A culpa é das baleias

CUNHA DE LEIRADELLA
Tributo


Romance


Só a Verdade é irmã da Certeza e só ela acaba com a Dúvida.
Professor Doutor Ignácio Polaranha Costa da Mó.
Historiador Pardalense


 Introdução


No dia que a deputada social-democrata Margarida Balseiro Lopes anunciou que ia entregar na Assembleia da República, já no início de 2019, um projeto de lei sobre a delação premiada para combater a corrupção em Portugal, nada aconteceu em Vila Nova de Pardais que perturbasse o sono bem-aventurado dos corruptores e dos consequentes corrompidos.  A declaração da deputada, além de não perturbar o sono bem-aventurado dos corruptores e dos consequentes corrompidos, também não perturbou a atividade dos praticantes de dogging recém-chegada a Vila Nova de Pardais. Aquela modernidade líquida de sexo entre desconhecidos, processada à noite em automóveis e lugares públicos, com ou sem plateia. Para bem da moral, e até da saúde pública, dizem os doggers que as regras são, boa apresentação, higiene, e vontade de fazer sexo.  Na verdade, em Vila Nova de Pardais nada aconteceu que contribuísse para o aumento das emissões misteriosas que estão a destruir a camada de ozono, ou qualquer outra catástrofe, anunciada nas fake news que fervilham na comunicação social, e se multiplicam no aplicativo WhatsApp dos smartphones. O aeroporto não fechou, sobrevoado por drones, e ninguém deixou de viajar de comboio para Lisboa.  Só que não tendo Vila Nova de Pardais aeroporto, nem estação de caminhos de ferro, apenas os enfermeiros e os professores continuaram os seus protestos e as suas greves, um café foi assaltado à hora do almoço, e o Dia Internacional Contra a Violência Sobre os Trabalhadores do Sexo não foi assinalado.

Apenas, antes de entregar o projeto na Assembleia da República, a deputada devia lembrar-se que as soluções mais simples são sempre mais eficazes do que as soluções mais complexas. Em vez de propor aos seus pares discutirem até cansar, bastaria uma só frase para que o projeto beirasse a perfeição. Corruptores e consequentes corrompidos na cadeia sem apelo nem agravo. E fim.

Mas estamos em Portugal, na terra dos brandos costumes, onde tudo se discute e nada se resolve, a não ser que interesse a quem legisla, e o sono bem-aventurado dos corruptores e dos consequentes corrompidos de Vila Nova de Pardais jamais será perturbado pelo fantasma assustador das delações premiadas.


Capítulo 1


Na Natureza, a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, mais o meu conhecimento me torna relativo, e mais o Absoluto se distancia.

Se eu não vivesse em função das coisas que me cercam, seriam elas que precisariam de mim, e não eu delas. Eu sou o que pensa, e o que sabe que pensa. Mas também sou só o que passa. O que morre. E sou só o que passa, o que morre, porque toda esta matéria inanimada que me cerca é que fica. Eu morro, e só esta matéria inanimada que me cerca é que fica.

Existir não é só estar presente. Eu estou aqui, estou presente, mas só vivo a justificar a minha presença. Ou a pedir sempre desculpas, ou a mostrar até as cuecas no Facebook. Quem nada precisa justificar é esta matéria inanimada que me cerca. A sua própria existência a justifica, porque além de compor o espaço, também permanece no tempo. É eterna. E eu? Eu? Eu só nasci para morrer.

Eu só existo em função desta matéria inanimada que me cerca, não em função de mim mesmo. Se este chão não existisse, quem sustentaria o peso do meu corpo? Este chão existe, eu sinto-o, está aqui bem debaixo dos meus pés, mas ele só existe. Este chão não pensa, só existe. E eu? Eu? Eu, além de existir, também sou. Sou porque penso e sei que penso.

Eu sei que tudo que é, existe. Só que nem tudo que existe, é. Esta cadeira onde me sento. Esta cadeira existe, mas não é. E não é porque ela só existe, não pensa.

Eu existo porque estou aqui, e sou porque penso e sei que estou aqui. Mas o que é que eu sei? Que a igualdade perante a lei é um direito, e que sem ordem o mundo seria um caos? Disparate. Só os idiotas acreditam na prática da igualdade e da ordem na falaciocracia em que vivemos. Por isso, a única verdade que eu sei é que só nasci para morrer. E morrer sem saber quando, como, porquê, e muito menos para quê.

 

          Vila Nova de Pardais 1

No dia 26 de março de 2007, a RTP – Rádio e Televisão de Portugal, apresentou o último programa GRANDES PORTUGUESES, e o resultado da votação.

António de Oliveira Salazar, ex-presidente do Conselho de Ministros do chamado Estado Novo, a maior das ditaduras implantadas em Portugal, foi eleito o maior português de sempre com 41,0% dos votos, seguindo-se os restantes eleitos:

2º Álvaro Cunhal – 19,1%

3º Aristides de Sousa Mendes – 13,0%

4º D. Afonso Henriques – 12,4%

5º Luís de Camões – 4,0%

6º D. João II – 3,0%

7º Infante D. Henrique – 2,7%

8º Fernando Pessoa – 2,4%

9º Marquês de Pombal – 1,7%

10º Vasco da Gama – 0,7%

No dia 26 de março de 2019, Vila Nova de Pardais também foi formalmente eleita a vila mais antiga de Portugal. Apenas com uma diferença. O programa da RTP foi aberto à votação de todos os portugueses, e em Vila Nova de Pardais considerou-se suficiente a palavra de um cidadão pardalense.

Na edição do dia 30, o jornal Notícias de Pardais transcreveu na íntegra a palestra proferida no salão nobre da Sociedade Pardalense de Cultura pelo seu fundador, administrador, diretor, redator e editor, o jornalista José Medeiros Molarinho.

 

VILA NOVA DE PARDAIS
A MAIS ANTIGA VILA DE PORTUGAL

 

Distintas Autoridades, minhas Senhoras, meus Senhores, e demais Presentes e Ouvintes, muito boa noite, e muito obrigado pela gentileza de se deslocarem das vossas casas e virem aqui honrar-me com as vossas ilustres presenças neste belíssimo auditório.

As palavras que vou proferir serão curtas e breves. Entretanto, como não poderia deixar de o fazer, em primeiro lugar, quero agradecer aqui, e publicamente, o honroso convite para fazer esta pequena alocução, que recebi da Ex.ma Sra. Vereadora dos Pelouros da Educação, Ambiente, Saúde, Qualidade de Vida, Economia, Desporto, Turismo e Cultura de Vila Nova de Pardais, a Senhora Professora Doutora Filomena Catrapilla, aqui presente.

Convite esse devidamente coassinado pelo Senhor Professor Doutor Sancler Silvério dos Santos Ambrósio, também aqui presente, digníssimo presidente desta vetusta associação cultural, Sociedade Pardalense de Cultura. Um incontornável bastião cultural de que a nossa terra sempre se orgulhou, muito se orgulha, e sempre se orgulhará, tenho a certeza.

Em segundo lugar, quero salientar a importância da moção apresentada no dia 31 de janeiro, próximo passado, à Assembleia Municipal, reunida em Sessão Extraordinária, pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara, Doutor Salustiano Mangueira, também aqui presente, e para quem peço uma salva de palmas.

(pausa para as palmas)

Obrigado. Moção essa, dizia eu, que foi aprovada por unanimidade, o que só demonstra o grau de civismo dos distintos membros da Assembleia Municipal de Vila Nova de Pardais, que distinguiu vários pardalenses com a Medalha Municipal, a ser entregue em data e hora ainda a serem posteriormente confirmadas. Mas que, tenho a certeza, muito em breve se confirmarão.

Entre os Distintos Distinguidos encontra-se o nome deste vosso canhestro palestrante, agraciado com a Medalha de Bons Serviços ao Município, ao lado de pardalenses ilustres, a quem passo a nomear. Senhor Professor Doutor Ignácio Polaranha Costa da Mó, agraciado com a Medalha de Honra ao Município, em homenagem póstuma. Senhor Américo Medeiros Molarinho, benemérito da Associação dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova de Pardais, e a quem grande parte dos pardalenses deve honras e favores, agraciado com a Medalha de Valor e Altruísmo. Senhor Doutor António de Azambuja Amaral Filho, eminente advogado do nosso Foro, de quem muito a nossa terra se orgulha, agraciado com a Medalha de Valor e Dinamismo. Senhor Januário Almeida Santos, exemplar cidadão e digno comerciante desta praça, agraciado com a Medalha de Mérito Económico e Social, e o Senhor Bartolomeu Vanzeti Regueifas, artista plástico, que muito honra a nossa terra com a sua arte pincelar, agraciado com a Medalha de Mérito Artístico e Cultural, todos aqui presentes, e para os quais peço uma salva de palmas.

(pausa para as palmas).

Obrigado. O edital, a notícia oficial, digamos assim, e a publicação integral da ata municipal será amplamente divulgada na próxima edição do vosso Notícias de Pardais, que muito me honrei de fundar, e honro de dirigir e publicar.

Isto posto, Caros Convidados e Ouvintes, digo-vos que não precisarei estender-me em longas frases ou parágrafos, pois todos vós sabeis que a grandeza do ilustre pardalense de quem aqui hoje iremos falar, é maior e mais grandiloquente do que todas as palavras que eu pudesse proferir.

Distintos Pardalenses, era quinta-feira, dia 30 de janeiro de 2007. Confortado com o Santo Sacramento da Extrema Unção, falecia às onze horas e trinta e sete minutos, na sua centenária Casa da Botica de Baixo, o Senhor Professor Doutor Ignácio Polaranha Costa da Mó, aos 97 anos de idade, vítima de sofrida e prolongada doença, que muito degenerou os últimos alentos da sua profícua vida pessoal e existência literária.

Viúvo da sempre lembrada presidente da Mesa Gerente da Confraria de Nossa Senhora das Mercês, Dona Maria da Purificação Noronha e Vilarinho Polaranha Costa da Mó, não deixou o eminente pardalense descendência direta. Mas, para orgulho de todos nós, legou à nossa terra duas obras monumentais da sua estimável autoria: Annales da História Pardalense e A Verdade.

Os Annales da História Pardalense são mais de três mil páginas, distribuídas por cinco alentados volumes que, em boa hora, a Câmara Municipal de Vila Nova de Pardais, em 1974, deu a lume logo após a queda do nefando fascismo salazarista.

Da importância dessa obra para a cultura e para o civismo de Vila Nova de Pardais, Distintos Pardalenses, não se torna minimamente necessário falar muito, pois só a incontornável descoberta do original do primeiro foral concedido dentro dos limites da terra que hoje chamamos Portugal, e também de dois outros documentos, já eles falam por si.

E falam por si, e por duas importantíssimas razões. A primeira, porque os documentos foram descobertos e traduzidos da língua original por um pardalense. E a segunda, porque até hoje a autenticidade desses documentos nunca foi posta em causa, e muito menos desmentida.

Para ilustrar essa incontornável descoberta, repito, vou ler apenas dois documentos e a introdução da monumental obra histórica que muito orgulha Vila Nova de Pardais. Esses dois documentos, Distintos Pardalenses, fazem parte do 14º capítulo do 3º volume dos Annales da História Pardalense, que o Senhor Professor Doutor Costa da Mó intitulou Villa Passereris.

Vamos, então, aos dois primeiros documentos. Primeiros, e importantíssimos, pois assim fica cabalmente demonstrado que Vila Nova de Pardais é a mais antiga vila de Portugal. Vou ler.

 

Primeiro documento:

Ordonho Romanhês nasceu no dia 21 de Setembro do ano 905, pelo Calendário Juliano, 21 de Setembro de 867, pela Era de Cristo, ilustre filho de família antiquíssima. Era filho do Conde D. Ordo e de sua Esposa D. Numa, Condes do Reino de Leão por graça do Rei D. Afonso III. Mas quem poderá falar dignamente sobre este tão ínclito varão? Ninguém. Foi um homem corajoso com as armas.

 

Segundo documento:

Conquistou pessoalmente Villa Passereris ao Rei sarraceno Ibne Abi Torcut no dia 24 de Junho do ano 945, dia de São João Baptista, pelo Calendário Juliano, ano 907, pela Era de Cristo.

 

Muito obrigado pela atenção, Ilustres Presentes e Ouvintes. Vamos agora, à leitura da Introdução, a que o eminente pardalense intitulou Passereriae Monumenta Historica. A leitura será um pouco mais longa, sem dúvida, mas de uma importância tal que merece a vossa maior atenção. E digo de uma importância tal, não apenas pela apresentação da grafia do documento original, mas acima de tudo pelo estilo de bem escrever na nossa querida, generosa e sempre amada língua portuguesa. A língua dos Camões, dos Castilhos e dos Camilos, a língua da qual o Senhor Professor Doutor Costa da Mó, coevo do grande Fernando Pessoa, também poderia ter dito: a minha pátria é a língua portuguesa. Vou lê-la no computador para, depois, facilitar a projeção documental.

 

Passereriae Monumenta Historica

 

Afirmam alguns casquilhos de salão, tafuis e pechisbeques, e com indisfarçável orgulho, que ainda os há em catadupas por aí a mostrarem foros de sapiência e diplomas que nem sequer um regedor de freguesia lhos passaria, pobres ignorantes, inconformados por pertencerem apenas aos florilégios hagiográficos dos santarrões catedráticos sem cátedra, pois os verdadeiros catedráticos só me merecem elogios e encómios. Dizem esses casquilhos que o conceito de História é a mais abrangente congeminação inventada pelo espírito humano desde que Lilith se enroscou no descostelado Adão.

Dizem esses pechisbeques, que infelizmente enxameiam as nossas Bibliotecas, e alguns até as nossas Universidades, que História pode ser tudo: piada, mentira, invenção de arrependimento inquisitorial, ou até, algumas vezes, actos realmente acontecidos.

Não é tal.

História é o facto verdadeiramente pesquisado, estudado e documentado. Razão tinha, e muita, o senador romano Caius Titus quando afirmou: Verba volant, scripta manent, as palavras voam, os escritos permanecem, pois o que sobra, o esterquilínio que fica, são apenas as raivas e as invejas das medalhas e dos diplomas conferidos a outros que não a esses pseudo-sapiens, magis arrogantisimus.

Para que não restem mais dúvidas de plenitude histórica sobre a antiguidade da mais vetusta vila de Portugal, Villa Passereris, que hoje chamamos Vila Nova de Pardais, embora outras terras aleguem, com a maior veleidade, mas sem a menor veracidade, precedência na ordem cronológica do reconhecimento histórico documentado, aqui deixamos aos pósteros as nossas descobertas no campo historiográfico desta terra que precedeu e sempre honrou as origens e a consolidação do Condado Portucalense.

É comum afirmarem os leitores que se dizem estudiosos e versados na ciência da paleografia, ou ainda aqueles que por despeito nem sequer folheiam, mas afirmam ter lido afincadamente os textos inseridos nos Portugaliae Monumenta Historica, ou quaisquer outros de menor ou nenhuma veracidade, que a carta de privilégio mais antiga atribuída dentro das actuais fronteiras de Portugal, foi a de São João da Pesqueira, concedida entre 1055 e 1065 por D. Fernando Magno, Rei de Leão e Castela, conjuntamente às vilas de Penela, Paredes da Beira, Linhares e Anciães.

Não é tal.

De acordo com os originais dos Veterum Aliquot Scriptorium Passerinum, ainda lavrados em letra versal visigótica, antiquíssimos portanto, documentos estes integrantes do Chronicon Passerinum por mim descoberto no cartulário do Mosteiro de Moxede, um dos mais, senão o mais antigo cenóbio de Portugal, fundado pelo presbítero Cracio à sombra do Castrum Passerinum no alto Ave, no ano 844 da Era de Cristo, 882 pelo Calendário Juliano, a que chamei, e com o mais justo orgulho de historiador e de pardalense que sou, Passereriae Monumenta Historica, fica provado que a mais antiga carta de privilégio atribuída em terras que foram posteriormente chamadas de Condado Portucalense, dote concedido por D. Afonso VI, Rei de Leão e Castela, a D. Tareja, infanta do reino de Leão, filha espúria que teve de sua amante Ximena Moniz, filha de Munio Moniz de Bierzo, conde de Bierzo, e irmã de Gontronde Moniz, casada em segundas núpcias com Soeiro Mendes da Maia,“o Bom”. Casada que foi a infanta Tareja, aos 13 anos, em 1093, com o neto de Roberto I, duque de Borgonha, chamado Henrique de Borgonha, assim este se tornou genro de D. Afonso VI e conde de Portucale aos 24 anos.

É esta carta de privilégio, a mais antiga atribuída dentro das actuais, e porque não dizer, até das mais antigas fronteiras de Portugal, e que foi concedida a Vila Nova de Pardais por D. Ordonho Romanhês, conde do reino de Leão, no dia 30 de Novembro do ano 908, pela Era de Cristo, 30 de Novembro do ano 946, dia de Santo André, pelo Calendário Juliano, que transcrevo e traduzo na íntegra.

Caros e Distintos Presentes e Ouvintes, peço desculpa pela interrupção da ilustrativa, e quiçá educativa leitura, mas chegou o momento de vermos na tela encostada na parede a transcrição do Senhor Professor Doutor Costa da Mó, enquanto eu vos leio a tradução também feita pelo ilustre pardalense.

Manel, por favor, apaga a luz e liga o projetor. Obrigado.

 

In Dei nomine amen. Ego Ordono, Domnus Alphonsus gratia inclytus Leonis Rex, nomen Comite Passereris una pariter cum uxore mea domna Toda filia quondam ilustris domini Ordo Comes Pica placuit nobis quod faciamus cartam de bonos foros vobis populatoribus de mea villa Passereris et ad illos qui ibi habitare voluerint usque in finem. Itaque si quis non vult operari nec manducet. Et qui mulierem forciaverit et ipsam voces mittendo venerit si ipse cum quindecim non poterit se salvare pectet CD solidus. Et qui mulierem forciaverit et ipsam voces mittendo venerit si ipse cum viceniquini non poterit se salvare pectet DCCC solidus. Et qui hominis qui habuerit mulierem forciaverit pectet ad suum uxoris V solidus. Facta carta Passereris Pridie Calend. Decembris in die Sancti Andree comite Ordono mandant Era DCCCCXLVI.

