Longe do jogo da bestialidade

RICARDO DAUNT
Tributo
Organização:  DERIVALDO  DOS SANTOS


Poses marca o regresso de Ricardo Daunt à ficção curta e encerra a tetralogia Ciclo Urbano
Por Álvaro Alvares de Faria
São Paulo. Rascunho. 60. Abril.


Aos 30 anos de literatura, Ricardo Daunt demonstra absoluta consciência do ofício de escrever. Essa carreira literária começou em 1975, como lançamento do livro de contos Juan. Vieram a seguir vários outros livros de contos, romances, poesia e ensaios, além de livros para crianças. Ricardo Daunt lança agora o volume de contos e novelas Poses, no qual revela um rigor raro de se encontrar na prosa deste país. É o único volume de uma tetralogia iniciada nos anos 70 a que chamou Ciclo Urbano com os livros Homem na prateleira, Grito empalhado e Endereços úteis. Poses reúne contos e novelas escritos nos últimos 15 anos. O autor dá provas, com este livro, que ainda existe literatura séria no país. Longe das atividades reinantes, Daunt construiu, ao longo destes 30 anos, uma obra marcante, por ser um escritor honesto consigo mesmo, honesto com a palavra, honesto enfim com a literatura. O primeiro conto – Na oficina do Sr. Mancuso – merece estar em qualquer antologia de contos brasileiros digna dos melhores textos. Nele, é narrado o trabalho de um artesão para produzir uma jóia com seus dedos ágeis e conhecedores das pedras preciosas. Em certo ponto, a narrativa diz o seguinte:

…Esta era talvez a grande e discreta vitória do artesão sobre a desarmonia da vida: saber que independentemente de sua sorte, no que se referia à vida social e afetiva; independentemente da precariedade de sua existência, podia habitar um mundo diverso, construído com vigor e perfeição, plenamente dotado de significação e ao mesmo tempo eterno. Tal sentimento, semelhante, decerto, ao que muitos artistas sempre sentiram quando a maturidade batia-lhes à porta, colaborava em muito para que o sr. Mancuso sobrevivesse ao cotidiano.

A  narrativa para situar o ourives também esclarece a produção literária de um autor que, ao longo dos anos e quase sempre vivendo arredio, alcançou um estágio de absoluta consciência – repita-se – no que diz respeito à literatura. Espírito inquieto, Ricardo Daunt é dono de uma literatura exuberante e isso se estende, também, aos ensaios literários marcantes.

Daunt nasceu em São Paulo, em 1950, e já na adolescência começou a escrever poesia. Por longo tempo, viveu nos Estados Unidos e países da Europa, como França e Portugal, participando de intercâmbio cultural e cursando universidades.

Ele considera uma coisa escabrosa a vaidade que muitos têm em relação à literatura. Ele diz: “Como é possível pensar com profundidade quando o efeito parece ser mais importante que o conteúdo? Os escritores brasileiros debandaram de seus postos. Assistem hipnotizados tudo o que está aí, com ares de altiva senhora ultrajada”.

Lembra do período do regime militar, quando participou de encontros, especialmente, no Sindicato de Escritores do Rio de Janeiro, para discutir os temas do momento e também para tomar posição conjunta: “Éramos uma força coletiva, para além de nossos talentos pessoais, para além de nossas preferências estéticas”. Muitos anos depois, tentou reunir em São Paulo uma equipe permanente de trabalho, sem líderes, sem chefes, apenas um conjunto de mulheres e homens escritores que tomasse partido e se manifestasse quando assim fosse necessário, utilizando os próprios contatos na grande e pequena imprensa. O projeto não foi para frente: “A vaidade foi mais forte. Foi um duro golpe. Acho que foi nesse momento que o escritor começou a perder espaço nos meios de comunicação. A jovem desvairada e ignorante imprensa brasileira jogou a última pá de cal, mas o defunto já estava enterrado. Devo, entretanto, sempre advertir que há casos muitos honrosos, há exceções. Mas é inegável que essa tem sido a tônica geral. Por quanto tempo ainda o escritor brasileiro irá continuar contemplando embevecido seu próprio umbigo?”


RICARDO DAUNT . TRIBUTO

revista triplov . série gótica . primavera 2020