Neo-realismo do mais autêntico

BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa

 


“NEO-REALISMO DO MAIS AUTÊNTICO”: MATIZES DE UM AUTOR SURREALISTA NAS CARTAS DE LUIZ PACHECO PARA LUÍS AMARO

SOFIA SANTOS (CLEPUL)[1]


Existem poucas obras epistolares em português que reivindiquem – sem a preponderância de um exercício metaliterário ensaiado, consciente das suas potencialidades fictivas e comerciais futuras – a qualidade ética e estética de um testemunho humano que ultrapassa circunscrições a movimentos, influências, épocas, testemunhos ou lealdades pessoais. Sendo unicamente fiel ao seu idiossincrático conceito de ‘ética’ (ainda que esse conceito inclua o inofensivo maquiavelismo da permuta entre sobrevivência literária e sobrevivência humana), Luiz Pacheco (1925-2008) conseguiu edificar uma obra epistolar passional, pulsantemente controversa, equilibrada entre os eixos da percepção sensorial e racional e que, ainda que dispersa, constitui uma das mais profícuas demarcações do habitual produto literário cuja presença humana mormente se aproxima de um fetichista reflexo platónico. Ao contrário do discurso emulador dos seus críticos, cujo mimetismo se reforça como uma técnica de compreensão e aproximação do texto apreciado, as cartas de Luiz Pacheco denunciavam o destinatário não pela alteração prosódica ou vocabular da sua escrita, mas, tão-somente, pelo nome que encimaria o cabeçalho da carta. O respeito pela sua vitalidade humana, pela sua ética, pela língua portuguesa, pela Literatura e seus autores, malgrado alguns egos dos seus destinatários, constitua sempre prioridade nas inúmeras cartas que enviou até pouco antes da sua morte, mantendo fiéis contactos durante décadas e que raramente interrompia, mesmo quando os impedimentos financeiros imperavam. Fidelidade que manteve, sobretudo (e mais do que com qualquer outra personalidade), com Luís Amaro, crítico literário, co-diretor da revista Árvore e da Colóquio-Letras, e seu consultor editorial,dinamizador e revisor ímpar da editora Portugália. A sua presença evoca, porém, uma transtemporalidade ética e humana que se reflecte não só no seu justo e equilibrado gesto crítico, compatível com uma generosidade dialéctica – que tem no respeito e apreciação da Literatura os dinamizadores cimeiros da evolução cultural e intelectual –, cristalizando finamente um conhecimento que rivaliza com a sua vasta memória dialogante e pluricontextual, mas também numa produção poética que está ainda longe de merecer o adequado destaque e apreciação. A generosidade com que sempre procurou acalentar as relações culturais entre intelectuais, contribuindo igualmente com o seu trabalho de leitor atento e informado, de que a sua vasta biblioteca é apenas um reflexo,contribuiu igualmente para sublimar a sua presença mítica por entre críticos, romancistas, poetas e dignitários representantes da intelligentzia portuguesa. Entre eles se encontrava a personalidade conturbada e insatisfeita de Luiz Pacheco, Tântalo de uma normalidade vivencial que desconhecia, implacável refinador de consciências e atento observador de almas aspirantes ao restrito lugar do Parnaso. Em Luís Amaro encontrou o privilégio de um companheirismo literário e humano que raramente experienciou durante a sua vida, auxílio literário e profissional (com amparos financeiros ocasionais), sobretudo, o alento humano que uma alma electiva como a de Pacheco necessitaria para equilibrar e perspectivar a sua mundividência. “[E]minence grise das nossas Letras” (Luiz Pacheco, N5/6821, carta manuscrita, 11/6/1967) é uma rara expressão que cinzela um estatuto que a Amaro é exclusivo, tal como é única a efígie de António Maria Lisboa em que se exauriu a Poesia.