 

Domnus Petrus Ordonis filius predicti comite Ordono

Domnus Laurencius Egidii alferez

Domnus Frater Alffonsi Egeas electus Moxedis

JohanesPetrus scribanus notavit

 

Tradução da carta de privilégio:

Em Nome de Deus Amém. Eu, D. Ordonho Romanhês, pela graça de D. Afonso III, ilustre Rei de Leão, nomeado Conde de Pardais, juntamente com a minha esposa D. Toda, filha do muito ilustre senhor D. Ordo, Conde de Pega, aprouve-nos que façamos carta de bons foros a vós habitantes da minha vila de Pardais e àqueles que aí quiserem habitar para sempre. Pelo que aquele que não quer trabalhar não deve comer. E o que violentar mulher que venha a gritar, se com quinze gritos não se puder salvar, pague 400 soldos. E o que violentar mulher que venha a gritar, se com vinte e cinco gritos não se puder salvar, pague 800 soldos. E o que violentar homens casados, pague às suas esposas 5 soldos. Carta feita em Pardais no dia 30 dia de Novembro, dia de Santo André, a mando do conde D. Ordonho Romanhês, ano 946 pelo Calendário Juliano, ano 908, terça-feira, pela Era de Cristo.

 

Testemunhas

  1. Pedro filho de D. Ordonho Romanhês
  2. Lourenço Egídio Alferes da Honra
  3. Frei Afonso Egas eleito de Moxede

João Pedro notário da Honra o fez

Muito obrigado pela vossa atenção. Manel, por favor, acende a luz e desliga o projetor. Obrigado.

Como puderam verificar os Distintos Ouvintes aqui presentes, a importância histórica deste documento não tem preço nem medida. Mas voltemos às palavras lídimas do Senhor Professor Doutor Costa da Mó, que nos vai explicar algumas particularidades únicas na historiografia portuguesa, inclusas neste documento. Escreve o eminente historiador. Vou ler.

Agora que mais um documento de incontornável e incontestável valor histórico, e eu diria até único no seu género, vem integrar o universo historiográfico de Portugal, necessário é fazer-se uma rápida mas concisa e objectiva avaliação do seu significado. Não tenho dúvida que algumas das suas particularidades são exclusivas, conclusão a que cheguei após as mais detalhadas análises que fiz de todas as cartas de privilégio conhecidas que consultei e estudei, pois em nenhuma delas verifiquei os extremados cuidados que teve D. Ordonho Romanhês ao conceder esta carta de privilégio à sua Villa Passereris, que, repito, hoje chamamos Vila Nova de Pardais, esta flor do Minho, ainda e sempre a vicejar na florida margem direita do rio Ave.

A primeira particularidade, sem sombra de dúvida, é não apenas a religiosidade e a ilustração de D. Ordonho Romanhês, como também a sua acuição em prever os embates sociais que o futuro, e esse futuro que hoje vivemos já nos demonstra e comprova tudo isso, poderia trazer à nossa Vila Nova de Pardais. E não apenas a ela, mas também a Portugal, e quiçá ao mundo inteiro.

Quando fica determinado que aquele que não quer trabalhar não deve comer (si quis non vult operari nec manducet), a questão da religiosidade e da ilustração cultural torna-se mais do que evidente. Se assim não fosse, D. Ordonho Romanhês não poderia citar ipsis litteris a segunda epístola do apóstolo São Paulo aos Tessalonicenses, capítulo 3, versículo10. Mas, e muito para além desta evidência religiosa e ilustrada, há que ter em conta a visão social da sua icónica determinação.

No ano 908 da Era de Cristo, portanto já há mais de mil anos, em terras Portucalenses alguém houve que se preocupou com questões humanistas e sociais. E muito para além disso, também trabalhistas, pois se quem trabalha deve ser pago pelo que faz, quem não trabalha não merece sequer comer seja o que for.

A segunda particularidade que nos mostra a extraordinária visão de D. Ordonho Romanhês, aqui não apenas social, mas poderemos dizer até providente e jurídica, é a forma como ele conceitua e determina o que é coação e o que é consensualidade. Se uma mulher, ao ser assediada sexualmente, apenas gritar pró-forma, tentando assim salvar as aparências de salvaguardar a sua honra, o suposto violador está isento de ser acusado de coação. Na sociedade em que hoje vivemos não há, ao menos em termos pragmáticos, e eu diria até jurídicos, como determinar quantos gritos uma mulher deve dar para que a violação não seja considerada consensual. Mas, recuando no tempo, nos costumes e na formação moral e religiosa dos cidadãos daquela época, parece-nos perfeitamente adequada a norma instituída por D. Ordonho Romanhês: menos de quinze gritos, o ato, embora imoral e pecaminoso, foi consensual. Quinze ou mais gritos, já é crime, e o violador é condenado a pagar pelo seu acto criminoso.

Terminando esta pequena introdução ao estudo da mais antiga carta de privilégio concedida em terras Portucalenses, muito me orgulho de ser português, pois há mais de mil anos, um homem houve que se preocupou, e não apenas se preocupou, mas deixou bem explícitas as normas de conduta a serem cumpridas numa terra que era sua, e que hoje é nossa. Pena que muitos dos descendentes, para não dizer a maioria daqueles cidadãos que receberam os frutos dessas determinações, não estejam minimamente interessados em cumpri-las e em fazê-las cumprir.

Ilustres Presentes e Ouvintes, aqui termina a sapiente fala do Senhor Professor Doutor Costa da Mó. Pelo exposto, todos nós podemos afirmar e confirmar, afirmar e confirmar, repito, se alguma dúvida ainda restar aos que aqui não compareceram, que fica hoje cabalmente provado e comprovado ser Vila Nova de Pardais a mais antiga e nobre vila de Portugal.

Mas não ficou por estes cinco magníficos volumes a contribuição intelectual do Senhor Professor Doutor Costa da Mó à cultura e ao civismo de Vila Nova de Pardais. Em 1997, mais precisamente no dia 20 de setembro, deu-me o insigne Mestre a honra de apresentar ao público pardalense, neste mesmo auditório, a mim, a este que vos fala, eu, que começava a dar os primeiros passos na arte de bem falar e escrever a extremada língua que Camões tão bem cantou na sua obra imortal, os Lusíadas, deu-me o insigne Mestre a honra, dizia eu, de apresentar mais três volumes, em boa hora dados à estampa e também publicados pelos Serviços de Divulgação do Pelouro da Cultura de Vila Nova de Pardais.

A Língua Portuguesa, em que pese ser uma das mais belas, harmónicas e faladas do mundo inteiro, todos vós o sabeis, nunca foi, própria e infelizmente, uma língua dada a estudos de profundidade filosófica. Mas assim como toda a rosa, por mais bela que seja, tem espinhos, também toda a regra, por mais exclusiva que seja, tem exceções. E o Senhor Professor Doutor Costa da Mó foi uma delas.

Durante treze longos anos dedicou-se este excelso pardalense ao estudo etimológico, científico e, nomeadamente, moral e filosófico, do conceito da Verdade. E eu posso afirmá-lo e confirmá-lo, pois, em vários serões que juntos passamos, fui testemunha daquele intenso, daquele fervoroso e profundíssimo labor.

Mas ao fim desses treze longos anos, mais três volumes, mais de mil e quinhentas páginas, pensadas e compostas, letra a letra, palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, sobre o que na verdade significa o real significado de Verdade. Verdade com V maiúsculo, que o douto Professor intitulou A Verdade, e que muito, mas muito modestamente resumiu numa simples frase que ficou escrita no bronze da memória da consciência da Humanidade: Só a Verdade é irmã da Certeza e só ela acaba com a Dúvida.

Relembro a invejável trajetória intelectual do Ilustre e nunca Esquecido Cidadão Pardalense, que sempre considerei, considero e considerarei o meu mestre intelectual e o meu guia nas lides de escrita e jornalismo.

O Senhor Professor Doutor Ignácio Polaranha Costa da Mó não foi somente o maior historiador de Vila Nova de Pardais e também um dos maiores de Portugal. Foi também, e disso muito me orgulho, um grande Mestre e Amigo que tive. E que me sensibilizou muitíssimo ao autografar-me os cinco volumes do Annales da História Pardalense e os três volumes de A Verdade, volumes esses que guardo como as mais importantes e gradas joias da coroa da minha modesta biblioteca.

Para finalizar e fechar com chave de ouro esta minha pobre e apequenada alocução, peço que todos se levantem, e, todos juntos, cantemos o Hino de Vila Nova de Pardais, composto, letra e música, como todos os Distintos Ouvintes sabem, pelo Saudoso Pardalense, que foi o grandioso Mestre de todos nós. O Inesquecível e Incontornável Senhor Professor Doutor Ignácio Polaranha Costa da Mó. Muito obrigado.

 

Vila Nova de Pardais,

Ínclita e indomável,

Por séculos e séculos

Foste sempre incontornável!

 

Ó minha Vila Passereris,

Tua glória é imortal.

Aqui nasceram portugueses

Antes de nascer Portugal!

 

Vila vetusta, mais antiga,

Deste Nobre Portugal,

Viceja e sorri, ó Vila Nova,

Na tua memória Imortal.

 

Ó minha Vila Passereris,

Tua glória é imortal.

Aqui nasceram portugueses

Antes de nascer Portugal!

 

Morra eu, morram todos

Os teus filhos adorados,

Que os teus feitos aguerridos

Serão para sempre lembrados.

 

Ó minha Vila Passereris,

Tua glória é imortal.

Aqui nasceram portugueses

Antes de nascer Portugal!


Capítulo 2


Quatro de fevereiro, segunda-feira. Dia do nosso primeiro encontro, que não houve. Cruzamo-nos na Rua Professor Abedermos Caetano, ela descendo, eu subindo.

Dez de fevereiro, domingo. Dia do nosso segundo encontro em frente ao Cine Teatro Vila Nova, ela saindo do cinema, eu parado no passeio. Era loira, de olhos verdes, e aqueles olhos encantaram-me.

– Permite-me que a acompanhe?

Ela não respondeu, mas sorriu, e deixou-me acompanhá-la. Caminhamos em silêncio, e pouco depois paramos na frente de uma casa com um jardim, e grades pintadas de verde.

– É aqui que mora?

– É a casa dos meus pais.

– Bonita casa.

Ela encolheu os ombros, e sorriu, e eu sorri também, sem saber mais o que dizer.

Bem…

Chamavam-lhe Milú. Eu chamei-lhe Maria Lúcia. Assistimos Transformers: Era da Extinção, por acaso, no Cine Teatro Vila Nova. Uma aventura de ficção científica que nada tinha a ver connosco. Tínhamos marcado encontro no Restaurante Carioca para comer uma feijoada à brasileira, mas não conseguimos. As mesas estavam todas ocupadas, e Maria Lúcia olhou a bicha de espera.

– E agora?

Encolhi os ombros.

– Por mim…

Comemos sandes de peru e bebemos coca-cola, e entramos no Cine Teatro Vila Nova como podíamos ter entrado numa igreja ou num café. Por acaso.

– Porque é que você me olha assim?

– Porque gosto.

Maria Lúcia pegou a minha mão, e deitou a cabeça no meu ombro.

– Tolinho.

Recostei-me na cadeira, e fechei os olhos. Era bom ter a minha mão na mão dela, e foi bom ter ido ver aquele filme que nada tinha a ver connosco.

 

          Vila Nova de Pardais 2

Vila Nova de Pardais, Vila Nova de Pardais, que Vila Nova de Pardais? Vila Nova de Pardais é um vilório armado ao pingarelho, uma terra de lorpas e labregos, e vem-me agora essa gajada da Câmara dizer que com a descoberta do Castro de Pardais, Vila Nova de Pardais vai ser conhecida em Portugal inteiro, e até na Espanha e na União Europeia. Anda para aí a dizer o Resbés Sampaio, o arqueólogo municipal, que só falta a Direção-Geral do Património Cultural classificá-lo como Monumento Nacional para a Câmara poder construir um hotel de charme com vistas para o balneário castrejo, e meter uma moção à UNESCO para o Castro de Pardais ser classificado como Património Mundial, e com isso fazer de Vila Nova de Pardais o maior polo turístico do norte de Portugal. Logo o Resbés, um camelo que nem sequer sabe se perdeu as ferraduras no deserto, ou debaixo dos lençóis. Mas de que maneira aquela burra do Resbés pode afirmar que o Castro de Pardais é da Idade do Ferro, ou de outra idade qualquer, hã? Se bem que isto de idades, é como diz o outro, nestes tempos de Internet o que interessa é ter computador. Só que eu duvido que os computadores dessa gajada da Câmara funcionem em pleno. Mas vá lá, em caso de dúvida, saiba-se primeiro a verdade, como sempre muito bem disse o Senhor Professor Doutor Costa da Mó. Em caso de dúvida, saiba-se primeiro a verdade. E a verdade é que apesar da gatunice, e da parolice da propaganda da Câmara, ainda há para aí muitos pategos que acreditam no que essa gajada diz. Tudo garganta, tudo gabarolice. Um bando de gatunos, uns carreiristas que só subiram ao poleiro à força da lista do partido, e nem à mão de Deus Padre querem largar os tachos. E não me venham com cantigas, que só não sabe quem não quer. A descoberta da cascalheira não vai trazer mais turistas a Vila Nova de Pardais do que o Castelo leva à Póvoa de Lanhoso, pois só em 2018 recebeu mais de 13.000 visitantes, 1.600 dos quais de países estrangeiros. Mas de maneira nenhuma. Vila Nova de Pardais, Vila Nova de Pardais, que Vila Nova de Pardais? Vila Nova de Pardais não passa de uma terra de parolos, uns camelos armados em sábios, uns gargantas que só bebem zurrapa e comem carapaus, mas arrotam sempre a champanhe e pão de ló. Uma terreola de merda que não dá nem sequer para manter um jornal quinzenário, quanto mais um semanário ou um diário. Não me venham com cantigas, que eu sei muito bem o que passo para manter o Notícias de Pardais ativo e independente como sempre foi. Sempre foi, é, e sempre há de ser enquanto eu vivo for. Sou um homem de vistas largas e todos sabem que não alinho, não alinho, nunca alinhei e nunca alinharei nessas pequenices das tais fake news. Se assim não fosse, publicava os milhares de artigos inventados que me chegam ao jornal sobre factos e pessoas de fora, que é o que faz aquela gajada dos jornais lá de baixo. Aquela gajada julga-se mestre em tudo, julga-se mestre em tudo, mas faz o quê, hã? Faz um redondo nada, um redondíssimo nada. Se não fossem aquelas famosas que eles lá metem, que de famosas não têm nada, aquela gajada é que as faz famosas para vender os jornais, umas merdosas armadas em famosas, um jet set croquete de merda, que se não fosse esta saloiada da província querer saber até a cor das cuecas que aquela croquetada usa, eu queria ver o que aquela gajada ia fazer. Ai queria, queria. Eu queria era vê-los aqui em Vila Nova de Pardais a correr atrás de anúncios de empreiteirecos falidos e de alguns cafezitos de meia-tigela que por aí há.

 

Que há mais cafés em Vila Nova de Pardais do que padres nas freguesias do concelho, isso eu sei. Nunca os contei porque nunca me apeteceu, mas sei que o que mais há cá na vila são cafés, e todos com televisões topo de gama. Então não andam para aí a dizer que até a tasca do Zé Feio já tem um plasma de alto lá com ele? Eu não sei, nunca lá entrei, tascas era no tempo do meu falecido pai. Ele é que gostava de tascas, vinho ao quartilho, meia sardinha assada, um mata-ratos a fechar, e prontos. Eu não, que sempre fui mais atilado e nunca gramei tasquiómetros, sempre fui de cafés. Primeiro o do Rufa, que era o café da malta, e depois este do Neca da Mira. E foi este, porque vi uma empregada de mesa com umas mamas que Deus me livre. Passei à porta, vi aquelas mamas a abanar, e prontos, entrei, e cá estou até hoje, que se há coisa que me dá gozo é ver um bom par de mamas a abanar, e as mamas da Solange, meu Deus do céu, são do melhorio em Vila Nova de Pardais. Em Vila Nova de Pardais, em Guimarães, em Braga, em Braga e até no Porto, que nunca por lá vi nada igual sempre que lá vou. A pena que eu tenho é que a Solange nunca mas deixou ver, e já lá vão uns bons dois anitos. Ai vão, vão, pois se quando eu cá entrei ainda isto era um café da alta, ó senhor doutor, o do costume, ó senhor doutor, mais um fininho, ó senhor doutor isto, ó senhor doutor aquilo, e eu, que sempre fui tu cá tu lá com a malta e nunca alinhei nessas doutorices, quando vi o que isto era fiquei meio fodido. Ai fiquei, fiquei, e disse cá comigo, Rafael, Rafael, põe-te a pau, que estas doutorices não são para ti, pá. Mas a mamas da Solange não me saíam da cabeça, e que faço eu? Mando lixar as doutorices, e foda-se, por cá fiquei. É certo que isto, nestes dois anos, mudou muito, ai mudou, mudou, agora até putas e paneleiros cá entram. E se fosse só putas e paneleiros, vá lá, que se foda, mas agora até drogados já cá entram. Mas que podia eu fazer se as mamas da Solange não me saíam da cabeça, e eu só me venho se vir umas boas mamas a abanar, hã? Eu sei que há tipos que se vêm lambendo joelhos ou pés, ou até coisa pior. Mas cada um é cada um, e para mim o que me faz vir são umas boas mamas a abanar. E hoje, estava eu nisto, a Solange a correr por entre as mesas, e as mamas a abanar e a entrarem-me pelos olhos dentro, e as minhas partes já a começarem a aquecer, e entram-me duas gajas no café. Entram-me duas gajas e pedem-me dois cafés, e olham-me as mesas de esguelha. Olham-mas de tal maneira, que se a Solange não começa a limpar a mesa ao lado da minha, juro por tudo quanto é mais sagrado, que nem sequer tinha dado por elas. Mas as mamas da Solange entravam-me pelos olhos dentro e eu torço-me todo para ajeitar as calças, que é uma vergonha uma pessoa sair do café com as calças todas molhadas, e a Solange olha para mim e vê-me a torcer-me todo, e ri-se. E eu, já nas últimas, torço-me de tal maneira que reparo na gaja que tinha entrado atrás da primeira, e minha nossa Senhora do Sameiro, vejo a gaja de frente e a boca pôs-se-me seca. Mamas como aquelas, a romper os botões à blusa, foda-se, nem no cinema, cada uma a dar duas ou três das da Solange. E o pior é que a gaja sabia o que tinha, ai sabia, sabia. E tanto sabia, que se encosta ao balcão e arqueia as costas de tal maneira que as mamas dobram de tamanho e levam tudo raso, e a tipa a olhar as mesas e a passar a língua nos beiços como quem diz, quereis? Ide-vos foder. E eu ali especado, e a marmanjada de boca aberta e a mulherada toda fodida, pois nem a mais pintada chegava aos pés daquelas mamas. Juro por tudo quanto é mais sagrado, mamas iguais àquelas nunca em Vila Nova de Pardais se viram outras, e mais há cá putedo do melhorio, brasileiras, galegas, do leste, da puta que as pariu, mas mamas iguais àquelas era a primeira vez. Aquilo eram mamas de tal maneira que até a Solange também ficou de boca aberta. Mamas daquelas, se a gaja me pisca, foda-se, corro para cima dela, ai corro, corro, que eu cá sou assim. Se vejo umas boas mamas venho-me logo duas ou três vezes, ai venho, venho, que não sou como muitos que andam para aí a dizer que fazem e que acontecem, que dão três ou quatro seguidas, e no fim, nem uma dão. E estava eu nisto, e vejo a gaja a piscar. Vejo a gaja a piscar, e digo cá comigo, Rafael, Rafael, é contigo, pá. E ia-me a levantar, quando dou conta que a piscadela da puta não era para mim, era para o Neca, o dono do café,

