Escrever com luz

 

 

 

 

 


JOSÉ EMÍLIO-NELSON


 José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS. Nasceu em  Espinho, 1948. Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto. Publicou poemas e ensaios em revistas literárias portuguesas e estrangeiras. Prepara a reunião da sua colaboração crítica em jornais e revistas literárias e ensaios sob o título: MAIS DO QUE LER.


Por Maria Estela Guedes 

 

“A poesia começa por um acto de ver”
José Emílio-Nelson citando Roberto Juarroz

Vivemos no império da imagem, todos fotografamos, embora desde não há muito tempo. Só desde 1997, citemos do Observador:

Vinte anos. V-i-n-t-e a-n-o-s. Já lá vão duas décadas. O primeiro telemóvel com câmara fotográfica foi criado há 20 anos, a 11 de junho de 1997, pensado por um homem que estava a minutos de se tornar pai e queria muito partilhar a primeira fotografia da filha recém-nascida com os amigos. Nesse dia, o mundo dele (e o nosso) mudou para sempre[1].

O Facebook é uma galeria minuto a minuto renovada com as nossas fotografias, acredito que maioritariamente obtidas com telemóvel. Na maior parte, estas fotografias limitam-se à referência de uma festa, de uma viagem, de um animal doméstico e mais conteúdo não é costume deterem.

O nosso fotógrafo vai mais longe; mesmo ao referir um sem abrigo a dormir espapaçado num banco de jardim, prevalece nas suas imagens a produção de valor semântico, porque se trata do olhar de um poeta.

Com efeito, na fotografia, José Emílio-Nelson é perito na forma de levar a imagem, por vezes muito simples, até minimalista, a produzir um fluxo de sentidos. Ele usa aquela técnica de que tive conhecimento (ao praticá-la, sem saber) através de um grande mestre da imagem, quer fotográfica quer cinematográfica, Ernesto de Sousa: a photo candide. A photo candide consiste em fotografar de maneira sub-reptícia, sem que o fotografado se aperceba da presença de um aparelho de observação indevida. Técnica mais própria de espiões, cogitamos. Em resultado, muitas fotografias do poeta apresentam de costas as suas personagens. Como se interessasse mais a caminhada do que a personagem a mover-se na rua. Outras, já construído o caminho, captam deliberadamente pessoas de costas, numa tomada de posição estética, contrária ao retrato. Forma de evidenciar uma partida do zero para a declaração de um não-saber, ou, pelo contrário, de um querer saber, de um estar interessado na identidade da personagem.

Tomemos a estátua de David, de Miguel Ângelo, frente à porta do Palazzo Vecchio, em Florença, em fotografia de José Emílio-Nelson. Não debateremos os seus mais de cinco metros de altura nem a sua juventude esplendorosa, susceptíveis de nos mover à admiração. Vamos ler outro texto. Antes, porém, uma nota factual, devida a Miguel Ângelo. A estátua que o poeta fotografou é uma cópia. Frente ao Palazzo Vecchio, na Piazza della Signoria, erguia-se antigamente o original. Porém, em 1873 foi transferido para a Galeria da Academia de Belas Artes de Florença, mais conhecida por Galleria degli Uffizi, onde pode ser admirada actualmente.

Não, José Emílio-Nelson não fotografou a obra por ser belíssima, aliás, se o tivesse feito, não a teria mutilado, cortando precisamente as partes do corpo mais identificadoras do indivíduo ou da escultura: cabeça e parte do tronco, secções mais apelativas de um esteta ou de um amante do corpo, como é José Emílio-Nelson. Afinal é no rosto que a beleza se expande e nos cativa, não é verdade? Ou terá o poeta sido atraído pela musculatura das pernas? Ou pela questão genital? O autor de Penis Penis e de Então assim falo, entre dezenas de exemplos, facilmente cairia nessa tentação, mas vejamos: ele há tanta estátua igualmente exposta, nas partes chamadas pudibundas, por esses museus fora… Basta entrar no Louvre… Basta entrar nas igrejas e fotografar as pilinhas dos anjos, enfim, mudemos de assunto, e não, aqui está um acaso de escrita digno de duas linhas: nem toda a Igreja nega que os anjos sejam assexuados, tudo depende da época. Pelo menos no barroco, vemos anjos em idade infantil portadores de genitalia. Recuando a mais remotos tempos, entre a ornamentação escultórica das igrejas, talvez mais escultórica do que pictórica, apercebemo-nos de representações sexuais, eróticas e satíricas nos portais, nas gárgulas e nos capitéis das colunas de muitas catedrais. A arte antiga e clássica não moralizava o sexo, pelo contrário, podia até exagerá-lo, ultrapassando os limites do natural para alcançar o grotesco, ou mesmo para acentuar as dimensões do que então passa à categoria de sagrado.

