No espelho
Blanca Varela ₢ 1999

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 BLANCA VARELA (1926-2009 PERU)
TRÊS POEMAS EM TRADUÇÃO DE FLORIANO MARTINS


NO ESPELHO

 

Exploro a chama e não a extingo porque amo seu calor doloroso,

suas angustiadas línguas sem som,

sua pele redonda que atravesso com meus dedos

para chegar à água solitária de tão leves pálpebras.

 

E sinto a asa nos espelhos que me devolvem sempre,

como se colhesse as violentas cinzas que jogaram aos peixes,

como se uma ave morta pesasse entre meu sangue

e a estancasse ali,

próxima ao fogo vivo dos próprios insetos,

a seus pequenos corpos,

belos sob escuros e apodrecidos licores,

íntimos e nervosos nos gozos profundos.

 

Raízes de pesadas colunas de sonho entre a fronte,

gotas áridas nos frutos caídos

que transbordam azeites agudos, insondáveis.


MÁSCARA DE ALGUM DEUS

 

Diante de mim este rosto lunar.

Nariz de prata, pássaros na fronte.

 

Pássaros na fronte?

 

E logo há vermelho

e tudo o que a terra esquece.

Umidade com poderes de fogo

florescendo após os negros cílios.

Um rosto na parede.

Detrás do muro, além de toda vontade,

mais longe ainda que olhar e calar:

o que?

 

Sempre algo que romper, abolir ou temer?

E pelo outro lado? Ao revés?

 

Voa a mão, nasce a linha,

vibrante destino, negro destino.

Por um instante a melodia é clara,

a tarde parece eterna,

puríssima a sombra do céu.

 

Volto outra vez. Pergunto.

Talvez diga algo este silêncio,

é uma imensa letra que nos nomeia e contém

em seu ar profundo.

Talvez a morte detrás deste sorriso

seja amor, um gigantesco amor

em cujo centro ardemos.

 

Talvez o outro lado exista

e seja também o olhar

e tudo isto é o outro

e aquele este

e sejamos uma forma que muda com a luz

até ser apenas luz, apenas sombra.


É MAIS VELOZ O TEMPO

 

estar em algo

alguma vez ou sempre

pedra animal homem

história de uma cor

sombra veloz em meu peito

o tempo

o tempo me persegue e me desdiz

pergunto

escrevo no ar

com a minha língua escrevo

com minhas mãos e pés escrevo

com meus olhos

 

o amor

uma onda inimiga me derruba

junto palavras contra palavras

não creio em nada desta história

e no entanto a cada manhã

invento o absurdo fulgor que me desperta

o limite de sombra

a consciência

o ardil original

o sol acima

a terra abaixo

ao centro o velho gesto

de uma árvore que me agride

com a inocência das árvores

a canção

que atravessa a nuvem

as coisas

caminham lindamente até a morte

a hora se desfaz sozinha

longe de tudo

fulgor e destruição

ar na greta

ou greta no ar

nem pedra nem animal nem homem

 

a flor aponta o crime

com silencioso rubor

 

ninguém no próprio tempo

se atreve a interromper o tempo


revista triplov . série gótica . outono 2019

parceria tripLOVAGUlha

21 Mulheres Surrealistas

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019

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