 

Vila nova de Pardais não vale um corno. Enquanto eu suo e tressuo a bater à porta desses empreiteirecos falidos e de alguns cafezitos de meia-tigela, pois os grandes anunciantes faliram todos, faliu a fábrica da Touceira, faliu a fábrica da Recolha, faliu a fábrica da Finteira, e a fábrica da Vespeira não tarda muito baixa as portas, e ninguém diz nada, ninguém faz nada, ninguém quer saber. Essa gajada da Câmara quer é tacho licenciando à grande e à francesa as grandes superfícies. Então admite-se lá que Vila Nova de Pardais comporte quatro supermercados, com as lojas do comércio todas fechadas, e os chineses vendendo tudo a preço de pataco? E os editais camarários, que só mos dão quando neva na Senhora do Sameiro? Vão todos para o pasquim da cor deles, o Vila Nova, que é distribuído de graça em todos os quiosques, isto enquanto eu ando para aí a correr atrás de anunciantes que não pagam, ou se pagam, pagam tarde e a más horas? Os únicos que pagam a pronto são as quatro funeráriazitas que cá temos, e pagam só porque as famílias querem mostrar o que têm e o que não têm, que senão nem pagar elas pagavam, que da gajada da Câmara só me chega um ou outro editalzito porque o Couceiro, que é a única pessoa que eu considero amigo naquela gatunagem, manda-mos entregar em mãos, senão, nem isso. Mas o Couceiro manda até onde manda. Quem manda e desmanda é o presidente, aquele chico-esperto daquele Coninhas, o Salustiano Mangueira, um gatuno que só foi cabeça de lista à força de grandes dinheiros e de grandes amizades. Deu-me a Medalha de Bons Serviços ao Município como se isso pagasse os editais que me rouba. E para quê que eu quero a merda da medalha? Por acaso dá-me de comer? Que se foda ela e quem ma deu, que esta terra não vale nem o tempo que uma pessoa perde a falar dela. Sou, sempre fui, e sempre serei um homem de vistas largas e não alinho, não alinho e nunca alinharei nessas gatunices. Não é para me gabar, que não sou disso, mas o Notícias de Pardais tem os melhores cronistas desta terra, ai tem. A senhora doutora Maria de Sousa Pires Remoja, uma psicóloga de trás da orelha, o Adroaldo Fachada, um diplomado em pesquisas desportivas e linguísticas, e o Meirelles Mota, um motivador cultural como não há outro, e o que é que eu ganho com isso, hã? Nada, nadinha nem sequer, e o que é que faz essa gajada lá de baixo, hã? Enche-me páginas e páginas de fotografias das tais famosas, que nem famosas são, eles é que as fazem famosas para venderem os jornais. Por isso é que eu sempre digo que havia de haver uma lei para isso, uma lei que proibisse um jornal de fazer dum Zé Ninguém um Zé Famoso. Não que eu seja a favor da censura, não senhor. Sou um jornalista que sempre lutou, luta, e sempre há de lutar pela liberdade da imprensa em Portugal. A liberdade da imprensa é uma liberdade sagrada. Temo-la há quarenta e cinco anos, devemo-la ao 25 de Abril e temos que fazer por ela. Como muito bem disse o maior pardalense de Vila Nova de Pardais, o saudoso Senhor Professor Doutor Costa da Mó, e disse-mo ele a mim, Zé Molarinho, Zé Molarinho, só a liberdade nos torna livres. Mas já que não há uma lei que proíba um jornal de fazer dum Zé Ninguém um Zé Famoso, o que é que eu faço no meu jornal, se nunca lá meti o focinho das famosas de cá? Vivo empenhado até às orelhas para manter o Notícias de Pardais independente como sempre foi, é, e há de ser enquanto eu vivo for. Se por acaso eu metesse no meu jornal uma fotografia da Nelinha, a filha mais velha do Tónio Cangalheiro, a tomar banho nua na praia fluvial de Vale de Meeiros, e lhe perguntasse, o que é que tu farias, ó Nelinha, uma das raparigas mais sexy da nossa terra, se um desconhecido chegasse ao pé de ti e te mandasse um piropo, e ela me respondesse, eu adoraria, o que é que  essa labregada ia dizer no dia seguinte, hã? Que a Nelinha era uma puta, e que eu era um cabrão dum raio porque a meti no jornal daquela maneira.

Fiquei fodido, ai fiquei, fiquei, então a puta pisca-me para o Neca, o dono do café, e que faz o tipo, hã? Abre-me aquele sorriso de paneleiro, o Tó Fininho já me jurou e trejurou que o panasca paga-lhe cinquenta euros por cada mamada que lhe faz, e diz o paneleiro à gaja, então, menina, em que posso servi-la? Mas a tipa que tinha pedido os dois cafés põe-se à frente, e diz-lhe, e eu? Também não sou filha de Deus? Mas o panasca faz-me ouvidos moucos, e fez ele muito bem, que a gaja não servia nem sequer para tocar uma punheta, lisa como uma tábua, mete a mão à bolsa e faz sinal à mamuda, e a mamuda abre a bolsa, e diz, oquei. Foi a mamuda dizer oquei, e num repente as mãos das duas saem-me das bolsas, uma pistola em cada mão, a tábua aponta-me a dela aos cornos do Neca, a mamuda vira-se para o salão, e diz, nem um pio, e o panasca do Neca, eu tive até pena do tipo, juro por tudo quanto é mais sagrado, se fosse comigo fodia os cornos às gajas. Ai fodia, fodia, que comigo fia mais fino, é pau, é pau, é pedra, é pedra, e prontos. Mas o panasca do Neca fica-me branco, mais branco do que a cal da parede, e em vez de dar duas estaladas bem dadas na cara da puta, não senhor, mete a mão à caixa e dá-me o dinheiro à tábua, ó meninas, pelo amor de Deus, vede lá. A tábua mete o molho das notas à bolsa, e ala que se faz tarde, isto muito antes do panasca do Neca correr à rua a berrar, ó da guarda, ó da guarda, acudam que fui roubado. Não foi comigo, mas tive até pena do tipo, ai tive, tive. Não era o primeiro assalto que se fazia cá na vila, mas era o primeiro que se fazia a um café à hora do almoço, e logo por duas gajas que nem sequer tinham ar de andar para aí a roubar fosse o que fosse. Mas o que podia eu fazer, o paneleiro a berrar no meio da rua, ó da guarda, ó da guarda, acudam que fui roubado, e eu fodido, Rafael, Rafael, tem-te, tem-te, que o caso não é contigo, pá. O Neca é o que é, fechado o café, corre a vila de lés-a-lés atrás do primeiro que lhe vá ao cu, mas é preciso vermos uma coisa, ao menos ele fá-lo às escancaras, não é como muitos que andam para aí engravatados a armar aos cucos e vão dar o cu a Braga, ou até ao Porto se preciso for.

 

No Notícias de Pardais nunca meti essas tais fake news, nem nunca as hei de meter. Como sempre muito bem disse o Senhor Professor Doutor Costa da Mó, só a verdade é irmã da certeza e só ela acaba com a dúvida. Hoje o café do Neca da Mira foi assaltado por duas tipas, e vou fazer até um editorial à maneira sobre a violência e o descaso que o governo vota à segurança dos cidadãos. Para mim a verdade vale mais do que todas essas partidarices que para aí andam, e não é por o Neca ser meu amigo que eu o vou pôr na primeira página, não senhor. Para mim todos os cidadãos pardalenses são iguais, mas ao pobre do Neca roubaram-lhe o que roubaram, e a guarda quis saber? A guarda só viu as tipas como eu vejo Braga quando vou ao Sameiro. Por um canudo. Isto é uma terra de merda num país de merda. Brandos costumes? Que brandos costumes? Brandos costumes só para quem cá não vive, tudo ao deus-dará, tudo à balda, mas que a notícia dessa violência ao bem-estar dos cidadãos pardalenses vai sair na primeira página do Notícias de Pardais, disso ninguém duvide.

 

VILA: ASSALTO AO CAFÉ NECA DA MIRA

O Café Neca da Mira (CNDM), um dos ícones cimbalinos desta vila, de propriedade do nosso Amigo e Assinante, Manuel Ruas Medeiros (MRM) (entra fotografia com moldura), foi visitado na tarde do passado dia 5, pelas 13 horas, por duas desconhecidas larápias (DDL), num dia que mais parecia de Primavera do que de Inverno, pois apresentava-se um céu limpo, verdadeiramente primaveril, com a temperatura a rondar os 15º, em contraste com a chuva e o frio que nesta época do ano muito costumam castigar a vida dos cidadãos pardalenses.

Após entrarem pacatamente no CNDM, como se freguesas habituais fossem daquele conceituado estabelecimento, que se encontrava cheio da habitual e distinta clientela da hora do almoço, as DDL pediram dois cafés “cheiinhos” ao MRM, que as atendeu com a sua habitual educação e cordialidade. E eis senão quando o MRM já se preparava para servir outros fregueses, uma das DDL aponta-lhe uma pistola à cara, enquanto a outra aponta outra pistola para o salão do mencionado CNDM e diz, como se dissesse amém na Santa Missa, “Nem um pio!”.

Diante da iminência do facto de se ver perante uma ameaça concreta, pois é na iminência dos factos concretos que nós, os seres humanos, temos sempre que decidir uma ação em questão de segundos, o MRM, na melhor e na mais bem intencionada vontade de preservar a sua própria, e a integridade física dos seus estimados e distintos clientes, colocou imediatamente nas mãos da primeira das DDL a totalidade das notas e das moedas que perfaziam a quantia exata da féria do dia até àquela hora, mais os trocos que habitualmente mantém na caixa registadora.

Ao que esta reportagem apurou junto dos membros da nossa diligente Guarda Nacional Republicana (GNR), tal quantia ainda não é conhecida, pois o MRM só faz contas ao dinheiro da caixa registadora ao fim do dia, habitualmente sempre depois das 22:00 horas, ao fechar as portas do supracitado CNDM.

Esta reportagem apurou também junto aos ativos membros da nossa zelosa GNR que a identidade das DDL ainda permanece desconhecida, prosseguindo, entretanto, as mais urgentes e profícuas diligências e buscas do paradeiro e identidade das citadas DDL, que, uma vez detidas, serão presentes a Tribunal.

Apesar do triste facto que acima relatamos já ser prática habitual na nossa vila, aqui deixamos os nossos melhores cumprimentos ao MRM e aos distintos clientes que àquela hora infausta se encontravam no CNDM, com especial atenção para o Senhor Doutor. Inácio dos Santos Silva (IDSS), distinto farmacêutico e proprietário da Farmácia Santa Senhorinha (FSS), e para o Senhor Doutor Jaime Brocas (JB), também distinto notário reformado, ambos desta vila.

Não sou de me gabar, nunca fui de gabarolices, mas a única coisita de jeito que aquela gajada lá de baixo conseguiu meter no jornalismo português, e que me deu até gozo copiar, foram as siglas. Se posso escrever CNDM em vez de Café Neca da Mira e DDL em vez de duas desconhecidas larápias, o texto fica muito mais limpo e até dá muito melhor leitura. E até digo mais. Se o Camões ou o Camilo Castelo Branco também as tivessem usado, tenho a certeza que as siglas até já vinham nos dicionários. Ai vinham, vinham, pois escrever igual ao Camões e ao Camilo, são poucos, são muito poucos os que o fazem. Quem hoje em Portugal escreve igual ao Camões e ao Camilo Castelo Branco, hã? E as aspas? Se não houvesse aspas como havia o leitor de entender que aqueles cafés cheiinhos que as DDL pediram ao Neca, eram cafés bem cheios, hã?, Como sempre me dizia o Senhor Professor Doutor Costa da Mó, amigo Molarinho, um jornalista que não sabe falar e escrever um bom português, um português escorreito, bem falado e bem escrito, não é jornalista, é um borra-botas. Isto está pela hora da morte, amigo Molarinho. A boa língua portuguesa, a clássica, a língua que todos os portugueses deviam falar e escrever, a língua dos Camões, dos Castilhos e dos Camilos, a castiça, se isto continuar assim, desaparece.

 

O Neca entra-me no café, e a seguir entra o doutor Jaime, um notário dos antigos, daqueles, diz o meu chefe, que o tipo até bufo da PIDE foi nos tempos da velha senhora. Entra o doutor Jaime e senta-se à mesa do doutor Santos Silva, ele o que foi? Ele o que foi, ó Santos Silva? E eu, que nunca gramei o doutor Santos Silva, o gajo lá por ser dono de farmácia pensa que os outros são parolos ou quê, hã? Vá-se mas é foder. Mas gostei da resposta que o tipo deu. Ele o que foi, ó Jaime? O que foi, é que já não temos ordem na merda desta terra. Temos outra bernarda na rua, ó Santos Silva? Ele havia de haver uma lei para isso, então há uma bernarda…Que lei e que bernarda, homem? A última foi o 25 de Abril, e deu na merda que deu. O doutor Santos Silva cala-se e acende uma cigarrilha, diz o Lopes da High-Life que o tipo as manda vir de Lisboa, porque as que ele vende na tabacaria não são feitas no Brasil, são falsificadas no Algarve. Assaltaram o café, Jaime. Assaltaram o café? E qual café? Este, homem. Ai sim? E quando foi? Há menos de um quarto de hora. E eu que não vi. Pois eu vi e não te gabo o gosto. O tipo manda-me a conversa às putas com a paivada mais filha da puta que eu já vi na minha vida, e vira-se, e põe-se a olhar as mesas. Chega à minha, e olha-me esquinado. Jaime, Jaime, sabes o que é que eu gostava de ter numa altura destas? Menos trinta anos. E quem foi, ó Santos Silva? Duas raparigas, uma meninota e uma baleia. O filho da puta corta-me a baleia com uma paivada de caixão à cova, e eu a olhar para ele, que os trinta anos a menos eram comigo, e foi por uma unha negra que não lhe mando uma boca. Baleia, ó senhor doutor Santos Silva? Baleia, não senhor, uma rapariga do melhorio. A outra, sim, um codesso., um codessão que nem sequer para espantalho servia, só pele e osso. Mas fiquei-me, fiquei-me, porque ele há tipos que são como cães, babam-se por ossos, que eu sei que o tipo até as putas manda pesar na balança da farmácia, porque se não vir as costelas a romper a pele nem sequer as calças abaixa. E o doutor Jaime, mas duas raparigas, ó Santos Silva? Não me digas, homem? E a guarda? Ó Jaime, a guarda? A guarda deve andar por aí a multar carros, que é o que eles fazem agora. Isto só o diabo, ó Santos Silva, isto só o diabo, no nosso tempo… No nosso tempo, no nosso tempo, ó Jaime, no nosso tempo não havia nem sequer o que roubar. Ó Santos Silva, não digas isso, homem, no nosso tempo o que havia era respeito. Só respeito? Respeitinho, e muito, dizia o meu falecido pai, que Deus o tenha em bom lugar. Eu não sou desse tempo, mas diz o meu padrinho da Tendinha, que ainda está aí rijo e fero e não me deixa mentir, que não era respeito, era medo, porque só se respeitava quem mandava. Se bem que hoje é a mesma merda, a guarda não mete dentro qualquer um que seja pobre, hã? E estava eu nisto, e o Neca chega-se à mesa do doutor Santos Silva, ora muito boa-tarde senhor doutor, e o doutor Jaime, ó Neca, já soube, já soube, e foi muito? Uns tostõezitos, senhor doutor, uns tostõezitos, que eu sou lá de deixar dinheiro grosso na caixa? E o doutor Santos Silva, mas, ó Neca, eu vi o maço das notas, e o Neca, ó senhor doutor, faça-me o favor, foram só os trocos, uns troquitos, e eu fodido, cá comigo, ó Neca, tu queres-me foder, pá? Então eu não vi a porra do molho das notas, meu panasca? Se há coisa que me fode neste mundo é a garganta de certos tipos. Eu digo isto, não é por eu ser quem sou, que não sou mais do que ninguém, mas português é assim. Cada um tem que ser sempre melhor do que o outro, que se um tem cem, o outro tem que ter duzentos, se um compra um carro novo, o outro tem de comprar outro melhor, uma inveja que Deus me livre, ó povinho do caralho, custa lá alguma coisa dizer a verdade, hã? Se é pau, é pau, se é pedra, é pedra, e prontos. Mas não senhor, cada um tem que ser sempre mais fino do que o outro, então eu não vi o cabrão do panasca a berrar, ó da guarda, ó da guarda, acudam que fui roubado, ó da guarda, acudam que fui roubado, e não vi a porra do molho das notas que o panasca deu à gaja? Para quê armar-se uma pessoa aos cucos, hã? Ó cambada de caralhos. E estava eu nisto, e não é que chega a Solange à minha beira, e diz-me, ó Rafael, eu hoje vou contigo, ai vou, vou, que estou transida, transida, minha nossa Senhora do Sameiro. Mas hoje, ó Solange? Hoje? Logo hoje, que eu já estou comprometido? Disse-lhe, ai disse, ou ela pensa que eu sou o quê, hã? Algum lorpa, algum parolo para ela mandar mim, hã? Está certo, eu nunca lhe vi as mamas e muito gostava de as ver. Mas oferecidas assim, sem mais aquelas, isso nunca. De maneira nenhuma, ou ela pensa o quê, hã? Que eu sou para aí algum patego, algum parolo que nunca viu mamas iguais às dela? Não senhor, hei de lhe ver as mamas, mas há de ser quando eu quiser, não quando ela mas quiser mostrar como quem mostra um osso a um cão vadio, está transida, que se foda, a culpa não é minha, ora o caralho.