Do espólio epistolográfico de Luís Amaro, presente na Biblioteca Nacional de Portugal (Esp. N5/6785-6873), seleccionámos algumas cartas cujo conteúdo considerámos reflectir de forma mais viva e esplanada o arco de relações ideológicas e estético-literárias de Luiz Pacheco com algumas personalidades contemporâneas e de referência, bem como considerações sobre projectos em curso, alguns dos quais permaneceriam hipotéticos ou inéditos. Além dessas afinidades e distâncias, é sensível nesta prosa epistolográfica a prolixidade motivacional que pauta o trabalho de Pacheco enquanto revisor, tradutor e crítico, trabalho esse muitas vezes mediado pela intervenção generosa de Luís Amaro, enquanto consultor editorial da Portugália. Ainda quea contingência material e apericlitância do quotidiano de Luiz Pacheco ditassem muitas vezes os prazos e até a frequência dos seus textos, a qualidade do seu trabalho permaneceu insubmissa à fragilidade das remunerações que o permitiam alimentar a sua “tribo” e continuar o que para ele era uma “questão de sangue e de sofrimento” (N6869, carta manuscrita, Setúbal, 7 Junho, s/d). Numa das cartas, desabafa:

Convém-me (dito à puridade) uma colaboração aqui e ali, a receber quando? Mas certa, porque aqui o importante é a continuidade. Assim fazem os mais; não me julgo marciano ou isento em tal matéria. Aliás, pela próxima publicação do PACHECO VERSUS CESARINY, o tal folhetim de feição epistolográfica, se escancara que a necessidade obriga à impudência e que os tais puros (que nunca me arroguei embora houvesse ingénuos afirmando que eu era e por isso me chamavam de maldito, chiça!) é coisa muito rara, ou têm escondido um truque que ainda não percebemos (N5/6833, carta dactiloscrita, 12-08-73).

A sedutora questão da maldição em Literatura assumiu contornos equívocos no caso singular de Luiz Pacheco, que o autor procurou esclarecer argumentada e antecipadamente, emboraem vão, muito devido à apetência que inspirou a proscrição da sua obra fragmentária eamarginalização da sua persona, excêntrica à maneira de Artaud ou de Celine, cuja obra mencionada numa destas cartas (N5/6849 Carta manuscrita, Lisboa, 8 Dezembro 1982), o único livro que Pacheco levou consigo numa mudança, não por acaso, é autobiográfica, Guignol’sBand (Cf. o artigo-recensão do autor a Viagem ao Fim da Noite: Luiz Pacheco, “Notas de leitura – I – lendo e relendo Celine”, in Crítica de Circunstância, Lisboa, Ulisseia, 1966, pp. 85-89). A sua independência relativamente a instituições literárias nunca foi devidamente apreciada pelos surrealistas (exceptuemos o caso de Pedro Oom, que chegou a declará-lo, ainda que indiferentemente, como o único surrealista que ele realmente conhecia. (Cf. Cesariny, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio e Alvim, 1997, p. 292)), ainda que a sua reivindicação pela liberdade criativa e ideológica tenha sido um leit-motiv constante na sua obra: “Sim, porque eu não faço (já agora, na minha idade!) todos os trabalhos que vocês querem! Só faço, já agora, coisas que sei e gosto: escrever umas larachas; traduzir o melhor que posso; mexer em livros, a vendê-los ou a fazê-los” (Luiz Pacheco, “O que é o Neo-Abjeccionismo”, in Textos Locais, Alcobaça, Contraponto, 1967, p. 80).

O acto da confecção livreira marcou em muito – e continua a marcar para a grande parte dos críticos que abordam o imaginário literário de Luiz Pacheco – a relação que este autor manteve com a ideologia surrealista, criando uma editora itinerante, a Contraponto, que, selectivamente, publicou pela primeira vez alguns dos autores referência que marcaram directa ou indirectamente a última vanguarda do século XX (acompanhamos a ideia defendida por Perfecto Cuadrado em A Única Real Tradição Viva, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998), como Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Manuel de Lima, Natália Correia, Herberto Helder e, até, em última instância, a malograda referência para os surrealistas de todo o mundo, Marquês de Sade. Na verdade, muitos consideram (até o próprio Pacheco (“O que é um escritor maldito?”, in Literatura Comestível, Lisboa, Estampa, 1972, pp. 21-22)) que a sua grande obra sobrevivente à implacabilidade do tempo terá sido a de editor, na sabedoria da antecipação de um cânone ainda longínquo e na criação de uma biblioteca pessoal que permaneceu uma referência contracultural e interventiva para alguns editores vindouros, não só Fernando Ribeiro de Mello, da extinta Afrodite, como também, acredito, para a mítica &etc, de Vítor Silva Tavares. Não só os títulos publicados delineavam uma teoria ideológica e estética na concepção de uma biblioteca de cariz surrealista, como a logística de confecção dos livros, sua venda e método ultrapassavam em muito as normas comerciais, ancorando-se, tão-somente, à coerência libertária e pedagógica do seu editor, conhecido por vendê-los, por vezes, de mão em mão ou, até, por os oferecer a leitores atentos. O trabalho de Pacheco não se delimitava a uma necessidade profissional, monetária, mas vislumbrava-se na maioria das vezes como um refúgio não só face à solidão, às dificuldades económicas e às contrariedades que lhe eram destinadas pelo seu modus vivendi (há muito desistira de ter um emprego) e à aversão relativa à acumulação material mas, sobretudo, como uma forma de combate ao comercialismo literário, à crítica instalada e de compadrio, ao controlo do sistema literário por uma casta de eleitos e à institucionalização do lucro intelectual.

