A duração da eternidade

 

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL
Tributo
Org.: Luís de Barreiros Tavares


Manoel Tavares Rodrigues-Leal, A duração da eternidade. Livro completo. Assinado com o pseudónimo de Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo. Ed. de autor, Janeiro de 2007.

 Breve nota – Os poemas dos cinco livros de edição de autor enquadram-se numa nova fase da obra de Manoel Tavares Rodrigues-Leal. Se não a última, pelo menos a penúltima. Dito de maneira sucinta, trata-se de uma viragem significativa, até pela assunção da sua vertente homossexual, ou mais propriamente bissexual. Mas é a própria escrita que muda, ainda mais depurada, atingindo, ao mesmo tempo uma forte simbólica e uma imagética muitíssimo expressiva. Por outras palavras e numa outra leitura, talvez seja oportuno citar Elsa Rodrigues dos Santos: “[…] a poesia de Motta Cardôzo [pseudónimo] é trabalhada no ouro da palavra, numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o pode fazer” (sobre A Noção da Inocência). Ou ainda: “Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas” (sobre A Duração da Eternidade).


 I

esse ofício. fulcral.
o de escrever. ainda aflora. como que
uma frustre maré interior. a
da loucura. ígnea ou
ilimite. sob as pálpebras.
o olhar usado ousa.
o inexorável rigor. e tenso.
depois a remota eternidade de um corpo.
ou de uma tarde nua. abomináveis aves. as de
um verão imperfeito. o mundo.
se o fôr.
mais não é do que frívola eternidade.
a de um instante. ou a
de um contorno leve. o da nudez.
esse ofício é eterno.
(sê-lo-á porém). leitura e ócio
talvez. e literadura.

lxª 18.07.2003


 II

e não dura o dom.
de ser-se cão de espuma das tardes.
naufragadas em vão.
na vã cobiça de um corpo. essa
erecção
de dizer-se o prazer efémero. o pólen. não tem
morte possível. porém o pensar-se
a morte suprema. e aliso a plácida página.
luar de letras consentidas.
a nudez então irrompe.
essa transcende a eternidade. traduz
um corpo. e a língua fugidia do
instante. assim as guardo.
cioso.
até à circulação da eternidade. suponho eu.

lxª 18.07.2003


III

o latir. obscuro. ocorre. como o de um
cão sórdido de melancolia. e um breve
pomo esplende. dir-se-ia outrora.
o outono ainda vem todos os anos. outonos suaves.
como a mãe gostava.
eternos e não duram muito.
circulam no interior do corpo. invioláveis.
o verão. infuso agora. a tarde finda.
ou finge findar. sei que um pénis
fica no frigorífico do verão. se é que há verões
ou invernos. ou efémeras primaveras.
ó meu amor eterno. que
morreu há muito. e é eterno e outono talvez.
quem o sabe.

lxª18.07.2003


IV

será um rapaz iníquo.
será uma rapariga obcecada. ambos.
ao sabor do que se pensa. há
a colina.

da mais alta e lúcida melancolia. e também a da cobiça.
será um corcel.
de alegria e mansidão. inábeis.
e duradouros. como
uma árvore que inflecte.
em pleno verão. robusta e fabulosa.
será a eternidade que
morreu.
no umbigo do dia. no beijo defecado.
na luz crua da tarde antiga.
que jamais findou. e não é eterna.

lxª18.07.2003


V

é o solstício dizias. o de um verão recuado.
penso eu. ou recente. como sabê-lo. e o amor.
célere. surge. como uma fúria que comovesse
todo um espanto. ao roçar
o ócio do sol. gostaria que
o mundo começasse hoje.
e o cio também. e o ócio eterno e indizível.
de quem pensa eternidades. estou
cansado. colado à parede.
a sede. antiga. reaparece. e não tem contornos eternos.
tu sabes isso.
e vais morrer. até a eternidade
morre vilmente.

lxª18.07.2003


VI

não fumes meu amor. porque
podes morrer. todo um regaço de coisas e ruínas.
ou ruídos. os de outrora.
uma face luzidia. e o respectivo antídoto.
tudo isso escrevi sem parábolas. que cristo contava. e os
discípulos do corvo
curvavam-se à vã sapiência. esgotava-se a
paciência. punido. banido.
puerilmente. parece-me que cristo morreu.
como se fosse eterno.
como se fosse manso rio de um continente
desconhecido.
que supurasse sexo. a pele luzidia.
ou como se agonizasse na praia efémera
dos dias. que
passavam rentes aos testículos.
e o respectivo antídoto.

