Naquele sábado

 

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


Naquele sábado, Zulmira saiu de casa diferente. Pela primeira vez, em dois anos de casada, olhou a paragem do autocarro e não se sentiu triste, nem revoltada. Mesmo que não tivesse que trabalhar, Zulmira sairia de casa de qualquer maneira. O importante era estar só e degustar aquela sensação de liberdade.

O casamento, se a libertara de muitos anseios e prisões, e lhe mostrara novas atitudes e caminhos, também em outros sentidos a sufocara e anulara. Zulmira gostava do marido. Tinha sido o seu primeiro e único namorado, e preenchera todos os seus desejos e sonhos de futuro. Mas, se no início tudo lhe parecera novo e cheio de caminhos, Zulmira logo descobriu, e depois confirmou, que todos eles, por mais livres que pudessem parecer, eram sempre percorridos da mesma maneira e terminavam sempre no mesmo beco. As quatros paredes fechadas do sempre foi assim e é assim que tem que ser.

Zulmira ainda se lembrava da primeira menstruação e da sofreguidão com que desejara ser mulher. Não sabia o que era ser mulher, mas tinha a certeza que seria diferente. Não teria mais bonecas e não brincaria mais com as elas, mas também não teria de ser só uma menina bem-comportada e bem-mandada, que devia honrar o pai e a mãe, casar-se, ter filhos e honrar também o nome do marido.

E isso, essa ânsia de mudança, a fez sentir a menstruação com a mesma sofreguidão com que sentiria, anos depois, o casamento. As mudanças vieram. Mas Zulmira logo descobriu que a menstruação apenas se transformara num incômodo mensal inevitável, e o casamento não passava de um caminho paralelo, cada um com a sua rota. A do marido, determinada, e a cada dia mais definitiva, e a dela, sempre como mera acompanhante.

Zulmira entra no autocarro e senta-se à janela. São sete e meia da manhã e o sol já bate forte no asfalto. É agosto, e Vila Nova de Pardais vai ter mais um dia de calor insuportável. O motorista dá a partida e Zulmira fecha os olhos. Quando duas pessoas dizem que se gostam, não deveria haver necessidade de pedir. Se ele gosta de filmes de mistério e de terror, por que é que eu também não hei de gostar? Se eu sei que ele gosta de assistir jogos de futebol, por que é que eu também não hei de assistir? Não deve ser a satisfação dele a minha satisfação? Zulmira abana a cabeça e respira fundo. Só que, para ele, a minha satisfação não existe. Por mais que eu peça, ele nunca faz da maneira que eu gosto.

Naquele sábado, Zulmira acordou cedo. Muito mais cedo do que costumava acordar. Olhou o relógio, um quarto para as seis, o marido ainda a dormir. Estava calor e Zulmira ficou a olhar o corpo dele. Era um corpo bonito. Pele lisa, bem morena e o peito coberto de pelos castanhos. Estava nu. Zulmira sorriu-se. O marido gostava de dormir nu. Zulmira não. Mas habituara-se. Afinal, o que lhe custava concordar com aquele gosto do marido?

E agora até gostava de encostar o corpo nu na pele dele e sentir-lhe o calor a entranhar-se na sua pele. Tinham-se deitado tarde. Ele a assistir um jogo de futebol, e um filme, a seguir ao jogo. Zulmira não viu o jogo nem o filme. Adormeceu antes de terminar o primeiro tempo, e só acordou quando sentiu a mão dele puxar-lhe as cuecas à força. Fizeram ali mesmo, a televisão ainda ligada. E não foi bom.

Todas as vezes que faziam assim, a televisão ligada, ele a arrancar-lhe as cuecas e a abrir-lhe as pernas à força, a enfiar de qualquer maneira e a vir-se sem esperar por ela, não era bom. Zulmira precisava de mais tempo e ele nunca a esperava. E naquela noite também não a esperou. Quando ela abriu os olhos já ele estava a puxar-lhe as cuecas com a mesma força de sempre, enfiou, veio-se, saiu de cima dela e foi deitar-se.

Quando Zulmira entrou no quarto, já ele tinha adormecido. Mas ela não dormiu. O corpo estava tenso e não conseguia relaxar-se. Teria sido bem melhor se ele não a tivesse procurado.

Zulmira acende um cigarro e olha pela janela. Sabe que não pode fumar no autocarro, mas o motorista é conhecido e o autocarro está vazio. Mas mesmo que não estivesse, Zulmira acenderia o cigarro de qualquer maneira. Naquela manhã, Zulmira está feliz, disposta a tudo. Até a correr riscos que em outra ocasião não correria. Dá uma passa profunda, atira o cigarro pela janela, recosta a cabeça no assento, e fecha os olhos. Foi bom para ele. É sempre bom para ele, mas nunca é bom para mim.

Naquele sábado, quando acordou, Zulmira estava excitada. Húmida. Como sempre ficava, antes de casar, quando se sentavam no jardim e ele a beijava, a acariciar-lhe os seios. Nunca o masturbou, embora ele sempre lhe pedisse. Zulmira nunca se tinha masturbado. As amigas diziam-lhe que era bom, maravilhoso, mas Zulmira nunca se masturbou. Achava sujo.