Nas cartas do espólio, assumem uma importância efectiva as suas críticas aos representantes do Neo-realismo, um movimento permissivoa certa coacção estética e ideológica ao encimar tematicamente o comprometimento político, à hipocrisia dos prémios literários e plágios legitimados e/ou disfarçados e ainda à censura, como num postal em se referia à apreensão da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, de Natália Correia, na qual Luiz Pacheco participou com o texto “Coro dos Cornudos em Volta de S. Pedro”, e a Salazar (“Tòtócas”):

Ainda hoje, de manhã (…) tive de ir ao tribunal por causa da tal Antologia da Natália. Tudo isto é fado, tudo isto é português, tudo isto é o que nós já sabemos: nascermos cá. Fatalidade nossa, irremediável. Muitos outros se queixam do mesmo. Só o Albino Forjaz de Sampaio, o das Palavras Cínicas, é que tinha orgulho em ser português… ele e o… Tòtócas.

(N/6809, carta dactiloscrita com acrescentos manuscritos, 10-04-67)

A crítica (essa, pessoal) à incapacidade de viver da Literatura aparece, matizada, esporadicamente, em toda a sua correspondência (segundo Pacheco, apenas um autor conseguiu viver da escrita em Portugal e esse foi Fernando Namora): “A vantagem de ter casa e comida por conta do orçamento público, dá-me tempo suficiente para pensar mais a sério na Literatura… ou extrair dela algum para os que cá ficam fora ou para atenuar as minhas condições de vida interna que, na Sertã, sei que são inóspitas” (N5/6819, postal dactiloscrito, 27-09-67).

Sendo a proposta do Surrealismo “o HOMEM LIVRE E APAIXONADO”e“uma real cidadania para todos e uma real liberdade de cada um consigo” (Cesariny, A Intervenção Surrealista, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997: 9),a maldição ou marginalização de Luiz Pacheco fundamentam-se, ironicamente, na exasperação desse último conceito, encerrado (até à edição dos manifestos surrealistas) no gesto literário estético, ou, até, no objecto literário. As palavras-acto, vaticinadas por António Maria Lisboa, ganham forma numa desinstitucionalização literária à prova de críticas e proscrições, numa imagem perdulária que cinzela a independência almejada pelos surrealistas, a singularidade da aceitação da decadência como se uma contingência incontornável se tratasse. Ouvem-se ecos não só de Sade, Artaud e Celine, mas também de Lautreamont, Bataille, Henry Miller, Jean Genet e, num outro plano de despersonalização e dessubstantivação, de Fernando Pessoa. O Neo-Abjeccionismo, paródia que assiste, em último caso, a marca distintiva do Surrealismo português, não mais é do que uma concretização humana e efectiva dessa derradeira liberdade e suas consequências. Até agora, única e exclusivamente adoptada por Luiz Pacheco, que: “[é] um tipo livre, intensamente livre, livre até ser libertino (que é uma forma real e corporal de liberdade), livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre, em português (“O que é o Neo-Abjeccionismo”, p.78).

Apenas Luís Amaro lhe mereceu um esclarecimento preocupado à leitura que Mário Cesariny fez da sua comunicação “O Que é o Neo-Abjeccionismo”, apresentada à Casa da Comarca de Arganil em Novembro de 1966, para intolerância dos presentes e resistência de Cesariny, que só terminou a leitura quando já quase ninguém restava na sala. Nesse texto, Luiz Pacheco transcreveu o nome de Luís Amaro, “da Portugália Editora”, como vocativo de auxílio profissional; um gesto que o autor quis esclarecer num postal manuscrito:

Continuo impaciente… o que é sintoma de sede interna nas algibeiras.

