-se, deitou-se toda nua na mesa, arranjou a franja na testa, libertou o pescoço e os ombros dos longos cabelos cor de mel, espalhou-os em leque pela mesa, puxou lascivamente os braços para trás da nuca e chamou pelo rei, imitando os gritinhos de aflição dum canicho. Quando Carlos surgiu à porta, arfante e desnorteado, deu com aquele espectáculo, na renascentista cela do antigo convento. Grunhiu de surpresa, guinchou de triunfo, sentiu vontade de a apunhalar com os dentes. Fornicou-a ali mesmo, na borda da mesa, aos urros, doido, monstruoso, lembrando-se da orgia que anos antes pintara na vizinha oficina, enquanto as loiças do aparador tremiam. Mexia-lhe à bruta com as manápulas gordas e pesadas nos seios virgens, rosados, pontudos, duros como areia molhada, ao mesmo tempo que ela se desfazia em caldo espesso e quente, mordiscando os lábios e revirando os olhos.

Depois disto nunca mais pensou na viúva Viana de Lima. Aquela Maria Amélia Laredo e Múrcia tornou-se tudo para ele. Instalou-a num espaçoso andar da avenida da Liberdade, onde a passou a visitar de tarde, depois de se libertar dos amigos ou do governo. Ia num coupé civil, sem os emblemas da Casa Real, quase incógnito, com o largo chapéu de palha descaído sobre os olhos, casaco de tecido inglês assertoado, luvas brancas de pele, uma vibrátil bengalinha de cana debaixo do braço, havano malcheiroso entalado entre os dentes.

Estávamos nisto, quando José Luciano apresentou no Parlamento o seu novo governo. Era um governo liberal, que procurava iludir a fama de tabaqueiro e de vendido à alta finança estrangeira. Corriam os derradeiros dias do ano de 1905 e a abertura da Câmara ficou marcada para o fim de Janeiro do ano seguinte. Quando a data chegou, Luciano estava derreado em casa, incapaz de dar um passo, atacado por uma crise de paralisia. Foi obrigado a esperar e a 7 de Fevereiro lá se arrastou para S. Bento, agarrado ao bengalão, num esforço desesperado para apresentar e defender o novo governo. Teve uma recepção violenta, tumultuosa, humilhante. Os republicanos haviam invadido em massa as galerias e davam vivas à República, enquanto nas bancadas alguns dissidentes gritavam contra o governo. Depois nas galerias, entre o povão republicano, surgiu a figura ameaçadora e rubicunda de Alpoim, com o largo peito apertado num jaquetão azul e um lenço de seda ao pescoço.

– Ladrão! Ladrão! Ladrão! – berrou ele com uma voz de cacique transmontano, capaz de rachar paredes, apontando acusadoramente Luciano com o indicador.

Luciano, que não era expansivo nem imediatamente reactivo, enfiou-se e deu por encerrada a sessão. Nos dias seguintes, os tumultos repetiram-se e o chefe dos Progressistas foi ao paço falar com o rei. Levava o seu ar fechado, aquele mesmo que usara dezasseis anos antes, na altura em que se vira a braços com a nota de Salisbury. Estava capaz de pedir um favor constitucional ao rei, dissolver a Câmara e governar em ditadura. O rei, interessado no contrato dos tabacos, ficou de pensar. Acabou por conceder a dissolução do Parlamento, mas hesitante quanto ao partido que devia formar governo nas próximas eleições. Hintze caíra por causa dos tabacos e Luciano embrulhado andava por motivo deles. Arnoso, consciente do dilema em que a política portuguesa se prendera, prometia enigmático e ousado novidades para breve. Quando o rei o interpelou curioso sobre essas mocidades, ele esclareceu.

– É altura para puxar Franco.

De feito, nos últimos tempos, Franco procurara muito Bernardo, dando-lhe a entender que no meio da balbúrdia ingovernável em que a vida política portuguesa se estava a tornar ele seria o homem capaz de fazer a viragem apaziguadora. Tinha com ele um escol de homens novos e afortunados, dispostos a tomar nas mãos o país, administrando-o com ordem e seriedade. Bernardo, muito nostálgico dos ágapes do Tavares e das pachouchadas corajosas de então, converteu-se ao Franquismo e prometeu ao seu chefe recomendá-lo ao rei.

Mas a Carlos continuava inamovível. Parecia-lhe, a seco, impossível a chegada de Franco ao poder. Não saía da sua; um novo político, dissidente ou indepedente, caso quisesse ser governo, precisava do apoio parlamentar dum dos grandes partidos rotativos. Assim acontecera nos momentos críticos que se seguiram ao ultimato dos Ingleses, em que os dois rotativos ficaram presos do mesmo embaraço ou do mesmo descrédito. Nessa altura preciso fora formar governos com independentes, o de João Crisóstemo e o de José Dias, mas sempre com o apoio de Regeneradores e de Progressistas.

– Não há volta a dar-lhe – deduzia o rei.

Entretanto os republicanos, quando perceberam que José Luciano não caíra e a Câmara fechara, assanharam-se. O rei foi o primeiro visado, porque Luciano vivia retirado e fechado, doente e diminuído, no seu palacete da Lapa. Assim, mal o rei aparecia pelo real camarote do São Carlos era um burburinho ensurdecedor de encalacrar um sujeito. A campanha ganhou popularidade e subiu de tom; os bons burgueses da Baixa, lidos em Michelet, já se viam  em cima do rei. Os dissidentes de Alpoim juntaram-se aos republicanos e as ameaças cresceram. Chegavam a comprar os lugares  da plateia por inteiro, para apuparem o rei com vaias gigantescas. Ouviam-se ditos grosseiros, que atingiam pessoalmente o rei e a sua família. Ele temeu não se conter, puxando o revólver do bolso. Era impensável ver o rei aos tiros no teatro, mesmo para o ar, mas ele esteve a ponto de o fazer. Deixou por isso de aparecer e partiu para Espanha, pondo o príncipe herdeiro, então com dezanove anos, como regente. Na sua ausência, a agitação amainou e no regresso, depois de pensar maduramente no caso à distância, estava decidido a chamar de novo Hintze. – É saída brilhante – convencia-se.

Quando Bernardo, malogrado e desiludido, lhe perguntou a razão de tal escolha, ele respondeu jubiloso.

– Vamos acalmar os dissidentes do Alpoim, esvaziando a tormenta dos Republicanos.

Mas Hintze era também um valetudinário. Estava gravemente doente, com uma angina de peito, impossibilitado de fazer o menor esforço físico. Tinha menos quinze anos que Luciano, mas um longo historial de cardíaco. Chegava aos cinquenta e oito anos enfraquecido, sem vida, esquálido, cadavérico, olheirudo e cinzento. Os anos haviam passado por aqueles dois homens e pouco deles deixara; ambos na sua juventude haviam conhecido a benevolência de Loulé, Alves Martins e Fontes mas agora revelavam-se quase sem prestadio, qualquer deles enfermiço, sem tecto e sem naturais sucessores. Ao lado do estado crítico da dinastia, muito afectada no seu encanto desde 1890, a torrente política da Regeneração, outrora tão vigorosa e cachoante, mirrava, seca, magriz, descorada e sem futuro. Era tudo dissidência ou apagamento.

Vieram as eleições de Abril para dar a maioria ao novo governo. Hintze obteve uma confortável maioria de cento e doze lugares, contra alguns poucos da oposição. Franco conseguiu negociar sete deputados com Luciano, numa aliança liberal, em que Francisco Veiga Beirão aparecia como o principal interessado, e Hintze, temendo o furacão das ruas, fez eleger em Lisboa, com a ajuda dos seus maiorais, Bernardino Machado pelos Republicanos.

Ainda assim estes mostraram-se  descontentes. A movimentação nas ruas era intensa, a atmosfera dos jornais incendiária, a opinião pública virulentamente anti-monárquica. O país entrava num ciclo insurreccional de que as assuadas do São Carlos de Fevereiro e Março haviam sido apenas um primeiro e despiciendo sinal. No princípio de Abril, no Tejo, estalara um motim grave entre os marinheiros do cruzador D. Carlos. Os marujos, descontentes com as condições de vida a bordo, tentaram apoderar-se do barco. Dizia-se, sem se saber ao certo, que haviam tentado virá-lo contra o palácio das Necessidades. A revolta fora debelada, o cruzador recuperado, os amotinados encarcerados. Mas de tudo aquilo ficara um sabor amargo,  um pressentimento tétrico de outras tragédias parecidas e futuras. O pobre infante Manuel, com dezasseis anos, muito tímido e introvertido, testa franjada de cabelo, no momento em que tomara conhecimento das intenções da marujada ficara perplexo. Duas gotas geladas desceram pelo seu rosto triste de menina. Maria Pia, por sua vez, quando soubera da aventura, pegara no seu regador e aos soluços lá descera aos seus jardins solitários e abandonados para regar de lágrimas as suas velhas e afogadas flores.

– Ah, que c’est beau voir fleurir la mort – cantava ela de olhos esbugalhados, faces ossudas, lábios de papel, sapatos finos enlameados e vestido manchado de água.

De seguida, cinco dias depois, novo levantamento rebentara no couraçado Vasco da Gama. A história repetira-se e os amotinados acabaram atrás das grades. Desta vez porém chegara a haver tiros de peça e descargas no Tejo.

Agora, depois das eleições, os republicanos sentiam-se suficientemente fortes para puxar a corda, forçando a agitação e recusando o solitário lugar que Hintze lhes dava na Câmara. Quando Bernardino chegou à gare ferroviária do Rossio, vindo do norte, tinha à sua espera uma multidão formidável. Estavam lá os crocodilos da Baixa lisboeta, muito cientes do seu histórico papel de carcereiros de reis, os hipopótamos da rua da Palma e de Arroios, comerciais e grotescos, e uma enchente de bicharada menor, chegada das alfurjas da Graça, da Bela Vista, da Penha de França e por aí fora até  Sacavém ou Alhandra. Era muita passarada de bico adunco, muito lagarto de Sol, muito rafeiro de rua, muito chacal de estepe ou de esteiro.

Bernardino, um tribuno de figura desempoeirada, bigodaça vassoiruda, verbo elegante e vibrante, subiu aos ombros de dois grossos correligionários e declarou ali mesmo, de porta-voz na mão, que recusava aceitar o lugar em S. Bento e que a República com arregimentações gigantescas como aquela não tardava aí. Uma explosão de alegria rebentou na multidão. As mangas de farroupilhas não demoraram a disparar os pesados paralelipípedos da calçada contra a polícia. Explodiu de imediato uma guerra que tomou conta dos Restauradores, do Rossio, das ruas da Baixa, do Terreiro do Paço e se generalizou ao Carmo e ao Chiado, com tentativas de assalto a esquadras e a quartéis. O balanço final, depois de horas de escaramuças, foi dramático, centenas de presos e mais de sete dezenas de feridos internados nos hospitais. Estavam de regresso as marchas patrióticas de 1890, com enchentes que multiplicavam por dois ou por três as desses tempos.

Dois dias depois, quase desprevenida, mais interessada nos fotógrafos que nas manifestações republicanas, a rainha foi ao Campo Pequeno assistir a uma corrida de toiros. Herdava da mãe o gosto desses espectáculos viris e sangrentos. Era a abertura da temporada e ela estava ansiosa por mergulhar naquela poeirenta embriaguez de Sol e sangue. Sentou-se com o seu ar de viúva negra no camarote real. A multidão mediu com os olhos a possante e escura figura da rainha; fez-se um silêncio gelado na praça. De repente, do outro lado da arena, surgiu estudadamente, num alto plano, a figura de Afonso Costa. Parou por momentos, como que saudando a praça, com a cabeça quadrada. Via-se-lhe o bigode mefistofélico, os olhos pequeninos e escuros de beirão teimoso, o nariz adunco de cruel açor serrano, as garras encolhidas, ligeiramente escondidas pelas abas das mangas do casaco. Sorriu e por fim acenou para a multidão. A praça, de pé, rompeu numa ovação triunfante e ruidosa, virando propositadamente toda ela costas a Maria Amélia. Foi um real enxovalho, que deixou a rainha sem vontade para os toiros.

– Isto não pode continuar! – exclamou o rei, furioso, quando teve notícia do desdouro.

Há muito que se desinteressara das carnes da mulher, vivendo apartada dela, mas não admitia o mínimo desrespeito para com a figura pública da rainha. Falou com o seu secretário e pela primeira vez mostrou abertura para uma conversa com João Franco, de modo a perceber preto no branco as medidas do caudilho. Ainda se lembrava, com boa impressão, das acções fortes de Franco como ministro do Reino. Hintze, por esta altura, debilitado pelas estafadeiras eleitorais, pressionado pelo clima de insubordinação que se vivia em Lisboa, cansado das noites mal dormidas, sofreu uma síncope. Recuperou mas ficou abalado. Diante do caso, o rei não hesitou e mandou chamar ao paço João Franco. Fiado na aliança liberal, que Regeneradores-Liberais e Progressistas haviam estabelecido para as eleições de Abril, o rei não esteve sequer para apalpar terreno. Catapultou-o de imediato para o cimo.

– Entende-te para formares governo com o Luciano de Castro.

Franco inchou. Já desesperava de chegar ao cume. A dissidência de 1900, a formação do partido Regenerador-Liberal em 1903, as brilhantes campanhas de mobilização popular de 1904, a formação dum escol disposto a financiar a sua acção governativa, não se haviam traduzido em nada de sério. Nas eleições de Fevereiro de 1905 obtivera apenas três deputados por especial favor de Luciano. Ficara exasperado, com encarniçadas crises de raiva e desesperação. Chegara a gritar, disfónico, sem mão, em casa, com a família por perto, os olhos abertos, a boca azeda, o pensamento desmarcado, fazendo figura de doido. Era bem o produto da terra fervente e abissal. Sentia-se abandonado; via as suas ambições fugirem; perdia-se num vórtice de conjecturas aflitivas. Depois recuperara o sangue frio e juntara-se aos Republicanos e a Alpoim na campanha contra os tabacos, esperando mostrar ao rei um buraco fundo, sem saída. Chegara então o dilema de Fevereiro de 1906, que Carlos resolvera chamando de novo Hintze ao governo e dando a viver ao pequeno homem do Fundão as piores aflições da sua vida.

Agora, enquanto lá fora lavrava a insurreição contra a monarquia, as palavras do rei abriam no muro em que o haviam emparedado uma fonte de água límpida e pura, que lhe distendia os músculos tensos da face, abrindo nela a clareira benevolente dum sorriso. Parecia uma criança exaltada, embriagadamente encantada, com um brinquedo nunca visto nem sonhado nas mãos.

Percebeu o que se pedia dele: ordem e administração, ordem que limpasse as ruas e administração que parecesse ajuizada. Ele estava por tudo; até mudava o lugar dos oceanos se preciso fosse. O que se queria era no lugar cimeiro do poder. Era o sonho de toda uma vida que ali lhe vinha à mão e por nada o deitaria a perder. A partir dali tudo era seu. Pensou no estema da sua genealogia. Que diriam os antepassados recuados, labrostas e ignaros, duros e resistentes como a pedra da Gardunha natal, se ainda o pudessem ver no pico da sua glória, vestido de chefe de Estado, bicorne na cabeça, peito estrelado de insígnias, recebendo tratamento familiar do rei? Sentiu-se cheio de si e da sua vida de combativo homem público. Pensou no pai, vivo este ainda, e no orgulho que poria no seu filho. Os castanheiros da sua terra não eram mais rijos nem mais teimosos nas suas aspirações do que ele. Olhou-se ao espelho, enquanto saboreava a vitória. Quem lhe visse o pulso lingrinhas e a cara magrizela não lhe atingia a rijeza colossal da alma, pensou ele.

Quis de imediato apresentar trabalho. Apressou-se a levar a julgamento os amotinados de Abril, pedindo castigos severos. Um grande atentado em Madrid, a 31 de Maio, contra Afonso XIII, no momento do seu casamento, deu ocasião para justificar asperezas. A carruagem do rei voara desfeita em mil pedaços e vinte pessoas perderam a vida no atentado. O rei escapara por milagre, atingido apenas por estilhaços insignificantes. Também Luís Filipe, o príncipe herdeiro português, escapara por uma unha negra de desaparecer na chacina. O seu faro, lubrificado pelo herói de Chaimite, salvara-o no derradeiro momento. Franco apertou de imediato o direito de manifestação e encheu as ruas com a Guarda. Em paralelo, fez uma política de austeridade financeira, mandando para casa os tarefeiros da função pública, e resolveu a questão dos tabacos, assinando num relâmpago o contrato com a Companhia dos Tabacos.

Levantou de imediato um furacão contra ele, mas captou a simpatia de muitos descontentes que viram naquelas medidas enérgicas a saída para a tibieza em que Hintze e Luciano andavam. No paço, Bernardo estoirou de júbilo.

– O que três governos não puderam, pôde ele em alguns dias.

O rei contentou-se com a prontidão daquela energia. O que no fundo mais desejava é que o deixassem sossegado a tratar da vidinha. A Múrcia de olhos verdes, fosforosos como combustões de jóias, a virgem louca que ele tanto desejara nas récitas do São Carlos e nos relvados de ténis de Cascais, dava-lhe água pela barba. Era uma gata, de unhas afiadas, que nos momentos críticos lhe enterrava, como soberbo bandarilheiro, as agulhas nas costas. Quando a visitava no andar da avenida da Liberdade, ela surgia-lhe toda nua, de soquétes brancos, Franceses, cabelo enrolado no alto da cabeça, imitando um turbante sanscrítico. Era obrigado a devorá-la ali mesmo, no átrio amplo da casa, onde ela instalara um canapé para essas funções.

Caprichava em se fazer possuir das formas mais inusitadas e perigosas. Um dia, em que se vestira de colegial provocante, pedira-lhe para ser penetrada no banco de trás do carro, numa volta de Benfica, a caminho de Mafra; outra, numa noite de insónia, para ser possuída no telhado do andar de Lisboa, debaixo duma chuva torrencial. Outras ainda, quando ele não aparecia, era ela que lhe telefonava depois de tomar banho e com uma voz convulsa, soluçante, lhe falava das magistrais masturbações em que se distraía. Fazia-se sempre acompanhar, mesmo na intimidade, pela sua câmara fotográfica, um pesado estojo, onde arrumava o tripé, o aparelho e as lentes reflectoras sbresselentes. Que excitação, dizia ela ao ouvido do rei, apontado para o conjunto, enquanto revirava lascivamente os olhos. Ele, doidamente enfrenesiado por estas manias, tentava satisfazer aqueles caprichos tresloucados. Não frequentava mesmo outra mulher, o que que lhe sucedia pela primeira vez na vida.