 

Quem hoje fala e escreve como deve ser, igual ao Camões, ao padre António Vieira, ao Castilho, ou ao Camilo Castelo Branco, hã? Bem sei que naquele tempo não havia aviões nem computadores, nem sequer telemóveis havia. Para se ir a Guimarães ou a Braga, ou até à Póvoa de Lanhoso, ia-se a cavalo ou de mala-posta, mas a língua portuguesa é a língua portuguesa, é o nosso maior património, merece respeito, merece consideração, merece obediência. Então admite-se lá que hoje se metam na nossa língua palavras inglesas, francesas, americanas ou suíças? Uma língua que veio do grego e do latim, e que nós falamos há mais de mil anos? Não há aí Entidades Reguladoras para tudo? Se as há para a Comunicação Social, para a Saúde, para a Concorrência, por que é que não há de haver uma Entidade Reguladora para a Língua Portuguesa, hã? Uma entidade que tratasse dos neologismos, que fizesse um dicionário e os metesse lá e que dissesse os que se podiam usar e os que eram proibidos. Com uma Entidade Reguladora para a Língua Portuguesa, isto afinava, ai afinava, afinava. Se quem usasse uma palavra não autorizada tivesse que pagar uma coima, isto afinava, que o português é assim. Só entra nos eixos quando uma multa lhe cai nos cornos. Mas o governo quer lá saber? O governo quer saber é dos tachos e das comedorias, disso é que o governo quer saber. É por estas e por outras que o falecido Senhor Professor Doutor Costa da Mó sempre me dizia, Zé Molarinho, Zé Molarinho, deixa as gabarolices para quem não sabe, porque quem sabe basta-lhe o saber. Aquele livro dele, o Annales da História Pardalense, eu tenho até hoje os cinco volumes da única edição que aquela cambada da Câmara foi capaz de fazer, e tenho-os todos autografados. Ao Amigo Insigne Jornalista e Distinto Colega de Lutas em Prol da Cultura da Nossa Amada Terra de Vila Nova de Pardais, José Medeiros Molarinho, Oferece o Autor Ignácio Polaranha Costa da Mó, Prof. Dr. E não tenho só esses, não senhor, também tenho os três que escreveu sobre A Verdade, e também todos autografados por ele. Ao Amigo e Insigne Jornalista José Medeiros Molarinho, Só a Verdade é irmã da Certeza e só ela acaba com a Dúvida, Oferece o Autor Ignácio Polaranha Costa da Mó, Prof. Dr. A pena que eu tenho é que essa gajada da Câmara, tudo uma cambada de gatunos, não queira fazer outra edição. Quem fez a primeira foi o falecido Senhor Engenheiro Azambuja Amaral na altura em que foi presidente da Câmara, que se essa gajada, agora, fizesse o que devia fazer, há muito os livros do Senhor Professor Doutor Costa da Mó corriam mundo e Portugal de lés-a-lés. Se fosse preciso eu até emprestava os que ele me autografou em vida para eles fazerem a cópia. Falei disso à Vereadora da Cultura, a Catrapilla, e a burra disse-me o quê, hã? Disse-me isto. Sr. Jornalista, temos este ano em Vila Nova de Pardais o 1º Concurso Nacional de Teatro, e o custo é alto. Altíssimo. Mas eu dou-lhe imensa importância, pois tivemos o cuidado, como o Sr. Jornalista pode constatar pelo programa apresentado, de convidar grupos dos mais variados concelhos de Portugal. Este cuidado que tivemos fará com que Vila Nova de Pardais fique geograficamente colocada no Mapa Cultural de Portugal. Se Portugal entrou, e em alta velocidade no mapa geográfico da Europa com o Senhor Ministro das Finanças presidente do Eurogrupo, por que é que Vila Nova de Pardais não há de entrar também no Mapa Cultural de Portugal, se o merece, Sr. Jornalista? Tivemos o cuidado de não trazer grupos com artistas famosos da Televisão. Se o fizéssemos, o Sr. Jornalista há de convir que ninguém se deslocaria ao Cine Teatro Vila Nova e pagaria para assisti-los, se os pode ver de graça, em casa, nos seus próprios aparelhos de televisão. Posso assegurar-lhe, Sr. Jornalista, que da maneira criteriosa que fizemos a escolha dos grupos, todos os pardalenses terão curiosidade em vir ao Cine Teatro Vila Nova para ver artistas que nunca viram. Não esqueça o Sr. Jornalista que a curiosidade é o motor mais potente da motricidade humana. E, para além de ter sido uma escolha proposital, também foi uma questão de marketing. Uma experiência que, em boa hora, eu trouxe para Vila Nova de Pardais: oferecer o produto certo pelo preço certo na hora certa e no sítio certo. E é exatamente isso que estamos a fazer com este 1º Concurso Nacional de Teatro, Sr. Jornalista. A burra disse-me isto, e disse-me que as verbas restantes mal e mal dão para pagar o pessoal e comprar alguns livros para a Biblioteca Municipal. Isto contado, ninguém acredita, se mo contassem, eu também não acreditaria. Os livros do Senhor Professor Doutor Costa da Mó são um tesouro para quem quiser escrever bem. Lembra-me o Alexandre Herculano, nomeadamente o Alexandre Herculano do Eurico, o Presbítero. Só a descrição que ele faz da alma daquele gardingo vale uma literatura inteira, fosse de que país fosse, mas de que vale? Hoje, com a Internet, o Facebook, o Twitter, os WhatsApp dos smartphones, ninguém quer saber, ninguém lê nada. Cá na vila então, se eu fosse viver do jornal estava tramado e bem tramado. Jornais, cá na vila, a saloiada só compra os que vêm de fora. Eu sei disso porque todos os dias passo no quiosque do Mendanha e do Zidro, e diz-me o Mendanha, e o Zidro também mo diz, que os cabrões dizem que a culpa é minha. Que as notícias cá da terra que eu meto no Notícias de Pardais, eles sabem-nas todas antes de eu as ter publicado. Mas o que é que eu posso fazer se o Notícias de Pardais é um jornal quinzenário, e os acontecimentos acontecem todos os dias? A palestra que o Sancler me pediu para fazer na Sociedade Pardalense de Cultura sobre a vida e a obra do Senhor Professor Doutor Costa da Mó, e o Sancler só mo pediu porque não há em Vila Nova de Pardais quem a soubesse fazer, fi-la de graça, fi-la por favor à cultura pardalense, mas qual o quê? É jogar trabalho fora, porque por mais que eu faça por esta terra de camelos, ninguém vem ter comigo, ó Zé, parabéns, pá, gostei de ler o teu jornal, está giro, giríssimo, um jornal como deve ser, sim senhor. Isto é uma terra de labregos, uma parolada filha da puta que só sabe é pôr a culpa nos outros, que nesta terra é assim. Meia bola e força e siga, e os outros que se fodam.


Capítulo 3


Eu gosto do Venha a Nós, há lá de tudo. Chamei um empregado de mesa, e pedi uma mulher. A primeira que estivesse livre. Naquela noite nenhum dos meus amigos iria aparecer, e eu já estava cansado de sentar naquela mesa, a escutar aquela agente a rir-se e a falar sem dizer nada.

No quarto, a mulher nem me olhou. Tirou a roupa, e deitou-se. Abri a janela, olhei a rua, e acendi o cachimbo. A mulher abriu as pernas, e chamou-me.

– Ó filho….

Maria Lúcia havia telefonado, a perguntar se podíamos almoçar no dia seguinte, e de repente aquele corpo deu-me medo. Um medo súbito, sem significado, mas que me apavorou. Se aquele corpo se grudasse ao meu, eu seria obrigado a desmarcar o almoço, e não podia, nem queria fazê-lo. Fechei a janela, e peguei a carteira.

– Quanto é?

A mulher saltou da cama, vestiu-se a correr, e eu paguei. Voltamos para o Venha a Nós, eu já calmo, e a mulher a sorrir-se.

– Ó filho, não te chateies. Isso acontece a qualquer um.

Não disse nada, agora aquele corpo já não me dava medo, e pedi dois uísques no balcão.

– Ó filho, obrigadinho.

– Como te chamas?

– Eu? Eu chamo-me Marinete. O meu nome Angelina, mas eu gosto mais de Marinete. É mais brasileiro.

– A minha mulher chama-se Dora, e talvez eu já tenha um motivo.

 

          Vila Nova de Pardais 3

 

Para a gajada de Vila Nova de Pardais os artistas não passam de borra-botas, uns badamecos de merda que só querem tachos no Pelouro da Cultura, e se alguém levanta a crista e diz a verdade, fode-se. Pois eu digo-lhes, ó seus camelos isso era no tempo do fradinho de Santa Comba, e esses tempos já lá vão, ó seus parolos. Eu vivi esses tempos, meus pategos, ou uma pessoa dizia amém, ou via nascer o sol aos quadradinhos, preso por dá cá aquela palha, os cabrões do padre Ilídio e do major Lopes a mandar e desmandar, que se um dizia, esfola, o outro dizia, mata, e se um dizia, mata, o outro dizia, enterra, e ai de quem piasse. Lembro-me como se fosse hoje. Nunca desfiz a barba nem cortei o cabelo na barbearia do Núncio, mas gostava de parar à porta só para ver onde paravam as modas, que naquele tempo a barbearia do Núncio era a barbearia da alta, da padrecada e dos doutores. Eu nunca gramei aqueles fascistoides, que os havia por cá às carradas, ai havia, havia, e ainda hoje os há, só que se depois do 25 de Abril, muitos, e muitos que eu conheço de ginjeira, trocaram de casaca, as camisas ainda são as mesmas. Isto só a tiro, só à bomba, que de outra maneira mudar isto, não vejo como. Pois estava eu à porta da barbearia do Núncio, e vejo o cabrão do padre Ilídio todo repimpado na cadeira, o Núncio a debruar-lhe a coroa, e chega-me o Zé Pipa, um aleijão que nunca fez mal a ninguém, um coitado que dava vivas a quem lhe pagasse um copo, e não diz ele ao cabrão do padre, ó senhor padre Ilídio, vamos tomar uma porra quente? Uma porra quente não era nenhuma caralhada, não senhor, era como quem diz, ó senhor padre Ilídio, paga-me um copito? E o cabrão do padreco, em vez de meter a mão à carteira e dar cinco tostões ao Zé Pipa, que era a obrigação dele, para isso era padre e presidente da Câmara, não senhor, vira-se para o Núncio e diz-lhe, ó Núncio manda-me já chamar o cabo Nízio, e o Núncio, ó senhor padre Ilídio, chamar o cabo Nízio, para quê? E o cabrão, todo repimpado na cadeira, chama-me o cabo Nízio, e depressa, que este tipo vai já preso. E o coitado do Núncio lá teve que mandar chamar o cabo Nízio, e o pobre do Zé Pipa lá foi preso. Preso e bem preso, que se não fosse o senhor doutor Zambuja, o irmão do doutor Amaral, este sim, um fascista dos antigos, o Zé Pipa morria na cadeia.

 

Meus concidadãos, meus amigos pardalenses, Vila Nova de Pardais anda à balda, não há governo nesta terra, como todos vós sabeis. Hoje, para chegar ao poleiro basta um cidadão ser da cor do partido que manda e não precisa de mais nada. Nem capacidade ou instrução esse cidadão precisa ter. E é verdade, meus concidadãos, meus amigos pardalenses, basta ver o que se passa nesta nossa amada terra. Uma vergonha, uma autêntica vergonha. Mas eu digo-vos, isso tem que acabar. Para mim, e vós conheceis-me, todos os portugueses são iguais, quer sejam ricos, quer sejam pobres. No nosso partido, meus amigos pardalenses, não há amigos nem inimigos. Há apenas amigos e adversários políticos. E só há amigos e adversários políticos porque sem amigos e adversários políticos não há democracia. Esta Câmara deu-me a Medalha de Valor e Dinamismo, vós sabei-lo. Mas se a desse a vós, ficai certos, eu ficaria mais honrado, meus amigos pardalenses. Vós é que a mereceis, porque o valor e o dinamismo serão vossos nas próximas eleições. Sabeis que eu sempre lutei e sempre lutarei por manter na nossa terra uma liberdade em pleno, sem achaques ou limites. Uma liberdade onde todos os portugueses possam votar sem restrições autoritárias ou pidescas. Como sempre bem disse o fundador da liberdade partidária nesta nossa terra, o Engenheiro António de Azambuja Amaral, eleito na Comissão Administrativa de 6 de Maio de 1974 para gerir os destinos democráticos de Vila Nova de Pardais, e eleito definitivamente presidente da Câmara a 12 de Dezembro de 1976 pelo voto livre de todos os pardalenses de consciência cívica nas primeiras eleições autárquicas livres e democráticas que aqui tivemos, sem liberdade de voto não há democracia. Sou filho dele, e como ele também sou um democrata, e vós sabeis que o sou, meus amigos pardalenses. Todos vós me conheceis, e todos vós sabeis que a democracia é o governo do povo e para o povo. É o governo em que o povo exerce a soberania. É o governo em que o povo toma as decisões mais importantes. É o governo em que o povo manda, em que o povo mais ordena, porque é o povo quem vota e quem escolhe os governantes. E eu, que nasci e me criei nesta nossa terra, que conheço todos os pardalenses e todos os pardalenses me conhecem, só vos posso dizer, meus amigos pardalenses, que sou contra a corrupção, que sou contra o banditismo, que sou contra o despesismo, que sou contra a falta de escolas no concelho, que sou contra a falta de médicos no Centro de Saúde, que sou contra a falta de segurança na vila, que sou contra a falta de justiça nos tribunais, que sou contra o desemprego, que sou contra os baixos salários, que sou contra as baixas reformas, e que sou contra tudo que prejudique Vila Nova de Pardais.

 

Regueifas. Bartolomeu Vanzeti Regueifas, é o meu nome, e foi o meu avô que mo pôs. Sou pintor e anarquista, sempre o fui. Pintor, fui eu que me ensinei, anarquista, foi o meu avô. O meu falecido avô era um anarquista dos antigos, não sabia ler nem escrever, mas sempre foi um anarquista de primeira. Nunca trabalhou, e muita fome passou, mas nunca foi mandado fosse por quem fosse e nunca se abaixou a ninguém. Rapaz, dizia-me ele, nunca te abaixes, nunca te abaixes, que quanto mais tu te abaixares mais o cu te aparece. E eu nunca me abaixei, que a mim ninguém me cala. Ai não cala, que eu sou quem sou, um pintor e um anarquista de raiz. Sou contra o capitalismo, sou contra a sociedade, sou contra a fome, sou contra os políticos, sou contra a religião, sou contra os padres, sou contra tudo, porque uma coisa é certa, sem anarquismo não se faz nada, disso tenho a certeza. E não sou só eu que a tenho, o Picasso também a tinha, pois mesmo a ser quem foi, também foi um anarquista. Primeiro não foi nada, é certo, dizem que até à missa o tipo ia. Mas à missa também eu fui, que ir aqui ou acolá não quer dizer que uma pessoa seja isto ou seja aquilo. Uma pessoa é o que é, e prontos, é tudo questão de criação. E se eu aprendi, o Picasso não havia de aprender porquê, hã? É certo que eu tive a sorte de ter um avô como tive, e o Picasso se calhar nem avô teve. Mas o que interessa é que ele foi andando, foi andando, e tanto andou que endireitou. Foi comunista, é certo, mas o comunismo era o que era, um venha a nós do caraças, e o Picasso endireitou e fez como eu. Meteu os cornos ao anarquismo, e prontos, afinou. Afinou, e não fez como muitos que eu conheço, ó pá, deixa de ser burro, pá, a tua tia é solteira, tem duas quintas, tu vais para lá, pá, vives lá, ela deixa-te as quintas, tu ficas rico, e prontos. Não, comigo não, que eu sou quem sou. Um pintor e um anarquista de primeira.