V. foi à Casa de Imprensa?

Como terá (ou poderá ter) verificado, a m/comunicação sobre o que é o neo-abjeccionismo nada tinha de ofensivo para si. Ou para a Portugália. Era só a pedir trabalho, ou mais trabalho. Nisto não vem mal ao Mundo, acho eu, mesmo que não me atendam. Um abraço.

(N5/6793: Postal manuscrito, 04-04-63)

Esse texto escrito na primeira pessoa revela uma das estratégias ficcionais mais eficazes de Luiz Pacheco na assunção de uma personagem literária, recuperando o prolongamento do gesto de Maiakovsky ao apresentar uma tragédia em dois actos em que a personagem principal, que se chamava, precisamente, Vladimir Mayakovsky, dava nome à peça. O distanciamento fictivoé aqui aparentemente ludibriado apenas para ser remetido à sua primordial função de sublimador da realidade humana (além de que Pacheco raramente escreveu sob pseudoónimo, apesar de não repudiar a ideia, como declara num postal manuscrito: “Caso o meu nome, como no filme do Charlot, o Calvero, horripile os Editores respeitáveis, não me importo de trabalhar com pseudónimo; o Amaro, nas suas Memórias se encarregará, espero, de dar o seu a seu dono. Com isto não o incomodo mais, por agora…”. (N5/6819, postal dactiloscrito, 27-09-67)). O Luiz Pacheco das cartas e, muito especialmente, o dos diários e prosas ficcionais encontra-se no fundo de uma caverna, interdita ainda, sublimado relativamente ao que do Luís Pacheco das edições e das críticas se conhece e desconhece ainda. A vanguarda da alteridade, vaticínio malogrado de Rimbaud e última morada de Sá-Carneiro, abriu as portas ao último desafio vanguardista da Modernidade; mas urdir a fantasia possível de um outro que quereríamos habitar e em que possamos viver esse foi e continua a ser o desafio de Luiz Pacheco e de quantos o procuram conhecer um pouco mais de perto.


CARTAS DE LUIZ PACHECO A LUÍS AMARO[2]

 

N5/6798: Postal manuscrito, 14-05-63 

Meu Caro: Por envelope-mistério recebi s/ mensagem… Foi logo consumida em batatinhas. Obrigado. Continuo a preparar livro de contos neo-abjeccionistas para a Portugália. Verdadeira novidade literária… De que V. é em parte responsável, porque me sugeriu tal edição. E há ainda… mas isto só se saberá muito mais tarde. Estou a ver que, se o dr. Branquinho não revê o livro depressa, o pachaco da tribu a nascer, sairá num berço de palhas… como o Jesus… Isto dá ou não dá um conto bonito? Um abraço.

 

 

N5/6801: Carta dactiloscrita, com emendas manuscritas, 17-07-1963

Meu Caro Luís Amaro,

Ontem, enviei as provas do O HOMEM E O RIO [de WillianFaulkner, edição do mesmo ano, da Portugália, com trad. De Luís de Sousa Rebelo]. Houve uma ligeira demora, por duas razões: parti uma lente dos óculos (o que representou um dia à viola) e anichei-me no Diário de Notícias local – O SETUBALENSE, folha-de-couve reconhecidamente tesa mas, ainda assim, a mais esperançosa da beira-sado. É trabalho de revisão e, ao longe, obras de fôlego jornalístico… a vinte e cinco tostões a coluna. Para já: noventa caracóis por semana, recebidos ao sábado. Como todo o bom proletário, para mim os sábados começaram a ganhar uma importância e solenidade entre os mais dias-comuns da semana. E, para começar, também o meu problema é chegar a este sábado, ao próximo!, o que prevejo mais difícil, se… e aqui entra Você… não puder… sim… não houver… uns tostões da Portugália para entreter a fominha da Tribu… até aos tais noventas de O SETUBALENSE. Não poderia V., mesmo passando por cima do cadáver do tesoureiro ou guarda-livros aí da firma, caçar uma nota para um amigo, em aflições gástricas? – sucos ácidos no estômago que não encontram alimentos sólidos onde se exercerem e caem nas paredes internas da víscera como veneno????? Claro que todo este tom é galhofeiro, mas creio que não esconderá os tormentos que atravessamos.