– Esta mulher deu-me a volta  – comentava ele com o Bernardo, algo surpreso. – Chiça, foi preciso esperar quarenta anos por isto.

Mas esta vida de excessos viciosos num diabético tinha o seu preço. Chegou ao Verão de 1906 ofegante e flácido, cada vez mais sedento e desfeito. Tomás, quando percebeu o estado decrépito daquela constituição, preocupou-se com seriedade.

– Se não cuidas de ti, arriscas-te a não chegares ao próximo Verão.

O rei, que sentia o peso da doença no corpo, percebeu o aviso e dispôs-se a seguir o regime que o amigo lhe indicava. Partiu então no dia 16 de Julho para Pedras Salgadas, em Trás-os-Montes, a caminho de Chaves, para fazer um tratamento com águas alcaninas. Para trás deixava a Múrcia grávida e a sonora agitação política de Verão. A Câmara fora dissolvida a 5 de Junho e esperavam-se novas eleições a 16 de Agosto. Franco, nervoso e muito cioso do seu espírito combativo, queria umas eleições disputadas, renhidas, perigosas, onde pusesse toda a sua alma de enérgico lutador. O rei que andasse por lá descansado, que ele se assenhorearia da capital, mostrando ao país o que podia um político ordeiro e sério.

O derradeiro troço da viagem para Pedras Salgadas foi triunfal. À medida que se afastavam do Porto e do litoral e se internavam por Trás-os-Montes, o rei e a sua comitiva eram vitoriados por pequenas multidões de lavradores e de comerciantes. Nas serranias do Alvão, nas penedias da Cabreira ou nos contrafortes da Padrela, desconheciam-se os eventos do Ultimato, as inflamadas proclamações de António José de Almeida, a operação contra o contrato dos tabacos. Tudo por ali era quietação e imobilidade; um sossego despovoado e milenar fazia da região um refúgio seguro, uma Vendeia realista, quase legitimista, sem telefone e sem comboio, no meio dum país tomado pelo furor jacobino e pelo delírio do desenvolvimento.

Nas Pedras Salgadas o rei melhorou. Ficou hospedado no hotel Avelames, um edifício da belle-époque, frequentado pela aristocracia de província, em cujos salões se procurava imitar a vida elegante dos grandes centros termais europeus. As termas, Três Nascentes, ficavam a curta distância do hotel e a vila tinha ainda um casino, um parque e um lago, onde era possível praticar o remo. Com a insistente vigilância de Tomás, o rei cumpriu o seu programa de águas. De resto, comprazeu-se nos espectáculos musicais, jogou muito bridge, atirou aos pombos, fez uma batida ao javali, jogou ténis, pescou trutas e pintou aguarelas, que depois serviram de prémio às vencedoras da regata que o hotel organizou no lago do parque. O rei, nesta sua Vendeia de Trás-os-Montes, adulado como um deus, mostrou-se ainda assim distante e frio. Não se misturava nem dava confiança aos que dele se aproximavam; fechava-se no seu pequeno grupo de íntimos e fazia vida à parte. Para bem dizer, julgava aquilo muito pirista, os homens com casacas de grosso pano e as senhoras com os cabelos cobertos por rendas negras, mãos calosas das frieiras e do trabalho nas eiras, um buço camponês a despontar, escuro e rijo, sobre o lábio superior.

Entretanto em Lisboa e no Porto viviam-se os momentos da primeira grande campanha eleitoral Franquista. Franco era um  colérico num corpo de pigmeu; para substituição das suas fúrias só conhecia a energia do trabalho. Quis por isso uma campanha arriscada, perigosa, bulhenta, ruidosa, mesmo sabendo que tinha à partida as eleições no bolso. Regressou aos seus motivos preferidos de 1903 e 1904, pondo o acento na mobilização popular e na criação duma opinião pública vigilante. A par destes temas de sensibilização civil, insistia nas virtudes sociais das novas técnicas, na previsão dum século mirífico, capaz de realizar as utopias iluministas de antanho.

Correu de novo o país, acompanhado do seu estado-maior, fazendo discursos estrondosos, demagógicos, que misturavam os temas típicos dos partidos liberais com as novas necessidades de ordem e autoridade. Adorava as multidões; percebia que aquilo que distinguia o homem público do passado recente do homem público do século XX era a grande massa de gente. Políticos como Hintze e Luciano, saturando o lastro de Loulé ou de Fontes, viviam fechados nos gabinetes e na corte. Eram a nação em ponto pequeno e isso lhes bastava. Ele, sendo ainda a nação em figura de indivíduo, achava por bem misturar-se à multidão, vivendo com ela uma frenética onda de empatia. Sentia-se talhado para empolgar com o nervo vibrante das suas palavras esses imensos ajuntamentos de gente. Estava desejoso de morder no eleitorado republicano, todo ele urbano e massivo, improvisando comícios nas novas metrópoles operárias e abrindo Centros do seu partido no coração desses bairros. Apelava ao trabalho e ao investimento, aos operários e aos financeiros. Nos seus discursos nunca olvidava uma exaltação furiosa das máquinas, onde se podia já perceber  uma impetuosa nota marinettiana. Nos bairros industriais então gostava de esticar a pastilha. Puxava e envernizava tanto os seus conhecimentos técnicos elementares que até de Júlio Verne se socorria. Este denodo instigava o apoio dos industriais, que cansados da monotonia dos partidos rotativos viam em Franco a novidade certeira para o novo século, além de no recato das suas intenções se mostrar o tufão capaz de obstar ao crescimento das actividades revolucionárias.

Por exemplo, a 2 de Agosto, em plena campanha eleitoral, João Franco, acompanhado dos seus próceres, deslocou-se de carro, em comitiva, a Alcântara, no sopé do cemitério dos Prazeres, na parte ocidental de Lisboa, para abrir uma sede do seu partido e realizar um comício de propaganda. Alcântara era por então o coração da Lisboa operária e um dos viveiros das movimentações revolucionárias. Foi recebido por uma multidão desconfiada e adversa. Dirigiu-se ao Centro e depois de repisar o elogio sobre as virtudes sociais das máquinas improvisou um discurso ambíguo sobre a ordem nas ruas; por um lado ameaçava as peixaradas com a Guarda, por outro dizia-se quieto e paciente, respeitador da liberdade. Foi interrompido pelos gritos irados da multidão, que tomara a decisão de invadir a sala. Insultavam-no, como de resto se tornara hábito sempre que ele passava pelas ilhas operárias dos arredores do Porto ou de Lisboa.

– Bandido! Ladrão! Vai fazer torresmo para África… Não fazes cá falta nenhuma.

Os anarquistas não lhe perdoavam a triste lei de 13 de Fevereiro de 1896, que condenava ao desterro qualquer fabiano avaliado como sectário de Proudhon, Bakunine, Tolstoi ou Kropotkine. Os republicanos, que em 1905 o atraíram para os comícios, estavam agora desavindos e furiosos com ele, acusando-o de traição na questão dos tabacos. Chamavam-lhe pinto calçudo, ironizando com a azeda figura de lingrinhas que o homem da Gardunha mostrava. Ele, disposto a teimar, insistia no seu discurso, cada vez mais exaltado e nervoso. O tumulto cresceu e os Franquistas foram obrigados a regressar aos carros. Quando já estavam dentro dos automóveis choveram pedras e dois ou três populares saltaram para o estribo do automóvel de Franco. Ao lado do chefe de governo estava Alfredo da Silva, o fundador da Companhia União Fabril (CUF), que tinha grandes interesses industriais no bairro e era um dos principais apoiantes de Franco. Puxou duma pistola e fez fogo, pondo em fuga a multidão. Os carros dispararam então para as Fontainhas, pondo-se a salvo da agitação.

O rei, quando soube destes acontecimentos, rejubilou. Também ele gostava dum pouco de aventura. Aquela cena de Franco e de Alfredo da Silva aos tiros diante da multidão dos desordeiros, sem sequer contarem com a protecção da Guarda, agradava-lhe de sobremaneira. Excitado, sorria enlevado nos feitos do seu ministro. Tudo aquilo lhe parecia conforme e de muito proveito; por um lado apimentava a vida política, por outro dava ao governo um excelente motivo para pôr a Guarda na rua e reprimir duramente qualquer desordem. A vida assim corria-lhe bem. Tinha no governo um homem; podia ele distrair-se o seu tanto, que Franco não perdia o pé. Demais, depois de três semanas a águas alcalinas, fazendo a regrada vida dos burgueses em vilegiatura, sentia-se fisicamente em forma. As diarreias e as tonturas haviam passado, o coração estava fortalecido pela mudança e pelos ares puros, respirava fundo e sem arquejos, tinha apetite e, o que mais era, voltavam-lhe as erecções mal pensava nas estupendas coxas de alvo mármore da Múrcia. Estava desejoso de deixar a vida parada de Pedras Salgadas e de regressar ao seio dos seus prazeres.

As eleições foram a 19 de Agosto, com o rei já em Lisboa, remoçado e de óptimo aspecto. A nova Câmara recebeu uma enchente de deputados Franquistas, nada menos que setenta. Era uma preia-mar que enchia de orgulho o chefe, que até aí tudo o que conseguira era merecedor de escárnio e sempre por especial favor de Luciano. Agora, pela primeira vez na história da Regeneração, um partido recém-chegado, marginal aos rotativos, enchia a Câmara de deputados. Era uma revolução que enchia Franco de soberba. Ainda assim, para respeitar os compromissos do entendimento com Luciano, precisava dos quarenta e três deputados Progressistas para governar e fazer maiorias. Hintze ficara com trinta deputados, Alpoim com três e os Republicanos com quatro.

Franco iniciou um estilo de governação em tudo contrário ao que era hábito. Estava na disposição de enfrentar as questões difíceis, resolvendo-as ao primeiro lance, de surpresa. Ansiava ouvir de novo o conde de Arnoso apregoar que aquilo que três governos não podiam, fazia ele no tempo dum relâmpago. Contava assim excitar a atenção daquilo que ele chamava a gente honesta e trabalhadora, criando uma larga onda de simpatia pela sua pessoa e pelas suas medidas, que lhe garantiria depois a possibilidade de governar sozinho, deitando ao lixo o lastro Progressista. Era Franco um eterno insatisfeito, sempre à procura de níveis mais altos de perfeição. Agora parecia-lhe irrisório estar obrigado a governar em coligação com um velho achacadiço como Luciano. Todas as suas vitórias recentes lhe pareceram pobres e mesquinhas, quase nulas, tendo esta obrigação por preço. Não havia na verdade motivos para ensoberbecer; só poderia estar seguro, orgulhoso, calmo, clamando vitória e recebendo loiros, quando sobrepusesse o seu partido a todos os outros. Aí sim, seria ele o novo Fontes do regime; aquele que dobrara o cabo das Tormentas, refundando a Carta no novo século, que se manifestava novel e arrojado em tudo, até no modo de vestir.

Entrou por isso cortante. Em Novembro num golpe de teatro espectacular levou para a Câmara a questão dos adiantamentos de dinheiros públicos ao rei e à família real. Foi a surpresa geral. Os rotativos não queriam acreditar que uma questão tão embaraçosa e intricada, que precisava de pinças para ser tratada, aparecesse assim à luz do dia, com afirmações cruas e ribombantes. Hintze, cada vez mais enfermiço, julgava aquilo uma estratégia homicida; convencia-se que Franco, o animal, queria rebentar de vez com os anteriores partidos do poder e que procurava em desespero os motivos com que estoirar com eles. Para Hintze os adiantamentos eram o pedaço de dinamite que Franco tinha à mão. Boto de entendimento, voraz e ganancioso, não percebia porém que o petardo o ia deixar sem braços. Luciano encolhia os ombros e sorria desinteressado de razões. Convencia-se que aquele estilo impulsivo e rude de fazer política ia dar cabo do governo em dois tempos e que depressa chegaria a sua vez de ser chamado pelo rei para formar governo. E como homem público – o mais antigo do Conselho de Estado – não acalentava mesmo outra expectativa. Franco porém tudo o que desejava era atenção pública, fazendo-se passar por um homem intrépido e inconcusso, que não voltava costas às dificuldades. Reclamava a qualquer preço concentração nele.

Os Republicanos por seu lado, que haviam feito dos adiantamentos o argumento mais valioso das suas últimas campanhas contra a família dos Braganças, aproveitaram a questão para vituperarem o rei nas Cortes com discursos inflamados. As galerias enchiam-se de burgueses ávidos de promoção, vaidosos da boa contabilidade das suas casas comerciais ou das suas empreitadas, sem dívidas nem penhoras, que no fim das sessões, antes de darem vivas à República e acabarem despejados à força, improperavam entre si o chefe de Estado.

– Mal vai o país, meus senhores, quando o rei é um canalha e não tem solvência nos seus negócios.

Um dia, já Novembro ia a caminho do fim, Afonso Costa, deputado Republicano, a propósito da existência das dívidas da Casa Real ao Tesouro Público, reconhecidas ora pelo governo, pareceu entusiasmar-se e fechou o discurso com uma exigência e uma ameaça.

– Pague o rei o que deve e retire-se para sempre do país, para não ter de marchar, em nome da lei, com ordem de detenção, para uma prisão.

Um burburinho de surpresa correu por toda a sala. Seguiu-se o aplauso ruidoso dos restantes representantes dos Republicanos e o apoio tímido dos dissidentes de Alpoim, enquanto rebentava a gritaria desafecta dos Progressistas, dos Franquistas e dos Regeneradores de Hintze. Alguns deputados da maioria chegaram a levantar-se para medir forças com Afonso Costa. O presidente pedia ordem e silêncio, mas o deputado republicano não mostrava intenções de se sentar. No meio da confusão, exclamou com um efeito espectacular garantido, enquanto levantava os olhos negros e falsos para o povo das galerias.

– Por menos crimes do que os cometidos por Carlos de Bragança, rolou no patíbulo, em Paris, a cabeça coroada de Luís XVI.

A sala levantou-se em peso. Eram cerca de cem ou de cento vinte fulanos a berrar injúrias contra o Costa e quatro ou cinco de pé aplaudindo com frenesim. A sessão estava uma barafunda caótica, quando o presidente deu ordem que se aplicasse o regimento penal da Câmara contra o deputado republicano. As galerias retumbaram em vivas a Afonso Costa e à República, sendo de imediato limpas. Os deputados votaram a censura regimental e o presidente ordenou ao advogado republicano que deixasse o edifício das Cortes. Este, teimoso e desafiador, não deu mostras de querer largar o lugar. A seu lado, António José de Almeida e Alexandre Braga gritavam que era obrigação moral da corporação ali reunida abandonar em peso as Cortes. O presidente a braços com a balbúrdia, mandou entrar um oficial e uns tantos soldados de baioneta armada dos Caçadores 5 para meter na rua o renitente e acalmar a assembleia.

Foi então que António José de Almeida subiu a uma cadeira e com gestos apaixonados julgou ver ali uma rasgada oportunidade de revolucionar a vida política portuguesa. Afastou a grenha altiva que lhe caíra para os olhos fogosos e visionários, virou-se para a coluna de soldados que entrava e puxou de toda a sua verve de orador apaixonado e inspirado, atirando com voz de trovão.

– Soldados! Soldados! Com a minha voz e as vossas baionetas, vamos proclamar aqui mesmo a República, vamos fazer uma pátria nova.

Fez-se um silêncio gelado e expectante em toda a sala. Os bisonhos soldados haviam parado no átrio da sala, de espingardas na mão e olhos espantados. O presidente estava paralisado; os deputados aguardavam ansiosos a atitude dos soldados; António José de Almeida continuava de pé na cadeira, numa pose elegante de leão brioso e feroz, os olhos chispando lume e sonho, o peito arfando incerto. Por um momento, todos acreditaram que a monarquia podia acabar ali mesmo, num abrir e fechar de olhos. Com sangue frio e experiência, o oficial deu porém ordens ríspidas para os soldados se adiantarem em direcção aos dois representantes republicanos, expulsando-os da Câmara. A fila obediente avançou e os dois deputados foram sem mais evacuados.

Quando a família real soube deste incidente as opiniões dividiram-se. Maria Pia recordou o sossegado tempo em que havia desembarcado nas águas serenas de Portugal. A República era uma quimera em que ninguém se atrevia a falar, a não ser por desfastio ou por brincadeira. Os próprios Republicanos não acreditavam senão na Carta. Lembrou o marido e vislumbrou o seu reinado como um raio de luz. Ainda se recordava de Ramalho lhe apontar a casaca coçada como razão para republicanamente lhe preferir o príncipe herdeiro. Irrisão, pensou ela. Não gostava do estilo alevantado de Franco, no qual via o contrário da orientação cautelosa de Lipipi. Atormentava-se cada vez mais, carregada de pressentimentos negros e funestos. Restava-lhe no meio da sua dor moral e do seu pavor um jardim e um regador de lata. Afonso Henriques, o delfim da rainha velha, estava estragado pela estúrdia, quase careca e sem dentes. Para ele tanto lhe fazia Luciano, Hintze ou Franco; tudo o que o preocupava era mandar vir de Paris o último modelo de carro com motor de explosão e aparecer com ele no Rossio aos gritos tresloucados. Não passava dum pobre diabo, um estoira-vergas sem utilidade, a quem o destino se encarregou de poupar o castigo de se sentar no trono. Ainda assim chegou a príncipe herdeiro. Que comédia a vida, quando um frascário como Afonso Henriques chega a jurado herdeiro dum país!

Maria Amélia – mais viúva e mais viril –  detestava Franco, não sei se por ver nele um videirinho irritante, se para contrariar em alguma parcela o marido.O seu ódio fazia escola no paço junto da sogra, Maria Pia, muito dada agora à nora francesa, depois dela lhe haver perdoado as irreverências maldosas do tempo de Luís. Finalmente, o príncipe herdeiro, depois que se vira metido em Madrid na brutal explosão da carruagem de Afonso XIII, andava sempre de pistola no bolso, palpando-lhe o cabo de madrepérola de quando em quando. Era um lobito de olho azul, fresco e namorador, assomadiço como o pai, sempre pronto para uma rosnadela, mas muito dado às opiniões da mãe.

