À espera de uma definição

FERNANDO SORRENTINO


Fernando Sorrentino (Argentina, 1942). Escritor y profesor de literatura argentina.  Sus relatos se caracterizan por una interesante mezcla de imaginación y humor que a veces raya en lo grotesco. Algunos de sus cuentos han sido traducidos al inglés y han sido publicados en varias revistas literarias y antologías en los Estados Unidos y Gran Bretaña. Además de obras de ficción y de periodismo cultural, ha escrito ensayos completos de autores clásicos españoles y argentinos (Don Juan Manuel, Arcipreste de Hita, Juan Ruiz de Alarcón, Mariano José de Larra, José Hernández) y ha editado varias antologías de cuentos de Argentina que han sido publicadas por la editorial Plus Ultra de Buenos Aires. Fernando Sorrentino ha trabajado en la sección literaria de los diarios La Nación, Clarín, La Opinión, La Prensa, Letras de Buenos Aires y Proa.

<fersdelaakd@gmail.com>


Estou dominado por um mosquito. À hora que ele quiser, me matará. Por sorte, até agora não tem abusado de seu poder: exerce sua autoridade com moderação, sem arbitrariedade, numa forma – diríamos – constitucional. Mas em todo caso, deve-se subentender que minha obediência não emana de um reconhecimento de seus méritos ou virtudes, mas do temor que ele me infunde.

Se ele considerasse conveniente, me mataria, e seu crime – ou execução –  ficaria impune. Mesmo que a Justiça estabelecesse irrefutavelmente que ele é homicida, não poderiam castigá-lo: não só pelo fato secundário de que essa forma delituosa não é prevista pelo Código Penal, mas também porque ele não permitiria que o fizessem. Felizmente tenho elementos de razão suficientes para supor que – se eu não lhe der motivo – ele tenha descartado definitivamente a idéia de fazer justiça.

Ele se acha sobre a parede, perto do topo de um quadro pintado a óleo que representa uma paisagem impossível, na qual duas pastoras aparentemente espanholas, com cajados iguais,  conversam sobre assuntos desconhecidos entre dóceis ovelhas, cujos dorsos retos coincidem com a linha do horizonte. A topografia é abundante: há uma planície verde, duas montanhas violetas coroadas de branco e um rio azul que desemboca num lado acinzentado. Nada entendo de artes plásticas, mas sempre me pareceu que esse quadro carece de qualquer valor estético. Entretanto eu diria que o mosquito não se interessa pelos valores estéticos – e talvez por nenhuma outra classe de valores. – Pelo menos, nunca manifestou aprovação nem reprovação.

Na realidade prefere ocupar-se de outros afazeres.  Pela manhã, agrada-lhe percorrer a casa, talvez sem um objetivo determinado. Mas o fato é que, da sala de jantar, onde estabeleceu sua sede governamental, dirige-se primeiramente à cozinha, onde parece – mas sem dúvida é pura imaginação minha – interessar-se especialmente pelo brilho de uma panelinha de cabo preto e alongado. Às vezes me pergunto por que lhe chamará tanta atenção um objeto totalmente sem graça; depois raciocinei que ele, afinal, é apenas um mosquito. A cozinha é onde permanece mais tempo. Em seguida percorre o hall, o quarto e o outro comodozinho, sem se deter de maneira especial em nenhum deles. Creio que seu propósito não é tanto controlar o bom funcionamento da casa, mas ratificar sua autoridade sobre seus domínios.