Isto é neo-realismo – e do mais autêntico. Duvido que o Fafe e o Cruz (Gastão), agora em debate amistoso nas colunas do “Diário de Lisboa” sobre tão momentoso problema (a morte ou a vida do neo-realismo) estejam tão bem informados, pràticamente, como eu e os meus fornecedores de Setúbal do que é, pràticamente, realmente, em profundo realismo crítico, o neo-realismo. A lê-los, vê-se mesmo que se trata de gente bem jantada; o Fafe, segundo o Silveira, porque a mãe era proxeneta, dona dumacasa de meninas não sei onde. Eu, logo que possa, vou tentar montar neste jornaleco uma pàginazinha onde lhes diga o que é o neo-realismo, visto desta banda do Rio, do Velho Rio Tejo…

Falando de coisas sérias: V. poderia abonar, por trabalhos presentes e futuros, cem escudos, mas em vale telegráfico, por grande favor mandado amanhã? despesas por minha conta, claro. Eu estou a evitar os telefones, porque só no mês passado tive para cima de duzentos escudos em chamadas, todas de urgência, evidentemente. Muito obrigado a si, st. Agostinho Fernandes e Silveira pelos quarentas do outro dia; mas os Fados mandaram que, em vez de caracóis, os consumisse no Gil Oculista e não chegou; quanto ao Teodolito [conto de Luiz Pacheco publicado, pela primeira vez, separadamente, em ed. da Contraponto, em 1962] de que V. me fala, a edição copiografada foi-se toda (não tenho um, sequer, para mandar copiar e fazer mais); o texto foi impresso, novamente mas atenuado, na antologia do Mário, do surrealismo-abjeccionismo, mas também não tenho essa, pois vendi logo o meu exemplar… nem a li! Eu tenciono republicar o texto, que é uma aldrabice em forma de introdução à minha novela histórica e obscena, A ENORME REPULSA [projeto sempiterno de um romance, acalentado durante anos por Pacheco, mas que nunca viu a luz do dia], já anunciada há um ano, mas que me ficou numa pensão do Porto, por via duma fuga precipitada, neo-realista…Esta minha novela, Os Namorados [“novela neo-abjeccionista”, publicada pela primeira vez, isoladamente, em 1962, pela sua chancela, Contraponto], que vou lançar este mês e já devia ter saído, por razões óbvias (sempre é dinheiro que entra ou esperanças disso), ficou para trás, outra vez, por causa do meu trabalho no jornal, que nem é trabalho mas tempo tomado e porque tenho de apressar uma tradução para a Arcádia que, essa sim, me está a dar trabalho; também há que ver: trata-se de Dostoievsky [Noites Brancas, publicada mais tarde, em 1998, pela Contraponto, com tradução de José Marinho].

Não se esqueça de mim, Amaro!

Um abraço do amigo grato,

Luís Pacheco

 

N5/6821, Carta manuscrita, 11/6/1967 (que não chegou a ser enviada na ocasião e só seria remetida para Luís Amaro posteriormente)

Meu Caro Luís Amaro,

Saiu (ou Leio?) de 5ª feira passada um artigo L.A. sobre o Botto, que me parece da sua lavra. E (parece-me) já aqui há tempos, ou no D.N. ou no Lisboa outra qualquer achega me pareceu sua, ou assinada L.A. ou não (não tenho, aqui no calaboiço, elementos e a m/memória às vezes falha). Li, apreciei, gostei. Tanto mais por isto: porque do Botto, por razões humanas ou literárias, muitos se calam que deviam falar; outros falam demais sem a coragem, humana e literária, dele, mas pelo prazer de vir o nome deles nos jornais. Você, meu caro Amaro, eminence grise das nossas Letras e com carácter bem vincado faz o seu dever e não aspira à publicidade – escusada, megalómana.