Restava o rei, que encarava aquelas cenas desbragadas das Cortes com bonomia e desinteresse. Os ditos do Costa e do Almeida, quando cotejados com o que vivera nos dias do levantamento patriótico de 1890, eram negócio pequeno. A prosápia vinha ao de cima nestes momentos e varria qualquer oposição ou desistência. Franco era para ele o início duma revolução feita a partir de cima, destinada a contrariar a revolução feita de baixo. Desde as insurreições da marujada no princípio do ano de 1906, a que logo se haviam seguido as assuadas do São Carlos e do Campo Pequeno, que ele tomara a decisão de apoiar um governo forte, que tivesse como direcção a limpeza das ruas e o equilíbrio das contas. Contava assim cativar para a monarquia os descontentes que criticavam o corpo do regime ou por dissipador ou por timorato.

Demais, o rei desejava entregar o governo a um homem de pulso firme, para se dedicar sem preocupações aos afazeres pessoais. Continuava com as buscas oceanográficas e acabava de promover a participação de Portugal na Exposição Internacional de Milão, onde os resultados das suas pesquisas receberam aplausos e prémios. Também dedicava à pintura e à ornitologia uma parte do seu vagar; expunha com regularidade os trabalhos saídos do seu pincel e preparara para publicação o segundo fascículo de Aves de Portugal. E havia a Múrcia, a doida Múrcia dos olhos fosforosos, a virgem louca que lhe prendera corpo e alma em laços de seda. Que haste tão tenra e tão apetitosa! Continuava a visitá-la no espaçoso apartamento da avenida, ensaiando novos disfarces para com circunspecção passar despercebido. Adorava ir buscá-la de carro, sozinho, com o seu boné de pala, sem se fazer notado, e arrancar depois com ela, no meio duma nuvem de poeira, para Sintra ou para Mafra, numa correria doida. Ela engravidara na Primavera e estava na disposição de ter a criança. Carlos, contrariado a princípio, indicara um desmancho, mas quando a Múrcia se mostrara chocada por tal sugestão voltara atrás. No regresso de Trás-os-Montes, vigoroso e tonificado, desejoso das extravagâncias daquela criança, carente dos seus beijos, prometera-lhe mesmo o impensável, reconhecer o filho como seu.

O ano de 1907 entrou indeciso e vário.  Choveu e fez Sol, trovejou e clareou numa travessura de indefinição e incerteza. Houvera no final do ano, ainda em consequência do incidente parlamentar de Novembro, tumultos graves no Porto. Eram irreverências previsíveis, que não chegavam para incomodar o governo, que vivia no hábito de tumultos permanentes. Franco em contrapartida tratou de arranjar ao rei recepções calorosas, distribuindo bilhetes nos centros do seu partido para as récitas do São Carlos. No Parlamento o governo surpreendia sempre. Avançara com a discussão duma nova lei de imprensa, que, visando atenuar as críticas desbocadas à família real, se estava a tornar no argumento forte contra o governo nos meios da oposição anti-monárquica. Desapareciam com ela, só em Lisboa, meia dúzia de jornais. Franco porém não desistia do seu propósito de limpar a atmosfera dos elementos ruins que segundo ele lhe introduziam uma negra e tumultuosa desordem.

Por isso, quando nos primeiros dias de Março rebentou uma protesto na academia de Coimbra, tendo por motivo a reprovação num doutoramento em Direito dum candidato republicano, o presidente do ministério não hesitou em permitir meios repressivos que fizessem figura de exemplares. Os caudilhos foram isolados, aprisionados e processados. Esta ferocidade enervou a juventude que viu no poder académico – cuja depedência do governo ninguém se preocupou em esconder – um déspota que não admitia controvérsia. Como resposta os estudantes decidiram manter o protesto, que rapidamente alastrou a todas as escolas superiores do país, paralisando o ensino universitário e ganhando trejeito de motim espontâneo. Os estudantes acastelavam-se nas escolas, impediam os professores de aceder às aulas, enfrentavam a polícia em sangrentas batalhas de pedra e bastão. Em casa, lendo as páginas soltas da revolução francesa que falavam da Bastilha, da Convenção ou do cadafalso por onde rolara a cabeça dum Bourbon, os moços estonteavam. Também eles se mostravam alvoroçados por dar o seu empurrão no derrube dos Braganças. As escolas normais e secundárias, atraídas pelo colorido do protesto, contaminadas pela agitação anti-monárquica, seguiram as congéneres superiores e em pouco tempo as ruas estavam cheias de estudantes exaltados, gritando palavras contra o governo e a monarquia. O movimento académico de 1907 foi assim o antecedente dos protestos estudantis em Portugal ao longo do século XX. É razão bastante para lhe prestar aqui a minha homenagem.

No Parlamento estes acontecimentos tiveram o efeito de matéria explosiva. Os Republicanos barafustavam contra o governo e procuravam adicionar ao seu rico capital político aquele inesperado e tão vasto protesto. A oposição de Hintze, entalada entre a obrigação de contestar o governo e a necessidade de lhe prestar apoio num caso crítico de generalizada desobediência civil, preferiu inclinar-se para uma política de interpelação agressiva. Hintze não perdoava a dissidência de Franco e os amargos que este lhe dera ao longo dos anos. Via-se acabado, a caminho do fim, exausto, incapaz de dar um passo ou de aguentar o fio dum discurso, muito por culpa do antigo correligionário. Franco fizera-lhe a vida uma aflição e deixara-o vezes sem conta, com as suas intempestivas saídas e traições, descoroçoado e lívido. Hintze era agora incapaz dum gesto conciliatório ou duma condescendente aproximação.

– O animal não tem perdão. Não sou hipócrita – justificava-se diante dos baronetes do partido, quando estes, alarmados com o tom da questão académica, lhe falavam em solidariedade com o governo.

E fiado neste princípio, mostrava a Franco o que lhe restava das garras antigas. Não era muito, mas ainda assim com a sua hoste de trinta homens fazia mossa. Para agravar a barafunda, Luciano, atento aos jogos que não se viam do proscénio, desconfiado de tudo e de todos, fazia uma cautelosa política de apoio ao aliado, que mais parecia por vezes obstrução velada que aberta e recta cooperação.

No fundo Franco encontrava-se sozinho com os seus setenta deputados, sem uma maioria absoluta que lhe permitisse governar e resolver as duas questões quentes que o governo trouxera a campo, as contas da Casa Real com o Tesouro Público e a nova lei de imprensa. A que juntava agora a intempérie provocada pelo furacão de Março, em Coimbra. O clima em que se via envolvido na Câmara quando farejava saída para a questão académica, dava-lhe a entender que caso decidisse levar à Câmara uma solução para os adiantamentos ou a nova lei de imprensa se arriscava a encontrar pela frente o entupimento estudado de Luciano. Desesperado, num colérico acesso de desânimo, chegou a pensar resignar, mas depois, ainda mais deprimido com a antevisão do desfecho que o esperava, preferiu a luta, aproveitando o revés para pedir uma grande vitória. Já que Luciano o embaraçava com duplicidades, via chegada a altura de se libertar dele, içando-se solitário ao fastígio ou perdendo tudo de vez. Mas o seu espírito combativo e bravatão não admitia ruínas; já se via o novo Fontes do sistema, sobranceiro e frio como o outro, mas desta vez mais aguererido. No fundo tomava-se por um Fontes traçado de Pombal, capaz de assegurar a este rei, no quadro duma sedição vasta, o que o outro certificara ao pai e ao tio, a estabilidade da monarquia.

Jogou tudo por tudo no assunto. Primeiro, a 11 de Abril, aproveitando o período de três meses de funcionamento do Parlamento, tempo mínimo que definia uma sessão parlamentar, pediu ao rei o seu fecho regular. Chamou-lhe um expediente, não uma solução. Nem orçamento, nem leis haviam sido votadas. Depois, com as Câmaras fechadas, ensaiou uma remodelação do governo, exigindo desta vez três ministros aos Progressistas. Luciano, quando em Maio de 1906 Franco formara o primeiro governo da Concentração Liberal, evitara comprometer-se no ministério, à luz das suas anteriores obrigações na questão dos tabacos. Desta vez, o chefe do governo estava certo que Luciano, vendo-o com as Câmaras fechadas, debilitado pela agitação estudantil que roía as ruas e com as leis à espera de discussão, ainda com mais determinação se escusaria a entrar no governo. Assim de feito aconteceu. Os Progressistas com desculpas leves recusaram entrar na remodelação do ministério.

Franco subiu a parada. Apresentou-se no paço, ao rei, como uma vítima condenada ao açougue. Não tinha meios para governar e estava no centro duma conspiração desonesta; era um peão dos obscuros interesses dos seus aliados. Demais, tinha um programa de governação, que o rei bem conhecia, direccionado para a ordem das ruas e a transparência das contas, pelo qual seguia disposto a trabalhar. Explicou que a Concentração Liberal se não valia para formar governos, muito em breve também não serviria para aprovar leis. Assim sendo, se o paço queria que ele governasse, precisava de lhe dar os meios.

– Só em ditadura terei condições de governar – inferiu ele, carregando de vontade a estudada postura de beirão determinado.

O rei recebeu a exigência como um choque. Mas ainda assim, depois da agitação das ruas e das manobras dos Progressistas para se afastarem, era um abalo esperado. Já noutras épocas de excepção o rei puxara da sua prerrogativa constitucional, dando poderes excepcionais ao governo para legislar com as Cortes dissolvidas. Fora isso que acontecera por exemplo no governo Regenerador de Serpa Pimentel, logo depois das primeiras grandes marchas contra a Inglaterra, com os decretos de Lopo Vaz estreitando a liberdade de imprensa e dificultando o direito de reunião, publicados em ditadura, com as Cortes dissolvidas pelo rei. E outros casos semelhantes, ao longo do reinado, se haviam seguido. Era debaixo dessa mesma regalia que Franco desejava agora governar, sobretudo para resolver os adiantamentos, a nova lei de imprensa e a questão académica.

Carlos aconselhou-se com Arnoso. Bernardo estava entusiasta da governação de Franco; convencia-se que o homem do Fundão tinha um vasto futuro e que estava na política não por considerações mesquinhas mas por generosidade real para com o país e suas instituições.

– Este homem tem com ele a nata do reino. Do seu governo estável, sem as armadilhas do Parlamento, que buscam retardar-lhe o passo, se avançará para uma estabilidade nova.

Concedeu o rei ao novo governo a dissolução das Cortes. Estávamos a 10 de Maio de 1907. Justificou o rei a ditadura – que tempos antes, na questão dos tabacos, recusara a Hintze – com  o facto de tudo se haver tentado até à última para se governar com as Câmaras. Diante da impossibilidade de assim se fazer, optava-se pela ditadura, premiando a boa direcção do governo. Mas se era este na verdade o discurso para fora, o rei para dentro, de si para si, adiantava outros argumentos, mais reles e grosseiros. Por um lado a agitação das ruas, persistindo intransigente, precisava de pulso firme; por outro, os seus afazeres amorosos, muito activos nesta época com o recente nascimento da filha da Múrcia, baptizada com o nome de Maria Pia de Saxe Coburgo Laredo de Bragança, pediam-lhe vagar e prudência. Nada mais adverso a essa discrição da sua pessoa que um Parlamento indisciplinado e ruidoso.

A reacção geral à dissolução das Cortes foi porém brutal. A resistência começou logo dentro do próprio paço. Maria Pia atormentou-se, quando soube os velhos políticos do tempo do marido substituídos por uma novidade tão incerta como Franco; Maria Amélia detestou mais o homem do Fundão e passou a entender-se com os chefes dos rotativos. Também estes se sentiram defraudados. Luciano recebeu a notícia como uma afronta pessoal. Puxou dos meios legais para lhe resistir, mas avaliava o tempo o seu melhor aliado. Franco havia de cair, desse por onde desse. E depois disso lá estaria ele para oferecer os serviços ao paço. Franco desabaria por si, pela impulsividade das suas acções, pela dificuldade que tinha em comprender a vida pública constitucional. O perigo não andava nele mas nos outros, nos dissidentes, que aguardavam ocasião de o rasteirar e substituir. Hintze, por seu lado, sempre ressabiado, não queria acreditar na sorte ingente que caíra no prato do rival.

– O animal! O tromba de cerdo! Ficou com tudo nas mãos – exclamou ele, quando soube da dissolução das Câmaras.

Já via Franco como chefe do governo por muitos anos. Pior do que isso, percebia que o corolário inevitável desse estatuto era o afundamento dos grandes partidos rotativos, em particular do Regenerador. Estava perplexo com a ascensão do concorrente. Perdera a corrida ao lugar de Serpa Pimentel, mas tirava agora em toda a extensão uma desforra de peso. Envergonhou-se e sentiu que não sobrevivia àquele escândalo. E não resistiu. Morreu poucas semanas depois, num dia quente de Verão, num cortejo fúnebre, de colapso do coração.

Os Republicanos por seu lado retomaram a campanha de rua contra o rei, que acumulou novo e ultrajante epíteto, o de tirano. Carlos era agora o traidor, que havia dado com uma vénia servil a África portuguesa aos Ingleses, o ladrão, cuja casa estava endividada ao Tesouro Público, e o déspota, que entregava o poder a um partido que legislava a seco, por decreto, sem precisar de escrutar intenções e leis junto da nação e dos seus representantes. Era injúria de mais em saco tão pequeno; só por milagre o rei podia sair ileso do apertado triângulo de demolição em que os seus actos o apertavam. Por todo o lado se repetia com  febre e exaltação a célebre tirada parlamentar de Costa.

– Traidor, ladrão e déspota. Por muito menos, rolou em Paris a cabeça de Luís XVI.

Reapareceram em grande as operações de difamação pública do rei. Quando conseguiam lugares no São Carlos, no teatro ou no hipódromo, os Republicanos presenteavam-no com apupadas rasteiras. Nas ruas os burgueses da Baixa voltavam-lhe descaradamente as costas, concorrendo uns com os outros nestes ostensivos gestos de má-criação. O descrédito do rei e da família real era absoluto. Não havia maltrapilho nas ruas de Lisboa que não enchesse a barriga de riso à sua conta nem gaiato que não contasse sobre ele a sua anedota porca. Caso alguém se lembrasse de o levar ao matadouro, como na vulgarizada litografia de Leal da Câmara, ninguém avaliaria a situação como diferente daquilo que se esperava que sucedesse a semelhante amostra.

Franco também não era esquecido pelos Republicanos. Uma violenta campanha nos jornais e nas ruas estoirou contra ele; contava ainda com a cumplicidade dos dois partidos rotativos, feridos pela meteórica ascenção à chefia do governo do homem do Fundão. Tanto Hintze como Luciano, para já não falar em Alpoim, estavam muito empenhados na impugnação pública da sua figura. Também o movimento operário e os anarquistas não olvidavam a lei de 13 de Fevereiro de 1896 e se juntavam ao caudal da contenda. Todos tinham contas a ajustar com ele. Franco era acusado de enganar o rei com promessas quiméricas e irrealizáveis, de fechar as Câmaras sem sequer ouvir ou reunir o Conselho de Estado, de se recusar a marcar novas eleições, interessado que andava numa longa e insólita ditadura.

Ele calava-se, ciente de que as suas palavras ainda mais excitariam os opositores. Procurava virar costas aos acusadores, não lhes respondendo. Quando o fazia recorria porém a sibilinas e estudadas metáforas agrícolas, que lhe serviam outrossim para explicar aos adeptos a necessidade de governar transitoriamente sem o Parlamento. Era o seu lado rústico, de provinciano à conquista da capital, de mistura com o que nele havia de estilisticamente afectado ou de grosseiramente retórico.

– Depois da colheita a terra seca e perde os sucos criadores; só depois de demorado poisio ela adquire de novo a vitalidade. Assim a vida parlamentar portuguesa. Chegámos ao fim dum ciclo; estamos agora no ponto de exaustão das nossas forças. Precisamos de descanso. A ditadura é o repouso que o nosso organismo público reclama. Renovaremos nesse prazo as fibras dos nossos orgãos. Regressando depois à normalidade, a nossa existência parlamentar, qual corpo tranquilo, livre de fadigas e de receios, surpreenderá pela novidade e pelo vigor.

Quando se soube que Franco estava de novo na estrada para chamar os enxames de povo que eram o seu galardão, desta vez para justificar o carácter imprescindível da ditadura, os Republicanos decidiram fazer-lhe uma espera. Em 18 de Junho, Franco regressava do Porto, onde fora no dia anterior participar num banquete de apoiantes; dezenas de milhares de pessoas concentraram-se na Baixa para berrarem o seu desagrado. Quando o chefe do governo chegou à gare do Rossio, a emboscada degenerou num motim ainda mais vasto e sério do que aquele que acontecera em Maio do ano anterior, quando Bernardino Machado chegara a Lisboa. Houve tiros de ambos os lados e dois mortos. A polícia sofreu cerca de cinquenta feridos, um deles grave, com bala, e fez centenas de prisioneiros. Começavam a correr boatos de que estava em preparação uma grande revolução contra a coroa e o governo, em que entrariam corpos militares e civis armados. A Maçonaria e a Carbonária, conciliábulos escondidos, sistemas de extensa ramificação nas duas grandes cidades do litoral, achavam-se a funcionar como células fechadas onde se ordenava o levantamento.

Franco indiferente a toda esta onda de atoardas e mal-estar preparava-se para resolver por decreto as duas questões quentes anteriores. Sabia que a impopularidade dos dois partidos rotativos era grande. Contava com ela para se abrigar da chuva e seguir viagem. Estava ainda convencido que entre as hostes dos Republicanos, tirante uma mole informe de povo pobre e radical, que por nada renegaria a revolução armada e a queda do rei, estava uma grossa franja de empresários e comerciantes, que ele julgava susceptível de se reconciliar com a monarquia. Em Julho fez sair o decreto das novas regras da imprensa e logo pensou na forma de regularizar as contas da Casa Real. Passou o Verão a trabalhar no caso, fazendo com astúcia contas e inventando engenhosas compensações, e no fim de Agosto publicou o decreto sobre os adiantamentos com a pronta assinatura do rei. Saldavam-se com ele as dívidas do rei ao Tesouro Público e garantia-se de futuro, através do aumento da Lista Civil e do compromisso do Estado em assegurar certas despesas da Casa Real, o equilíbrio das suas contas.

Os dois decretos, mas sobretudo o segundo, que liquidava numa penada as dívidas da Casa Real, sem que o assunto houvesse saído sequer das mãos de Franco e do rei, vascolejaram mais a exaltada opinião pública. O rei era tirano em proveito próprio e fazia o que nenhum cidadão se podia permitir, saldava as suas dívidas com a força das suas prerrogativas. Regressaram em força os clamores duma revolução. Apelava-se de novo ao levantamento dos soldados e dos oficiais nos quartéis de Lisboa como acontecera outrora, no tempo em que Barjona cozinhara em Londres o primeiro tratado com a Inglaterra. As partes soltas do movimento, mais radicais e apaixonadas, sem obediências partidárias ou espartilhos organizativos, exigiam distribuição imediata de armamento aos civis. Os anarquistas estudavam a possibilidade de atentados, davam indicações para a fabricação de bombas caseiras e outro armamento artesanal, criavam arsenais escondidos e privados.

