«Abro a porta da noite» e outros inéditos

 

MARIA AZENHA
Foto: M CÉU COSTA
TRIBUTO


ABRO A PORTA DA NOITE

Abro a porta da Noite.
Pico-me em alfinetes transparentes no livro das nuvens.
— os livros abrem grandes feridas. —
Ao menos poderia haver um aviso nas estrelas
para quem os abrisse.

 

Ao poeta não serviria de nada. 

 

NO AQUÁRIO DAS LÁGRIMAS

Depois do voo das gaivotas só te tenho a ti.

Mais ninguém nos espera.

Triste ver o mar apodrecer nos teus olhos

E em seu lugar ficar a névoa.

És tudo o que acontece na noite do aquário das lágrimas

Em praias desertas.

O inferno é haver memória e tu puderes vir a morrer jovem.

Tanto tempo para conhecer as estrelas que o vento

agora acorda. 

 

O MESTRE

Ele era um mendigo que morava na rua.
Numa rua bem conhecida,
Ao pé de minha casa.
De face iluminada,
Como nunca outra pude ver,
Caminhava,
Sem rumo,
De um lugar para outro.
E rendia-me à sua beleza. E aos seus passos de música.
Ele era tão belo como a face de Cristo representada por alguns pintores.
Pude claramente ver ali, ao vivo, como a chuva fluía
Ao longo das suas vestes
Acompanhando o seu antigo corpo.
Olhava-o com algum pudor.
De volta, ele fixava-me o rosto e mostrava-me a mão
Aberta.

Afinal quem era?
De onde viera?

Impossível saber se era grego ou egípcio ou
De outro lugar qualquer.
Com os seus profundos olhos
– Disso estou certa –
Ele era o meu Mestre.

De roupas longas,
Pés cobertos pelas pontas de um cobertor,
Na escuridão da rua,
Na mais pura noite coberta de estrelas,
Celebrámos a luz do amor.

Não falámos. Talvez comunicássemos numa língua arcaica.

Da última vez que o vi, já com algum esforço,
Parecia apontar para o mistério do fim,
Andando muito devagar.

Encostei-me ao seu ombro, estremeci.
Beijei-lhe o rosto.

 

Um relâmpago abriu o céu de uma ponta a outra.

 

O POEMA NO ARMÁRIO DA QUÂNTICA

Um dos fundadores da teoria quântica, Schrödinger,

contou a famosa história do gato, para enfatizar que a teoria quântica diz algo “absurdo”.

O gato não observado de Schrödinger, está simultaneamente morto e vivo – até que observá-lo faça com que esteja ou morto ou vivo.

Digo, então, para ti:

Este poema, que não foi observado por Schrödinger,

está ao mesmo tempo morto e vivo.

Se tu, leitor, o observas morto o poema está morto.

Se o observas vivo, o poema está vivo.

O poema não existe. Nunca existirá sem ti.

Não foi afinal uma criança que gritou que o rei ia nu?

E tu alguma vez viste o rei nu?

O misterioso do poema não está no que o poema diz.

Está na criança que o observa e entre eles acontece uma história privada.

Digo assim:

Este poema é uma onda – umas vezes partícula   outras vezes luz.

E brinca ao absurdo com o gato de Schrödinger.

 


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