O parágrafo anterior vai-lhe parecer agora menos sibilino (mas cristalino, porque não ia escrever-lhe para criar mais mal-entendidos, disso já eu sofro), quando lhe disser que sou vítima, a distancia e inocente (mas não calada ou sofredora) de uma baixa intriga a que não posso corresponder com perfeita indiferença, a qual corre pelos cafés, principalmente num grupelho estabelecido no Paladium e cujos zurros (impotentes, de bestas peadas e cobardes) podem ter ecoado no 13, 3º da Portugália (o som sobe, como a Acústica ensina…) e já cá me chegaram em carta anónima. Trata-se disto (e o Amaro, se tudo aconteceu por acaso, fica sabendo como é): no Jornal do Fundão, no magazine e etc saiu uma piada a um Festival Botto havido em Alfama. Colaboro lá (no Fundão) por via de uns tostões e pelo gosto de zurrar (em prosa). Conclusão, aparente: a piada era minha. Aqui, comete-se (e comete-a quem não o devia fazer, a título nenhum: o Cesariny) uma gracinha: dizer que sou eu o autor daquilo. V. acreditou? Parece-me que sim. Vamos a ver se me defendo, perante si, melhor que perante o Código do Prof. Dr. Antunes Varella, que já nada pode contra o Botto e quanto a mim apenas no que respeita à carcaça – em espírito estou e estarei sempre muito mais homem livre do que ele.

Geralmente, assino o que escrevo. Quando não assino, por razões às vezes poderosas (às vezes, nem deixam um tipo assinar, caso das Cartas ao Director, que eu queria assinadas, mas o Mecenas Nicolau [Nicolau Santos, director-adjunto do Diário Económico] no Jornal de Letras e Artes e o Manuel de Lima não deixavam), nunca enjeito o que escrevo. A prosa do Jornal do Fundão sobre o Botto, acredite-o ou não, meu caro Amaro, não é minha. Sei de quem é. Acho (mas não chegou ainda a altura de o dizer, por miséria de fome e outras, e inocentes que, áspas, sofriam com isso) indecentíssimo que onde um tipo dá a cara outros deem um nome inventado. Mas isto e pior já acontecia no “Letras e Artes”: não só era obrigado a não-assinar o que escrevia como era forçado (a troco de um livro, que me dava para uma sopa, uns copos, um pão) a escrever recensões que outros recebiam (50$00) e assinavam, uns M.L., B.P., etc.

No caso do Botto, ainda. Que sabia eu desse festival? que tinha ou tive contra ele? falo na garantia de poder provar, querendo, quem foi o autor da laracha que tanto irritou o grupelho do Paladium que se ofendeu querendo, mas não podendo, sujar-me cá para o meu buraco, e escrevo de um calaboiço onde não desejo que eles estivessem mas deviam estar (para saberem a ser irónicos e anónimos).

Botto, escritor. Li pouco. Recordo os contos para crianças, alguns que nunca mais esqueci. Das Canções, pouco. Alfama, uma bela peça, que mete num chinelo Redóis e Santarenos.

Botto, homem. Estou mais próximo dele, naturalmente, isto é, com o orgulho de que tudo é próprio do homem, que os tipinhos do Paladium. Nesta semana que entra sai um livreco meu em que, no posfácio, me comparam ao Genet. O Genet é o Botto à francesa. Logo…

Há aqui um grave equívoco. Quando V. na sua nota discreta, afirma que o A.B. “teve a estima intelectual dos melhores do seu tempo”, parece estar ainda a desculpá-lo, a justificá-lo, a atenuar-lhe culpas (?). Disparate, meu caro Amaro! O Botto só tinha a pedir desculpa era do seu talento, mais nada. E dele, a uma sociedade estúpida, leptidóptera (na terminologia do Sá-Carneiro) e hipócrita – precisamente aquela mesma que me condena a 20 meses de cadeira (?).

Que V. colabore nessa farsa para os milhares de leitores do Notícias, tão enganados esta semana, que passou nos relatos da guerra-relâmpago do Sinai, acho bem. É um travão. Mas, particularmente, aqui lhe digo, é asneira. Botto, poeta, fora de questão, quem o pode enterrar de vez é o Gaspar. Botto, pessoa, e “maldito”, a mim interessa já que, em livro meu, me comparam ao Genet. E sou estupidamente sujado, a distância e sem cara, de ultrajar a memória do Genet português.

V. conhece, decerto, a biografia (embora romanceada e apressada) do Gaspar Simões (ele não é sempre o Gaspas, até o considero muito mesmo que não pareça) publicada há anos pela Bertrand, que, no Contraponto 1, o Eugénio Morais Cardigas castigou. Há, ali, um apontamento subtil: que o Pessoa, se ferissem o tema da loucura e do homossexualismo, reagia. Isto, a-propósito o Raul Leal. Também eu. Não se escreve sem loucura e a libertinagem encerra, inclui, contempla a homossexualidade como as migas pão e alho e azeite.Chefes de família, honrados e castos, acho bem. Escritores, digo: criadores sem taras (porque parir é apostar no ambíguo), só mesmo gajos da boininha (Redol) ou funcionários do pitrolium (Branquinho, ex-Maduta?) [Branquinho da Fonseca].