Zulmira olha o corpo do marido, deitado de costas e coberto de suor. O sexo está mole, caído entre as pernas abertas. Tem vontade de pegá-lo e sente a garganta contrair-se. Passa as mãos nos seios e os bicos endurecem. Fecha os olhos e sente a boca seca. Passa a língua nos lábios e um arrepio sobe-lhe pela espinha. Olha o relógio. Seis e um quarto. Sorri-se. O autocarro só sai às sete e meia, e ele, aos sábados, não trabalha. Há tempo. E se chegar atrasada na clínica, em Braga, não faz mal. Arranja uma desculpa. O autocarro quebrou, ou qualquer outra coisa. E se for bom, nem vai trabalhar. Ninguém pode trabalhar com dor de dentes. Zulmira sorri-se, inclina-se sobre o marido e passa-lhe a mão nos pelos do peito.

– Chiquinho.

O marido mexe-se, mas não acorda. Zulmira passa-lhe a língua no pescoço e sente o gosto salgado do suor.

– Ó Chiquinho.

A garganta está contraída, a voz é rouca, e Zulmira engole em seco.

– Chiquinho.

O marido cruza os braços no peito, sem abrir os olhos.

– Hum.

Zulmira passa-lhe a mão no rosto.

– Acorda, Chiquinho.

O marido volta-se para a parede e cobre o rosto com as mãos.

– Deixa-me dormir.

Zulmira olha as costas dele. Vincos arroxeados cruzam-lhe a pele amarrotada e gotas de suor escorrem-lhe pela nuca.

– Chiquinho.

O marido não responde. Zulmira encosta o corpo ao dele e os seios esmagam-se contra as costas suadas.

– Chiquinho.

O marido afasta o corpo e encosta-se na parede.

– Deixa-me dormir.

Zulmira passa-lhe a mão pela cintura. Ele não se mexe. Zulmira desce a mão, roçando-lhe a pele devagar, e espalma-a sobre o sexo amolecido, a garganta a apertar, quase a doer. Retesa as coxas e uma onda de calor sobe-lhe pelo corpo. Debruça-se sobre ele e encosta-lhe os lábios ao ouvido.

– Não queres, Chiquinho?

O marido volta-se e deita-se de costas.

– Deixa-me mas é dormir.

Zulmira tem a boca aberta, a respiração está ofegante e o hálito é quente e a língua está pastosa.

– Chiquinho.

O marido abre os olhos.

– Porra, mulher. Não estás a ver que eu quero dormir?

Zulmira sorri-lhe e comprime-lhe os seios contra o peito. Passa-lhe uma perna sobre as coxas e encosta-lhe o sexo na pele suada. O marido não se mexe. Zulmira deita-se sobre ele.

– Chiquinho…

O marido empurra-lhe o corpo num gesto brusco.

– Caralho.

Volta-se para a parede e encolhe-se como um feto. O corpo de Zulmira fica rígido, estendido na cama. Olha o teto do quarto durante alguns instantes, fecha os olhos, sustém a respiração e morde os lábios. Não vai chorar. Pela primeira vez não vai chorar. Nem quer.

Levanta-se e entra na casa de banho. Abre o duche, deixa a água escorrer pelo corpo e pega o sabonete. Passa-o nos seios e sente os bicos endurecerem. Fecha os olhos, deixa cair o sabonete e acaricia os seios. Escorrega a mão direita pelo ventre e passa-a no sexo. Aperta as coxas e sente um calor a subir-lhe pelo corpo. Tira a mão do sexo e passa as duas no rosto. A água escorre-lhe pelos cotovelos e pelas coxas, e os músculos retesam-se. Zulmira tira as mãos do rosto, atira a cabeça para trás, e deixa a água escorrer. Os braços estão caídos ao longo do corpo, mas os dedos estão crispados nas coxas.

Fica assim algum tempo, e devagar introduz os dedos da mão direita entre as coxas. Fecha os olhos e abre as pernas, a mão esquerda a acariciar os bicos dos seios e a direita a massagear o clitóris. Cada vez com mais força e com mais velocidade, o corpo arqueado e a respiração entrecortada. A cabeça está encostada à parede, e ela deixa de sentir a água a picar-lhe a pele. Não geme, só arfa. E quando o orgasmo explode, tem de cerrar os dentes para conter o uivo que lhe sobe pela garganta.

Zulmira está trémula, o coração a bater descompassado, mas a cabeça está leve e uma sensação imensa de paz toma conta dela. Fecha os olhos e deixa a água escorrer-lhe pelo corpo até a pele começar a enrugar-se. Fecha a água, sai do duche e olha-se ao espelho. Os olhos brilham, mas estão serenos e tranquilos. Há muito que não se sente tão bem e tão em paz. Enxuga-se e volta ao quarto, nua. O marido continua a dormir, voltado para a parede, encolhido como um feto.

Zulmira olha o corpo imóvel e abre os lábios num sorriso. Naquele sábado acabaram-se, e para sempre, os filmes de mistério e de terror e os jogos de futebol na televisão.


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021