Ao meio-dia – para ser mais exato, às doze e trinta – almoça. Sua dieta não é muito variada. Todos os dias come uma rodela de chouriço basco que eu lhe sirvo num pratinho de porcelana (ele não admitiria outro). Ainda lembro o dia em que recusou com indignação uma fatia do chouriço nacional que eu, em minha subserviência, lhe havia levado para agradá-lo. Tive que descer até o açougue e comprar seu manjar preferido e exclusivo. Uma vez deixado o pratinho na mesa, devo retirar-me em seguida, pois não admite a presença de ninguém enquanto come. Não obstante, eu também tenho alguma dose de astúcia e, em certas ocasiões – quando não tenho outra coisa mais urgente para fazer – espio-o pelo buraco da fechadura. É certo que esta é uma atitude bastante boba: confesso que não há nada particularmente admirável no que vejo. Logo que o mosquito se assegura de que saí da sala de jantar, desce, com a lentidão apropriada à sua investidura, até o pratinho de porcelana. Depois crava seu ferrãozinho no salame e suga pausada e avidamente o sangue (desprezando, paradoxalmente, os pedacinhos de noz, justamente o que diferencia o chouriço basco do nacional): nesta atitude não há nada que o distinga do resto dos mosquitos do mundo.  Geralmente seu almoço dura de dois a três minutos. (Na verdade, menti quando disse que o espio quando não tenho outra coisa mais urgente para fazer; o certo é que o espio diariamente.  É fascinante penetrar na intimidade dos poderosos.)

Uma vez satisfeito o apetite, invade-o uma sensação de modorra e peso e, aparentemente, já não pode regressar à sua residência, vizinha ao quadro das ovelhas. Prefere, então, fazer uma espécie de sesta sobre o rodapé,  no lugar exato onde a pintura da parede está meio descascada. Acorda por volta das cinco da tarde e já não volta a percorrer a casa: instala-se novamente junto ao quadro e ali permanece até a hora do jantar.

A propósito desses detalhes, supus – erroneamente – que o conhecimento com tanta exatidão de seus hábitos de vida me proporcionava alguma vantagem para desfazer-me dele. Tentei uma só vez:  saí-me tão mal, que não ousei uma segunda. Os fatos – sinto vergonha de recordá-los – aconteceram da seguinte maneira:

Naquele dia pareceu-me que seu almoço havia durado mais que o habitual e que o mosquito estava especialmente entumecido. Então me descalcei e, levando uma alpargata como arma, aproximei-me com o coração na boca o mais sigilosamente que pude, até achar-me junto ao rodapé onde ele dormia ou fingia dormir. Por um instante a soberba me cegou e ingenuamente acreditei  que poderia esmagá-lo facilmente com a alpargata contra a madeira do rodapé. Porém, no exato segundo em que já lhe dava o golpe fatal, levantou vôo com uma rapidez não isenta de majestade e se lançou contra meu rosto.  Comecei, então, gritando de terror, enlouquecido, uma fuga esbaforida por toda a casa Como voava rápido! Como mimetizava os cantos escuros, que silenciosa era sua perseguição, quantos obstáculos me impediam de locomover-me com a velocidade que o perigo do caso requeria! Tentei virar a chave na fechadura para abrir a porta e fugir para sempre de casa, mas tal operação era impossível. O mosquito não me dava tempo, a chave se travava nas minhas mãos, meus dedos estavam emperrados. Corri, corri por toda a casa, corri sem poder interpor uma porta fechada entre mim e ele, corri  esbarrando nos móveis, derrubando cadeiras, quebrando jarros e cristais, rasgando a roupa, ferindo os joelhos e os pés descalços. Corri, corri, corri, até que, extenuado de cansaço e terror, caí de joelhos.

– Perdão! Perdão! – gritei com as mãos entrelaçadas e estendidas com expressão suplicante -. Juro, juro pelo que há de mais sagrado! Juro não tentar mais!

