A inocência de pensar

FLORIANO MARTINS
Tributo


A inocência de pensar, de Floriano Martins
Por JACOB KLINTOWITZ


De alguma maneira, para certas pessoas, pensar é uma atividade natural. Certamente não para muitas pessoas. Em Floriano Martins esta atividade rara não só é natural, como nos lembra a natureza. Estamos no terreno da estranheza. É possível que pensar faça parte da natureza, e, se assim for, é a natureza capaz de refletir sobre a própria natureza. Um espelho dotado de vontade própria. Entretanto, não é desta maneira que associo Floriano Martins à natureza, eu o faço por seu movimento incessante, contínuo e sem pausa. Uma dessas surpreendentes e imensas quedas d’água brasileiras. Floriano Martins descreve o seu tema inicialmente de maneira suave e o vai ampliando quase sem nos avisar, para transformá-lo, de repente, num feroz caudal de referências, marcos históricos, signos locais e significações universais.

O escritor não perde jamais a perspectiva de que o seu tema é, no fundamental, o ato humano da criação e a reação dos homens quando situados na circunstância e diante do essencial, com a grandeza ou a fraqueza que ela propicia emergir. Neste sentido, o do foco, é admirável o quanto um autor tão armado de referências e de forte posicionamento cultural, consegue manter-se cordial. Uma ou outra seta irônica, uma mordacidade aqui ou acolá, e é suficiente para saciar a sua fome de justiça.

O interesse de Floriano Martins concentra-se nos escritores, nos poetas, nos artistas plásticos, nos líderes culturais, no movimento social da cultura, nas perspectivas e tendências da consciência nos séculos XX e XXI, na integração possível entre os vários países da América, no frágil intercâmbio entre os idiomas espanhol e português, na interpenetração entre a cultura erudita e a popular, na política exterior dos países e a sua relação com a valorização das manifestações artísticas. Podemos dizer que nós, leitores, por nossa vez, terminamos por nos interessar, além da especificidade de cada texto, por esta figura autoral carismática e renascentista.

Às vezes cabe a dúvida se Floriano Martins age como um humanista renascentista em seu longo discurso em busca da razão, ou se, oculto no seu equilíbrio formal, não existirá um missionário que se autoelegeu para a desesperada tarefa de civilizar a humanidade. Não discordarei dos que acreditam que as duas atitudes sejam, na verdade, uma só, dois aspectos da mesma postura do homem especialmente dotado que fala sem cessar, para não se calar em definitivo.

O “método florianesco” de análise obedece a um ritual bem estabelecido, e isto vale para os ensaios ritmados, as entrevistas inquietantes e as impacientes breves anotações. Floriano Martins descreve com minúcias o seu assunto, numa delicada atenção ao leitor. Cerca o seu tema de opiniões variadas de ilustres figuras, fazendo questão de colocar as citações num contexto esclarecedor balizados pela análise estilística e o factual histórico e, finalmente, tendo introduzido aqui e ali iluminações sobre a obra estudada, já nos apresentando a sua verdade, fecha o texto num ápice no qual cabe apenas um foco de luz e um só objeto iluminado. Este é o percurso habitual de seu inocente pensar e nele, reconheçamos, cabe o sentimento do mundo.

Esta citação de Drummond, um dos objetos de sua acurada atenção, não é por acaso, pois em Floriano Martins perpassa o mistério da amorosidade. Eis ai um escritor que gosta de escritores e um poeta – a parte essencial de sua vida de artista – que se comove com a poesia alheia. É o que ele busca nos seus heróis, e é o que ele encontra. A sua análise é respeitosa, já que ele concentra-se na linguagem e na criação. E é esclarecedora, pois é ampla na narração do percurso do artista e na pesquisa sobre o artista. Tenho para mim que Floriano Martins estabelece a sua análise crítica, pois sempre se trata disto, de uma maneira inovadora porque, ao invés da sentença, ele prefere o retrato do artista. Num texto pleno de meios tons, áreas iluminadas, áreas em sombras coloridas, o autor cria retratos. Um pouco à maneira dos mestres, especialmente Velásquez. Um ensaísta transgressor.

Certamente estes ensaios transgressores, o são na originalidade, estão acrescidos pelo decidido ponto de partida de Floriano Martins: ele é a favor da linguagem, da criatividade e da invenção. Nos seus textos não há dúvidas sobre a validade da cultura, sobre a necessidade da poesia num planeta em guerras permanentes ou sobre a legitimidade da cultura ocidental, para ele, no seu ponto extremo, uma cultura de mestiçagem. Para Floriano Martins, poeta, escritor, tradutor, músico, artista plástico, o único lugar habitável é a utopia.


Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, editor, tradutor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Colaborador das revistas Altazor (Chile), Matérika (Costa Rica), La Otra (México), Blanco Móvil (México), Triplov (Portugal) e Acrobata (Brasil). Estudioso da tradição lírica na América Hispânica e do Surrealismo.
Contato: floriano.agulha@gmail.com.
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