 

Meus amigos pardalenses, vós sabeis que eu sou contra tudo que não seja o interesse do povo desta terra. Vós sabeis que eu sou contra os problemas que o atual governo, o atual governo e todos os governos anteriores nunca quiseram resolver. Problemas esses, meus amigos pardalenses, que são de fácil, facílima solução. Vila Nova de Pardais nunca teve os seus problemas resolvidos porque os governantes nunca os quiseram resolver. Eu prometo-vos, meus amigos pardalenses, acabar com os desmandos dos maus governos, acabar com as iniquidades, com os despesismos, e, acima de tudo, dar valor a quem o tem. Vós conheceis-me, meus amigos pardalenses, eu sou daquela geração que se adultou, e permitam-me aqui os meus amigos pardalenses este neologismo, pois o património da língua portuguesa, como sempre muito bem disse outro ilustre filho desta terra, o nosso bem conhecido e injustamente esquecido dos poderes públicos, o ilustre escritor Alípio da Bouça, o património da língua portuguesa é de quem a fala e de quem a escreve e não de quem a guarda nas gavetas das gramáticas. Nós, os que nos adultamos na democrática revolução do 25 de Abril de 1974, embora ainda nascidos na ditadura pidesca do fascismo, temos a obrigação de dizer basta aos desmandos que por aí andam. E dizer basta, porque já basta de passar ao largo, já basta de assobiar para o lado a fazer de conta que não vemos o que se passa nesta terra. Porque, meus amigos pardalenses, se não virmos o que se passa nesta terra, se passarmos ao largo ou assobiarmos para o lado como sempre tem feito o atual governo, seremos tão fascistas como fascistas foram os afilhados do salazarismo de nefanda e nefasta memória. E é por isso que eu vos digo, meus amigos pardalenses, se Vila Nova de Pardais precisa de mais professores, que venham mais professores. Se Vila Nova de Pardais precisa de mais médicos, que venham mais médicos. Se Vila Nova de Pardais precisa de mais justiça, que venha mais justiça. Se Vila Nova de Pardais precisa de mais empregos, que venham mais empregos. Se Vila Nova de Pardais precisa de melhores salários, que venham melhores salários. Se vila Nova de Pardais precisa de mais segurança, que venha mais segurança. Se Vila Nova de Pardais precisa de melhores reformas, que venham melhores reformas.

 

E o Picasso também fez muito bem em ser quem foi. Eu nunca pintei um Guernica, já estive para o pintar, mas desisti. Era grande demais, e eu não tinha sítio onde o pôr, senão pintava-o. Ai pintava, pintava, que comigo é assim, faço, faço, não faço, não faço, e prontos. Eu só não pinto os quadros que o Picasso pintou porque não tenho os pincéis que ele tinha, que se os tivesse, adeus viola, já há muito andava lá pelas Américas a vender os meus quadros a milhões e milhões. Essa cambada que para aí anda diz que nesta terra não há artistas a sério, só cá há vagabundos a quererem arranjar tachos no Pelouro da Cultura, uns borra-botas que só sabem fazer mais do mesmo. Mas os vagabundos e os borra-botas são eles, uns camelos que não sabem nem sequer o que é arte, saberão lá o que é ser artista, hã? E artista numa terra como esta, uma terra onde não há frontalidades, não há verdades, uma terra onde quem mais rouba é o governo, a merda de uma terra onde só tem valor quem vem de fora, ou eles pensam que eu não sei, hã? Não falo por mim, que não preciso disso, graças a Deus nunca tive medo de frontalidades nem de verdades, mas nesta terra é assim. Ninguém dá a cara, ninguém aponta o dedo, todos mordem de furto, e ai de quem se atreva a dizer a verdade. Mas comigo não, Salomão, comigo não, que o buraco é mais em baixo, como diz o Zica Borges, que andou lá por esses Brasis uns anos largos e sabe-a toda, comigo não, Salomão, que eu não passo cartão a ninguém, mas que até me dói a alma de ver o que cá se passa, isso dói. Uma terra onde há tipos que pagam balúrdios por quadros que só são bons porque são de fora, e deixam-me morrer à fome os artistas portugueses, isso pode lá ser? Se eu mandasse nesta terra, primeiro comprava-se o que cá se faz, e só depois se compraria o que vem de fora. Mas essa gajada, não. Compram o que vem de fora, e o que cá se faz vai é para o lixo. Não dá estatos, como diz o Molarinho do jornal. Ó pá, tu compraste um quadro do Regueifas? És uma burra, pá, olha que eu comprei um quadro do Latvijas, um gajo que pinta até quadros para o papa, e é do melhorio. Isto pode lá ser? Isto está como há de ir. Isto só a tiro, só à bomba. Se eu digo, ó seus camelos, comprai-me quadros portugueses, eu digo, comprai-me livros portugueses, comprai-me versos portugueses, comprai-me músicas portuguesas, comprai-me tudo português. Nós temos cá tudo do bom e do melhor, ou vocês pensam o quê? Quem descobriu a Índia, quem descobriu o Brasil, quem descobriu o mundo todo, hã?

 

É destas reformas que Vila Nova de Pardais precisa, meus amigos pardalenses? Pois que os políticos lhas deem, porque para isso são políticos. No meu governo, meus amigos pardalenses, farei questão que todos coloquem acima dos seus interesses pessoais os interesses do nosso povo. No meu governo não olharei a amizades nem a cunhas, vós conheceis-me e sabeis que o farei. Aceitarei todas as opiniões e discutirei com todos os interesses da nossa terra. No meu governo, meus amigos pardalenses, todos os cidadãos terão direito a terem opinião e igualdade cívica e democrática. No meu governo não haverá carreiristas nem amizades espúrias, pois todos os cidadãos de Vila Nova de Pardais serão iguais, meus amigos pardalenses. O atual governo de Vila Nova de Pardais prometeu empregos para todos os desempregados e não empregou ninguém. Prometeu segurança na vila, e que segurança nós temos? Dizei-me, meus amigos pardalenses, que segurança nós temos, se ainda hoje, à hora do almoço, foi assaltado no centro da vila um conceituado estabelecimento que todos vós conheceis, o Café Neca da Mira? O nosso estimado conterrâneo Manuel Ruas Medeiros foi impunemente roubado do suor do seu rosto, e até agora os assaltantes nem sequer foram identificados e presos. Não, meus amigos pardalenses, eu, que nasci e me criei nesta terra como vós, digo-vos, eu quero que esta terra tenha segurança, eu quero que uma pessoa possa entrar no seu café e não tenha medo de ser assaltado à luz do dia. Por isso vos digo, meus amigos pardalenses, votai neste vosso amigo porque não votareis num homem que promete, votareis, sim, num homem que cumpre o que promete. E uma das promessas que vos faço nesta hora de luto para o honrado comércio pardalense, é a de instituir um posto da Guarda Municipal em Vila Nova de Pardais no primeiro dia do meu governo. Votai neste vosso amigo, meus amigos pardalenses, que eu vos darei segurança, eu vos darei empregos, eu vos darei reformas, eu vos darei tudo o que for preciso. Não sou como aqueles que prometeram trazer para o nosso concelho mais indústrias do estrangeiro e deixaram sair as duas únicas que cá tínhamos. E não só deixaram sair as estrangeiras, como também deixaram falir as portuguesas. Como todos vós sabeis, primeiro, faliu a fábrica da Touceira, depois faliu a fábrica da Recolha, e depois faliu a fábrica da Finteira, e o que fez o atual presidente da Câmara? Dizei-me vós, meus amigos pardalenses, que ficaram sem os vossos empregos, que ficaram sem os vossos salários e com as vossas famílias passando cruéis necessidades, o que fez e faz o atual presidente da Câmara? Um redondo nada, um redondíssimo nada, meus amigos pardalenses.

 

Fomos nós que descobrimos o mundo todo, ou foram os espanhóis ou os franceses, hã, ó seus camelos? Mas essa gajada quer lá saber? Essa gajada quer é saber dos tachos, dos dinheiros à borla, das comissões pagas por debaixo dos panos. Essa gajada quer é saber das comedorias, cambada de gatunos. Se houvesse uma lei para isso, se o nosso dinheiro fosse gasto com os nossos artistas em vez de ser gasto com essa tipalhada que vem de fora, outro galo me cantaria, ai cantaria, cantaria. Mas não há lei para isso, ou se há ninguém quer saber, e é isto que se vê, uma sem-vergonhice e uma roubalheira que Deus me livre. Mas eu digo isto não é só deste Coninhas, um presidente da Câmara que se vendeu aos tubarões do capitalismo. O doutor Amaral vai sair contra ele nas eleições, mas atenção, o fascistoide vai sair contra ele mas é só para calar a boca ao povo, ambos farinha do mesmo saco, ambos capitalistas dos antigos, venha a mim o vosso reino, que o meu é meu, e ninguém toca, essa é que é essa. Se bem que o Couceiro veio ter comigo há dias, e disse-me que a Câmara vai-me comprar um quadrito, mas o Couceiro é o Couceiro, e quem manda e desmanda é o Coninhas, um gatunaço dos antigos. Eu nasci cá, criei-me cá, por cá fiquei e ganhei o quê com isso, hã? Se não fosse a Francisquinha Penalba por onde é que eu andaria agora, hã? Não tenho vergonha de o dizer, para mim, a Francisquinha foi uma santa, uma senhora de respeito, das antigas, que toda a gente respeitava. Foi na casa dela que pintei o meu primeiro quadro a sério. Ó Lindinho, ela tratava-me por Lindinho, ó Lindinho, olha que eu só te deixei pintar esse quadro porque tu és um bom menino, ouviste? Vê lá o que é que vais fazer com ele, ó Lindinho, olha as bocas do mundo, Lindinho, olha que o povo fala, ouviste? Nunca o mostrei a ninguém, tenho-o lá em casa, e lá há de ficar, que muito me ajudou aquela santa. Ó Lindinho, eu podia ser a tua mãe, mas que queres? É a vida, e na vida como na vida, ouviste, ó Lindinho? E eu sempre respeitei a Francisquinha, a Francisquinha, viva, foi Deus no céu e ela cá na terra.

 

No meu governo, meus amigos pardalenses, não haverá desenrasquismos, não haverá primeiro eu, depois eu e sempre eu, esse cancro que tanto e tão profundamente apodrece a nossa sociedade. Haverá, sim, a cultura da honestidade e do saber, pois é com a cultura da honestidade e do saber que se constrói a civilização, que se constrói a cidadania e o bem-estar do povo da nossa terra. No meu governo não haverá pardalenses de primeira e pardalenses de segunda, haverá só, e isso vos garanto, meus amigos pardalenses, cidadãos iguais perante a lei, cidadãos iguais perante a vida, cidadãos iguais perante tudo o que for preciso para um cidadão ser igual a outro cidadão. Eu, que sempre fui um filho do povo, sinto-me honrado em pertencer aos quadros de um partido que se espelha no povo e faz desse espelho a sua bandeira de luta, pois a vontade do povo é soberana, e é o povo quem mais ordena. Afianço-vos, meus amigos pardalenses, que só estou nesta batalha cívica porque me sinto pronto e motivado para trabalhar e resolver todos os problemas de Vila Nova de Pardais. Afianço-vos, meus amigos pardalenses, que o meu programa eleitoral será feito pelo povo, pois é o povo que sabe aquilo que cada freguesia mais precisa, caminhos asfaltados, obras nos cemitérios, distrações e festas para todos, ou ajuda para os mais carenciados. Mas afianço-vos também que não vou prometer mundos e fundos como sempre vos prometeram nesta terra. Eu só prometerei aquilo que for capaz de cumprir, vós conheceis-me, meus amigos pardalenses. Por isso vos prometo que como presidente da Câmara de Vila Nova de Pardais, ao fim dos primeiros cem dias do meu governo reduzirei o prazo de pagamento aos fornecedores para menos de seis meses, e ao fim do primeiro ano, reduzi-lo-ei para menos de três meses. Ao fim do segundo ano reduzi-lo-ei para menos de dois meses, e ao fim do terceiro ano reduzi-lo-ei para menos de um mês. No quatro ano do meu mandato, meus amigos pardalenses, se preciso for, pagarei até antecipadamente a todos os nossos fornecedores, vós conheceis-me, meus amigos pardalenses, e sabeis que sou homem de palavra e que sempre cumpro as promessas que faço. No quarto ano do meu mandato, se preciso for, todos os nossos fornecedores serão pagos antecipadamente, meus amigos pardalenses.

 

Bem sei que a Francisquinha podia ser a minha mãe, e se eu nunca de cá saí não foi por ela me ter deixado a casa e o café em testamento, não senhor, foi por respeito. É verdade que também me deixou uns dinheiritos, mas isso é fio de outra meada. A casa, essa, ainda não a vendi porque me faz jeito, mas o café, esse, fechei-o logo e aluguei-o a um banco, que um anarquista não pode ser capitalista, e cá vou vivendo. Nasci cá, e nunca de cá saí, mas se nunca de cá saí, não foi pelo que a Francisquinha me deixou, não senhor, foi porque nunca quis sair. Dava-me com a Francisquinha como Deus se dá com os anjos, ó Lindinho, tu vê lá, não trabalhes tanto, que o frio mata, anda para cama, ó Lindinho, anda, que o frio mata, ouviste, Lindinho? E por cá fiquei a pintar os meus quadros e a ajudar os meus amigos, que se tivesse saído desta merda desta terra, tenho a certeza que hoje andava pelos museus do mundo como muitos andam, andam e não pintaram nem sequer a metade dos quadros que eu pintei. Uma vez até o senhor doutor Zambuja, que foi o meu advogado no testamento da Francisquinha contra os sobrinhos dela, veio ter comigo ao café e disse-me, ó Regueifas, o que é que tu andas cá a fazer, ó gandulo? Eu, se fosse a ti, atirava-me por esse mundo. Isto é terra de cafres, ó Regueifas, e tu és o Picasso cá da terra. Atira-te por esse mundo, ó gandulo. O senhor doutor Zambuja sabia o que dizia, que nesta terra só tem valor quem de cá sai. O Picasso, o Picasso foi para Paris logo que viu que na terra dele nunca ia sair da cepa torta. Mas o Picasso foi para Paris porque a terra dele era perto de Paris e ele sabia falar francês, e eu disse-o ao senhor doutor Zambuja, ó senhor doutor Zambuja, o Picasso foi para Paris porque sabia falar francês, e diz-me ele, e tu não sabes porque não queres, ó Regueifas, e eu disse-lhe, ó senhor doutor Zambuja, valha-me Deus, eu nunca quis porque nunca mo ensinaram, e diz-me ele, aprende, aprende e atira-te por esse mundo, ó Regueifas. O senhor doutor Zambuja está certo, que ao Alípio da Bouça fizeram ainda pior. Aqui nasceu, aqui viveu, aqui morreu, e nem sequer do livro dele essa gajada da Câmara quis saber. Não é por o Alípio ter sido meu amigo que eu digo isto, não senhor, mas o Alípio, se não fosse o Alípio, nunca nesta terra se teria escrito um livro que desse um romance. O livro do Alípio, eu nunca o li, verdade seja dita, mas uma vez, o Alípio veio ter comigo e disse-me, ó Regueifas, tu é que podias ler o meu livro a ver se gostavas, pá. Mas se eu sou pintor, não sou leitor, ia ler o livro do Alípio para quê, hã? E disse-o ao Alípio, ó pá, valha-te Deus, eu sou pintor, não sou leitor, pá. E não li o livro do Alípio, mas o facto de o não ter lido não tirava dessa gajada da Câmara o mandar publicar, então gastam-me balúrdios e mais balúrdios a mandar vir livros de fora e nunca ninguém se lembrou de mandar fazer ao menos uma cópia do livro do Alípio? Isto pode lá ser? E não foi por falta de avisos, não senhor, que muitos e muitos avisos teve essa gajada. Eu cansei-me de pedir a esses camelos que mandassem fazer ao menos uma cópia do livro do Alípio, ao menos uma para quem a quisesse ler, e que foi que me disseram, hã? Que não havia dinheiro, que o dinheiro que havia era pouco para manter a Biblioteca Municipal aberta ao público. Isto tem lá jeito? Isto pode lá ser? Um camelo que eu não vou dizer o nome, que não estou aqui para dar a cara por pessoas que não merecem nem sequer que se diga o nome delas, um cabrão que muda de casaca como eu mudo de cuecas, um tipo que se agarra àquele tacho do Pelouro da Cultura como um cão vadio se agarra a um osso, manda-me chamar, e diz-me, ó Regueifas, valha-te Deus, pá, o livro do Alípio não presta, pá, eu li-o de fio a pavio, mais de quinhentas páginas, e aquilo são umas pupilas do senhor reitor de carregar pela boca, pá.

 

Meus amigos pardalenses, o que eu prometer eu cumprirei, e sem fazer mais despesismos. Aqui vos afianço que não contratarei assessores apadrinhados vindos de fora e pagos a peso de ouro à custa dos cofres públicos, pois as pessoas que me acompanham nesta luta são todas pardalenses, e todas vossas conhecidas. Eu fui escolhido como cabeça de lista num processo transparente e honesto, e também foi com essa mesma transparência e com essa mesma honestidade que foram escolhidos os meus companheiros de mandato que, tenho a certeza, todos os pardalenses elegerão em força e com maioria absoluta, pois só com maioria absoluta poderemos acabar com a pouca vergonha que campeia na nossa terra. Só com a maioria absoluta poderemos acabar com o despesismo e com a ganância dos atuais carreiristas da Câmara Municipal de Vila Nova de Pardais. Eu não prometo nada, meus amigos pardalenses. O que eu vos prometo é só o que digo no meu slogan de campanha, “Mentiras Não!”. Mentiras não, porque não sou homem de mentiras. Sou homem de verdades, de frontalidades, de dar a cara pelos meus ideais e pelas necessidades desta terra onde todos me conhecem e sabem quem eu sou. Eu não tenho amigos empreiteiros, nem compro carros e casas à custa dos dinheiros do povo. Mentiras não, meus amigos pardalenses, mentiras não. Votai em quem vos diz a verdade, e votai em força, pois em Vila Nova de Pardais o povo é quem mais ordena, e o povo unido jamais será vencido! Viva a Democracia! Viva a Liberdade! Viva o povo de Vila Nova de Pardais, meus amigos pardalenses!