O mosquito se deteve e começou a girar em pequenos círculos, enquanto eu, chorando torrencialmente, repetia aquelas e outras expressões semelhantes. Não sei se ele me ouvia. Parecia estar meditando sobre o que fazer comigo. Tinha que tomar uma decisão importante para a qual, sem dúvida, necessitava de reflexão que só a calma e o silêncio proporcionam; e eu, em vez de permanecer calado, continuava gemendo, suplicante, gaguejando, com as roupas empapadas de suor e chegando, apesar de tudo, a observar que as veias das minhas mãos estavam inchadas e azuis, quase roxas, quase negras. Ele pensava, matutava, refletia seriamente; era evidente que não se precipitaria em tomar uma decisão da qual logo se arrependesse. Esvoaçava e  esvoaçava, cada vez mais lentamente, como se fosse parar, mas o exasperante é que não parava. Mais de meia hora durou essa situação e eu, enquanto isso (com o rosto desfigurado, os olhos cheios de lágrimas e tremendo dos pés à cabeça, esperava seu veredito e sua sentença – que seriam simultâneos – ), observava pela janela as vagas formas dos operários que trabalhavam nas obras de construção da calçada em frente e pensava que eles estavam num mundo de sol, de ar, de baldes e tijolos limpos, um mundo onde não tinha lugar para um mosquito sinistro e poderoso que agora decidiria minha vida ou minha morte… E, finalmente, o mosquito foi misericordioso: com indizível alívio, vi como se dirigia lentamente até seu rodapé, sem nenhuma vaidade – é certo –, mas convencido de que eu nunca mais voltaria a incomodá-lo.

Depois desse episódio, compreendi que deveria resignar-me à minha sorte. Afinal, é pouco o que ele exige de mim: suas duas fatias diárias de salame e o pratinho de porcelana. Tenho, entretanto, um escrúpulo, um só: me revolta, me fere, me humilha estar dominado por um ser tão pequeno, um ser que pesa apenas uns poucos miligramas, quando meu peso é de quase oitenta quilos. Ao mesmo tempo, não me sinto em absoluto diminuído por estar sob as ordens de um ser irracional – um ser que tem, literalmente, cérebro de mosquito. –  Talvez essa resignação se deva a que muitas vezes eu tenha sido subordinado a pessoas que não tinham inteligência maior que a de um gato e, sem dúvida, muito menos beleza.

Mas assim como tenho um escrúpulo, também tenho uma esperança. Sei que a vida de um mosquito não dura mais que alguns meses: por isso, todas as manhãs olho furtivamente o calendário, esperando o dia em que possa marcar, com um lápis verde que levo escondido, a data em que o mosquito morrerá.  Entretanto, por outro lado, amanhã vai fazer vinte anos que ele fundou seu império. Isto, além de contradizer as leis naturais, me lança num tipo de alucinação: o pensamento de que o  mosquito é imortal.

Se essa idéia não for verdadeira, cabem, então, duas possibilidades:

A primeira é que esse mosquito não tem sido sempre o mesmo e que durante a noite, quando estou dormindo, ocorra o revezamento do  mosquito moribundo com outro mais jovem e forte. Fui levado a tal suposição pelo fato de haver encontrado uma manhã, no pé da mesa da sala de jantar, o cadáver de um mosquito. Claro que esta não é uma prova decisiva: não tenho nenhuma certeza de que esse mosquito morto seja o que tinha me dominado; talvez fosse um mosquito comum e silvestre, desses que um tapa ou um inseticida abatem facilmente.

A segunda possibilidade exclui a primeira. O poderoso poderia ser o mosquito morto, e o que se encontra junto ao quadro das ovelhas é um mero mosquito usurpador, sem nenhum poder, que fundamenta sua autoridade numa simples questão de investidura ou semelhança. Mas como esse argumento não explica os vinte anos de domínio, caberia supor que os mosquitos usurpadores são muitos e efetuam disciplinadamente o revezamento. De qualquer maneira, seja como for, não ousarei certificar-me disso: poderia ser-me fatal.

Enquanto isso, como nada posso fazer, passam-se os dias, os meses, os anos. Envelheço e definho, consumido em minha própria angústia e, sempre dominado por um  mosquito, continuo à espera de uma definição.

 

 

  (De Imperios y servidumbres, Barcelona, Editorial Seix Barral, 1972)


Tradução de Ana Flores . <aflores.rj@gmail.com>


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