Carlos Felipe Moisés

 

 

 

BREVE PANORAMA DO SURREALISMO EM PORTUGAL
Direção e organização de Rui Sousa


RUI SOUSA
Entrevista a Carlos Felipe Moisés (In Memoriam)

 

RS . Qual a sua opinião acerca do ideal de artista maldito e das componentes a ele associadas, como a tendência para comportamentos ditos desviantes e a adopção de uma imagem particular de excentricidade e de revolta heterodoxa?

CFM. O artista “maldito”, como queria Verlaine, é a retomada de um ideal romântico, ultra-romântico, que põe ênfase na imagem do artista como inadaptado e por isso banido do convívio social. De certo modo, a “maldição” é imposta ao artista pela sociedade, obediente ao ensinamento de Platão, que não quis saber do poeta na sua “República”. Mas, sobretudo a partir da grande rebelião romântica (adotada sem restrições pelo Surrealismo), temos também a figura do “maldito” por conta própria, isto é, o artista que opta por se marginalizar (independentemente de ter sido banido ou exilado pelo “sistema”), como forma de protesto contra a hipocrisia e a desumanidade vigentes. Num caso e noutro, o destino de todo maldito é integrar-se no “sistema”, seja porque este passe a acolher com benevolência as suas excentricidades e deixe de “maldizê-lo”, seja porque a rebeldia “maldita”, genuinamente assumida, consiga mudar as regras do jogo coletivo, tornando-o mais compatível com as individualidades insubmissas. Todo “maldito” acaba (anseia?) por deixar de ser maldito. Revolução permanente, só na utopia de Trotski e na ortodoxia surrealista.

RS . O que entende pelo conceito de libertino e de que modo considera que poderia relacionar-se com as Vanguardas históricas e, especificamente, com o Surrealismo?

CFM. A figura do “libertino” remonta ao ideal oitocentista do “dandi” ou do “flaneur”, como o temos em Baudelaire, em Eça de Queirós e em tantos outros. O libertino representa o desejo de se distinguir da multidão anônima, pela via da excentricidade e do refinamento, dando mostras de que a mesmice das sociedades modernas exige do indivíduo o paradoxo de ser, ao mesmo tempo, igual a todos e diferente de todos.  O libertino pode ser uma espécie de “maldito” ou de “marginal” – que se rebela contra o “sistema” (denuncia, agride, escandaliza), mas ao mesmo tempo realiza aquilo que a hibridez do sistema espera de cada um: que se submeta ao fetiche da insubmissão. É outra utopia: numa sociedade em que todos tomassem a libertinagem como modelo (como parece ser a atual), em que consistiria a genuína liberdade?

RS . O que entende por marginalidade artística? Poderá este conceito de algum modo articular-se com o conceito que defende de desconcerto do mundo?

CFM.  [Quer-me parecer que esta questão já foi respondida nas anteriores.]

RS . Concorrerá para a ideia de marginalidade uma certa expressão performativa individual e colectiva da arte moderna?

CFM. O conceito de “marginalidade” é ou deveria ser um conceito eminentemente individual. Quando (se) todos formos marginais, onde estará o centro? No entanto, parece não haver notícia de nenhum marginal que se satisfaça em se colocar a si próprio na marginalidade: todos sonham com a adesão de toda a coletividade, a fim de que o desvio e a exceção sejam adotados, por todos, como… norma comum.

RS . Acredita que a Literatura pode, por via da subversão, ajudar a uma transformação das mentalidades e dos paradigmas de uma determinada sociedade?

CFM . Acredito que sim, desde que as pessoas não se deixem iludir pela falsa subversão, pela falsa excentricidade, pela falsa transgressão dos que almejam ser reconhecidos e (re)admitidos pelo sistema que aí está. O grande paradoxo é que, há décadas, as forças conservadoras ou reacionárias têm como inestimável aliado o subversivo de fachada, tão comum nos tempos atuais.

RS . De que forma definiria as Vanguardas históricas?