Já é tempo de se dizer isto, esclarecer isto, afirmar arrogar isto. Um Presidente da República, mesmo exilado (voluntàriamente, porque não teve testículos, nem paciência, nem tacto político, nem precisava (economicamente) nem era capaz de se arriscar – como homem, como esteta, como político – senão a uma indigna abdicação de poderes e o negócio do figo dava para os selos e a vidinha)) que se correspondia como o Botto; 1 anónimo que troça; 1 grupelho de pataratas do Paladium que me atiram calhaus – tudo isso apenas significa, meu caro Amaro, que o País desceu de há 40 anos (a nossa idade, +-) para cá. Que V., nobremente, tente restituir ao Botto a sua dignidade, bem está e eu agradeço-lho, como escriba, como desgraçado, como recluso igualmente de uma moral hipócrita – e, se, agora, as razões são outras, confesso-lhe (e há provas escritas por aí, e não publicadas não por culpa minha, não porque, ainda esta semana, eu não insistisse por isso) que podiam ser outras… o Diabo tece-as, a libertinagem não conhece limites. Mas não procure desculpar o Botto, Amaro. Os tempos avançam. Ele não ganha nada já com isso. E há outros a quem tal ofende. Por orgulho, decerto. Pois não se querem com gente envergonhada e com vergonha disto: terem um corpo e usá-lo.

 

N5/6822, postal manuscrito, 01-07-1968

Meu Caro,

Estou em eclipse. Segundo os cálculos astronómicos mais autorizados deve ser a mais prolongada ausência do cometa pachecal. Talvez, mesmo, uma reforma, uma desintegração de todo. Mas não desanimemos. Isto serve-me de descanso, dá margem a leituras; a cogitações, embora, em certos momentos, melancólicas.

V. há-de ter recebido aí um papelinho (que parece que vem também arquivado no Letras e Artes) do Mário Cesariny de Vasconcelos contra este pobre de Cristo. Aquilo não me faz mossa porque as paredes e as grades protegem-me, Deo gratias!

Quero agradecer-lhe todos os obséquios que me dispensou no Lá Fora (aguarde críticas ao Herberto e trad. do Armindo) e anunciar-lhe um próximo texto meu (literatura presidiária, tipo Sílio Pellico, “As Minhas Prisões”, Camilo, Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos): O Caso do Bife Voador, homenagem aos bifes-fantasma que nunca adoramos olfactar no calabouço. Abraço

 

 

N5/6833, carta dactiloscrita, 12-08-73

Meu Caro Luís Amaro,

Passado vai um ano em que pedi a tua amizade para uma colaboração na COLÓQUIO-Letras, que falhou, porque a minha pressa era muita e não podia esperar meses pelas massas. Assim, virei-me para a República onde os democratas de lá me pagavam nomesmodia da entrega, da publicação, ou ainda antes.

Ora a situação mudou. A meu favor, suponho. Saíram, entretanto, LITERATURA COMESTÍVEL e a segunda-edição dos EXERCÍCIOS DE ESTILO. Agora posso esperar, isto é, entro na engrenagem, sem gosto nenhum mas a vida obriga e os anos passam e a gente vai requerendo um certo conforto – ou mando chamar o cangalheiro, hipóteses que para o Paulocas não é a mais favorável… inda que tenha um seguro de cem contos para quando eu bater a bota. Já verás como me meti na engrenagem. Convém-me (dito à puridade) uma colaboração aqui e ali, a receber quando? mas certa, porque aqui o importante é a continuidade. Assim fazem os mais; não me julgo marciano ou isento em tal matéria. Aliás, pela próxima publicação do PACHECO VERSUS CESARINY, o tal folhetim de feição epistolográfica, se escancara que a necessidade obriga à impudência e que os tais puros (que nunca me arroguei embora houvesse ingénuos afirmando que eu era e por isso me chamavam de maldito, chiça!) é coisa muito rara, ou têm escondido um truque que ainda não percebemos. O que te peço? Vou tentar parir um conto ad usumColoquii. Desejava uma encomenda tua, isto é, uma recensão rápida para livro que tenhas por aí, que leio na mecha porque tenho todo o tempo e critico em estilo ameno, género Eduardinho, sem estruturalismos. Serei o futuro Simões de Massamá?

