José Saramago

ADELTO GONÇALVES
José Saramago e suas personagens


Revista Triplov, Série Gótica, outono de 2017


I
Um levantamento de 354 protagonistas e figurantes – praticamente, todos – que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 é o que o leitor vai encontrar em Dicionário de Personagens da Obra de José Saramago (Blumenau-SC: Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), da professora Salma Ferraz, resultado de uma pesquisa que durou mais de 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas de seus alunos.
Obra aberta, sem a pretensão de se tornar definitiva ou completa, o livro, além de homenagear Saramago, segundo a autora, tem o objetivo de não só catalogar a imensa galeria de personagens saramaguianos como abrir um debate e até mesmo aceitar novos verbetes para uma futura segunda edição. Mas, desde já, constitui, sem dúvida, leitura indispensável aos amantes da boa literatura de Saramago.
Da pesquisa, ficaram de fora os contos e crônicas da primeira fase de Saramago, ainda que o romance Terra do Pecado (1947), também da época inicial da trajetória do autor, tenha sido igualmente analisado. Exceção foi aberta para O Conto da Ilha desconhecida (1997), que faz parte da fase madura do escritor. Já o romance Claraboia, embora escrito em 1953, e, portanto, da primeira fase, mas publicado em 2011 pela editora Companhia das Letras, de São Paulo, não foi incluído na pesquisa por se tratar de publicação post mortem.
Como esclarece na apresentação que escreveu para sua própria obra, a autora incluiu ainda determinados lugares que aparecem em alguns dos romances, já que “transcendem o papel de mero local em que os fatos acontecem e chegam a comportar-se como personagens importantes para o desenvolvimento do enredo”. A título de exemplo, pode-se citar o “Centro” (shopping) de A Caverna (2000), a “Conservatória Geral” e “Cemitério Geral” de Todos os Nomes (1997), o “quarto da morte” de As Intermitências da Morte (2005) e o “deserto” de Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Personificações como “morte” e “gadanha” de As Intermitências da Morte e instituições como “máphia” e “governo” do mesmo romance também ganharam verbetes.
Até mesmo personagens que fogem à condição humana foram contemplados, como os cães “Achado”, “Ardent”, “Tomarctus” e “Cão das Lágrimas”, que na obra de Saramago tantas vezes apresentam sentimentos e reações que nem sempre são encontrados com facilidade em homens e mulheres. Sem contar o “Elefante”, que seria a personagem principal do conto A Viagem do Elefante (2008).

Dicionário de personagens da obra de José Saramago, de Salma Ferraz.
Blumenau-SC: EdiFurb, 360 págs., 2012.
Correio eletrônico: www.editora@furb.br

Internet: www.furb.br/editora

II
Uma das personagens mais fascinantes dessa extensa galeria, na verdade, não saiu da cabeça de Saramago, mas do poeta Fernando Pessoa (1888-1935). Trata-se de Ricardo Reis, protagonista de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), heterônimo pessoano, cuja “morte” foi deixada em aberto por seu idealizador. No romance de Saramago, porém, Reis tem 48 anos de idade, é solteiro, natural do Porto, graduado em medicina, vive no Rio de Janeiro auto-exilado e recebe de seu segundo criador, como diz Salma, “uma segunda vida fictícia, uma vida em trânsito, uma vida em suspenso”. Ou seja, o romancista recria um Ricardo Reis “que nunca existiu”, que acaba por se tornar, isso sim, um heterônimo saramaguiano.
“O romancista brinca com essa personagem, pois através dela transgride os limites entre realidade e ficção”, diz a dicionarista. E acrescenta: “Saramago faz com que Ricardo Reis perca características heteronímicas básicas, sendo esse o motivo pelo qual Pessoa aparece na obra para cobrá-lo. Isso o perturba, pois seu heterônimo não se envolvia com nada, vivia uma ataraxia. Reis se mantém contemplativo até a última página do livro e como um morto-vivo, ou vivo-morto, não consegue se libertar do seu criador”. Para quem não sabe, ataraxia quer dizer apatia ou ausência de paixão ou ainda ausência de inquietude.
Outra personagem fascinante – e memorável – da obra saramaguiana é Raimundo Benvindo Silva, protagonista de História do Cerco de Lisboa (1989), revisor de textos de uma editora, homem sóbrio e tímido, cinquentão, de vida sedentária, solteiro e distante de seus parentes, que, um dia, acha de transgredir as normas de seu ofício, ao colocar um não que adultera uma obra séria que trata da tomada de Lisboa no ano de 1147, na qual os portugueses teriam contado com a ajuda dos cruzados para expulsar os mouros. O livro é impresso com o erro e, quando descoberta a fraude, a editora é obrigada a anexar uma errata a cada exemplar. Com isso, o olho da rua começa a piscar para o pacato e sério revisor, responsável pelo mal-estar criado entre os donos da editora e o autor da obra.
O episódio serve para Raimundo Silva aproximar-se de Maria Sara, sua nova supervisora na editora, também objeto de verbete nesta obra. A partir daí, sua vida começa a ganhar novas cores, como diz Salma Ferraz: “Ter colocado este não no texto que revisava foi o feito mais importante de sua vida, pois a partir desse momento delineiam-se dois fatos importantes que mudarão completamente sua vida: passa a reescrever, agora como autor, a nova História do Cerco de Lisboa, e passa a viver um cerco amoroso, envolvendo-se com Maria Sara”.