 

Pupilas do senhor reitor de carregar pela boca? Pupilas do senhor reitor de carregar pela boca, o caralho que o foda. As Afilhadas da Senhora Professora, umas pupilas do senhor reitor de carregar pela boca? Afilhadas não são pupilas, ou o camelo não sabe nem sequer que pupilas não são afilhadas, hã? Isto só a tiro, só à bomba. É por estas e por outras que eu não entro naquela biblioteca nem a tiro. Não entro, nunca entrei e nunca entrarei, que não estou aqui para fazer fretes a ninguém, mas sei o que lá se passa, ai sei, sei. Conheço pessoas que lá vão e que me dizem como aquilo anda, só porcaria vinda de fora, e uns livrecos antigos que até dá nojo pegar neles. Então custava lá alguma coisa fazer ao menos uma cópia do livro do Alípio, hã? Essa gajada quer é tacho, que quanto menos dinheiro se gastar, mais sobra para esses cabrões encherem as algibeiras. E o teatro? Do teatro nem é bom falar. Eu sou quem sou, que não sou melhor nem mais do que ninguém, mas a verdade tem que ser dita. Se não fosse esse bota-abaixo que para aí anda, já há muito o teatro da nossa terra era falado por esse mundo. Então não vai há muito o Tónio Cangalheiro e a Nicinha Socas não foram a Tui fazer uma comédia, e não dizem que nem o mais pintado lhe tinha voltas a dar, e o Zé Molarinho não diz que o Tónio Cangalheiro e a Nicinha Socas são um espanto, uns Camilos do teatro? Está certo, o Zé tem lá os seus defeitos, eu sei que emprenhou a sobrinha, a filha mais velha do irmão, desse cabrão desse Américo das Ferragens, um gatunaço que casou rico e manda e desmanda lá na Câmara. Isto pode lá ser? Um cabrão que só vai à missa para cumprimentar os da igualha dele? Um papa-hóstias que eu vejo na missa todos os domingos, emproado como um lorde, embora eu só lá vá por respeito? O senhor doutor Zambuja, e mais é o senhor doutor Zambuja, sempre que passa por mim cumprimenta-me como se eu fosse da igualha dele. E a vida, ó Regueifas? A vida, senhor doutor Zambuja, a vida vai como Deus manda. Tu é que devias ser da cultura, ó Regueifas. Eu senhor doutor? Tu, sim, então não ganhaste a Medalha de Mérito Artístico e Cultural, e não és o Picasso cá da terra, ó Regueifas? Eu, se fosse a ti, punha-a ao peito, ó Regueifas. Se calhar até te davam o Pelouro da Cultura, homem. A mim, senhor doutor? A ti, pois. Já não te deram a medalha? O senhor doutor Zambuja tem razão, que isto está como há de ir. Cá, nem o Picasso daria conta, então não se viu o que aconteceu há pouco no café do Neca da Mira? O tipo é assaltado, fica sem o seu rico dinheirinho, e ninguém quer saber, ninguém faz nada? Isto só a tiro, só à bomba. Certo estava o meu avô, sem anarquismo não se faz nada, nadinha desta vida, ou vocês pensam o quê, hã? Artista nesta terra de camelos é como o diabo no céu. Não entra nem a tiro.


Capítulo 4


O meu melhor amigo chama-se Amadeu. Não fuma, não bebe, não diz palavrões, e desaprova com a maior convicção a vida que eu levo.

– Eduardo, a tua vida não é vida, pá. Cuida-te. Tu passas a vida a estragá-la, homem de Deus, olha para o que eu te digo. Tu tens que arranjar um motivo para mudar essa tua vida, pá.

Mas eu gosto dele. Trabalha como um escravo a vender roupas nas feiras, mora numa pensão a cair aos pedaços, e ainda arranja tempo para estudar Economia na Universidade do Minho.

– Tu sabes o que eu mais quero, Eduardo? É formar-me e fazer um concurso público. Se calhar, para o Ministério das Finanças.

O Amadeu acredita que todos devem ser iguais perante a lei, e que o direito à greve é sagrado. Mas não acredita em mim quando eu digo que nós só nascemos para morrer, e que a única coisa de valor que o ser humano tem é a sua liberdade. De pensamento, de expressão e de ação.

– Liberdade, Eduardo? Mas que liberdade, pá, se eu tenho toda a liberdade que quero? Estudo o que gosto, ganho o meu dinheiro nas feiras, formo-me no ano que vem, que mais liberdade eu posso ter, hã?

Eu gosto do Amadeu, mas as tiradas dele, às vezes, deixam-me fulo.

– Amadeu, tu sabes o que é um iceberg? Pesa milhares, ou até milhões de toneladas, mas só a ponta se lhe vê. Eu sou igual.

– Ó pá…

– E digo-te mais. Se alguém me provar que a vida de um homem vale menos do que o cumprimento da ordem de matar, acredita que eu também pegaria numa pistola e sairia por aí a matar gente em nome dessa paz que todos apregoam.

– Tu não acreditas num mundo que tenha ordens, pá?

– Não.

– Mas as ordens são ordens, pá. E as ordens não se discutem, aceitam-se, homem de Deus.

– Amadeu, porra. Estás a ver esta mesa? É de ferro, não é?

– É. Claro que esta mesa é de ferro.

– Mas se eu te disser que é de madeira, tu aceitas? Aceitas, a porra, é o que aceitas.

– Depende, pá. Depende. Se eu tiver um bom motivo, por que é que não hei de aceitar, hã?

– Vai-te foder, Amadeu. Esta mesa é de ferro, e nem todos os teus motivos a farão ser de madeira, porra.

– Tu é que nunca arranjaste um motivo, pá.

– E tu? Por acaso…

– Eu quero, e vou ser economista, pá.

 

          Vila Nova de Pardais 4

 

Eu ainda casei no bom tempo, no tempo que a minha mulher só podia viajar para fora junto comigo, porque para viajar sozinha só se eu desse licença, e carta que o correio entregasse na minha casa só eu a podia abrir, e ela nunca se queixou. Mas hoje, hoje, cada um faz o que quer. Faz o que quer, e ninguém quer saber, cada um com o rabo mais preso do que o outro, tudo à balda, tudo ao deus-dará. Depois que o senhor doutor Salustiano em má hora nomeou o gatuno do Couceiro como assessor, é ele quem manda e desmanda nos dinheiros da Câmara. O Couceiro, um tipo que eu conheci com uma mão à frente e outra atrás, e agora é dono de casas e mais casas, fora a dinheirama que tem por esses bancos, isto pode lá ser? O senhor doutor Salustiano não, é gente honrada, vinho de outra pipa, deu-me a Medalha de Valor e Altruísmo sem eu lha pedir, e que muito gosto me faz. Não que eu não a merecesse, vá lá. Dei a ambulância aos Bombeiros, e faço pela vida, mas a medalha que o senhor doutor Salustiano me deu, essa foi um prémio, não por eu ser quem sou, que não sou nada, mas por ele achar que eu a mereci. Agora, esse Couceiro andar para aí a dizer que a Câmara vai fazer pavilhões multiusos, que a Câmara vai fazer piscinas aquecidas, que a Câmara vai fazer hotéis de charme no monte Tabuão e no Castro de Pardais, eu queria era vê-lo baixar os impostos, que andam pela hora da morte. E não eram só os impostos, não senhor, era tudo, a começar pelos carros. Há por aí tantos carros que uma pessoa não pode nem sequer sair de casa descansada, que se uma pessoa não se precata, vai é parar às Urgências, atropelado por esses cadastrados. Havia de haver uma lei para isso, uma lei que acabasse com essa montoeira de carros que por aí andam, mas uma lei a sério, das antigas, daquelas que resultavam em pleno. Vila Nova de Pardais tem quantas pessoas, hã? Três mil? Pois só podia ter trinta carros, um carro por cada cem pessoas chegava e sobrava, mas não senhor, se até um borra-botas sem eira nem beira pode comprar um carro, de que maneira é que esta terra não havia de andar à balda, ao deus-dará? Ainda não vai há muito que até as bicicletas eram luxo, e que luxo, mas agora? Agora, até o Tó Fininho, um trolha para aí à toa que mal ganha para o vício e me deu cabo das paredes de dois quartos, até ele compra um carro. Sim senhor, disse-me o Zica Borges que o tipo entrou no estande dele e saiu de lá montado num carrão que só visto. Isto pode lá ser?

 

Bancos? Eu quero que os bancos se fodam, se não fossem esses caralhos eu ainda tinha o que tinha, e que muito me custou a ganhar. Trabalhei noite e dia na Suíça, ganhei um dinheirito, lá isso ganhei, não vou dizer que não ganhei, não sou como muitos que eu conheço, chapa ganha, chapa gasta. Mas para o ganhar suei como um raio, e muito tive que meter as mãos à pá e à picareta, fosse dia ou fosse noite, que na Suíça não é como cá. Lá uma pessoa ganha, mas trabalha até domingos e dias santos se preciso for. Fiquei por lá vinte anos, poupei até nos remédios e nas putas, que se não poupasse. fodia-me como muitos que eu conheço, uns lorpas que nem sequer dinheiro tinham para mandar vir uma pefancuchem e uma bia, que é como quem diz, uma panqueca e uma cerveja. Deus ajudou-me, e forrados uns franquitos, voltei, que as saudades eram muitas, e, graças a Deus, a sorte calhou-me. Comprei um cafezito cá na vila e comecei a vida. A vida corre-me bem, eu meto uma boa televisão e uma máquina de tabaco, e o Café do Suíço começa a ser nomeado. O dinheiro começa a entrar, compro uma casita e digo cá comigo, queres tu saber, ó Chico? Tu tens que casar, pá, a vida sem uma mulher que nos trate, não é vida, pá. Casei-me, mas casei como Deus manda, no civil e na igreja, não como muitos que se juntam para aí como porcos na corte, não senhor, casei como Deus manda, missa cantada e comes e bebes à fartura, que uma pessoa não é só poupar, uma pessoa também precisa mostrar ao que vem. E lá casei, casei com a Guida, uma rapariga que trabalhava como arrumadeira de quartos num hotel da Póvoa de Lanhoso, rapariga séria, de poucas falas, mas séria. Casamos, e de seguida a Guida emprenha, e vem-nos uma rapariguita, a Guidinha. A Guida emprenha outra vez, e vem-nos um rapaz, o Chiquito. Com o dinheiro a entrar, digo eu à Guida, ó Guida, com dois filhos e mais nós, que dizes tu, hã? Compro uma casa nova, que dê para nós todos? A Guida ainda me disse, ó Chico, tu vê lá, esta casa é nossa. Que nossa nem meio nossa, ó Guida, digo-lhe eu. Este cortelho comprei-o eu só para mim, e de mais a mais, o Neca da Mira e o Zeca já compraram cada um a sua casa, e olha que os cafés deles não são nem maiores nem melhores do que o meu, ó mulher. A Guida conforma-se, e lá fomos ambos ver uma casita nova ali para os lados da capela de São Marçal, andavam a fazê-las num terreno que vinha a ser do falecido Moura Casavelha, e que o filho vendeu por meia dúzia de patacos, um estroina de marca maior que andou comigo na escola e sempre foi que o levava o diabo. O empreiteiro, que vinha a ser cunhado dum gajo que trabalhou comigo na Suíça e que eu conhecia das vezes que cá vinha, diz-me, ó Chico, estás a ver? Uma destas é que te servia, pá, e digo-lhe eu, e quanto pedes tu por ela, ó Melo? O gajo chamava-se Melo, Tónio Melo, dos Melos de Pedra a Pé, e diz-me ele, ó pá, isto não é meu, é do senhor doutor Amaral, e digo-lhe eu, e ele venderá uma? Se calhar vende-te até duas ou três, pá. Se tu quiseres eu falo ao senhor engenheiro, e o senhor engenheiro fala ao senhor doutor Amaral. Fez isto quatro anos no São Brás, a Guida a dar para trás e eu a dar para a frente, ó Guida, esta casa não presta, é casa de cabaneiros, vende-se e ficamos de casa nova, ó Chico, tu vê lá, vê lá se… Se o quê, mulher? Se calhar… Se calhar o quê? Ó Guida, tu não viste o Tó Barroso, um pobretanas que não tem nem a metade do que nós temos e já saiu daqui há que tempos? Se tu tens a certeza, ó Chico… Então não tenho a certeza, ó Guida? Ou tu pensas que eu sou o quê, hã? A mim ninguém me passa a perna, mulher.

 

Disse-me o Zica Borges que o tipo o comprou em cinco anos a dez contos por mês, um trolha sem eira nem beira, que mal e mal ganha salário mínimo pode lá pagar dez contos por mês? Se bem que isto de salário mínimo, é como diz o outro, o governo faz a lei porque o dinheiro não é dele, quem paga são os patrões. E quem paga, paga quando pode, quando não pode, paga o que pode, e quantas vezes até sem poder pagar. E se os bancos não emprestam, falência, então as três maiores fábricas do concelho, a Recolha, a Touceira e a Finteira não faliram, e o comércio não vai que o leva o diabo? Vai, sim senhor, e vai porque não há uma lei para isso, que se houvesse uma lei para isso, uma lei que não deixasse falir ninguém, Portugal endireitava, ai endireitava, endireitava, mas o governo quer lá saber? O dinheiro não é dele. Mas se fosse só o Tó Fininho a comprar a carripana, vá lá, é como diz o outro, uma andorinha só não faz verão, mas não senhor, são todos, hoje, toda a gente quer ter carro, e um carro melhor do que o do amigo ou do vizinho. Eu nunca fui de me meter na vida de ninguém, graças a Deus não sou disso, mas o povo fala, e fala com razão, então o Zica Borges não me disse que só este mês vendeu para cima de trinta carros? Usados, está certo, que cá na vila, carros novos, se uma pessoa os quiser comprar, ou vai comprá-los a Braga ou ao Porto, o que é uma vergonha, mas o que é que se há de fazer se ninguém quer saber, se anda tudo à balda, ao deus-dará nesta terra desgraçada? Não fosse o Zica Borges ser quem é, uma pessoa viajada que andou por esse Brasil anos e anos, e ainda assim se não passasse uns cobres largos ao Couceiro, nunca teria arranjado a licença do estande. Sei-o, porque ele mesmo mo disse, e um amigo mo confirmou.

 

A Guida conforma-se, e lá vou eu falar ao senhor doutor Amaral. Falo, e diz-me ele, ó senhor Francisco, o negócio não é feito comigo, o negócio é feito com o banco. Vou eu ao banco e digo à menina que veio ter comigo, ó menina, eu queria comprar uma casita, e pergunta-me ela, o senhor é cliente do nosso banco? E digo-lhe eu, não sou, não senhor, mas o senhor doutor Amaral disse-me que… E diz-me ela, faça o favor de esperar, que a pessoa que trata disso atende-o já. Isto foi assim, por esta luz que me alumia que isto foi assim. Eu sento-me, e mal me sento, vem um senhor ter comigo, e diz-me, faça o favor. Entramos ambos no gabinete dele, e conversa vai conversa vem, só sei dizer que saí de lá com a casita apalavrada, a mobília toda nova, e até duas arcas novas comprei para o café, e um carro novo, que o meu, a bem dizer, já só me dava despesas e canseiras. Tinha-o trazido da Suíça já de segunda mão, que não sou como muitos que vêm de carros novos a armar-se a ricos, e os carros nem deles são, são alugados ou emprestados. Um tipo conheci eu que vinha de autocarro, chegava cá, alugava um carro português e trocava as matrículas por umas que tinha roubado na Suíça, e dizia que o carro era dele. Eu nunca fui desses, o meu carro era meu, que bons francos suíços dei por ele. Apalavrado o negócio no banco, entrei em casa com tudo novo e fiado a vinte anos. Podia até comprar tudo a pronto, que dinheiro tinha eu, ai tinha, tinha, mas por que é que havia eu de pôr o meu dinheiro, se o banco punha o dele, hã? E tanto punha, que o tal senhor ainda me disse que se eu quisesse abaixar as prestações, ele dava-me o deferimento. Eu nem sabia o que era esse tal deferimento, mas ele disse que mo dava, trinta por cento no final, mas eu não quis, que nunca fui pessoa de deixar para amanhã o que posso fazer hoje. Chego a casa, e a Guida só não me atira à cama, à frente da canalha, porque eu não deixei, que por ela, a alegria era tamanha, até nos meus braços chorou. Uma semana, ou duas depois, assinamos os papéis, eu mais a Guida, sim senhor, então não éramos casados pelo civil e pela igreja? Assinamos os papéis, vendemos a casa velha, e prontos, casa nova, mobília nova, carro novo, um carrão topo de gama, mandei-o vir de Braga, novo em folha, e lá fomos. Tanto isto é verdade que até o Miró das Tunas, o da Câmara, veio ter comigo, um tipo que não tem lá muito boa fama, diz o povo que o gajo deve a camisa do corpo e até crava os cigarros que fuma, vem o gajo e diz-me, ó Chico, vai, que para o ano vou eu, isto já não é sítio para uma pessoa morar, fazes tu muito bem. E lá fomos. Dava-me gozo ir à missa de carro novo, a Guida e a canalha toda repimpada, lá isso dava. Nunca fui de me gabar, mas bem vistas as coisas, é como diz o outro, se uma pessoa tem, tem, e se tem, deve mostrar que o tem. O café já com serviço de almoços, o negócio a crescer, o dinheiro a entrar, a Guida pergunta-me, ó Chico, tu não queres mais um filho? Ó Guida, tira mas é a carta antes, digo-lhe eu, que depois vai ser o cabo dos trabalhos. Com a vida a correr-me da maneira que corria, quem ia adivinhar que de um dia para o outro, catrapumba, lá se ia tudo para os quintos dos infernos, hã? Eu nunca fui de gastos, não senhor, mas vem a crise, vem o desemprego, vem a falta de dinheiro, vêm as greves, vem o caralho, e o que pode uma pessoa fazer numa altura dessas, hã? Faliu a fábrica da Touceira, faliu a da Recolha, faliu a da Finteira, faliu tudo, a vila com mais de vinte cafés à compita, a freguesia a gastar cada vez menos, às vezes a pedir até fiado, e para acabar a dança, o banco bate-me à porta e pede-me contas.