CFM . Só se tornaram “históricas” porque deixaram de ser “vanguarda”.

RS . Em que medida estas questões (a marginalidade, a heterodoxia, a libertinagem, a revolta…) foram relevantes em Portugal e, em particular, no Surrealismo/Abjeccionismo?

CFM . Eu diria que em todas as medidas. Primeiro porque o ceticismo, a descrença, o espírito de contestação fazem parte da melhor tradição portuguesa (embora isso possa conviver com crendices, superstições e apatia). Depois porque as manifestações, digamos, “institucionalizadas” de revolta, libertinagem, heterodoxia etc. (refiro-me aos tempos heróicos do grupo de “Orpheu”) coincidem com o início do processo que vai conduzir, no final dos anos 20, ao endurecimento do regime e à ditadura salazarista. A partir daí, só será cético, descrente e contestador quem não temer pôr em risco a sua própria sobrevivência.

RS . Quando considera que podemos falar de Surrealismo em Portugal?

CFM . Há manifestações pelo menos surrealizantes já nos anos 20, como as de um Antônio Pedro; já há indícios de um proto-surrealismo nas extravagâncias de um Sá-Carneiro, de um Almada e até de um certo Pessoa; mas, como ação coletiva (e isto a meu ver é o que conta) só podemos falar de Surrealismo em Portugal no final dos anos 40, quando o grupo “dissidente”, chefiado por Cesariny, adota com liberdade o ideário bretoniano e entra em polêmica com todas as demais correntes – as metamorfoses do presencismo, o stalinismo neo-realista, e o que mais houvesse. Nessa altura, não se fala mais em “Orpheu” (como se se tratasse da “vanguarda histórica”, congelada no passado), mas quero crer que ainda, então, se trata do espírito de “Orpheu”, mais vivo e atuante do que nunca, e assim será décadas afora, até os nossos dias.

RS . Como encara as polémicas entre o Surrealismo emergente e outras expressões contemporâneas, como o presencismo e o neo-realismo?

CFM . [Esta questão parece estar englobada na anterior.]

RS . O que pensa do papel de António Pedro no âmbito do Surrealismo em Portugal?

CFM . É um precursor, um pioneiro, figura de relevo, mas não chegou a participar de nenhum movimento surrealista como ação coletiva, embora tenha participado da “Exposição Surrealista” de 1948, quando o Surrealismo é “oficialmente” introduzido em Portugal.

RS . E de Alexandre O’Neill?

CFM . O’Neill é um dos poetas mais autenticamente surrealistas, por isso nunca fui capaz de atinar com o fato de ele haver renegado o movimento e nunca ter chegado a se entender com Cesariny, Lisboa, Vespeira, Leiria e os outros, com os quais sempre teve clara afinidade. Não havendo – como me parece – divergências estético-literárias ou ideológicas de monta, só posso imaginar que as razões da dissidência tenham sido de ordem pessoal.

RS . A seu ver, a que se terá devido a dissidência que conduziu à formação do grupo Os Surrealistas?

CFM . Desde o início, Cesariny e o seu grupo foram sempre radicalmente contra a possibilidade de o Surrealismo ser entendido como uma “escola” (mais uma!), a ditar regras e receitas – perigo que eles divisam no grupo inicialmente formado por O’Neill, José Augusto França, Antônio Dacosta e outros. Cesariny e companheiros pretendem preservar a todo custo a ideia de Surrealismo como uma espécie de guerrilha generalizada contra toda e qualquer sorte de ordem estabelecida, e sabiam bem que o Surrealismo pode converter-se em ordem estabelecida, burocratizada. É por isso talvez que Antônio Maria Lisboa, um dos mais genuínos representantes desse espírito radical, tenha preferido chamar-se “metacientista” e não “surrealista”.

RS . Que autores internacionais destacaria como fundamentais em termos de influências dos surrealistas portugueses?