Vão, outrossim, alguns livros que talvez rendam uma pequena nota.

Outro assunto: deves lembrar-te de um rapaz, Vasco Fernandes, mimo, discípulo do Marceau, bolseiro da Gulbenkian, que ao cabo de uma luta de anos, treze anos, conseguiu ser aquilo que ambicionava: professor de mímica no Conservatório Nacional. Isto durou pouco e eis o trágico da história: morreu num desastre de automóvel, logo.

Está em minha casa um irmão, desempregado e em circunstâncias económicas como calculas. Casado e com um puto. Se peço para mim, com o descaramento que conheces, por que não ou melhor para outrem?

Saberás de algo, na Gulbenkian ou alhures, onde ele possa receber algum? Já trabalhou na Rádio Renascença como sonoplasta. Falando com o Filipe de Sousa ou o Carlos Wallenstein ou o raio gulbenkiano (até com o Peixinho), que todos são meus amigos, ou conhecidos, mas de quem suspeito a operosidade pró-pachecal, não se arranjará nada?

 

 

N5/6840, carta manuscrita, 10-03-1975

Meu Caro Amaro,

Imagine que há dias, e em preparativos de mudança pois não sabia como pagaria a renda este mês (o problema deve estar resolvido, parece que a Estampa – com quem ando de candeias às avessas – já pagou, mais ainda uma vez e que remédio! Eles são os fiadores…), me apareceu entre muito lixo, guardado e escolhido para o caixote, papel a papel, “estimado” como pode observar, esta preciosidade: um texto do Raul Leal, que tencionei editar há anos, quando lancei a 2ª edição da Sodoma Divinizada com ele vivo, e durou anos. 3000 ex., 250$00, vê-se no canto esquerdo. Não sei como isto resistiuna m/posse talvez vinte anos!

Foi dactilografado por ele (nota-se pela arcaica grafia), e tem emendas do seu punho, a lápis. Não está assinado, o que pouco importa pois deve haver quem tenha a 1ª edição, afinal única. Lembro-me, se bem me lembro (diria o Nemésio), era um cartaz amarelo. Evidente: isto não é publicável no “Colóquio” (veremos se noutro local e avisando primeiro o Copcom). Mas receio perder este original. V. poderia fazer o favor de me tirar duas fotocópias, guardando para si as que entender? O texto é mui pouco conhecido. E dentro do estilo típico do R. Leal, obra curiosa a vários títulos. Nem eu me atrevo a confiar este papel a qualquer redacção (sei que mo perdiam, roubando-o, claro está), nem tenho paciência nem tempo nem máquina para o copiar. Continuo de cama e nada bem. Mas vou aguentando.

Inda que as últimas notícias sejam preocupantes: estava convidado para um fim-de-semana, chá canasta e bridge na Parada de Cascais e energúmenos ocuparam-na! Ali para a Damaia, foram transformar o palacete do meu defunto Amigo, o Sr. General Júlio Botelho Moniz (o filho e filha – ou só esta? era muito feia, saía ao pai, andaram comigo na Faculdade), num Jardim Popular!!! Ao que se chegou. É a Evolução, é a Anarchia, é a Besta à Solta.

Deus nos acuda. E a Massamá, o Amaro também.

 


[1]Texto publicado na revista A Ideia. Revista de Estudos Libertários, n.ºs 81-83, Outono de 2017, pp. 49-51.

[2] Dirijo um agradecimento muito especial a Rui Sousa, que não só me convidou para contextualizar estas cartas de acordo com o meu projecto de Doutoramento sobre Luiz Pacheco financiado pela FCT, como também me delegou para leitura e análise o espólio epistolográfico de Luiz Pacheco para Luiz Amaro que havia transcrito na BNP. Para consulta informativa e contextual dos conteúdos de cada carta do espólio, ler Rui Sousa, “De Luiz Pacheco para Luís Amaro: Um diálogo de vida e de literatura”, António Cândido Franco (coord.),  A Ideia, nº  75/76, II série, vol. 18, nº 75/76, Outono 2015, pp. 245-251. Recorremos a parêntesis rectos para acrescentar algumas notas e esclarecimentos às cartas publicadas.


REVISTA TRIPLOV

série gótica

Verão de 2019