Da última vez que entrei na secção de estatuária clássica do Louvre, fiquei irritadíssima, ao ver que muitos havia a fotografarem avidamente a genitalia masculina. É obscena essa captação de imagens, o exibicionismo da fotografia denuncia a pornografia que ocupa a mente, em vez da singela admiração pela beleza da arte, ou pela arte, sem beleza, pois nada obriga a que uma estátua seja bela, tal como nada obriga a que os poemas de um José Emílio-Nelson, que na sua vizinhança escolhe para esculpir aquilo que os demais rejeitam, nada obriga a que os poemas sejam belos. Além de existir uma estética do feio, os parâmetros por que se rege a turba a propósito da beleza tendem para uma ideologia do bonitinho no melhor dos casos, vamos chamar-lhe kitsch, o que é errado, mas resolve de momento a conversa.

E que veria a turba ao tempo em que as imagens foram criadas? Dependendo dos casos, creio que ririam fartamente do grotesco e apreciariam a beleza dos órgãos regularmente constituídos, sem filtros morais a desviarem do belo a humana admiração.

O que domina a foto do pénis de David é aquilo que acabei de descrever no Louvre: o espanto moralizado de pessoas que não esperariam ver num museu o que consideram obscenidades. São pessoas sem contacto profundo com a arte, que assinariam sem hesitar um decreto que obrigasse a que as estátuas tivessem os genitais tapados ou não os tivessem, e, sem lei, que eu conheça, assim foram mutiladas e vandalizadas muitas obras de arte, incluídas as de arte sacra. Em Lamego, exemplo que me é tão familiar, foram destruídas as figurinhas em situação obscena que acompanhavam o arco externo dos portais da catedral e descreviam, segundo informação oral do guardião do Arquivo Documental de Lamego, Fernando Cabral, o Paraíso.

Espantoso! Vale a pena parar para meditar nisto: a moralidade pobrezinha de padres passados mandou os pedreiros destruirem aquilo que representava a maior de todas as felicidades conhecidas, a vida de Adão e Eva no Jardim de Deus, mais conhecido por Jardim do Paraíso.

As fotos de José Emílio-Nelson dão as costas ao princípio banalizado de que uma imagem vale mais que mil palavras. Talvez, em propaganda, em publicidade. Em arte, não. A imagem insufla o desejo de texto, gera na nossa mente um texto apenso, o da exegese de cada observador, mais ou menos extenso, desde o olhar que por exclusão de partes se detém apenas nas partes, até textos algo mais longos, como este meu, que se deteve no que considero o tema central da fotografia, a mente limitada, a pouca instrução dos observadores de costas, turba turística a que o poeta negou direito ao rosto do jovem e formosíssimo David. Classificando-a, diria que se trata de uma foto satírica.

Algo que muito me agrada em certos cultores da imagem, e posso até dizer que foi com os filmes de João César Monteiro que me tornei apreciadora desses segmentos fílmicos, são as figurinhas vistas a uma grande distância na paisagem. Sejam pessoas à porta de casa, de noite, iluminadas fracamente por um candeeiro, sejam as figurinhas em contraluz, na praia, fundidas quase na imensidão oceânica, também José Emílio-Nelson tem essa capacidade de nos pôr mentalmente a imaginar a história dessas criaturas só perfil, esboços sem rosto e sem formas, a um passo de desaparecerem no cenário.

Esta estética deliberadamente adoptada das panorâmicas minimalmente povoadas por personagens muito distantes também valoriza o cenário, paisagem em geral despida, para que ao longe as figurinhas se distingam – ideal no caso de José Emílio-Nelson é a praia, e vamos sugerir que de preferência as de Espinho, por se tratar da cidade onde mora; de outra parte, confere às personagens uma dimensão dramática, no confronto da sua individualidade com a pressão do global.

Tantas outras fotos criam situações em que precisamos de lhes contar a história: seja o velho filmado de cima, na rua, em solitária cadeira de rodas, a apanhar um banho de sol matutino, seja o chinês a vender chapéus numa rua que bem pode ser a de Santa Catarina, no Porto, as fotografias do poeta são poemas feitos com luz, que não conseguimos ver a correr: elas chamam a atenção, requerem tempo para a fruição de leitura.

 

 

[1] https://observador.pt/2017/06/11/o-primeiro-telemovel-com-camara-fotografica-nasceu-ha-20-anos/


Revista Triplov

Setembro de 2024

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