CFM . A lista seria imensa, não só os franceses como Breton, Soupault, Éluard e tantos outros, mas também escritores não ortodoxamente surrealistas, como os românticos alemães, Nerval, Sade, Lautréamont, Bataille e por aí vai. Mas confesso que nunca me atraiu muito a visão comparatista, sempre dei preferência a estudar os surrealistas portugueses à luz da sua própria cultura literária, à qual, julgo eu, eles são mais devedores do que às literaturas estrangeiras.

RS . Octávio Paz costuma referir-se a uma determinada tradição de ruptura que, iniciada com a Modernidade setecentista, estabeleceria uma relação de constantes questionamentos e recuperações desde o Romantismo, prolongando-se pelas manifestações finisseculares do Simbolismo e do Decadentismo e pelas múltiplas expressões das Vanguardas históricas do século XX, constituindo o Surrealismo mais uma das expressões dessa corrente. Concorda com esta concepção?

CFM . Concordo, sim, uma concepção que, aliás, parece tão óbvia… depois que Paz a expôs. A “ruptura”, não no primeiro momento, mas logo em seguida, gera uma certa “tradição”, na medida em que vai ganhando adeptos, vai-se consolidando como tendência dominante, de modo que “romper” passa a ser uma regra obedecida tão irrefletidamente como qualquer outra, dentre as impostas pelo sistema.

RS . Acha que o facto de o Surrealismo em Portugal ter emergido numa fase adiantada do percurso internacional, e de nessa ocasião já se terem manifestado algumas vozes críticas do modelo bretoniano, como as de Artaud, de Georges Bataille e de Michel Leiris, é relevante para o percurso particular do movimento em Portugal?

CFM . Sim, sem dúvida. Não só porque já havia uma intensa reflexão a respeito dos limites e das implicações do ideário surrealista, no plano internacional, como porque, no momento em que surge, o Surrealismo português se depara com uma peculiar conjuntura histórica – o apogeu do fascismo salazarista e ao mesmo tempo o triunfo do panfletarismo neo-realista – diante da qual o movimento se sente obrigado a reagir. Engajado na realidade circundante, como não podia deixar de ser, o surrealismo português definirá a partir desse quadro os rumos a seguir.

RS. Concorda com a ideia segundo a qual o Surrealismo encontra em Portugal aspectos particulares também devido à tradição literária portuguesa?

CFM . [Esta questão já foi abordada em respostas anteriores.]

RS. No que diz respeito à influência de autores portugueses no nosso Surrealismo, são recorrentemente referidos os casos de Bocage, Gomes Leal, Fialho de Almeida, Cesário Verde, António Nobre, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes, Álvaro de Campos, Mário de Sá-Carneiro ou Edmundo de Bettencourt. Concorda com estas opções? Que outras considera que poderiam igualmente ser tidas em conta?

CFM . Bem, parece que estão todos aí. Talvez fosse possível acrescentar mais alguns nomes, mas prefiro não arriscar. Tenho receio do exagero. Quando fixamos a atenção numa determinada ideia, sobretudo uma ideia tão rica, tão complexa, tão intrigante como é o “espírito” surrealista, o perigo é essa ideia estender-se e esgarçar-se a tal ponto que tudo, já agora, parece… “surrealismo”. É também o perigo das generalizações ambiciosamente abrangentes. Eu me limitaria a mapear, com muito cuidado, pontualmente, as possíveis influências sofridas por este ou aquele poeta surrealista.

RS. O que entende por Abjeccionismo e, a seu ver, de que modo este conceito poderá considerar-se como uma expressão particular do surrealismo em Portugal ou mesmo de um Surrealismo português?

CFM . [Lamento confessar que até hoje não entendo o que Cesariny pretendeu com “Abjeccionismo”, parece-me só um nome a mais, destinado a repetir os antigos chavões ligados a chocar, escandalizar, épater – ou provocar abjecção. Admito que a ideia vá além disso, mas me escapa. Por isso preferia saltar esta questão, assim como as três seguintes. Aliás, ignoro o que seja o Grupo Café Gelo.]