A 6 de Agosto, quando Franco ultimava o decreto dos adiantamentos, rebentou uma formidável explosão num rés-do-chão da rua de Santo António, à Estrela, em Lisboa. Acabavam de soar no carrilhão da vizinha basílica as badaladas sonoras das nove horas da manhã e logo se percebeu que se tratava duma potente rebentação de dinamite. A polícia, quando chegou ao local, deu com um espectáculo pavoroso. Três homens, estropiados, assarapantados, com as roupas desfeitas, escorriam sangue, à volta de bombas de fabrico artesanal. Um deles ficara sem uma mão; com a que lhe restava tentava a custo, através do ventre rebentado, conter o volume das tripas, que, livres de pressão, insistiam em espalhar-se pelo colo. Outro, que também perdera uma mão, levava a que lhe ficara ao buraco vazio do olho; ainda se lhe via a gelatina branca da retina a escorrer desfeita pela cara. O terceiro tinha a cara escaqueirada, com os maxilares à mostra e o peito com um rombo. Um quarto, em melhores condições físicas, mas quase surdo do estrondo, andava assustado na rua à procura de fugir. Os homens foram presos e no conhecimento de todos ficou que uma parte de Lisboa se entregava à fabricação de armamento clandestino.

O rei apercebia-se muito à superfície destes acontecimentos. A Múrcia ocupara-lhe parcela importante dessa Primavera. A criança nascera em Março e ele, doidarrão e apaixonado, cumprira o que lhe prometera: reconhecera-a como sua. A Múrcia, enternecida com o gesto, prometera de si para si compensá-lo com momentos assombrosos. Caprichara depois nas fantasias e no prazer. O parto não a desfigurara, antes lhe acentuara a volúpia, amadurecendo-lhe as formas cheias e macias. Ele atravessara a crise política de Abril sufocado pelos braços da amante e chegara ao Verão outra vez esgotado, privado de forças, sem fôlego, com uma hiperglicemia gravíssima. Tomás, arrancando-o de novo à desgastante vida que ele fazia por Lisboa, levara-o para as Pedras Salgadas, num rigoroso regime de águas alcalinas e dieta alimentar. Foi lá, no hotel Avelames, que recebeu a notícia da explosão em Lisboa. Limitou-se a encolher os ombros e a articular três palavras de indiferença para o irmão, que aparecera uns dias antes por lá, montado num carro, com um amigo tão estouvado como ele, depois duma doida incursão pelas estradas do país.

– Coisa de anarquistas…

E ficou-se por aí. Não era hábito do paço comentar com pormenor atentados e muito menos a fabricação falhada de bombas. O tio morrera com um tiro e ele não tivera sequer em privado uma palavra para o assunto. Para bem dizer o sangue-frio que mostrava diante das catástrofes das casas reais europeias era o valor que se dispunha a pagar pelas regalias duma vida de excepção. Não regateava o preço e punha nessa aceitação o seu orgulho viril. Foi esse o seu heroísmo no meio de muito erro e dissolução. Demais, como acontecera no ano transacto, um mês depois de começar o tratamento estava com um óptimo aspecto, cheio de vontade de se despedir de Trás-os-Montes e de regressar a Lisboa.

Franco, depois de despachar os adiantamentos, tratou de fazer uma reforma administrativa que lhe permitisse ganhar eleições. Faltavam-lhe os meios de fazer uma reforma eleitoral ao modo de Hintze e de Luciano. Essas reformas, que permitiam depois aos dois partidos dispor dos lugares na Câmara dos deputados, tinham por base as Câmaras Municipais e as Juntas Gerais de Distrito; ora, o Franquismo não tinha expressão local, fora dalguns poucos lugares. Para ganhar eleições, sem necessitar dos rotativos, Franco precisava assim de dissolver as Câmaras Municipais e as Juntas, substituindo os seus elencos por comissões da sua confiança, nomeadas pelos governadores civis. Só assim poderia aspirar a governar sem os partidos antigos, formando um novo e grande partido. Faltava-lhe ainda adaptar a Carta Constituicional, de modo a que a Câmara dos Pares pudesse integrar, além dos pares por direito próprio, pares nomeados pelo rei sem número fixo. Valia até aí a regra dos pares nomeados com número fixo, o que fazia que a Câmara dos Pares atingira o pleno, dividindo-se entre Progressistas e Regeneradores. Necessário era agora preenchê-la com um estrato novo, o do Franquismo; daí a emenda constitucional.

Tudo ele tratou até ao fim de Dezembro. Trabalhou afincadamente em Outubro e Novembro na reforma da Carta e na dissolução das Câmaras e das Juntas. No início de Dezembro substituiu Câmaras e Juntas por comissões administrativas. Era a sua reforma eleitoral, a sua ignóbil porcaria; com ela garantia a vitória nas próximas eleições e a esmagadora derrota dos seus rivais. Uns dias depois chegou a emenda na Carta, permitindo a renovação da Câmara dos pares. Só faltava mesmo a Franco marcar a data das eleições, esperar tranquilamente e saborear depois a vitória. Marcou então a 24 de Dezembro as eleições para o dia 5 de Abril de 1908 e aguardou. Nunca como nesse momento se sentiu o novo Fontes da monarquia constitucional portuguesa; convencia-se que, em torno da sua figura e das suas reformas, um novo e duradouro equilíbrio estava para chegar ao regime da Carta. Bastava esperar três curtos meses.

Coitado do João Franco. Pensava-se o Fontes – superior, desdenhoso, dominador – mas a História, traiçoeira e imprevisível, decidia-se antes por um novo Cabral, colérico e desprezado. O que aí vinha era um holocausto, um banho de sangue, o fim do regime, não a renovada estabilidade das suas instituições e a regular continuidade das suas gerações.

O rei apoiava as medidas do seu ministro com a jactância que punha em tudo, e muito em especial na política, que era para ele a suprema arte do tédio. Encarava as últimas alterações como uma necessidade, ainda que com a displicência de sempre.  Sabia que se não fossem estas, outras chegariam, que nem sequer lhe pediriam autorização para entrarem. Era o que ele chamava a revolução de seda, por contraste com a do cotim dos farroupilhas. Estava de coração – como a sua avó sem vacilação fizera ao Costa Cabral – no contubérnio com Franco. Partilhava com este a ideia que bastava uma estação para os negócios públicos em Portugal entrarem numa linha direita,  que não mais abandonariam ao longo do século XX. Era a crença ingénua dos três meses. Tinha a oposição das duas rainhas, a suspeição do príncipe herdeiro, mas o apoio do que lhe restava de amigos, do Bernardo ao Tomás. Até a Múrcia, com a sua alma fogosa, molhada de lume, era apaixonadamente, combativamente Franquista.

Acedeu por isso a receber na cidadela de Cascais um jornalista francês, Joseph Galtier, interessado em entrevistá-lo. Conversou longamente com ele numa sala do primeiro andar, sobranceira ao mar. Vestia calção verde, jaquetão azul, gravata roxa, com alfinete de pedra preciosa. Calçava botas claras com polainas curtas. Era o seu traje preferido para o tiro aos pombos. Autorizou-o depois a publicar as suas afirmações, o que aconteceu a 11 de Novembro no jornal Le Temps. Nessas declarações prestava apoio incondicional às medidas que Franco tomara e às outras que naquele tempo preparava, dissolução das Câmaras e das Juntas e reforma da Carta, visando a alteração da composição da Câmara dos pares.

A entrevista, pelo que tinha de contumácia e pelo que mostrava de desafio, levantou mais o ódio contra o rei e o ministro. Por todo o lado se perguntava pela revolução. Ninguém queria ficar de fora. Uma vasta concentração de interesses convergia em seu torno. Havia os que como Luciano e Júlio Vilhena, cabeças dos dois partidos rotativos, procuravam uma mera desforra de Franco, poupando o rei e conservando a monarquia. Havia os dissidentes como José Maria de Alpoim e Francisco Correia de Herédia, visconde da Ribeira Brava, que desejavam a vingança e a abdicação do rei no príncipe herdeiro. Outros como os Republicanos parlamentares queriam a desforra e ainda a queda da monarquia. Outros ainda, como os anarquistas, aspiravam tão-só a vingar todas as injustiças deste mundo na figura dos dois grandes.

O anarquismo estava vagarosamente a deixar a táctica desesperada dos grandes atentados individuais que havia sido a sua resposta à sangreira de 1871; uma nova teoria – a transformação da sociedade pela greve geral – reconduzia o anarquismo à sua primordial vocação pacífica, construtiva, altamente civilizadora. Estava aí a rebentar o anarco-sindicalismo, que, superando a violência dos atentados selvagens, sem todavia cair no comodismo ou no estreito legalismo, mostrava um semblante modelar, capaz dum valioso legado de reformas e de transformações sociais, cujo epílogo décadas mais tarde será a valiosa obra administrativa dos anarquistas Espanhóis. Ainda assim, o exemplo de Ravachol mantinha-se por então muito popular.

Alguns dias depois de ser conhecida a entrevista do rei ao jornal francês, uma nova explosão de dinamite alarmou Lisboa. Desta vez aconteceu perto do núcleo da cidade, na rua do Carrião, nas traseiras do Rossio, a caminho do hospital dos Capuchos. A explosão teve lugar numa tarde pateta e idolente de domingo. Reboou a explosão pelas ruas em redor e depressa acorreu gente ao estrondo do trovão. E logo depois a polícia. O espectáculo era já conhecido. Dois caixotões abertos no meio do quarto, que era pobre e de aluguer, com uma cama de um só corpo a meio, dois bancos, uma cadeira e uma mesa acanhada, onde estavam as pinhas de ferro, já cheias de pólvora e brocha, vedadas com rolha de madeira, rastilhadas de torcida e prontas para cumprir. Outras tantas estavam ainda vazias, desrolhadas, sem mecha, à espera do explosivo, que repousava em dois cartuchos de papel. Um homem jazia desfeito no chão e outro também destroçado em cima da cama. Um terceiro, o único sobrevivente, atordoado da explosão, andava por perto, às cegas, sem atinar com a saída do prédio. Era um jovem beirão, acabado de fugir do Seminário de Beja, que dera em ler Kropotkine, encantando-se com a munificência do príncipe russo. Ninguém o conhecia; era um perfeito desconhecido que se chamava nada menos que Aquilino Ribeiro.

Ficou-se nessa altura com a certeza de que o armamento clandestino que se fabricava em Lisboa era imenso e dava para umas quantas revoluções por essa Europa fora. Só Aquilino fala em milhares de granadas de mão;  fabricavam-se de forma artesanal, com pólvora e invólucros de metal, e passavam-se depois à Alta Venda da Carbonária que as distribuía por depósitos escondidos, que ficavam à guarda dos seus associados. A Carbonária, associação que nascera para organizar as forças da revolução, era um produto castiço da revolta de 1890. Um dos seus cabecilhas, Machado dos Santos, alistara-se na marinha em 1891, aos dezasseis anos, e tivera a mesma encarniçada formação patriótica dos chefes estudantis que por então levaram a cabo os actos de resistência, que desembocaram na revolução republicana do Porto. Outro, Luz de Almeida, que usava o  solto laço negro dos anarquistas, o Lavallière, fora iniciado na Maçonaria em 1897 na loja patriótica “Luiz de Camões”. A Carbonária organizava-se por choças, barracas e vendas e ia buscar os seus associados aos estratos mais pobres da população urbana. Dava treino armado aos seus associados e constituía um autêntico exército secreto de civis, que chegou a somar dezenas de milhares de efectivos. Era por meio da Carbonária que o Partido Republicano pretendia encaixar nos seus objectivos as franjas desgarradas e soltas do anarquismo urbano.

Mas as ameaças à monarquia e ao governo não vinham apenas do povo das ruas que via em Ravachol um motivo de inspiração. As desvairadas e destemidas atitudes de João Franco, ousando prolongar a ditadura por quase um ano e preparando com ela uma revolução no sistema, cujo excepcional beneficiário parecia ser ele, acabaram por desagradar a muitos monárquicos convictos, afastando-os do regime. Regressavam novos casos de cisão como aqueles que haviam acontecido uns anos antes e que haviam tido em Bernardino Machado o seu pico mais prestigioso. Desta vez, depois da entrevista do rei, em que se percebeu que este não estava disposto a desfazer-se do seu ministro, prestando-lhe mesmo um apoio cego, duas personalidades de relevo se apresentaram em sedes do partido Republicano, declarando a sua adesão à República e pedindo a sua inscrição no partido. Eram duas deserções de peso. Um deles, Anselmo Braamcamp Freire, era o sobrinho do antigo caudilho Progressista, muito da intimidade de Loulé, Anselmo José Braamcamp, par do reino e homem de estudos genealógicos, não sei se dalguma toleima se dalgum prestígio; o outro era nada menos que o próprio presidente da Câmara dos pares, Augusto José da Cunha, um homem do paço, que fora mesmo mestre e preceptor do rei no tempo da sua formação.

A monarquia desfazia-se sem salvação. Tudo o que sobrava era uma rainha meio louca, uma outra que enviuvara em vida do marido, um rei diabético, condenado a desaparecer em breve pela fatalidade do seu organismo, e duas crianças, uma que andava sempre armada com revólver de calibre 38 no bolso interior do casaco, recordando com nervosismo a explosão de Madrid, e uma outra que à noite quando ouvia o piar lúgubre das corujas na tapada se assustava e procurava a tremer o braço do irmão. Ah! E havia ainda um duque disforme, sem dentes, que adorava carros de esporte e chocolates, e um conde que aspirava a ser pindárico e se chamava tão-só Pindela. Só podia ser um presépio heróico de tão comicamente grotesco.

Diante deste panorama, Franco punha por um lado a polícia secreta a trabalhar e por outro tentava perceber algum motivo salvador, capaz de desviar por um momento a atenção pública das maquinações revolucionárias em que uma parte do país desfiava o tempo. Depois de esquadrinhar por aqui e por acolá lá deu com um assunto de relevo que tratou logo de aproveitar. Era o caso que depois do massacre do Cunene pelos Cuamatos, em Setembro de 1904, os Portugueses procuravam o seu desforço. Logo no ano seguinte, um jovem oficial português, Alves Roçadas bateu os Mulondo, uma das etnias que participarara na chacina do quadrado do capitão Pinto de Almeida. Aprisiona e manda matar um soba rebelde, para logo erguer um fortim na margem direita do Cunene. Desce depois o rio e efectua razias sangrentas na região, pondo em fuga a população. Com a zona limpa constrói um posto militar no coração do país dos Cuamatos. Finalmente, em Julho de 1907 parte do Lubango com três mil homens disposto a exterminar os guerreiros que se concentravam na região para lhe dar guerra. Chacina em Mufilo, a 27 de Agosto, vinte e cinco mil guerreiros ovambos e humbes e durante dois meses, bate a região com a sua coluna à procura dos fugitivos, numa montaria feroz e sem misericórdia.

Alves Roçadas era um homenzinho pequeno, seco, teimoso, olhos afiados, pescoço curto, nariz adunco e ofensivo. Quando encontrava troços de guerreiros desgarrados e esfomeados, perdidos no mato, à procura de se porem a salvo da metralha do branco, mandava-os capturar com tiros nas pernas e tratava-os depois com a mesma crueldade com que o milhafre sanguinário e frio das nossas serras cuida da caça miúda que desencanta no restolho da charneca.

Franco atento a estes casos mandou vir de imediato para Lisboa Alves Roçadas. Repetiam-se na fronteira sul de Angola os sucessos de Moçambique. Ele lembrava-se bem da suma importância que as vitórias de Mouzinho haviam tido na estabilização da monarquia depois da crise de 1890. Ele, Franco, fora na época o ministro do Reino, e assistira de perto ao choque positivo que os acontecimentos africanos haviam tido na opinião pública de Lisboa e Porto. E recordava bem – oh! se recordava – o delírio da multidão, a apoteose do país, quando o herói de Chaimite decidira vir a Lisboa ver a família no mês de Dezembro de 1897.

Desta vez não havia um Gungunhana pitoresco, que de resto acabara uns meses antes sem glória nem proveito, numa triste gaiola de ferro, em Angra do Heroísmo, mas havia um castigo exemplar, depois dum massacre recente em que haviam perecido cerca de três centenas de Portugueses. Franco viu no filme da campanha do Cunene, e no seu principal actor, o esforçado Alves Roçadas, uma ocasião de amealhar algum prestígio a favor da monarquia e do governo, desviando ao menos a atenção do povo das tramas revolucionárias.

O rei, consciente das fragilidades do momento, com uma ditadura anormalmente prolongada e uma revolução administrativa absolutamente inédita na história do regime, compreendeu as intenções do ministro. Andava com apetite de Vila Viçosa, agora que a via férrea chegava à distante vila do leste alentejano. A época da caça caminhava para o seu fim e o rei ansiava por se ver na quadra invernosa no coração do Alentejo, desta vez com a família. Já lá iam os tempos em que corria sozinho de mala na mão para o Terreiro do Paço, desejoso de se meter na real carruagem para se apanhar no meio do céu azul das onze mil virgens. Agora bastava-lhe a louca e insaciável Múrcia, e mesmo essa só de espaço a espaço. A doença não lhe tirava a vontade de comer, mas ordenava-lhe as refeições, com regra e hora. Este ano antes de se despachar com a rainha e os filhos para o Alentejo tinha pois de ir abraçar ao Terreiro do Paço o herói do Cunene e aproveitar a ocasião para se abalançar ao beija-mão regular do primeiro dia do ano, talvez o primeiro em ditadura. Demais, havia a empreitada de reformas que Franco preparava para Dezembro – a emenda da Carta constitucional, a nomeação das comissões administrativas locais, a convocação das eleições para Abril – e que o retinham obrigatoriamente em Lisboa.

Quando apanhou pelo frente o Arnoso, não se esqueceu do que outrora lhe soprara com indelicadeza e picante.

– Que te disse eu, Bernardo? Vês tu como o Cuamato se fez o Cu… Amado dos Portugueses.