 

Se o Zica Borges não desse os cobres ao gatuno do Couceiro, ainda hoje não havia cá na vila um sítio onde se pudesse comprar um carro, usado, vá lá, mas um carro. Eu só tenho um carro novo porque os consertos dos usados são uma roubalheira, mas trabalhei muito para ter o que tenho, e bem o mereço, que não sou como muitos que para aí há, uns gabarolas que compram carros topo de gama só para os mostrar e ficam a dever até a alma a Deus. Ainda no outro dia estive com o delegado do Centro de Saúde, o senhor doutor Mendes Fagundes, um amigo que muito prezo, e ele contou-me uma que eu só acreditei por ser ele a contar-ma. Ó Meco, o meu nome é Américo, mas o senhor doutor Mendes Fagundes trata-me por Meco, ó Meco, diz-me o senhor doutor Mendes Fagundes, ó Meco, você acredita que o Quim Soutelo, você conhece o Quim Soutelo. Ó senhor doutor, então não havia eu de conhecer o Quim Soutelo, valha-me Deus? Andamos ambos na escola. Pois encontrei o Quim Soutelo aqui há tempos, diz-me o senhor doutor Mendes Fagundes, encontrei-o num jogo do Braga contra o Boavista, mas olhe que eu só fui ao estádio para lembrar os meus tempos de aluno do Liceu de Braga, o Meco sabe que não sou de futebóis, e quem chega e senta-se à minha beira? O Quim Soutelo. Ao fim do jogo, conversa vai conversa vem, eu já a entrar no meu carro, e diz-me ele, ó senhor doutor, sempre o mesmo carrito, hã? O senhor doutor precisa de o trocar, valha-me Deus. Eu, que não tenho as posses do senhor doutor, comprei há dias um Lexus Sedan LS por vinte e cinco mil contos. E olhe que só o comprei para passear, que o Mercedes é só para levar os cães à caça. Sinceramente, ó Meco, veja lá, eu nem sei o que é um Lexus, nem me interessa saber, mas logo o Quim Soutelo a dizer-me isto? Ó Meco, diga-me com franqueza, logo o Quim Soutelo vir-mo dizer a mim, ó Meco. Diga-me lá, é ou não é um abuso?

 

O banco pede-me contas, é bem certo que eu tinha atrasado uma prestaçãozita, não vou negar, mas não era caso de maior, era uma prestaçãozita ou duas, ou até três, vá lá. Mas que fossem até seis ou sete, que tinha isso demais, hã? Com tantas contas na cabeça, uma pessoa até se perde, mas os gajos querem lá saber, os gajos querem é saber deles, é o que os gajos querem. E tanto querem, que um dia mandam-me uma carta a cobrar a dívida. Com a carta na mão, lá vou eu ao banco, e não é que aqueles caralhos me dizem que se eu não pagasse, tiravam-me a casa, tiravam-me o carro, tiravam-me tudo, até a roupa do corpo os cabrões me tiravam? Mas eu não me fiquei, ai não fiquei, e disse ao tipo, ouça lá, ó senhor, então isto é assim? Na altura de uma pessoa comprar, está tudo bem, são tudo facilidades, ai compre casa, compre carro, compre mobília, compre tudo que nós fiamos, e na altura que uma pessoa atrasa um pagamento de boa fé, tiram-lhe tudo? Isto pode lá ser? De acordo com o contrato assinado… Ouça lá, mas que contrato? Eu não assinei nenhum contrato que me dobrasse a dívida. Assinou. Não assinei, não senhor. O senhor é que não reparou nas variáveis do empréstimo. Variáveis? Que variáveis? Eu sei lá o que são variáveis? Eu pedi dinheiro emprestado, não pedi variáveis. Mas o contrato reza… Qual reza, qual carapuça. O senhor não leu o contrato? Ai eu é que havia de o ler? O interesse era seu, o senhor é que fez a dívida. Pois não li e não pago, só pago o que devo. Se o senhor pagar o que deve não há desentendimentos. Então diga-me quanto é, que eu pago. Já lhe disse. Ai disse? O senhor deve o que reza o contrato. E o senhor a dar-lhe, eu era lá capaz de assinar um contrato desses? Ai assinou. Não assinei, não senhor. Assinou, sim senhor. O senhor…

 

Ó Meco, diga-me lá, é ou não é um abuso o Quim Soutelo vir dizer-mo logo a mim, logo a mim, que sou quem sou e não ligo para isso? Olhe que ainda no outro dia cheguei ao Centro de Saúde e vi a minha vaga ocupada por um carro de uma senhora. Pois olhe que saí do meu carro como qualquer um, e em vez de chamar a senhora e mandá-la desocupar a minha vaga, não senhor, entrei no Centro como se nada fosse, chamei um funcionário e mandei-o dizer à senhora para tirar o carro da minha vaga. Ó Meco, olhe que não falei nada à senhora, não senhor, só mandei o funcionário dizer-lhe para tirar o carro da minha vaga. Você conhece-me, ó Meco, eu sou quem sou, mas não me custou nada mandar o funcionário em vez de lá ir eu, ó Meco, agora o Quim Soutelo, logo o Quim Soutelo a dizer-me que eu devia comprar um carro igual ao dele? Isto tem lá jeito, ó Meco? Quem é o Quim Soutelo para me dizer isto, ó Meco? Ó senhor doutor não vá mais longe, eu conheço bem a bisca do Quim Soutelo, então não conheço? Andou comigo na escola e nem sequer sapatos tinha, até no inverno andava de chulipas, o que lhe valeu foi ter casado com a filha do Pingarelho, o senhor doutor conheceu o Pingarelho, um gajo que ganhou o que ganhou sabe lá Deus como, e se não fosse a fortuna da mulher, o Quim Soutelo ainda hoje andava com uma mão atrás e outra à frente. Olhe, senhor doutor, eu não compro um carro igual ao do Quim Soutelo porque não quero. O meu mercedito vai fazer dois anos e ainda me serve muito bem, que graças a Deus dinheiro tenho eu que me chegue e que me sobre. A ambulância que dei o ano passado aos Bombeiros não me deixa mentir, mas o Quim Soutelo? Logo o Quim Soutelo? Isto havia de haver uma lei para isso, senhor doutor. Tem dinheiro, prove como o ganhou. Mas o governo quer lá saber, o governo quer é saber dos impostos que uma pessoa paga. Se não tem mão nessas greves que para aí andam, há de ter mão para o resto? É por estas e por outras que a nossa vila anda para aí à balda como anda. Mais carros do que pessoas, poluição que a leva o diabo. E não é só poluição, são os desastres nas estradas, são as horas de ponta na vila. Olhe, senhor doutor, eu gasto mais tempo para ir de carro ao café, de que se for a pé. E as multas? Ainda não vai há muito, só porque não tirei o tiquê do parquímetro, fui multado. E olhe que não ia ao café, não senhor, ia às Finanças. Quer dizer, eu vou pagar ao governo e o governo multa-me, isto pode lá ser? E os roubos? Então ainda hoje não roubaram um café? Ouvi dizer que até mataram o dono. Isto está pela hora da morte, senhor doutor, então admite-se lá que essa canalhada das caixeiritas e dos caixeiritos dos supermercados e das empregaditas de mesa dos cafés e das pastelarias se empregue e deixe os estudos só para poder comprar carros e mais carros, e ninguém ligue para isso? Onde é que isto vai parar, senhor doutor? Onde é que isto vai parar?

 

Eu passo-me dos carretos, e digo ao tipo, o senhor, o caralho, ouviu? Quem há de cá vir é o meu advogado para ver se eu assinei esse tal contrato, ouviu? E levantei-me, e saí da porra do banco. Saí, e fui direito ao Melo, ó Melo, aqueles caralhos do banco dizem que me vão tirar a casa, o café, o carro e o caralho, e diz-me ele, ó pá, vai ter com o senhor doutor Zambuja, o irmão do senhor doutor Amaral, que é um tipo às direitas, e vê-te isso, pá. Pois vou lá agora. Fui ter com o senhor doutor Zambuja, o senhor doutor Zambuja pede-me para lhe levar a papelada, eu levo-lha, e diz-me ele, passe-me por cá depois de amanhã, que veremos. E lá fomos, eu mais a Guida, a Guida a desfazer-se em lágrimas, ó senhor doutor, valha-nos pelo amor de Deus, e ele, ó minha senhora, isto de bancos… Podemos até meter uma ação, mas sempre lhe digo, isto de bancos não dão ponto sem nó. O que deviam ter feito, antes de assinarem estes papéis, era ver o que estavam a assinar. Mas eles pareciam pessoas tão sérias, senhor doutor, ofereceram-nos tantas facilidades que nós nem pensamos. Mas assinaram, e agora não há volta a dar-lhe. A lei é a lei, e o mais que se pode fazer, é tentar um acordo. Quer dizer, senhor doutor, que temos que pagar ou ficamos sem nada? É a lei, minha senhora. Mas nós não podemos pagar, senhor doutor. Olhe, minha senhora, eu até podia dizer que sim senhor, coisa e tal, mas no fim ia dar tudo ao mesmo. Então não há nada a fazer, senhor doutor? Quanto ao pagamento, não. Podemos tentar um acordo, pedir novos prazos, mas quanto à dívida, não. E fodi-me, fodi-me, e bem fodido, perdi tudo, casa, café, carro, até a mobília perdi. Maldita a hora em que dei ouvidos à Guida, ai Chico, esta casa é um cortelho, ai Chico, compra-me uma casa nova, ai Chico não aguento mais morar aqui. Torno para a Suíça de pá e picareta, e só posso dizer uma coisa. Se isto está assim a culpa é desses caralhos desses bancos que dão facilidades demais, e uma pessoa, nem que não queira, é levada na cantiga e fode-se. Se houvesse uma lei para isso, uma lei que não deixasse esses caralhos dar tantas facilidades e obrigar uma pessoa a comprar o que não quer, este Portugal não andava assim, ai não andava, não senhor, disso tenho a certeza. Mas é tudo uma comandita, um bando de gatunos que a sabe toda, e o governo quer lá saber, o governo quer é mamar o dele e o parolo que se foda, à puta que os pariu a todos. Fica-te Portugal para nunca mais, que nem morto hei de cá vir, Deus me mate agora se não for verdade esta jura. Se roubaram o café do Neca, que se foda, não fui eu que o roubei.

 

Digam-me lá os senhores do governo onde é que isto vai parar. Eu não falo por mim, já vivi o que tinha que viver, tenho um filho, nasceram-me três, duas raparigas e um rapaz, mas as raparigas não contam. Uma fez o que fez, e, para mim, morreu. A outra seguiu a vida que quis, casou, descasou, juntou, desjuntou, e voltou a juntar. Em bom português, duas putas que nunca honraram o nome da família. Filhos, tenho só um, o Mequito, e bom filho é, um rapaz às direitas, impecável, que nunca se meteu em borgas com mulheres, e lá está na universidade. Sai para o ano licenciado em matemáticas, e bem o merece. O único amigo que teve e tem é o Milito, o filho do senhor professor doutor Resbés Sampaio, que eu conheço muito bem e de quem sou amigo. O Milito sempre que cá fica, dormem ambos na mesma cama só para não dar trabalho à minha mulher de fazer outra cama. O Mequito bem merece o carro que lhe dei, e pago a pronto. Um carro novo, o melhor que havia no Porto, um Lexus RCF, disse-mo o gerente do estande, o mais bonito e falado descapotável de Vila Nova de Pardais, pois primeiro está o bom nome de uma família honrada que se preza. Que preza o nome que tem, e muito, graças a Deus.


Capítulo 5


O Amadeu entrou no Venha a Nós assustado. Assustadíssimo. Era a primeira vez que entrava numa casa de primas, e só deixou de reclamar quando a Zelinha Pé de Meia se sentou à nossa mesa, os seios a saltarem-lhe do decote, e olhou para ele daquela maneira dela. O Amadeu bebeu e bebeu, e às duas da madrugada, a Zelinha teve que o levar à casa de banho, o Amadeu já quase a vomitar em cima da toalha. Não apareceram mais naquela noite, e só encontrei o Amadeu dois meses depois no Venha a Nós.

– Eduardo, olha para mim. Há quantos anos tu me conheces, hã? Um, dois? Tu conheces-me há mais de dez anos, pá, e alguma vez me viste fumar, ou beber, dizer palavrões? Não. E eu pergunto-te: tu sabes qual foi o motivo que me fez mudar desta maneira?

Meteu a mão dentro do sutiã da Zelinha Pé de Meia, e olhou-me.

– Foram estas mamas, pá. Mandei a faculdade à puta que a pariu, ia-me formar para quê? Para ter que emigrar? Tirei a Zelinha do putedo, continuo a vender roupa nas feiras, e queres saber? Agora, eu sou feliz.

Eu sei que a nossa felicidade é sempre proporcional ao grau de intensidade das nossas convicções. Mas, a ver por mim, à puta que pariu as nossas convicções.

 

          Vila Nova de Pardais 5

 

Andam para aí a dizer que Vila Nova de Pardais tem escolas como nunca se viu, que anda tudo às mil maravilhas, tudo como deve ser, pois eu digo que é tudo mentira, tudo gafoeirada, então não tive que ir hoje à escola onde anda o meu Quim só porque professora quis-lhe tirar o telemóvel? Ó senhora professora, então como é? O rapaz é seu filho, ou quê, hã? E a coia toda lampeira, ó senhora, isto são lá modos de falar comigo? E eu, que não sou de me calar, cantei-lhas, ai cantei, cantei, veja lá como fala, que o rapaz não é seu filho, nem é bombo de festa de ninguém? O meu Quim é um rapaz impecável, ouviu?

 

Vila Nova de Pardais agora tem quatro efes, pá. Estás maluco ou quê, pá? Quatro efes, sim senhor. Não digas asneiras, pá. Olarilas, quatro efinhos. Três, pá. Sempre teve três. Já no tempo do Se Manel… E eu quero lá saber do tempo do Se Manel? Agora são quatro, e prontos. Ó Se Manel, diga lá, são três ou quatro, hã? São três, são, rapazes. Estás a ver? Ó Se Manel, cale-se mas é para aí que o seu tempo já passou. Ó rapazes, se vós o dizeis… São quatro, pá. Vila Nova de Pardais, franca, forte e fiel, e foda-se o teu Porto que só vai ficar um ponto acima do meu Benfica. Estás a dizer que o teu Benfica vai ganhar? Claro que vai ganhar. Aos dezanove minutinhos, um a zero. Sorte. Sorte? Um golaço do Rafa, essa é que é essa.

 

Peguei o rapaz e saí pela porta fora, que se não saísse, partia a cara àquela puta, ai partia, partia, ou ela pensa que lá por ser professora pode fazer o que quer aos filhos dos outros, hã? Eu mato-me a criar o meu rapaz, o meu homem está na Suíça há anos e anos, nem pelo agosto cá vem, e pelo Natal é uma semanita, quando calha, e se não calha, por lá fica, eu mato-me a criar o rapaz, ó mãe, eu quero isto, ó mãe eu quero aquilo, e eu dou. Ai dou, dou, que ele, não é por ser meu filho, mas é um rapaz impecável, e eu dou-lhe tudo o que ele quer, e tudo de marca, que se não for de marca ele vira a cara, e nem sequer em casa usa o que lhe dou. Se os filhos dos outros têm do bom e do melhor, porque é que o meu não há de ter, hã?

 

Ó rapazes, vós viestes para ver o jogo ou… O jogo que se foda. O jogo que se foda porque o meu Benfica está a ganhar. A ver vamos, que ainda falta muito jogo. Ó rapazes, deixai lá isso. Deixai lá isso, não, Se Manel, que o Benfica deste gajo já perdeu para o meu Porto por 3 a 1. Isso foi na Taça da Liga. Ó rapazes deixai lá isso, olhai mas é outro golo. De quem, Se Manel? Ó rapazes vós não estais a ver o jogo? Golo do Benfica. Estás a ver? Olha a repetição, golo do João Félix. Pura sorte. Pura sorte? O João Félix é um craque do futuro, pá. Ó Zeca, traz mais uma. Bem fresca, que se não estiver… Fresquinha, fresquinha, tiradinha da arca. Traz mais duas. Para mim não, antes quero um panachê. Um panachê? Essa agora? E a ti que te importa? A mim? A mim, tanto se me dá como se me deu. Ó rapazes… Então uma Super Bock e um panachê? E batatas Chips. Batatas Chips eu não tenho. Então, meia de moelas. Moelas eu não quero. Pode ser umas azeitoninhas temperadas? Traz lá as azeitonas. Para mim um queque. Então, uma Super Bock, um panachê, meia de azeitonas e um queque. Traz lá, traz lá, que eu quero ver o jogo. Tu queres ver o jogo, porque o teu Benfica está a ganhar. Está a ganhar e muito bem ganho, sim senhor.

 

Ou os filhos dos outros são melhores do que o meu, hã? Não é para me gabar, que não sou de gabadices, mas se tenho o que tenho é à custa de muito trabalho e de muita canseira, criei o meu filho não foi para vir agora uma coia, que é paga para o ensinar, querer mandar nele, não senhor, que o meu Quim é um rapaz educadíssimo, então não o vejo eu a trabalhar naquele computador até de madrugada, tirando as noites em que sai com os amigos? Não é por ser meu filho, mas tomara muitas que eu conheço ter um filho igual ao meu, e vem-me aquela coia e diz-me na cara, ó senhora, nas minhas aulas eu não permito má educação, ouviu? Ouviu, a puta que a há de parir, se ela é paga, que faça o que deve, ou ela pensa que está naquela escola só para ensinar o meu rapaz a ler e a escrever? Que mal fazia àquela coia o telemóvel do meu Quim, hã? Se calhar ele até estava a telefonar-me, que nunca vai seja para onde for sem me avisar, disso tenho a certeza. O meu Quim é um rapaz educado, um rapaz impecável, ou aquele coia pensa o quê, hã?

 

Ganho e muito bem gando, sim senhor. Ó rapazes, deixai lá isso, olhai mas é o jogo. Deixo nada, Se Manel. Olhai-me mas é outro golo. De quem, Se Manel? Ó rapazes, vós viestes aqui para quê, hã? Outro golo do Benfica. Estás a ver? Olha-me a repetição, golo do Seferovic, e que golaço. O Bruno Lage é que deu no vinte, que o meteu, que o Rui Vitória não o gramava. Zeca, essa porra vem ou não vem? Se não vem… Só um minuto, só um minuto que…. Ó rapazes, acabou o primeiro tempo. Eu vou fumar um cigarrito lá fora, Se Manel. Eu também vou. Ai vens chorar as mágoas? Ó Zeca, espera, não tragas já. Ó rapazes, vinde que o segundo tempo já começou. Ora cá estão as azeitoninhas, a cervejinha, o panachinho e o quequinho. Foda-se, Zeca, leva essa merda. Leva nada. Zeca, leva tudo e traz um porto. Trá-lo já, que agora eu quero ver o Porto deste gajo ganhar ao meu Benfica no dia 2. Ora cá está o portinho. Traz outro, Zeca. Traz outro, que o meu Benfica vai ganhar ao Porto deste marmelo no dia 2. Quanto queres tu pôr? O que tu quiseres, pá. Uma garrafa de whisky do melhor? Até dez, se preciso for.