III
Obviamente, os verbetes repetem, em boa parte, o que o autor deixou em sua extensa obra, mas há um que se sobressai não só por sua extensão (de seis páginas) como pela erudição da dicionarista e o seu profundo conhecimento de Teologia, o que pode ser comprovado em seu robusto currículo. É quando trata da personagem Jesus, de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, homem, porque filho de José, e divino, por ser também filho de Deus.
Salma Ferraz recorda que, “na concepção de Jesus, o divino fecunda a carne humana, como na antiga Grécia, onde os deuses desciam do Olimpo para se relacionar com os humanos, fazendo nascer os heróis, estes semideuses que nada mais eram que humanos virtuosos sob determinados aspectos”.
Para a dicionarista, Saramago, que sempre se disse materialista e ateu, escreveu um “evangelho profano, espécie de desevangelho”, procurando mostrar Jesus Cristo como um homem comum, que carregaria a culpa herdada do pai José que, para que ele vivesse, teria deixado que “outras 25 crianças inocentes fossem assassinadas”. E que se revolta contra Deus que o teria escolhido como o seu cordeiro. Ou que não se daria bem com a mãe, Maria, nem com os seus irmãos, que o teriam tomado por louco por afirmar que vira Deus. Ou ainda que teria tido um caso passional com Maria de Magdala.
Obviamente, tudo isto é questionável. Tanto que, para a dicionarista, o romancista criou um Jesus que reflete as suas próprias dúvidas. Mas, seja como for, não se pode deixar de reconhecer que, para escrever o seu Evangelho, Saramago teve de se aprofundar como poucos teólogos no conhecimento das Escrituras. Até mesmo para contestá-las ou interpretá-las ao seu modo.

IV
Salma Ferraz é graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Hebraico Brasileira Renascença de Letras de São Paulo (1987), com mestrado em 1995 e doutorado em 2002 pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Concluiu o pós-doutoramento em Teologia e Literatura em 2008 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Foi bolsista da Fundación Carolina na Universidad Autónoma de Madrid (2009). Atualmente, é professora associada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e atua na pós- graduação, orientando projetos de pesquisa na área de Teopoética, estudos comparados entre Teologia e Literatura.
Tem experiência na área de Teologia, com ênfase no diálogo com a literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: José Saramago, Teologia, Bíblia e Literatura, Madalena, Judas, o demoníaco na Literatura, o vampiro na Literatura, contos e criação literária. Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel), sediado na UFSC, em Florianópolis-SC. É graduanda de Teologia na Faculdade de Teologia de Santa Catarina. Realizou pós-doutoramento na UFMG em 2013. Além de ensaísta, é contista com diversos prêmios recebidos e livros publicados.
Publicou 15 livros de crítica literária, entre os quais: Sois Deuses (Edufgd, 2012), As Malasartes de Lúcifer (Eduel, 2012), O Pólen do Divino (EdiFurb, 2011), Maria Madalena: a Mulher que Amou o Amor (Eduem, 2011), Deuses em Poética (João Pessoa, UFPB, 2009), No Princípio era Deus e Ele se fez Poesia (Rio Branco: Edufac, 2007) e As faces de Deus na Obra de um Ateu: José Saramago (Juiz de Fora, Eufjf, 2004), entre outros. Na área de ficção, publicou Em Nome do Homem (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1999); O Ateu Ambulante (Blumenau, Furb, 2001), A Ceia dos Mortos (Florianópolis, edição de autor, 2007), Nem Sempre Amar é Tudo (EdiFurb, 2012). É autora ainda de Dicionário Machista: três mil anos de frases cretinas contra as mulheres (São Paulo, Jardim dos Livros, 2013).


Adelto Gonçalves (Brasil), jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br