Bernardo sorriu. Estava feliz com aqueles sucessos nos sertões dalém, em que via mais um crédito inesperado para o regime. Também ele partilhava da ideia que depois das eleições de Abril a monarquia salva estava; com o regular funcionamento dum Parlamento responsável e renovado, com o partido Franquista dominando as Câmaras, o regime entrava por certo num período de alívio e folga. Importava era aguentar aquela curta estação de Inverno sem sobressaltos de maior. Feito isso, tudo seriam rosas e miolinhos doces de pão.

– Sim, de verdade, tu és vate. E nem das pancadinhas da praxe te esqueceste. Agora é receber nos braços o herói que tão saborosa vitória nos preparou.

E Carlos lá foi ao Terreiro do Paço abraçar o homenzinho que dera as pancadinhas da praxe na bunda da África desgraçada, estraçoando quarenta ou cinquenta mil pretos. Era mais uma excepção na sua recatada vida pública. Na ocasião, com o entusiasmo, excedeu-se mesmo e quando viu Alves Roçadas, com o chapéu colonial de lona, preso num dos lados, descer do barco, com aquele ar teso e fechado de quem não perdoava a um soldado um botão fora do lugar, não esteve com hesitações e sacou do seu dólman de generalíssimo a insígnia da Torre e Espada e ali lha prendeu na farda, depois de o abraçar.

Apesar da comoção que o gesto da insígnia pôs a circular, o tradicional beija-mão de Carlos no ano-novo foi de péssimo efeito. Franco acabara de publicar com a assinatura do rei a torrente de decretos que reconstruíam o regime de acordo com a sua pessoa e em consequência a popularidade do rei estava a seco, no zero. No beija-mão não apareceu um único Progressista, cujo partido era um dos pilares do regime desde o momento da sua fundação, e o chefe dos Regeneradores, Júlio Vilhena, também se recusou a comparecer.

Quando no dia seguinte se comentou o caso no paço, o Arnoso desvalorizou o sucedido.

– Isto só dura até Abril. Daqui a um ano estão todos aqui, roídos por beijar a mão do rei. Basta que o João ganhe as eleições para que voltem todos.

Podia ser que assim fosse, mas na verdade nem os que se ausentaram regressaram, nem os que por lá estiveram voltaram. Cada palavra que nós dizemos, por mais banal, é tão enigmática como uma flor; tem o sabor e a profundidade do abismo.

O rei, ansioso por deixar Lisboa, partiu poucos dias depois com a família para Vila Viçosa, para quase só regressar para a tragédia do 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço. Por ele teria passado por lá a estação fria, não por medo, mas por hábito. Gostava dos invernos rurais com caça e proezas cavalgantes; estava consciente que as eleições de Abril seriam decisivas e desgastantes; por fim, estivera doente em Outubro passado, com uma febre gástrica grave, chegando a suspeitar não se levantar mais, tal foi a prostração que sentiu, e precisava de recuperar fora das Necessidades e da fatigante vida em que se deixava cair quando estava por Lisboa. Assim como assim, o filho mais novo precisava de regressar em breve a Lisboa por causa dos seus estudos e a rainha, inquieta com a situação que se vivia nos partidos, com Luciano amuado e Vilhena de costas voltadas para o rei, custava-lhe abandonar Lisboa, mostrando-se desejosa de encurtar a temporada no Alentejo. Tinha as suas próprias estratégias para a governação e aproveitava a brecha que Franco estava a criar no sistema para adicionar a seu favor os pontos que os velhos rotativos ainda marcavam.

Em Lisboa, o regresso de Alves Roçadas não estancou a revolução. Tudo estaria porventura apontado para 31 de Janeiro, dia emblemático na curta história das tentativas do derrube da monarquia dos Braganças, mas a força dos acontecimentos acabou por antecipar a revolução para os últimos dias de Janeiro. O que se preparava era uma acção larga, que começaria com a intervenção de brigadas de civis armados e teria o seu fecho com a intervenção de corpos armados do exército e da marinha. Os civis emboscariam João Franco, neutralizariam forças da Guarda Municipal e inutilizariam as comunicações, enquanto os corpos militares ocupariam de seguida os pontos cruciais da cidade. Concomitante a essa ocupação, visando anular qualquer reacção, o escol do partido Republicano, adjuvado pelos dissidentes de Alpoim e Herédia, decididos a cortarem os laços com a monarquia, tomaria a Câmara Municipal e das suas varandas faria uma proclamação ao povo, desfraldando a bandeira da República.

Por volta dessa altura apareceu o livro de António de Albuquerque, O Marquês da Bacalhoa, que se fez, com Pátria de Guerra Junqueiro, o mais vitriolante retrato de Carlos de Bragança e da sua família. A intriga, tecida em torno dos amorios grosseiros do rei e das saídas estratégicas da rainha, já foi classificada de ordinária, mas não sei se por descaro, má vontade ou mera ignorância. Assim como assim, avaliar o livro como medíocre é esquecer o propósito ofensivo e panfletário desta literatura, toda ela voltada para a expansão duma causa. O autor – mau grado os seus pergaminhos antigos, a bem dizer, o seu tanto toleirões – era um dos muitos frequentadores do Café Gelo no Rossio, onde se sentava toda a fauna libertária e radical da Lisboa do princípio do século. Entre a ceia e o cigarro de papel, escolhia-se a pólvora, avaliavam-se os colts acabados de chegar ao armeiro da esquina, discutiam-se os tiros. Nesse sentido o livro de Albuquerque pretendeu ser tão-só uma pinha de ferro cheia de brocha e pólvora caseira, uma peça mais da artilharia civil que a Alta Venda da Carbonária arrumava nas suas contas. E desse ponto de vista o livro teve uma eficácia garantida com uma desenfreada procura e milhares de exemplares vendidos logo nos dias que se seguiram à sua semiclandestina publicação. Deu caudal e força ao curso de água que corria contra a monarquia dos Braganções, encurtando o seu prazo de vida.

O próprio rei não esteve com hesitações e mandou comprar um exemplar para si na Livraria Ferreira. Havia nele a natural curiosidade de qualquer mortal por tudo o que de si se dizia, mas tinha sobretudo a disposição liberal duma educação ilustrada e tolerante, habituada a conviver com a inata maledicência da crítica. Foi um dos primeiros leitores da grande construção junqueirina de 1896 e decerto um dos melhores coleccionadores dos bilhetes-postais que o retratavam como obsceno e ignominioso. Também desta vez fez questão em ter consigo o livro do Albuquerque, dispondo-se a  considerar o lume daquela pólvora e a apaladar o azedo daquele veneno. Mastigava aquelas cenas com o mesmo distanciamento paulatino com que outrora saboreara, preguiçoso e mordaz, meio encantado, a história vulgar e inferior do Raposão queiroziano.

Pouco depois, a 20 de Janeiro, a polícia teve as primeiras informações fiáveis sobre a revolução que estava em preparação. São apreendidas armas e explosivos na Baixa de Lisboa. Dois jornalistas republicanos, França Borges e João Chagas, são presos, privando a revolução de dois importantes cabecilhas civis. Ainda assim, os planos avançam mas logo de seguida mais duas prisões de vulto: Luz de Almeida, o grão-mestre da Alta Venda, e o tribuno António José de Almeida. Nos cafés, nas ruas, nos comércios a indignação subiu de tom pela prisão do mais popular doutrinador anti-monárquico. O partido Republicano, instigado pelo levantar do burburinho popular a favor do seu tribuno, decide manter os desígnios revolucionários, entregando a chefia do movimento a Afonso Costa, que pede auxílio aos dois dissidentes Progressistas, Alpoim e Herédia.

A 28 de Janeiro a revolução sai à rua mas Franco, conseguindo escapar à emboscada que um  grupo de civis lhe preparara na avenida da Liberdade, frustra um dos pontos nevrálgicos das disposições revolucionárias. A morte de Franco ditava a entrada das comissões militares na revolta; sem ela, os homens da farda abstinham-se. Ao mesmo tempo, o estado-maior do partido Republicano, acreditando que Franco tombava no fogo cruzado do grupo carbonário da avenida da Liberdade, concentrava-se nas imediações da Câmara Municipal de Lisboa, junto à calçada de S. Francisco, no piso térreo dum antigo elevador que por ali havia, o da Biblioteca.

A concentração invulgar de gente naquela zona da cidade, o bulício e o nervosismo que por lá se percebia, com carros a arrancarem e outros a pararem, numa ansiosa actualização de novidades, chamou a atenção da polícia, que decidiu assaltar o lugar, prendendo num golpe os mais importantes republicanos da capital e ainda o visconde da Ribeira Brava. De fora, ficava apenas o Alpoim, que se livrou por um triz da polícia no elevador da Biblioteca, escapando por uma porta lateral e fugindo mais tarde num automóvel para Espanha. Tudo isto se passou ao entardecer e ao princípio da noite do dia 28. Muitos dos grupos civis arregimentados para a revolução em Lisboa e na margem Sul do Tejo inconformados com o destino da insurreição, dependendo de comando próprio e sem ligações com o estado-maior do partido Republicano, arriscam ainda acções de grande envergadura em vários pontos da cidade. Postos da polícia são assaltados a tiro e vandalizados. Em três pontos da cidade rebenta fuzilaria cerrada entre as brigadas civis e a Guarda municipal. Na rua da Escola Politécnica um guarda cai morto, debaixo do fogo raivoso dos revoltosos.

Ainda assim, noite dentro, a revolta civil, diante da intervenção do general Malaquias de Lemos, debanda. Não resta senão aos civis recuarem, recolhendo às tocas e escondendo as armas; no terreno deixam cerca de cento e trinta homens nas mãos da polícia. Por ordem de Franco, a tropa fiel ao governo toma de imediato conta da cidade; a polícia leva a cabo rusgas num largo perímetro à volta de Lisboa; a Guarda posta-se em pontos chaves, dissuadindo qualquer nova veleidade das brigadas revolucionárias civis; os quartéis são passados pelo crivo de peneira fina à procura dos implicados militares. São apreendidas armas e explosivos e presas centenas de pessoas; as prisões ficam pejadas de toda a casta de gente. Estão lá nobres como o Visconde da Ribeira Brava, médicos idolatrados como António José de Almeida, advogados ricos e prestigiados como Afonso Costa, jornalistas do escol como França Borges e João Pinheiro Chagas, e simples anónimos, desde empresários por conta própria a empregados de balcão, carpinteiros, serralheiros, torneiros, electricistas, tipógrafos e outros homens de ofício, com ou sem emprego. Lá se encontram ainda umas poucas dezenas de militares, todos de baixa patente.

Franco, preocupado em fazer durar o regime até às eleições, convence-se que tem de tomar medidas enérgicas. Ele era o homem destes momentos tensos, apesar da desmedida apreensão com que os vivia. Concebe de imediato um decreto repressivo que lhe permita atirar com toda aquela gente nas próximas horas para o degredo longínquo, afastando de vez o perigo da revolução. Era a sua táctica preferida, recuperar a seu favor as situações que lhe eram soberanamente prejudiciais. O quadro legal exigia-lhe que aguardasse o julgamento de todos os implicados e ressalvasse a imunidade parlamentar dalguns deles; o decreto que ele congemina permite-lhe deixar de lado os privilégios que alguns gozam e despachar sem mais, dum dia para o outro, a turbamulta em conjunto para a costa de África, livrando-se assim dos seus mais estridentes opositores. O decreto repressivo fica pronto poucas horas depois da decapitação da intentona.

O rei, em Vila Viçosa, metido no seu pelico de pele de borrego, chapéu redondo de lavrador transtagano, bota de couro macio, salto de prateleira, passava os dias na caça e o serão à volta da mesa, jogando bridge com as senhoras e os amigos. Era uma vida triste e apagada num grande casarão de província, com os retratos mortiços dos antepassados numa sala e o ranger longínquo das portas por onde os criados se esgueiravam. Mal soube dos eventos de Lisboa, preparou-se para regressar à capital. Não estava no seu feitio azougado encoquinar-se num refúgio em tal momento. Ao invés, as situações de perigo despertavam nele um instinto de provocação e de exposição, que lhe vinha decerto do sangue agitado da avó paterna. Franco porém prefere compreensivelmente mantê-lo em Vila Viçosa, pedindo-lhe para se ater à sua primitiva data de regresso, 1 de Fevereiro, um sábado. Entretanto, envia a Vila Viçosa o ministro Teixeira de Abreu com o decreto repressivo que permitia ao presidente do ministério desfazer-se dos seus opositores em poucas horas. O rei não hesita em assinar o papel que o ministro lhe dá a ler.

– Não é o medo que nos fará desistir – exclamou ele, bem humorado, isento de agitações, quando apôs a assinatura no mandato do seu ministro.

Chega finalmente a madrugada do dia 1 de Fevereiro de 1908. Não se deve dizer que o rei estivesse inquieto, mas também não se aceita o seu desinteresse, e muito menos a sua ignorância da situação. Acabara de assinar umas horas antes a ordenação repressiva do governo e despedira-se de Teixeira de Abreu que regressara a Lisboa. Deitara-se tarde e como tantas vezes lhe acontecia não se despira; limitara-se a recostar-se nos grandes e fofos almofadões da sua cama, metida num cúbiculo de passagem do paço, e ali ficara no escuro, de barriga espetada, embrulhado no capote e nas mantas da cama, cogitando na sua vida e esperando pelas primeiras claridades da manhã.

As notícias que recebeu por telégrafo a 28 de Janeiro haviam despertado nele uma ligeira excitação, que contrastava com a monotonia da sua vida no paço ducal de Vila Viçosa. Adorara, quando estava para Pedra Salgadas, em situação também de enfado, o lance em que Franco e Alfredo da Silva se envolveram no bairro de Alcântara, quando tiveram lugar as eleições de Agosto de 1907. Agora, aquela intensa actividade na Baixa lisboeta, com um grosso pacote de Republicanos presos num terreno da calçada de S. Francisco, fazia-o rir.

– São para cima de cinquenta melros dos gordos – dizia ele, a rir, de si para si. – Que bela caçada!

E a frontalidade com que Franco tomava nas mãos aquelas situações era a que mais lhe agradava. Nem um ceitil dava pelo comportamento que os políticos dos dois rotativos teriam se se vissem em semelhantes apertos. Acagaçavam-se e tudo ficaria na mesma, com os passarões da República a arrotarem as postas de pescada de sempre. Assim, com aquele despacho, era outra música que se ouvia no país. No fundo estava desejoso de chegar a Lisboa e de enfrentar a visagem da cidade. Aquilo fazia-lhe lembrar a ele o passeio que dera pela Baixa de Lisboa em Janeiro de 1894 quando Franco se atrevera a dissolver as associações comerciais de Lisboa e a nós aquele outro que a sua avó decidira fazer num dia triste e sangrento de Março de 1838 depois do seu ministro chacinar um corpo da Guarda.

Quando se apercebeu da primeira claridade nas frinchas das janelas, Carlos lembrou-se da Múrcia e teve com ela uma fantasia inaudita num ginásio de Cascais, que ambos conheciam e costumavam frequentar em conjunto na estação fria. Depois adormeceu e acordou apenas quando a claridade do dia se espelhava pelo soalho do quarto e se ouvia ao longe um rumor de latidos. Sentiu-se bem disposto com o dia que tinha pela frente. Olhou para o roupeiro e escolheu uma farda de generalíssimo que por lá tinha. Era janota, com as calças e o capote orlados a carmesim. Verificou o revólver, um Smith & Wesson, calibre 32, e arrumou-o no bolso do capote. Apresentou-se no salão, vestido e barbeado, antes mesmo do filho e da rainha. Quando estes chegaram, já ele havia tomado a primeira refeição e se mostrava desejoso de partir. Disse uma banalidade na língua de Montaigne, que tantas vezes frequentava para se exprimir em família, hábito que lhe ficara da mãe, e depois, quando percebeu o ar de caso dos outros dois, rematou com um axioma.

– Não há ausentes sem culpas, nem presentes sem desculpas.

Sabia que aquele mal-estar se devia às notícias dos desenvolvimentos recentes da intentona. A rainha julgava despropositadas as medidas repressivas de Franco e que melhor ia ao paço desfazer-se do ministro, encarado como a fonte de todos os problemas pelos quais passava a monarquia portuguesa; o ministro instigava os ódios, movia as perturbações, estimulava os levantamentos e as insurreições. Estava desejosa de se adiantar ao rei, chamando de novo os velhos políticos dos rotativos.

Deixaram o paço por volta das dez horas. O céu estava azul, limpo, transparente; o ar, parado e frio, parecia sem vida. Tomaram o coche, chegaram à pequena estação ferroviária da povoação, ouviram as despedidas das autoridades locais. Quando subiram para a carruagem real, a banda de música da vila tocou o hino da Carta; eles preguiçosamente instalaram-se nas almofadas de seda e lã e prepararam-se para a viagem, que devia durar cerca de quatro horas e meia. Por volta das onze e meia o comboio real pôs-se em marcha, cortando a planície e deixando para trás os montados claros de Vila Viçosa e Borba.

O rei mergulhou de novo na sua cisma anterior; regressou-lhe a excitação leve dos acontecimentos dos últimos dias. Estava ansioso de bater para as Necessidades em coche aberto, de peito ao léu, olhando de soslaio para o povinho de Lisboa e gozando a limpeza das ruas. De repente, veio-lhe ao espírito a fantasia com a Múrcia. Via-a de pernas abertas, em saia curta, rodada, branca e engomada, nas barras paralelas que havia no ginásio ou rodopiando no cavalo-arção, a cintura fina, os seios pequenos, desenhados e apertados na blusa justa, os músculos do pescoço e dos braços tesos e recortados. Sorriu, meio saudoso de tocar o corpo escultural da amante, meio adormecido pela oscilação da carruagem. A rainha falava com Luís Filipe sobre os trabalhos escolares do pequeno Manuel, que preparava os exames escolares e os iria esperar depois de almoço ao Terreiro do Paço.

Passaram por Estremoz, Évora-Monte, Vimieiro, avistaram por fim o alto recorte de Évora, onde lhes serviram na carruagem uma refeição ligeira, carnes frias, vinhos, doces conventuais e frutas. O rei desceu à passadeira da estação para distender as pernas. Atrevera-se a despir o forte capote militar, cor de cinza, orlado de carmesim, ficando em dólman e calça cinzenta, confiado no Sol do meio-dia que brilhava no azul do céu. Avistou ao fundo os fantasiosos picos de pedra da Sé da cidade e a mole caprichosa e invulgar da igreja de S. Francisco. Estava lá, fechada e escondida, a sinistra capela dos Ossos. Em vez dum arrepio, teve vontade de rir. Uma mania assim – arrecadar ossos humanos e com eles edificar um santuário de altar – era patusca. Aqueles frades! Que marotos! Uns ratões, pensou ele. Razão tinha o Garrett velho, quando nas Viagens exclamara que o frade faz muita falta. Évora, a cidade dos frades, era um mistério e uma patologia, cidade catita para um sujeito se enterrar em vida e por lá ficar como se estivesse já a boiar na cal da morte, de flor entalada nos dentes e corpo embrulhado na mortalha fresca da pedra granitosa.