Lxª18.07.2003


VII

e assim nasceu. e falava. assiduamente.

era como o verão. que se abrira. recente.

como um clarão rubro de inocência. bebia

então taças tecidas de espanto. o

exílio.

iniciara-se. como uma teia. tecida lentamente. por

estranha e eterna aranha.

quando parido. por um período de vida.

fecundo. a mãe

linda. morrera ao pari-lo. que

eternidade vazia e vã. como a de

um deus. mítico ou não. que interessa isso.

para a posteridade.

Lxª 18.3.2003


VIII

após o coito. começara
a eternidade do prazer. efémero. longos haustos.
de atmosfera translúcida.
os sexos cintilavam. e. como o instante.
duradouros.
iniciava-se um olfato de húmida
primavera. límpida. e em vão tesos mastros. ou
sereias ciosas. circulavam. e os
instantes também circulavam. agora matemáticos e morosos.
mansos.
como os de um verão. que eterno retorno.
terminava na mão pura do instante.
não sei como.

lxª 18.07.2003


IX

Assim houvera o instante.

intacto. cerne

do que é eterno e passa. o instante não duraria.
porque eterno. eterno retorno
ao cu das palavras magoadas. era
o húmus
das manhãs morenas. até
ao limite do hímen. e
do limbo. símbolos
sonâmbulos de uma nudez rude.
assim houvera o instante. e
quem o movera. imóvel. deus.
e os periclitantes discípulos
de uma religião diáfana. ou religiões
sob cujo jugo. bárbaro.
e lendário.
se vive em vão.
para toda uma eternidade inútil.
e fútil.
retirai-vos.

lxª 18.07.2003


X

que instante mortal o subjugara. o jo-
go. o logro. da morte e da vida. aquém
de um explicação sábia. e comedida.
oh vã comédia da vida. estulta. estalactites
estalam nas grutas túrgidas
de eternidade. assim se iniciara
o suicídio colectivo. das
pombas. que habitavam o bairro antigo. e não só.
também o templo erigido aos deuses. aqui perto.
como se fosse a densa floresta da eternidade. ignoro
porém o futuro puro dos instantes.
flutuantes. ou extáticos.
como um olhar violento. duro.
o de um pai.
antiquíssimo.

lxª18.07.2003


XI

é um refúgio recôndito. o da
eternidade efémera. como o amor.
como o pranto da feminina ausência. coisas loucas
que o instante gera
e não erra. senão no início da eternidade.
templo antiquíssimo. o de um corpo. tradu-lo
a eternidade em visita. aqui. e
algures. gora-se a eternidade. que eu
em vão tecia. em vão.

lxª 20.07.2003


XII

que futuro tem a eternidade. hoje e aqui.
corpo ocidentalíssimo.
descoberto e belo. que se ofereceu. efebo efémero.
instante supremo. formula feliz talvez.
o sol sulcaria corpos. decapitados. e o passado
abrir-se-ia à pura vogal da eternidade.
transformada em instante efémero. assim se disse.
e sempre se ignorou. humana face de loucura.
talvez eterna ou divina. talvez breve.
como foi. na verdade.

lxª20.07.2003


XIII

a tarde cintila seu ouro
breve. não basta a eternidade
de um corpo. que verte
verde e verão. a opacidade dos corpos expostos.
assim começa a tarde. como acaba.
eis a eternidade. nua.
da palavra. o instante puro fere.
quem puía o corpo.
o corpo da tarde. seu púbis sereno.
escasso.

lxª26.07.2003


XIV

toda essa alta tristura. amanhecia.

ou se urdia. comovida.

como taça intacta.

como o instante fugidio. que roçava

o solo da solidão. que efígie perene.

adornava os longos rios das tardes.

e essas puras deidades.

que irrompiam. e supuravam sexo.

em vez de pura eternidade. corrompida

como um corpo. abandonado. ermo.

insólito.

o de quem isto escreve.

lxª26.07.2003


XV 

que limiar de melancolia o atingiria.

dia após dia nomeado. a neve

alisara-lhe o cabelo. o sangue. langue.

surgia.

ocultava as cicatrizes.

e os dias felizes. que

naufragaram nas pupilas dos instantes.intrusos.

trémulos.

duravam a duradoura eternidade.

que terminou ontem. acreditem.

lxª26.07.2003

Manoel Tavares Rodrigues-Leal, «A duração da eternidade». Ed. de autor, Janeiro de 2007.

MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL

Série Gótica . Verão 2020