RS. Na Antologia Surrealismo-Abjeccionismo, de 1963, Mário Cesariny integra um conjunto de autores muito heterogéneo, alargando em certo sentido o escopo do movimento a todas as manifestações de revolta do período. Desses escritores (Afonso Cautela, Joaquim Namorado, Irene Lisboa, Almada Negreiros, entre outros), quais foram realmente importantes no contexto abjeccionista?

RS. Em que medida o Grupo do Café Gelo se encontra ligado ao Abjeccionismo?

RS. Considera que poderemos referir-nos a um determinado clima epocal que justifique a existência de expressões contemporâneas ao Abjeccionismo, normalmente consideradas neo-vanguardistas, como a Geração Beat ou os Angry Young Man?

RS. O que pensa do papel de Luiz Pacheco nas múltiplas facetas da sua acção literária? Considera relevante para a compreensão da sua obra a dimensão performativa e a consequente componente autobiográfica da sua obra que lhe é recorrentemente atribuída?

CFM . É uma figura, e uma obra, que conheço mal. Nas minhas andanças pelo Surrealismo português, desde os anos 60, habituei-me a ver o seu nome, mais como editor do que como autor, sempre mencionado com admiração, como alguém muito ativo, seriamente empenhado na “causa” surrealista, envolvido em polêmicas. Mas teria dificuldade em dizer qual teria sido a sua contribuição efetiva ao movimento.

RS. Que heranças deixou o Surrealismo na literatura portuguesa?

CFM . Não sei se seriam “heranças”, menos ainda se seriam assumidas pelos próprios, mas vejo em poetas como Herberto Helder, Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Ruy Belo, Alberto Pimenta, Al Berto e tantos outros uma poesia de extraordinária qualidade que não teria chegado onde chegou não fossem o clima e as inquietações peculiares introduzidas pelo Surrealismo.

RS. Qual a expressão do Surrealismo no Brasil?

CFM . No Brasil, desde os anos 20, só tivemos manifestações esparsas de algum Surrealismo, na literatura como nas artes plásticas. Nunca chegamos a ter um movimento (ação coletiva, repito) como o que houve (há?) em Portugal e em outras partes.

RS. De que modo considera que o Surrealismo em Portugal se articula com o Surrealismo no Brasil? Que autores portugueses influenciaram o Surrealismo brasileiro e vice versa?

CFM . Não tenho notícia de que jamais tenha havido tal articulação. Se houve, não repercutiu. Os surrealistas portugueses continuam a ser desconhecidos no Brasil, e se eles decidirem compor-se com algum correligionário brasileiro, vai ser difícil encontrar algum… Há uma única exceção: Floriano Martins, poeta cearense, estudioso do Surrealismo, que tem empenhado o melhor do seu esforço, de teórico e historiador, na internacionalização do Surrealismo, com passagens por Portugal. Mas é um caso isolado. Outra exceção poderia ter sido o poeta Roberto Piva, um dos melhores dentre os surgidos nos anos 60, recentemente falecido. Lembro-me de ter-lhe mostrado, nos idos de 70, uns poemas de Cesariny , de que ele nunca ouvira falar, e ele ficou deslumbrado. Passei-lhe o endereço de Cesariny, com quem eu me correspondia, Roberto Piva mandou-lhe os seus livros, mas não recebeu em troca livros do poeta que tinha passado a admirar. Até onde sei, o contato morreu aí.

RS. Existirá, dentro desta perspectiva sobre os particularismos do Surrealismo em Portugal, uma possibilidade de conceber uma vertente lusófona do Surrealismo?

CFM . Sem dúvida, e não haveria como escapar. A despeito da vocação e da pregação internacionalistas do movimento, o Surrealismo só se realiza em alto nível quando se deixa impregnar pelas marcas regionais, como acontece com os surrealistas portugueses.


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série gótica

Verão de 2019