Ao subir os degraus da carruagem, para se estirar de novo nos almofadões dos sofás, sentiu-se bem, quase feliz, a barriga cheia, o corpo quente, a alma cheia com aquela partida. Deixar Évora é como fugir do necrotério, pensou ele folgazão e simplório. Subiu-lhe à memória o refrão brejeiro duma canção ordinária de cabaré francês.

– Je ne veux pas déjeuner.

Ainda o cantarolou uma ou duas vezes em voz baixa, mas depois arrumou-se nos encostos e, pesado da galinha em geleia e do pão-de-rala, deixou-se ficar num estado de abatimento mole, respirando com dificuldade. Era a sesta forçada de quem tinha o modo de aproveitar as noites para só ao de leve fechar os olhos.

Puseram-se em movimento. Deixam para trás dois ou três apeadeiros e ao chegarem a Casa Branca, onde a linha de Évora e Vila Viçosa entronca com a de Beja e Moura, um erro nas agulhas provoca um pequeno descarrilamento da máquina e dos dois furgões das bagagens, que entram no ramal errado. O rei, sacudido pela saída dos carris da máquina, acorda e apercebe-se da situação. Põe-se de pé, veste o capote que jazia abandonado no banco, e exclama contrariado.

– Que aborrecimento! Vamos chegar quase de noite a Lisboa.

Casa Branca é um pequeno entroncamento ferroviário no meio do descampado. Nada se divisa ao redor, a não ser o copado do montado, em tons de verde, quase esbranquiçados. Nem uma casa, nem uma herdade, nem um povoado; só mesmo a aflição da charneca alentejana. Assim, no seio daquela extrema desolação, ainda a espera se torna mais exasperante. Por lá ficaram a bater o pé, inconformados com o contratempo, os três reais passageiros. Estavam desejosos de seguir viagem, cada um pelas suas razões. O rei porque, além das saudades apertadas da Múrcia que levava no pensamento, andava desejoso de passear na cidade domesticada; a rainha porque longe de Lisboa, junto do rei, ainda mais sentia a sua triste viuvez e Luís Filipe porque, além do namorico que tinha no paço, estava ansioso de se juntar ao irmão e de ir nessa noite ao S. Carlos, onde se cantava pela primeira vez o Tristão e Isolda de Wagner.

Veio uma nova locomotiva e ao fim duma hora retomaram a viagem. Passaram sem novidade Vendas novas, Poceirão e Pinhal Novo. No Barreiro apearam e tomaram o real vapor a caminho do Terreiro do Paço. Instalado no barco, o rei a sós, fechado na sua câmara, chegou-se à amurada. O céu coara mais o azul e nem uma brisa corria no ar; a viração que se sentia, era o resultado do movimento do vapor. O Sol brilhava no azul, fulvo e coruscante, pressentindo já a explosão da Primavera; àquela hora declinava já o seu tanto para os lados do Alfeite, procurando apagar o lume nas águas frias do oceano. Recordou-se da meia centena de melros engaiolados pelo Franco. Aquilo eram passarões tão marotos quanto os frades que lá por Évora andavam noutros tempos a recolher os fémures e os crânios dos pobres conterrâneos. Riu da comparação. Veio-lhe a expressão do meio-dia, desta vez em alta e sonora voz.

– Que ratões!

Também o Republicano nos faz muita falta, pensou ele, rindo, grosseiro e maganão, recordando o velho Garrett e o frade dele, com o hábito talar, elegante e pitoresco. Apeteceu-lhe de seguida puxar o Franco com força ao peito, manifestando-lhe assim a sua alegria e o seu apoio.

Percebeu que se aproximavam do Terreiro do Paço; o vapor abrandava de velocidade, manobrando para atracar. Divisou as arcadas; a mole de povo que o esperava; a estátua de bronze do antigo avô; as árvores nuas e metálicas da praça; o quiosque de ferro no estrado central, em frente do termo do ministério da Guerra; o pesado arco da rua Augusta; a estação dos barcos ao pé do torreão ocidental. À medida que o barco encostava ao cais, pôde distinguir o aglomerado de gente na gare para a recepção formal. Estavam lá os membros do governo e suas famílias, a aristocracia do paço, alguns poucos representantes do comércio e da indústria. Num dos grupos enxergou o chefe do governo, na sua farda de homem público, de imponente chapéu de dois bicos, falando com o seu irmão Afonso e o seu filho Manuel. De que falariam? Talvez das convulsões dos últimos dias, talvez do descarrilamento de Casa Branca, talvez dos estudos do príncipe, talvez do serão dessa noite. Tanto lhe fazia; agora o que desejava era bater na tipóia para as Necessidades.

Sofria por se libertar da fatiota militar e por enfiar o roupão, por cima das roupas leves, interiores. Aproveitaria então para falar pelos fios do telefone com a Múrcia. Só a voz dela, quente e rouca, macia e viciosa, lhe fazia erecções fortes. Apertou o capote, pôs na cabeça a barretina baixa, onde cintilavam fulgurações de oiro, e disparou para a saída. Queria atravessar a cidade com a luz do dia, que amortecia já para os lados do oceano. Seriam cinco da tarde; dentro de algum tempo nem rasto de luz se veria no horizonte. Que bela aguarela – pensou ainda, quando se apanhou na passadeira do barco, com o arco do céu por cima a chispar luz forte, em tonalidades limpas e diáfanas.

Desembarcou atrás a rainha, que vestia de escuro, longo casaco em pele que a tapava por inteiro, luvas brancas na mão direita, e à frente do príncipe herdeiro, que por sua vez usava elegante sobretudo castanho, luvas de pele da mesma cor e chapéu alto preto. Houve uma pequena recepção na sala da estação fluvial. A rainha beijou o filho mais novo e recebeu um ramo de flores das mãos duma criança. Encantou-se com o gesto, enquanto o rei trocava impressões com o seu ministro. Este garantia-lhe absoluta segurança, a cidade pacificada pelas rusgas e pelas prisões da madrugada de 29 de Janeiro.

– Ó João, não espero eu outra coisa de ti. E que julgas tu, caso não fosse assim? Dava cabo deles. Ai, isso dava, não tenhas dúvidas.

E apalpava a sorrir com malícia o cabo frio do revólver que trazia no bolso de dentro do capote. Era a sua velha prosápia de homenzarrão habituado a chacinar séries de pombos e o seu gracejo de artista solitário, cuja vocação seria menos o real que a cena.

Formou-se então o cortejo. Por vontade do rei haviam vindo do paço os landaus, de quatro rodas, puxados por dois animais, em vez dos automóveis, mais seguros e mais rápidos. A última impressão que o rei desejava dar daquele préstito era que se esgueirava, à pressa, blindado e escondido, para as Necessidades. Naqueles momentos escaldantes é que ele punha algum gosto em se mostrar, retardando o passo e deixando os olhos vagos e azuis errarem pela multidão. Ao serão, embrulhado no seu roupão, de havano entre os dedos, quando falasse com a Múrcia, não se perdoaria a si mesmo qualquer transigência. Queria fanfarronar, contar-lhe casos heróicos, com ameaças e lances arriscados; sabia que nada excitava tanto a Múrcia como o perigo. A amante abominava o cagaço, que tinha por atributo dos homens murchos, incapazes de se jogarem nos danados lances da cama.

Por isso, quando o conde de Figueiró, num derradeiro escrúpulo de consciência, lhe sugeriu ao ouvido, num tempo morto, que se fechassem as carruagens, baixando as capotas, ele riu com gosto e deixou cair sem misericórdia.

– Ó homem, deixe-se desses rodeios e levante-me bem essas capotas que o azul do céu é hoje digno de se admirar.

Partiu o cortejo com o landau real à frente; o rei dava a direita à rainha, ambos no banco traseiro, com os filhos em frente, Manuel defronte da mãe, parlapatando sobre o descarrilamento do Alentejo, e o príncipe real no alinhamento do pai, silencioso, sonhador, pensando no excitante espectáculo que o esperava à noite, no S. Carlos. Depois vinha a carruagem dos condes de Figueiró e logo a seguir o landau do visconde de Asseca, estribeiro-mor do paço, que depois do almoço acompanhara o infante ao Terreiro do Paço. Em quarta posição vinha o cupé que levava João Franco e por fim, na cauda, o automóvel do irmão do rei, um Fiat, com o cavaleiro da brita e do macadame lá dentro, ao volante, luvas de couro grosso, óculos de corrida, capacete de lona a envolver-lhe a cabeça, pronto para buzinar e gritar o seu pregão de doido, arreda, arreda.

Não eram andados cinquenta metros e soou um estampido solto. Um homem miúdo, tez branca, longas barbas negras, testa alta e polida, olhos vivos, fechado num comprido gabão de capuz, deixou a praça pelo lado do quiosque de ferro, tomou posição na rua, por detrás do landau real, a cerca de sete metros, afastou a aba do gabão, sacou duma carabina Winchester automática, calibre 351, de cinco tiros, ajoelhou-se, levou a carabina ao ombro, fechou o olho esquerdo, apontou, disparando de seguida dois tiros. De costas, o rei, que ligeiramente se levantara para ajeitar a aba do capote, abriu os braços e assim ficou por um instante. Fitava no momento ao de leve uma mulher nova, do povo, que com a cabeça embrulhada num xaile de lã escura acenava com um lenço branco. Quem seria? Que faria ali? Onde vivia? Morreria cedo? Teria homem? Filhos? Pais? Irmãos? Dramas? Êxtases? Talentos? Discussões? Sonhos? Nervos? Crenças? Desvios? Esperanças? As perguntas pairavam informes e vagas, como nevoeiro esparso a vogar num vale, pelo seu espírito ausente, que não parecia ter interesse em nada se fixar.

Sentiu na nuca e nas costas a pontada quente das balas como duas alfinetadas rápidas e fundas; não percebeu sequer do que se tratava. Ficou perplexo. Que seria aquilo? Sentiu esvair-se, perder o pé, como quando na praia do Mexilhoeiro as ondas o embrulharam no sal e nas algas. Deixou-se ir, com essa recordação antiga no espírito, a mãe aos gritos, na praia, o irmão a chorar, o mar a bramar furioso, as nuvens do horizonte, um traço branco vindo não se sabe donde no cenário dos olhos. Ainda pareceu distinguir um pormenor da estação ferroviária de Évora; depois tudo se confundiu como numa estampa em que as cores ondulassem, misturando a  pasta e o efeito. Caiu desamparado sobre o colo da mulher; dali rebolou como um peso morto, sem alento, pesado e inerte, para o chão e lá ficou estático a esvair-se em sangue.

Morreu sem perceber que morria, pronto afinal para o matadouro como Leal da Câmara o retratara, apanhado no regresso da caça como Guerra Junqueiro lhe vaticinara. Morreu tal um cão, como depois disse o seu parente inglês, Eduardo VII, e morreu ainda, digo eu, ingénuo, bravo, sem medo, apanhado de surpresa, como uma criança inocente a quem a Morte não se atrevesse a aparecer de frente. Honra seja feita a esse homem no momento da sua morte; algum segredo, alguma grandeza nele havia para assim desaparecer num relâmpago, sem que a Magana ousasse cuspir-lhe na cara a sorte que o esperava. Neste instante, que é o da tua tragédia, bem mereces, Carlos de Bragança, transitar da História para o Mito, ombreando com as grandes figuras universais que traduzem na poesia a complexidade das tendências e dos destinos humanos.

E ainda dizias tu, ó Oliveira Martins, que o Dom Sebastião dos Bragança só sabia fugir em vez de morrer. “A dinastia de Avis soube acabar heroicamente. O D. Sebastião de agora, o D. Sebastião dos Bragança, sabia fugir em vez de morrer (…). Por tudo isto, o último homem dos de Avis deixou no coração do povo um rasto de luminosa saudade, e o último homem dos de Bragança deixou apenas aquele enjoo que provoca o vómito.” OLIVEIRA MARTINS, HISTÓRIA DE PORTUGAL liv. VII, cap. II, 1879 Como te enganavas, pobre mortal. O último dos Braganções morreu firme, sem arredar pé, de costas, braços abertos e vaporoso sorriso na boca; não teve passamento menos digno que o seu antecessor de Avis. Foi até mais heróico, porque o antigo puxou do gládio para ceder cara a vida, enquanto ele, tal um santo laico, a entregou de forma gratuita, sem se poder sequer defender. Por isso também este Carlos merece depois da morte alguma sorte e alguma saudade. Ele não é apenas o grotesco brutamontes, que provoca o vómito, o buldogue capaz de limpar uma cozinha, vazar uma adega e abocanhar um serralho; é também o culto e tolerante solitário, o artista que se interrogava abstractamente sobre o mundo e traduzia as suas cogitações em cor e em cuja alma vibrava de quando em quando um sonho livoroso de anil.

De seguida, sem que nisto houvesse decorrido mais que uma pequena fracção de tempo, um homem de boa figura, forte, trigueiro, de bigode negro, saiu desta vez das arcadas onde se situava o ministério da Fazenda, saca da jaqueta uma pistola, uma Browning, calibre 7,65, de sete tiros, alça-se ao estribo do landau e prepara-se para despejar as balas do revólver.

No recinto apertado da carruagem esboçam-se as primeiras reacções. A rainha, depois de apanhar de chofre com o monumental tombo do marido no colo, vendo-o rebolar para o chão envolvido num novelo de sangue, levanta-se em pânico, agitada e doida, e lança-se de flores em punho contra o homem que acaba de assaltar o landau, aos gritos furiosos.

– Infames! Infames! Acudam! Acudam!

O príncipe herdeiro, defronte do pai, percebendo o seu sangrento abatimento, ainda tem tempo de sacar a pistola para enfrentar o assaltante da carruagem, oferecendo o peito às balas e protegendo a mãe e o irmão. Tomba depois sobre o assento, a esvair-se em sangue, com um tiro no peito e outro na face, que lhe despedaça o maxilar e lhe perfura mortalmente o cérebro. Agoniza, arquejante, a esvair-se em sangue, enquanto ao lado dele o pobre infante, seu irmão, a tremer, aterrado, com os olhos assustados, cheios de espantadas e nervosas lágrimas, puxa dum lenço do bolso para lhe limpar o sangue. Por perto, a mãe, em pé, aos saltos, no meio da carruagem, com o chapéu tombado sobre a nuca, brande as flores em direcção da multidão aos gritos estridentes e desesperados.

Ao mesmo tempo uma fuzilaria medonha rebenta em vários pontos da praça. A carruagem perde por momentos o rumo e o cocheiro mostra-se incapaz de dominar os cavalos amedrontados pelo fogo cruzado e pela multidão ululante, que se precipita em fuga para as ruas da Baixa, abandonando em massa compacta a praça e tudo atropelando numa correria louca. Ouvem-se então, insistentes, repetidos, martelantes, desencontrados, terríveis, os primeiros gritos, amplificando outros mais antigos, que se ouviram ao pé das águas do Tejo, quando os dragões de Junot patinhavam na lama do Ribatejo a caminho de Lisboa e as hostes do Teles Jordão eram chacinadas à luz dos archotes nas pedras limosas de Cacilhas.

– Fujam! Fujam! Mataram o rei! Mataram o rei!

Quando o cocheiro da carruagem real, Bento Caparica, consegue meter mão nos cavalos, já estes haviam dobrado a esquina da rua Arsenal. Bento Caparica aproveita os portões abertos das traseiras do Arsenal da Marinha e para lá bate os cavalos. Era preciso fugir da confusão e cuidar dos feridos. No Arsenal procuraram-se dois colchões para deitar os corpos do rei e do príncipe real. Nessa altura já haviam entrado para o pátio a carruagem do conde de Figueiró e a do visconde de Asseca. O que se consegue arranjar são dois pobres e sujos colchões de palha, desses que se enchem de bicho nas pensões na parte baixa da cidade e que serviam para os marujos fazerem as suas sestas, a seco, sem lençóis, cobertos por uma despelada manta tarimbeira, quando chegavam do mar. Verifica-se a morte do rei e a agonia final do príncipe herdeiro. Assinala-se também um ferimento de bala no braço direito do infante.

Entretanto chegam João Franco e o duque do Porto. Este, desaustinado, perturbado pelos gritos da multidão, no seu rídiculo aparato de cavaleiro do asfalto, vinha de revólver na mão, aos tiros para o ar, gritando como um doido.

– Mataram o mano! Mataram o mano!

Quando viu o corpo do irmão no pobre colchão de marujo, mais sangrado que um porco capado na mesa do magarefe de Vila Viçosa, jogou fora o revólver e atirou-se a chorar ao chão. Pobre Afonso Henriques, que tinhas tanto para recriminar ao teu irmão e que naquele instante te comoveste com a sua desgraça. Nem uma recordação das garotadas que ele te fizera; apenas a tua alma bondosa de criança e de louco – essa mesma que te levou em 1894 ao supremo feito da revolta marata – enternecendo-se com a dor humana e compadecendo-se com a morte universal. Um Bodisatva futurista, aventureiro da estrada e da velocidade.

O chefe do ministério, consternado, retorcendo as mãos, não acreditando no que estava a suceder, procurava abeirar-se do infante, que estava a ser assistido, fazendo-se útil e despercebido.

Nisto, vinda do Outro Mundo, uma sombra pavorosa e negra, de tamanho colossal, aproximou-se dele. Era a rainha que crescia para ele, de braços levantados, lívida, sórdida, como um fantasma descarnado, imenso, esvoançante.

– Mataram el-rei! Mataram o meu filho!

Franco fez-se pequenino, incapaz de dizer fosse o que fosse. Toda a sua energia inesgotável de homem soberbo, que se gabava de ser talhado em pedra da Gardunha, se havia escoado dum momento para o outro como largo curso de água que afogasse de repente todo o seu ímpeto no vasto seio das areias quentes do deserto. Não havia a mais pequena vibração de energia naquela constituição nervosa. Momento pavoroso esse! Que secura e que lividez! Nem um monossílabo o pobre homem conseguiu arrancar de dentro de si. Toda a sua teima se tinha ido de vez. Ali especado, na sua fardeta de marçano, parecia uma criança magra, obediente, assustada, sem voz. Ou um cão desmazelado e magricela, habituado a ser severamente sovado. A rainha puxou num gesto instintivo a gola do casacão sobre o pescoço, franziu o sobrolho, cresceu ainda mais sobre o atormentado ministro e atirou-lhe num berro furioso, do alto da sua gigantesca estatura.

– Contemple a sua obra, seu miserável.

Depois, exausta de tanto esforço, perdida de tanta comoção, tombou ao chão, desfeita e amorfa. O infante, que estava por perto, julgou ali perder a mãe, depois de acabar de ver morrer a seu lado pai e irmão. Um abismo de fogo, o próprio inferno, vivo e real, abriu-se-lhe aos pés, rasgando-o de alto a baixo. Um berro de desespero cortou os ares e a máscara do Horror desceu dos céus para se lhe afivelar ao rosto. Acorreram a levantar a rainha mas ela, impulsionada de dentro, por uma mola interior, ergueu-se, mostrando-se logo envergonhada por aquele momento de fraqueza. Apertou-se ao filho, consolando-o e limpando-lhe ranho, baba e lágrimas com as luvas ensanguentadas. Depois alguém piedosamente o tirou dali, alegando que ele precisava de tratamento. Necessitavam da rainha-mãe, que era preciso mandar buscar com toda a urgência à Ajuda, e dum sacerdote que encenasse a extrema-unção do rei e do príncipe.

Veio o padre, que recitou os ofícios da agonia, e chegou pouco depois numa carruagem fechada Maria Pia. Quando se apeou era noite fria. Vinha toda de negro e da sua antiga elegância nada se distinguia, a não ser, na noite escura, a mancha muito alva do rosto. Era mais um fantasma, chegado da terra dos mortos, lá para o triste e distante ocidente. Trazia os olhos muito abertos, um ar de espanto, de quem se recusava a acreditar no que lhe haviam contado. Mal a vislumbrou no estribo da carruagem, assim desamparada e indecisa, o filho querido, Afonso Henriques, lançou-se-lhe nos braços a chorar. Ela de relance percebeu-lhe no esgar da visagem todo o doido sofrimento daquele lance e decidiu então avançar pelo seu passo ao encontro do filho e do neto.

– Je veux les voir. Je veux les voir – exclamou, com as lágrimas geladas a escorrerem-lhe pelo rosto ossudo.

E avançou pelo átrio nu do Arsenal à procura dos cadáveres. Parecia um espantalho desengonçado, uma múmia que saída do seu túmulo antigo se pusesse a andar com ar sinistro por entre os vivos, à procura dos seus pares. Tinha as mãos geladas, os lábios secos, os olhos esbugalhados, alucinados pela dor, pela loucura, pelo medo. De quando em quando tropeçava na roda do vestido e era preciso que o filho a amparasse nos braços fortes como uma casa com as paredes ameaçando ruir que fosse necessário suster com contrafortes de pedra.

Todos a seguiram, chorando em silêncio, incapazes de transporem a curta extensão de espaço. Ao fim duma infinidade, chegaram. Um luar difuso banhava o improsivado telheiro onde provisoriamente haviam arrumado os dois colchões. Tudo aquilo carregava uma cena recente, acontecida lá para Cascais, num dia chuvoso e tétrico de Outono. Ajoelharam todos, impressionados com o silêncio espesso que envolvia os dois corpos derrubados e sem vida, deitados na palha podre dos colchões. Que estranho e lúgubre presépio aquele. Estavam todos transidos de pavor e de frio. Nem sequer sabiam se conseguiriam mais tarde regressar ao paço. Corriam boatos de que outros grupos de emboscados estavam espalhados na cidade, dispostos a vingar a derrota do 28 de Fevereiro e a tomar de assalto o paço e o préstito real, entre o Cais-do-Sodré e a Pampulha. Era o pânico. Estava ali o que restava da família real, uma velha doida, uma viúva fantasmática, e duas crianças, uma imberbe e outra desdentada. À volta era o silêncio, o silêncio da cidade, onde não se via vivalma. O mundo aferrolhara-se por detrás das janelas e das portas; não bulia um gesto de interesse que fosse pela sorte daquela gente. Só a Lua gelada no céu deixava cair diante daquela indiferença e de tanta dor as suas lágrimas de lume gelado.

Nenhuma das grandes tragédias em que os Braganças se haviam até então envolvido se compara a esta. Terramoto de Lisboa, reformas de Pombal, partida para o Brasil, Franceses, desatinos de Carlota Joaquina, morte de João VI, forcas caudinas, Terror miguelista, cerco do Porto, homicídio do Teles Jordão, exílio do arcanjo loiro, ruína do imperador, Costa Cabral e Patuleia, são pouco mais de nada ao pé desta cena apocalíptica e desamparada, digna duma grandiosa página bíblica: dois colchões urinados num beiral duma casamata com os corpos baleados do rei e do príncipe herdeiro e a família à volta, rezando, cheia de medo, incapaz de regressar a casa. Que drama inimaginável! Que presépio! Que retábulo divino, Deus meu!

A família real portuguesa estava irremediavelmente abandonada, perdida, sozinha. Sozinha? Não. Eram eles e ainda os outros dois – o homem das barbas e da carabina e o homem do bigode e do revólver, trucidados também pelas balas da polícia.  E ainda um terceiro, um inocente, apanhado pelo fogo cruzado da fuzilaria. Jaziam do lado de fora do muro, estendidos em três lonas, inertes, os olhos revirados e brancos, os coletes manchados de sangue, os corpos desconjuntados; faziam parte daquela tragédia, ao lado do rei e do príncipe. Também eles não tinham para se cobrir mais que a Lua fria no céu de Inverno. A Lua e as duas estrelas gigantescas de Orionte, a vermelha e sangrenta Betelgeuse e a azul e muito enigmática Rigel, brilhando a sudeste, sobre o cocuruto do silencioso torreão oriental do Terreiro do Paço.


VII

O MENINO DO FIM


Podia ter acabado tudo naquele momento, mas não acabou. A História tem voltas que são requintes de perversidade e contornos que são excessos de insensatez. Este protraimento foi um deles. Depois da cena no Arsenal a família real conseguiu regressar ao paço. Até a rainha-mãe pediu uma pistola para levar no colo, entre as mãos secas, a tremelicar. Era um espectro a tremer de medo, quando subiu para a carruagem que, protegida por um esquadrão de cavalaria arranjado à última hora, saiu à desfilada pela porta do Cais-do-Sodré e a coberto da escuridão só parou no pátio das Necessidades. Sabugosa, no estribo, grosso bigode, cabelo grisalho encavalitado no alto da cabeça, pistola na mão, oferecia o corpo às balas, preparado para morrer, matando. Na sala do paço desfizeram-se todos em lágrimas, abraçando-se. A rainha-mãe tremia de frio, enregelada, olhos alucinados, dedos espetados, como galhos de metal áspero. Amélia congeminava vinganças; Afonso soluçava inerte e o infante inconsolável não parava de murmurar, como uma criança mimada e dorida, a quem tivessem roubado o seu brinquedo preferido.

– O meu pai! O meu irmão! Quero o meu pai! Quero o meu irmão!

Tinha um traço de dor no rosto, uma tristeza funda nos olhos que nunca mais perdeu. A máscara do Horror que se lhe afivelou à cara no momento em que viu a mãe tombar no Arsenal deixou-lhe para sempre um rasgão de sofrimento nos olhos e nos lábios. Nunca mais os seus lábios se souberam abrir num sorriso rasgado e feliz.

De repente lembraram-se dos corpos do rei e do príncipe. Era preciso mandá-los buscar. Ficaram as senhoras e os homens bateram de novo para oa Arsenal com duas carruagens e o corpo da escolta. Foi um trabalho de Hércules removerem o corpo do rei. Estava frio, desarticulado, com o sangue coagulado. Inchara tanto que a farda lhe rebentara pelas costuras. Pesava chumbo e quando o conseguiram recostar nas almofadas foram precisos vários homens para o ampararem e mesmo assim insistia em tombar com o estrondo dum grande aparador cheio de loiça. Na outra carruagem enfiaram o corpo do príncipe herdeiro e lá foram aos solavancos, com os mortos aos tombos, escorregando no banco, amparados pelos braços fortes dos homens. Que cena, vida minha! Nada se lhe compara, nem mesmo o sudário do Calvário. No céu a Lua fiel olhava para aquilo tudo com olhos de piedade e chorava, chorava sobre a milenar desgraça dos homens e das mulheres.

No dia seguinte, a cidade saiu a medo à rua. Corriam atoardas várias, mas uma única certeza parecia haver, a morte do rei e a do príncipe herdeiro. Os comerciantes da Baixa abriram as lojas, os caixeiros trataram das montras, as senhoras mostraram-se à janela, tudo em silêncio, sem espalhafato, à espera de notícias, com as árvores nuas no passeio e nas praças, sem uma folha, os braços levantados ao céu, numa tristeza metálica, asséptica, de fim de mundo. Não se via ninguém de luto; ao fim da manhã, quando chegou a confirmação indesmentível da morte de Carlos e de Luís Filipe, comerciantes e caixeiros foram a casa trocar de gravatas. A Baixa de Lisboa encheu-se de vistosas gravatas vermelhas. Era uma explosão de alegria. Trocavam-se sorrisos, piscavam-se os olhos, diziam-se aqui e ali ditos maganos.

– Então lá mataram o porco?! – dizia um, ajeitando o nó da gravata.

– Só demorou foi mais do que devia – respondia outro, levando os dedos à aba do chapéu.

Por fim prometia-se com sinais de jura que ningém, mas ninguém, compareceria nas exéquias oficiais dos dois Braganças ou, comparecendo, seria para mostrar o desrespeito que nutria pelo regicizado.

Inquiriu-se quem eram os dois ousados que haviam emboscado a carruagem real no Terreiro do Paço. Depressa se soube. Um era Manuel dos Reis da Silva Buíça, trinta e dois anos de idade, transmontano e filho natural dum padre. Fora segundo-sargento e instrutor da carreira de tiro de Bragança. Viúvo, com dois filhos, vivia amancebado com uma costureira da Baixa e exercia a profissão de professor primário numa escola particular de Lisboa, o Colégio Nacional. Era figura característica, com a fronte ampla e levantada, os olhos miúdos e vivos, as longas e negras barbas de apóstolo anarquista. Entrava no café Gelo todos os serões para cear ou beberricar com os amigalhaços o seu decilitro de vinho do Cartaxo.

O outro, de vinte e três anos, de bigode farto e castanho, era Alfredo Luís da Costa, alentejano de Castro Verde, empregado do comércio e animador da Associação dos Caixeiros de Lisbos, cujo boletim tinha a cargo. Era também figura grada da Baixa lisboeta e assíduo frequentador do café Gelo. Ambos pertenciam ao grupo civil que no dia 28 de Janeiro se dera a missão de emboscar na avenida da Liberdade João Franco. Faziam parte dos fios do anarquismo urbano que a Carbonária se encarregava de pôr ao serviço dos objectivos do partido Republicano. Quer Buíça, quer Costa estavam ligados ao jovem ex-seminarista da rua do Carrião, lido em Kropotkine, o primeiro por laço de parentesco civil, o segundo por dele editar textos de propaganda anti-brigantina.

A idolatrização dos dois começou nesse mesmo dia. Iniciaram-se subscrições de apoio aos orfãos do transmontano e mandaram-se imprimir os retratos dos dois revolucionários para serem distribuídos nas ruas de Lisboa e nos comícios do partido Republicano. Quinze dias depois do acto do Terreiro do Paço, no dia 16 de Março, um domingo, organizou-se a primeira romagem  às campas do Buíça e do Costa, no Alto de S. João. Dez mil pessoas compareceram à chamada e desfilaram em silêncio pela Baixa, pela Almirante Reis, por Arroios com coroas de flores e retratos dos regicidas. Foi uma prova de força que se destinou antes de mais a mostrar ao paço que o bom povo da cidade mais depressa ia chorar à campa rasa dos regicidas que à necrópole de mármore de S. Vicente. E esses préstitos de glorificação nunca pararam, sempre mais cheios, sempre mais idolatrados, sempre mais exaltados, como se em vez de homens, misturando virtudes e defeitos, lá estivessem enterrados naquela cidade dos mortos dois santos sem mancha, que pudessem do outro lado da vida interceder pelos pobres mortais deste mundo.

No mesmo dia em que as gravatas vermelhas fizeram enchente nas ruas da Baixa de Lisboa, o paço viveu horas de agonia. Ninguém dormira na noite anterior. O pânico dum ataque destemido às Necessidades afectava aquelas mentes perturbadas e não as deixava sossegar. Olhavam da varanda as bruxuleantes luzes que cintilavam para Alcântara e apavoravam-se vendo um exército ululante de proletários em movimento. Tudo as amedrontava; até o piar das corujas lhes parecia vomitar de metralha, lá para as traseiras de Monsanto. Quando finalmene o dia clareou, varrendo os fantasmas, o duque de Beja era o príncipe herdeiro e o pobre infante o rei de Portugal. Que comédia! Estavam ambos lívidos, soluçantes, estupefactos. Um era um doido e o outro uma criança de dezoito anos, imberbe ainda, que não sabia sequer para que servia um trono. Entregou-se a chorar nos braços da mãe, cuja primeira atitude foi convocar o Conselho de Estado para esse mesmo dia. Estava desejosa de cair em cima de João Franco, expulsando-o do governo. Ela o culpava de tudo, até do rei se dar com a desalmada da Múrcia.

Para o novo governo foi escolhido um gabinete de fusão, com Regeneradores e Progressistas. A presidência foi parar ao almirante Ferreira do Amaral, um independente, bem relacionado nos meios republicanos. Três dias depois o novo governo expulsa João Franco do país, revoga a legislação sobre a imprensa, anula o decreto de 31 de Janeiro, que permitia ao governo degredar sem aviso os acusados de crimes políticos. Apronta ainda uma larga amnistia política e põe em liberdade Afonso Costa, António José de Almeida, Egas Moniz, França Borges, o visconde da Ribeira Brava e muitos outros implicados no golpe de 28 de Janeiro. Abre as portas ao regresso dos homiziados como Alpoim e promete ainda para breve uma completa e geral aministia de todos os incriminados políticos. Mesmo os marinheiros deportados em 1906, depois das graves insurreições nos navios de guerra D. Carlos e Vasco da Gama, serão abrangidos.

Ensaiava-se uma política de tranquilização, depois de tanto nervo e movimento. Diziam as rainhas que só assim seria possível salvar a monarquia. E o rei, uma criança inexperiente e ingénua, convencia-se que sim, que a monarquia ia sobreviver, bastava para tanto a mãe e os políticos dos rotativos. Do outro lado, os republicanos riam de tanta inocência, esperando o momento certo para darem o empurrão final naquele casarão em ruínas, governado por duas mulheres, uma velha doida e um espectro negro, gigantesco, de buço carregado, que vestia o hábito talar e assustador dos frades. Logo nas eleições de 5 de Abril de 1908 para a Câmara de deputados os grupos armados saíram à rua, desafiando a Guarda e esboçando uma nova insurreição armada. O balanço foi catastrófico, quatorze mortos, mais do que em qualquer revolução anterior. Os republicanos obtiveram ainda assim uma rendosa representação parlamentar, sete deputados. Um ano depois, em Abril de 1909, no Congresso de Setúbal, o directório  do partido, pressionado pelo Congresso, compromete-se a desencadear sem demora a revolução, apressando o fim da monarquia. O rei mostrava-se uma criança, mole e irresponsável. Afogava as suas tristes mágoas em champanhe, enquanto a mãe despachava no paço com o governo.

Um ano depois a revolução andava de novo nas bocas de toda a gente em Lisboa. Havia comissões de civis prontas a sair à rua e comissões de militares infiltradas nas principais unidades da cidade. As guarnições dos três cruzadores sediados no Tejo estavam também na disposição de se sublevar. A monarquia sobrevivia por um fio delido e sem vida, que qualquer ventania mais sacudida desprenderia de vez.

Entretanto o rei, que acabara de apagar as vinte velas do seu bolo de aniversário, perdia-se num mar revolto. Afogava as tristezas em néctar caro e os sentidos numa bonita bailarina da moda, de nome artístico Gaby Deslys, que ele desencantara no Capucines de Paris, numa noite fria de Dezembro de 1909. A imprensa internacional ficou encantada com o romancinho amoroso entre o pobre órfão, descomprometido e solteiro, buço ralo por cima do lábio, rei dum pequeno país, e uma bailarina francesa do music-hall, muito apreciada na ocasião. Despertou curiosidade e pena esse órfão tão novinho, que acabara de perder o pai e o irmão num grosso atentado e se apaixonava nos teatros de Paris por plebeias de Marselha. Só que a plebeia de Marselha tinha vinte e sete anos bem vividos, fora já cortejada pelo príncipe herdeiro da Alemanha, pelo czar da Bulgária e até pelo velho Leopoldo II da Bélgica. Os Republicanos Portugueses, quando deram notícia do caso, não perderam tempo. Acusaram o rei de inconsciência e de ser incapaz de responder pelos seus actos. Ele, aberto, apaixonado, imprudente, indiferente ao que se dizia, como se falasse outra língua, convida a bailarina para vir a Portugal e recebe-a no seu quarto das Necessidades.

Foi a vergonha no paço e a estudada indignação nos meios republicanos. Fala-se das valiosas jóias que o rei lhe oferece, cego pela sua paixão. Os Republicanos querem-no depor; a corte quer afogar o caso, casando-o de imediato, mas confronta-se por toda a parte com o silêncio gelado. Quem na Europa estava na disposição de abrir a porta a um reizinho, cujo pai acabou abatido a tiro de pistola? Ninguém! Todos se calam; todos voltam costas. É a tragédia do Terreiro do Paço a desenrolar-se em toda a sua dispensável e perversa malvadez.

Mas o escândalo ainda estava para chegar. Em Setembro comemorava-se no Buçaco o centenário da famosa batalha em que o exército luso-inglês comandada pelo duque de Wellington vencera o exército francês de Massena. Para lá convergiam os convidados Ingleses, entre eles o neto de Wellington, e a corte portuguesa, anfitriã do acontecimento. Ora o pobre rapaz, romântico, inoportuno, sonhador, quando se dá conta da bonita envolvência do parque, só se põe a suspirar pela sua bailarina. Está desejoso de mandar vir a sua Gaby e de passear com ela nas sombras frescas da mata. É o seu sonho! Dá tudo por ele! Até o ceptro, se preciso for. Não sossega enquanto a não manda vir de Paris, à desfilada, no sud-express. E no dia 27 de Setembro, cem anos depois da grande batalha, está ele a abraçar a francesinha no parque, beijando-a enlevadamente, enquanto a corte e o governo evocam com palavras de circunstância o heroísmo dos Portugueses, esses Russos do ocidente.

Cinco ou seis dias depois a revolução republicana saía à rua. Era a noite do 3 de Outubro de 1910. Os primeiros quartéis são assaltados, as polícias neutralizadas, dois navios de guerra no Tejo erguem a bandeira republicana e um terceiro fica na posse dos marujos, que aprisionam os oficiais. Por fim duas zonas da cidade são ocupadas por revolucionários civis, Alcântara, na cintura ocidental da cidade, e a Rotunda, no cimo da avenida da Liberdade. Assim se chegou à madrugada seguinte e assim se prosseguiu durante parte do dia. Ao princípio da tarde o governo Regenerador de Teixeira de Sousa tenta envolver os revoltosos civis da Rotunda, secundados pelos militares de Machado dos Santos, mas os cruzadores revoltados tomam posição no Tejo e bombardeiam o Terreiro do Paço. As tropas fiéis ao governo que estavam no Rossio, sentindo-se ameaçadas, entre o fogo da Rotunda e o do Tejo, mostram-se prontas a capitular. A monarquia chegava ao fim, perdida e privada de qualquer apoio. O fio pelo qual alimentava ainda o seu anémico corpo acabava de quebrar; bastava apenas agora descer as pálpebras do corpo que havia acabado de soltar o último suspiro.

Que se passava entretanto com o rei? No serão do dia 3 de Outubro, enquanto a revolução começava a descer à rua, estava ele num banquete no palácio de Belém, oferecido pelo presidente do Brasil, Hermes da Fonseca, muito longe de calcular o que estava a acontecer. Cumpriu o protocolo, mas o pensamento navegava outras águas. No espírito tinha ainda as recordações recentes da mata do Buçaco. Lembrava a cada instante com nostalgia os doces olhos da amante nas sombras recatadas dos grandes e luxuosos castanheiros. Exaltava-se quando lhe aflorava ao espírito a forma como ela se lhe entregara, doida e insaciável, no quartinho que haviam reservado para os dois. Melancolizava quando pensava na despedida, já na Pena, e na partida dela, com lágrimas nos olhos e os lábios mimosos a tremer.

Depois do banquete, regressou ao paço das Necessidades. Jogava cartas com alguns amigos, quando se ouviu o primeiro tiro no Tejo. Escutaram. Outros se ouviram. O rei tentou de imediato pegar num telefone e comunicar com o governo. A linha estava cortada. Tentou depois a Pena, onde a mãe estava, e conseguiu a ligação. Informou-a do que se passava e aguardou. Pouco depois chegaram algumas tropas fiéis ao rei, dispostas a defender o rei. De madrugada os civis de Alcântara tentaram assaltar o paço das Necessidades,. Estabelece-se o tiroteio e as balas das espingardas dos revoltosos estilhaçam os vidros das janelas do paço. É o pânico. Ainda assim, os revoltosos são repelidos. De manhã, não aparece quase ninguém. O rei está preso e quase sózinho. Os seus ajudantes-de-campo abandonam-no; o corpo diplomático não aparece. Ao fim da manhã dois navios de guerra, o Adamastor e o São Rafael, descem o Tejo e fundeiam em frente do paço. Pouco depois começa o bombardeamento. Um projéctil atinge a torre e outro arromba as paredes da sala dos espelhos. O rei refugia-se à pressa nas traseiras, num pequeno casinhoto do parque. Está sozinho e aterrorizado. Agora o seu pobre espírito não pensa mais na Gaby do Capucines; só tem presente as aterradoras imagens da morte do pai e do irmão.

– O meu pai! O meu irmão! – soluça.

Nisto um estilhaço de granada dá cabo do pavilhão real que flutua à luz da manhã. É a euforia entre os marinheiros e a desmoralização entre as tropas fiéis ao rei.

Em aflição, o rei consegue entrar em contacto telefónico com o chefe do governo, Teixeira de Sousa, que o aconselha a retirar de imediato para Mafra ou para Sintra, onde estavam as duas rainhas. Afonso Henriques está por perto, na cidadela de Cascais. O rei opta por Mafra, para onde vai de automóvel logo de seguida. São dadas ordens para que as rainhas se lhe reúnam. Ao fim da tarde abraçam-se os três, chorosos e infelizes, no grande paço de Mafra, onde não há ninguém para os receber; o príncipe herdeiro continua na cidadela. À noite chegam notícias da capital. Lisboa está cercada pelos revolucionários e as tropas fiéis ao rei, acantonadas no Rossio, comandadas por Paiva Couceiro, cada vez mais desmoralizadas. De manhã, nada se sabe, apenas uma noite de angústia e de incerteza, em que não dormiram, apavorados pelo mais pequeno ruído, no grande casarão onde João VI havia sofrido das hemorróidas.

Ao meio-dia chegam telegramas de Lisboa em nome da República com ordens para a Câmara Municipal e para a Escola Prática de Infantaria. Está tudo perdido, a República havia sido proclamada nessa manhã, à varanda da Câmara Municipal de Lisboa. Não restava senão aos três apavorados Braganças morrer ou fugir. Acabam por decidir fugir e atravessam em pânico, de automóvel, o estreito corredor de terra que separa Mafra da Ericeira. Ao virar duma esquina, Maria Pia assusta-se com um homem que lhes aparece pela frente, sujo e terroso, de enxada ao ombro, e grita aterrada. Pareceu-lhe ver pela frente um carbonário, de espingarda apontada. Manuel soluça, em agonia, enquanto a mãe, habituada a sofrer desde criança, aguenta firme, com o seu porte colossal. Ao chegarem à Ericeira têm uma multidão à espera. Estão lá os pescadores de perna ao léu, os velhos de barrete negro de campino, as varinas de cabelo apanhado no alto da cabeça, as crianças ranhosas e descalças, os cães escanzelados e sórdidos. Tudo os veio ver; todos querem ter uma ideia de como se apresenta um rei, duas rainhas e um príncipe herdeiro. Que dilema! Que destino! Que drama tão cru e tão fantástico!

Maria Pia volta a gritar de susto. Manuel tem os olhos fechados; é quase um moribundo. Só Maria Amélia, diante daquela multidão, consegue dizer, sem saber medir o efeito das suas palavras. Naquele momento espera tudo, ser obedecida ou trucidada pelo vagalhão ameaçador que tem pela frente.

– Arreda! Arreda!

A multidão afasta-se obedienemente e eles chegam à praia salvos, onde Afonso Henriques os espera no iate real Amélia, propriedade do Estado português. Maria Pia na hora do embarque, rodeada de novo pela multidão da vila, leva as mãos ao estômago e grita, desamparada e frouxa.

– J’ai faim! J’ai faim!

Voltavam-lhe as angústias gástricas naquele momento dramático. Como depois lhe chegarão as saudades pungentes das suas flores. É o momento em que ela, desesperada por ver os seus canteirinhos da Ajuda, já no exílio, pega num regador de latão e banha de lágrimas as flores desenhadas nos tapetes da cunhada italiana.

Manuel chora quase incapaz de dar um passo e Amélia, a mãe, tenta desesperadamente aguentar os nervos mas não consegue. Grita, chora e barafusta também ela. Afonso Henriques, aflito por se ver longe, acena da amurada do barco e chama-os em desespero. Que cena atroz! Só o regicídio na história desta família se lhe compara em drama e tragédia. Partem por fim os quatro, os últimos Braganças, para nunca mais regressarem. Fechou-se assim a história duma família, que como a História da Vida foi feita de dor, de lágrimas, de miséria, de absurdo e duma gota de grandeza e de amor, que tudo justifica e tudo redime.

 

 

Outubro de 2007

17 de Agosto de 2008


NOTA FINAL

Num livro recente sobre Sebastião de Avis, último descendente dessa casa dinástica, apresentei os princípios que me norteiam para escrever sobre  História de Portugal. É escusado repeti-los aqui. Assim como assim, vale a pena dizer que a História me interessa muito mais como drama vivo que como documento inerte, sem actividade própria. A História é para mim um animal vivo, com sangue, sofrendo e amando, gritando e rindo, e não um fóssil petrificado, arrumado e classificado numa prateleira particular do conhecimento. Viver na intimidade plena das minhas personagens, sem para isso precisar de pedir desculpa, eis o meu programa. A História é dor; a verdadeira História é a dos gritos, disse Raul Brandão. E são esses gritos que eu pretendo registar, nada mais.

Esta gente que anda nos livros de História coroada de loiros, carregada de virtudes, arredondada de feitos, também gritou, também odiou, também sofreu, também amou. E sobretudo também disse palavra grossa da boca para fora, também se descuidou, também barafustou. Por vezes, valendo-se da situação privilegiada que tinham, dos meios ao seu alcance, do poder que dispunham, do recato em que viviam, foram ainda piores do que nós, os anónimos que não andamos nos livros de História. Mas é assim em toda a sua humanidade crua e funda, em todo o seu descaramento, que eu quero essa gente comigo, porque é assim que eles estão vivos. De outro modo, são ídolos falsos, imagens de papelão, estátuas de bronze, sem voz nem coração, e não personagens reais de carne e osso, com sangue vermelho a correr-lhes nas veias. Só amuados e tratantes, mas também sofridos e apiedados, quer dizer, vivos e verdadeiros, eu os compreendo e reconheço. E só desse modo lhes estendo as minhas mãos para os receber fraternalmente nos meus braços.

– Meus irmãos! – confesso-lhes nesse momento, comungando com eles a vida e o pão.

Reclamei por isso, na linha de Fiama Hasse Pais Brandão, o direito à alucinação em História. Quis com isso dizer que a encaro como um teatro de vozes, acções e caracteres, uma teatralidade imaginária que dá vida ao passado, abolindo, pelo menos na aparência das representações, as fronteiras do tempo e da morte, e não como uma cronologia sumária ou uma estatística fixa. Tenho para mim que a pintura da História em quadros poéticos, a organização da sua escrita em verdadeiros actos dramáticos, a construção das suas personagens em painéis autónomos e vivos, é muito mais produtiva para o seu conhecimento essencial que a insípida sucessão de eventos a que se chama cronologia ou o requentado pastelão explicativo que são os números que traduzem factos sociais.

Os meus trabalhos em torno da História de Portugal não recusam o conhecimento da base sumária dos acontecimentos, nem põem de lado a investigação dos factos, mas pretendem porém outra coisa. O que me interessa é captar a essência, a cor e a forma do movimento interno do drama dum ser colectivo chamado Portugal em sucessivos momentos da sua existência, Inês e Pedro, Sebastião e Filipe II, e agora Carlos e a sua família. Acredito que só a nítida transmissão dessa percepção permite ao leitor ter uma ideia segura da nossa vida colectiva, quer no geral, quer nos seus momentos mais representativos. E acredito que é essa ainda a receita indicada para arrancar a actual historiografia portuguesa à sua pobreza pardacenta, ao sabor intragável da sua cozinha sem arte e sem nervo, à sua falta de jeito e de proveito, de tão maçadora e soporífera.

Aos meus trabalhos em volta da História de Portugal chamo eu romances históricos. Pelos princípios de composição que os regem, e que o leitor já conhece, pela componente artística, pela pintura, pelo drama, pela invenção, pelo papel da alucinação, não podia eu chamá-los de outro modo. Escrever História é no meu caso escrever espontaneamente romance. Dito de outro modo, escrever História é construir e contar uma intriga capaz de impressionar tanto ou mais que a vida. Todo o passado para se fazer presente precisa de se fazer ficção; não há enunciação da História sem assunção consciente da re-invenção.

Assumo por isso o papel criador da mentira na minha forma de abordar a História; não reivindico para o meu trabalho a verdade, a verdade graúda, a verdade da Ciência, a não ser de forma indirecta ou oblíqua. É através da imitação, no que esta tem de mentira ou de inventiva, que no meu caso a verdade pode ser dita. A imitação é criação dramática e esta por sua vez é construção simbólica ou acção imaginária da mente. Se eu quiser pintar uma personagem histórica, dando dela um retrato real, mais até do que verosímil, não posso ficar pelo que dela documentalmente sei; preciso de preencher com a imaginação o que não sei, exagerando propositadamente certos traços conhecidos, para traduzir de forma indirecta mas real uma personalidade. Em fundamento, neste restritivo mundo em que vivemos e escrevemos, nunca conseguimos dizer a verdade, a não ser por aproximação, e aproximação indirecta. Essa estimação não é senão, em última visão, um produto da nossa mente, quer dizer, uma mentira. Em História faço pois questão de pertencer ao clube dos mentirosos activos.

Mesmo assim o romance histórico que pratico é só meu e aos olhos de muitos passa decerto por condenável ou despicienda heresia. Em minha defesa direi apenas que não dramatizo o ponto de vista do narrador, entregando-o a uma personagem, como em geral ou por sistema fazem os meus contemporâneos que se dedicam ao romance, porque esse narrador não sou eu. Essa voz que fala nos meus livros, que se comove e emociona, que grita e barafusta, que participa sem reticências nem fronteiras nas acções das personagens e que depois se levanta como um fantasma sobre o mundo vazio dos homens para lhe dizer a chorar uma palavra de consolo e de esperança ou para com um sorriso mordaz o empurrar de vez para o lixo, é muito maior do que eu e está muito acima do que qualquer personagem particular, a quem eu entregasse a tarefa da narração, pudesse dizer e sentir sobre o que conta.


ANEXOS


CRONOLOGIA*

1755 – Terramoto de Lisboa.

1777 – Morte de D. José. Início do reinado de D. Maria I.

1782 – Morte do marquês de Pombal.

1792 – O príncipe D. João substitui a mãe, D. Maria I, no governo.

1799 – Deposição de D. Maria I. Início da regência do futuro D. João VI.

1801 – Guerra das Laranjas entre Portugal e Espanha.

1803 – Conspiração de Carlota Joaquina.

1807 – Fuga da família real para o Brasil. Entrada de Junot em Lisboa.

1808 – Partida de Junot.

1809 – Segunda invasão francesa (Soult). Partida de Soult depois do saque do Porto.

1810 – Terceira invasão francesa (Massena).

1811 – Partida de Massena.

1816 – Morte de D. Maria I. Início do reinado de D. João VI

1820 – Revolução constitucionalista. Reunião da Assembleia constituinte.

1821 – Regresso de D. João VI do Brasil.

1822 – Declaração de independência do Brasil. Assinatura em Lisboa da Constituição. Reunião das Cortes ordinárias.

1823 – Episódio de Vila Franca. Dissolução das Cortes e supressão da Constituição. Carta.

1824 – Episódio de Abril e sedição absolutista. Desterro do infante D. Miguel.

1826 – Morte de D. João VI. Regência da infanta Isabel Maria. Abdicação de D. Pedro, imperador do Brasil, em D. Maria II. Carta.

1827 – Saída de Saldanha do Ministério. Archotadas.

1828 – Regresso de D. Miguel. Aclamação de D. Miguel, como rei absoluto.

1829 – A ilha da Terceira permanece ao lado de D. Maria II.

1830 – Morte de Carlota Joaquina. Palmela na Terceira.

1831 – D. Pedro abdica da coroa do Brasil. Regresso de D. Pedro à Europa.

 1832 – D. Pedro na Terceira. Assume a regência em nome da filha. Partida da expedição dos Açores e desembarque de Pampelido. Início do cerco do Porto.

1833 – Expedição ao Algarve de Terceira. Entrada em Lisboa. Saldanha levanta o cerco do Porto. Miguelistas fortificados em Santarém.

1834 –  Retirada de D. Miguel de Santarém. Convenção de Évora Monte. Início do reinado de D. Maria II. Morte de D. Pedro IV.

1835 –  Morte de Augusto de Leuchtenberg, marido de D. Maria II.

1836 – Casamento de D. Maria II com Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha. Sedição constitucional; Setembrismo. Golpe de Belém.

1837 – Revolta dos marechais.

1838 – Constituição.

1839 –  Ascenção de Costa Cabral.

1842 – Restauração da Carta no Porto. Novo código administrativo.

1843 – Reforma fiscal.

1844 – Reforma da justriça.

1846 – Levantamento popular no Minho contra Costa Cabral. Juntas revolucionárias. Junta do Porto. Patuleia.

1847 – Convenção do Gramido e fim da guerra entre o governo e a Junta do Porto.

1851 – Saldanha no Porto. Pronunciamento militar a favor da Regeneração. Queda de Costa Cabral, conde de Tomar.

1852 – Acto adicional à Carta Constitucional.

853 – Morte de D. Maria II. Regência de D. Fernando.

1855 – Início do reinado de D. Pedro V.

1856 – Primeiro troço da via férrea em Portugal, entre Lisboa e o Carregado.

1857 – Casamento de D. Pedro V com D. Estefânia.

1858 – Morte de D. Estefânia.

1861 – Morte de D. Pedro V. Início do reinado de D. Luís I.

1862 – Casamento de D. Luís I com D. Maria Pia.

1863 – Nascimento de Carlos de Bragança.

865 – Nascimento de Afonso Henriques, duque do Porto e futuro príncipe herdeiro.

1867– Abolição da pena de morte.

1868 – Motim anti-fiscal. “Janeirinha”.

1869 – Casamento de D. Fernando II com Elisa Hensler.

1870 – Saldanhada.

1871 – Conferências do Casino.

1876 – Pacto da Granja; fusão do partido Histórico e do Reformista. Partido Progressista.

1878 – Iluminiação eléctrica em Lisboa.

1881 – Tratado de Lourenço Marques.

1885 – Conferência de Berlim. Expedições de Capelo e Ivens. Mapa Cor-de-Rosa. Morte de D. Fernando II.

1886 – Casamento de D. Carlos com D. Amélia de Orleães.

1883 – Viagem de instrução pela Europa de D. Carlos e de D. Afonso Henriques.

1889 –  Morte de D. Luís I.

1890 – Ultimato inglês.

1891 – Revolução anti-monárquica no Porto.

1906 – Primeiro governo chefiado por João Franco.

1908 – Revolução anti-monárquica frustrada contra a monarquia. Regicídio. Início do reinado de D. Manuel II.

1910 – Revolução anti-monárquica vitoriosa. Queda da monarquia. Fuga da família real.

1911 –  Morte de D. Maria Pia.

1932 –  Morte de D. Manuel II

1951 –  Morte de D. Amélia de Orleães.

 

 

* Escolhem-se apenas os sucessos que constituem a trama deste livro, deixando de lado muitos acontecimentos significativos do período em causa.


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Tributo a António Cândido Franco – Índice

Portugal – Maio de 2023