 

O meu Quim vai fazer catorze anos para o São Marçal, mas sempre que sai de casa avisa-me, ó mãe, hoje eu vou sair com o Nelo, ouviste? Hoje eu vou sair com o Pinoia. Avisa-me sempre, que não é como os de muitas que eu conheço, sempre metidos com más companhias, drogas, putedo, o piorio. Se houve tiros e roubos no café do Neca, quero lá saber, não foi o meu Quim que os deu, nem eu, e se ele estava a falar ao telemóvel lá na aula, já muitos falaram antes dele, disso tenho a certeza, que se aquela coia tivesse olhos na cara, havia de ver o que se passava, estás a telefonar à tua mãe, ó Quim? Ou se calhar, ela também não fala ao telemóvel, e telefona para quem quer, hã? O meu filho não vai à escola para ser educado dessa maneira, não senhora, o meu Quim vai à escola para ser educado como deve ser, ou aquela coia pensa o quê, hã?

 

Dez, ou até mais, ou tu pensas que eu sou o quê, hã? Ora cá está a garrafinha de porto. Ó Zeca, tu tens cá whisky? Ora então não havia de ter? Do melhor? Do melhor, pois. Traz dez garrafas. Ó rapazes, deixai lá isso. Não deixo, Se Manel, não deixo, que aposta é aposta. Ó rapazes, o jogo é só no dia 2, e hoje… Ó Se Manel, cale-se mas é para aí. O jogo é dia 2, mas a aposta é hoje. Ó rapazes, se vós o dizeis… Dez garrafas sou capaz de não as ter, mas duas ou três… Ou dez ou nada, Zeca. Meu benfiquista dum raio, o que te salva… O que me salva é que o meu Benfica vai ganhar ao teu Porto no dia 2. O que te salva é o Zeca não ter cá as dez garrafas. Que as traga, que as traga, e veremos quem é que os tem no sítio. Ó rapazes, deixai lá isso, o jogo… Traz as dez garrafas, Zeca, e veremos quem é que os tem no sítio. Se assim é, vou à Florencinha e ao Mota, que eles tem-nas de certeza. Ó rapazes… O Neca é capaz de as não ter, que aquelas gajas roubaram tudo no café dele. Dizem que roubaram até a freguesia. Dai-me licença, que vou lá num pé e venho noutro. Ó Zeca, vais nada, a aposta é ser das tuas, pá. Se é das minhas, mando-as vir, e amanhã já cá as tenho. Para amanhã já não interessa, pá, a aposta é para hoje.

 

Merecia, sim senhora, que se a coia quer-se armar, que se arme aos filhos dela, que ao meu, alto lá, a puta é paga e bem paga para educar o meu Quim, bem educado, ou ela pensa o quê, hã? Eu só não me atirei a ela porque não sou da igualha dela, que merecer que eu lhe partisse a puta da lata, bem que a coia merecia, ai merecia, merecia.

 

A aposta é para hoje, pá. Mas eu vou… Nem mas nem meio mas, Zeca. A aposta é para hoje, e tu havias de as ter cá. Mas eu vou num pé… Ó Zeca, porra, tu tinhas é que ter as garrafas cá agora. Para amanhã não interessa. Amanhã é amanhã, não é hoje, pá. E o portinho? Fica a garrafinha? Leva-a. Mas tu…Ó Zeca, caralho, leva a puta da garrafa, que o que interessava era o whisky. Se é o whisky, não tem dúvida. Eu vou… Ó Zeca, caralho, tu és surdo ou quê, hã? Apostas são pagas na maré que são feitas, ou tu pensas que eu vou pagar amanhã uma aposta que fiz hoje, hã? Tu pensas que eu sou para aí algum parolo, ou quê, hã? Vai-te mas é foder.

 

Então não merecia? Por muito menos, a minha mãe muitas vezes me deixou o corpo todo negro, e eu refilava? É o refilas, que se refilasse, mais apanhava, ai apanhava, apanhava, que a minha mãe muito bem soube educar os filhos, então não soube? Soube, e soube como poucas, eu que o diga, que muito apanhei para ser o que sou hoje, ou aquela coia pensa que é mais do que ninguém, hã? Respeitinho, muito respeitinho, que respeito ainda cá se usa, quer mandar nos filhos dos outros, mande nos seus, ouviu, sua puta?


Capítulo 6


Três de março, domingo. Faço hoje trinta e cinco anos, e já tenho um motivo. Chamavam-lhe Milú. Eu chamei-lhe Maria Lúcia. Assistimos Transformers: Era da Extinção, por acaso, uma aventura de ficção científica que nada tinha a ver connosco. No dia seguinte mandei-lhe um ramo de rosas e cravos vermelhos, e chamei-lhe Bruxinha.

É quase manhã, e nós estamos aqui, deitados e calados, só a olhar a encosta da colina. Dentro de minutos o sol vai brilhar e dourar os telhados do hotel, e Bruxinha olha-me, pega as minhas mãos, e encosta-as ao rosto.

– Estás a pensar em quê?

– Em nada.

Ninguém pensa em nada. Mas pensar o que eu penso, é como pensar em nada. Eu só sei que vou morrer. A colina recorta a linha do horizonte, os fetos e as giestas ondulam, batidos pelo vento, no céu planam gaviões, e perdido na distância o hotel parece ainda adormecido. Bruxinha encolhe-se na jaqueta de ganga, e aponta o topo da colina.

– O que é aquilo, Eduardo?

– É o tronco de uma árvore.

– Parece-me uma pessoa deitada.

– É um tronco seco.

– Como é que tu sabes? Já cá tinhas vindo?

– Não.

Bruxinha olha-me, e balança a cabeça.

– Então foi por isso que nós viemos?

Acendi o cachimbo, e puxei uma baforada.

– Diz-me, Eduardo.

– Não.

– Então viemos cá porquê?

Puxei outra baforada.

– Nunca te disse, parece uma coisa à toa, mas eu penso muito nela, Bruxinha. Sabes, eu queria ser imortal. Em relação aos outros, eu sei que não seria mais humano, seria uma espécie de coisa, mas mesmo assim queria ser imortal. Ao menos, já que tive começo, não teria fim.

 

          Vila Nova de Pardais 6

 

Vila Nova de Pardais está fodida com a crise? Quem está fodido com a crise sou eu, então admite-se lá que por causa de meia dúzia de emigrantes que só vêm cá passar as férias, eu perca os meus direitos? Isto tem lá jeito? E são direitos, sim senhor, então as minhas férias não são direitos? São direitos, e direitos sagrados, sim senhor. Se eu sempre tirei as minhas férias em agosto, e este ano só porque dizem que há crise, sempre houve crise, eu tenho que as tirar em setembro? Isto pode lá ser? E logo em setembro, o melhorio das praias a vir-se embora e eu a ir como um parolo? Não senhor, de maneira nenhuma. Sou uma pessoa de boa catadura, os meus amigos estão aí para o dizer, mas fico fodido se me tiram os meus direitos, ou tirarem-me as minhas férias em agosto não é roubarem-me os meus direitos, hã? Uma pessoa trabalha o ano todo, faz o que tem que fazer, se preciso for faz até mais do que devia, e fica sem as suas férias? De maneira nenhuma. Não é para me gabar, que não preciso disso, mas para mim, se o serviço tem que ser feito, é feito e é bem feito, e além do mais nunca neguei um dia de trabalho, só dou parte de doente se caio na cama a sério, e agora tenho que tirar as minhas férias em setembro? De maneira nenhuma. As minhas férias são sagradas. Estou na merda deste emprego há mais de quinze anos e nunca o meu patrão teve razão de queixa. Nem um dia sequer meti atestado para ir à borga, como muitos que eu conheço estão sempre a fazer. Para mim, trabalho é trabalho, e vem-me agora o cabrão do meu patrão e diz-me, ó senhor Sousa, este ano o senhor Sousa só vai tirar as suas férias em setembro, ouviu? Em agosto, com esta crise, temos que aproveitar a vinda dos emigrantes.

 

Ouviste, pá? Para o ano não volto cá, Vila Nova de Pardais já não tem nem sequer uma iunguefrau midechem que se veja. Não tem o quê, pá? Ó Zé, mas tu és burro ou quê, pá? Não me digas que não sabes o que é uma iunguefrau midechem? Iunguefrau midechem é uma virgem, pá, uma rapariga que ainda tem os três, ou tu nem sequer sabes o que são os três, hã? Ó Tónio, poupa-me. Poupa-me, tu, e as tuas iunguefrau midechem. Ai poupo-te, poupo-te, mas quem as come sou eu, ou pensas o quê, hã? Que sou igual a ti? Olha que eu não ando neste mundo por ver andar os outros. E se calhar eu ando, hã? Cala-te mas é para aí, pá, tu lá sabes o que é o mundo. Ai não sei? Sabes? Então diz-me, alguma vez de cá saíste? Nunca de cá saí porque nunca quis sair, fica a saber. Nunca quiseste? Deixa-me rir. Nunca de cá saí porque nunca precisei. Ai nunca precisaste? Precisaste, precisaste, e muito precisaste, mas nunca os tiveste no sítio. Vai-te foder, pá. Vai-te foder tu, que quem nunca precisou de cá sair fui eu, e olha que estive na Suíça, estive na França, estive na Alemanha, estive no mundo todo, e nunca deixei de ser quem sou. Ora, ora. Ora, ora, o quê, hã? Ou tu pensas que eu sou igual a ti, que vieste para cá uma mão atrás e outra à frente, e ainda hoje não sabes onde as hás de pôr. Eu não sei onde as hei de pôr? Quem não sabe onde as há de pôr és tu. Eu? Eu sempre fui onde quis, e tu só tens é garganta. Eu só tenho garganta? Eu sempre fiz o que quis e nunca dei contas da minha vida a ninguém, ouviste? Ai não? Não, que o meu pai… O teu pai? Deixa-me rir, logo o teu pai? E o teu quem era, hã? Um carroceirito que nem dinheiro tinha para ferrar o burro que lhe puxava a carroça. E o teu? Se calhar o teu era algum lorde, hã? Não era lorde, mas era… Mas era o quê, hã? Um pedincha que passou a vida a cravar os outros. Alto lá, que o meu pai nunca precisou… Ai nunca precisou? Como se eu nunca o tivesse visto, ó meu senhor, não terá por acaso aí um cigarrito? E o teu, que se o burro que lhe puxava a carroça não soubesse o caminho, as mais das vezes nem a casa chegava, hã? Mas era à custa dele, não era à custa dos outros.

 

A crise está aí, e eu é que pago o patau? Não senhor, férias são férias, e são sagradas, e o cabrão a dar-lhe, ó senhor Sousa, em agosto, eu preciso que o senhor Sousa me tome conta do escritório, o senhor Sousa sabe como isto é melhor do que ninguém. Eu sei, então não sei? Sempre que o tipo sai, quem toma conta disto não sou eu? Se não fosse eu, já esta merda desta Imobiliária Pardalense tinha falido há que tempos, e ele sabe-o bem. Não é para me gabar, que não sou de gabarolices como muitos que andam para aí armados em doutores e se a casa cai, ai Jesus, ai valha-me nossa Senhora do Sameiro, e zumba, ala que se faz tarde, e quem fica que se governe. Não sou de me gabar, mas nunca fui de deixar alguém ao deus-dará. Se o tipo tem um empregado de confiança, esse empregado sou eu, e ele sabe-o bem, e tanto sabe que sempre me diz, ó senhor Sousa, deixe-me que lhe diga, eu nem saberia o que fazer da minha vida se o senhor Sousa não me tomasse conta disto. Ai não sabia, não senhor, que sempre que aparece alguém das Finanças quem dá a cara sou eu. O tipo pisga-se e só cá aparece no dia seguinte, e depois de tudo isto, depois de tudo que eu cá fiz, e faço, vem o cabrão e diz-me, ó senhor Sousa, este ano o senhor Sousa só vai tirar as suas férias em setembro. Em agosto eu não posso cá ficar porque tenho que ir a Paris, e com esta crise os negócios caíram muito. Está tudo falido, senhor Sousa, o senhor Sousa sabe que faliu a fábrica da Finteira, a da Touceira, a da Recolha, e o comércio está que o leva o diabo, já ninguém compra nada, e se este ano os emigrantes apertarem os cordões à bolsa, quem nos há de valer, senhor Sousa?

 

Deixa-te de lérias, pá, quem sai aos seus não degenera. Olha quem fala. Quem fala o quê? Quem fala dos outros de si fala, pá. Vê lá o que estás para aí a dizer, olha que eu… Tu o quê? Eu digo o que me apetece, e só não digo mais porque não quero, ouviste? Ai não dizes mais? Pois olha, eu se fosse a ti não me calava. E por acaso eu calo-me? Se nunca na vida me calei, havia lá de me calar agora? Não me atices, pá, não me atices, que eu… Tu o quê? Cão que ladra não morde, pá. Ai não morde? Olha que eu… Olha que tu o quê? Não me atices, que eu só não falo por que não quero. Tu não falas porque não queres? Poupa-me, pá, tu não falas nada. Ai não falo? Olha que eu sou muito capaz de… De quê? Diz-me lá do que tu és capaz, ou tu pensas que eu tenho medo? Quem não tem medo sou eu, e o que te vale é eu não ser igual a ti. Ai não és igual a mim? Quem te dera a ti seres igual a mim. Deixa-me rir, que eu nunca lambi o cu de ninguém, fica a saber. Ai lambeste, lambeste, lambeste, e de que maneira. Então não o lambeste ao padre Riço a ver se ele te metia nos bombeiros, hã? E tu, que vieste ninguém sabe donde, a arrotar mundos e fundos, e foste bater à porta dele, e ele mandou-te foder, hã? Eu? Eu pedir àquele gajo? Nem que fosse um tostão furado. Pediste, ai pediste, ele é que nunca te passou cartão. Nunca me passou cartão? Pois fica a saber que quem nunca passou cartão a ele fui eu, que nunca andei a lamber galhetas na sacristia. Ai não? E quem foi que te meteu na Câmara, hã? Quem me meteu na Câmara foi o concurso que eu fiz. Concurso que tu fizeste? E ele há lá concursos para quem não sabe ler nem escrever? E tu? Se até para escrever as cartas à Gina pedias ao filho do senhor professor Guimarães, hã? Tu estás maluco, ou quê, pá? Nunca a Gina…Nunca a Gina, porque nunca te passou cartão. E a ti? A mim? Pois fica a saber que nunca me pus nela porque nunca quis, ouviste? Na Gina, tu? Na Gina, pois, ou tu pensas que eu sou o quê, hã? Ó pá, cala-te mas é para aí que a Gina nunca foi para o teu bico. E por acaso o teu bico é melhor do que o meu? Ao menos nunca lambi o cu de ninguém.

 

Está certo, está tudo falido, os negócios andam pela hora da morte, ninguém compra nada, e se ninguém compra nada, ninguém vende nada, essa é que é essa, mas eu é que tenho que pagar o patau? Não senhor, quem deu o nó que o desate, férias são férias, e são sagradas. Tão sagradas, que até o Miró das Tunas, um gajo que deve o que tem e o que não tem, o que lhe vale é aquele tacho na Câmara senão andava para aí a pão de pedir, que roubar já ele rouba quanto pode nas propinas das licenças, se até o Miró, aqui há dias, veio ter comigo ao café, e só para me foder, diz-me, ó Sousa, este ano tu vais para onde, hã? Olha que eu vou para Tenerife, pá. Dizem que lá as praias são famosas. No ano passado fui para o Algarve, mas este ano vou para Tenerife, ai vou, vou. Dizem que a praia Los Gigantes é toda de areia preta, um sonho, pá. Quem mo disse foi o Zé Molarinho. Disse-me o gajo que um tipo que ele conheceu em Benidorm foi lá, e aquilo é uma coisa nunca vista, pá. E tu? Vais para onde, hã? E eu, que não passo cartão a tipos do calibre dele, um merda que diz que vai para Tenerife e vai é para as Caxinas, isto se for para as Caxinas, que eu aposto que o gajo nem sequer sabe que Caxinas é uma praiazita de Vila do Conde, que isto cá é assim. Cada um mente mais do que o outro, e se uma pessoa for acreditar no que se diz, está lixada. Se um gajo me diz, ó Sousa, este ano eu vou para o Algarve, eu já sei que o tipo, se for, irá para Esposende ou para Caminha. E se me disser que vai para Tenerife ou para as Canárias, eu já sei que o tipo nem para Esposende é capaz de ir.

 

Tu nunca lambeste o cu de ninguém? E quem é que andou para aí de rastos, ó senhor doutor Amaral, pelo amor de Deus, senhor doutor, pelas santas alminhas, veja lá o que o senhor doutor pode fazer? Cuidado, cuidado, que o senhor doutor Amaral não é para aqui chamado. Não é para aqui chamado porque não te convém, ou tu pensas que eu não sei que foi ele que te comprou a carta? E tu, que nem carta tens, e dizes que nunca trouxeste um carro da Suíça só para o não estragar cá, hã? Não trouxe, nem nunca vou trazer. Não vais trazer porque nunca o tiveste, ou tu pensas que eu não sei que até fome lá passas, hã? Fome, eu? Só se eu fosse igual ao teu irmão. E o que tem o meu irmão? O que tem o teu irmão? O teu irmão chega cá todo repimpado num carro que nem dele é, ora o caraças. E como é que tu sabes que o carro do meu irmão nem dele é, hã? Foi ele que to disse, por acaso? Não foi ele, mas foi o Fonso. O Fonso? Aquele gabarola que nunca me pagou o dinheiro que me pediu emprestado para a passagem? Pois fica a saber que o Fonso é que empresta os carros ao teu irmão. Ai é? E o teu irmão que limpa retretes nos hotéis de Paris e nem o cabelo cá corta, que nem dinheiro tem para o cortar, e diz que é dono deste mundo e do outro, hã? E a tua irmã, que diz que é dona dum hotel em Zurique, e toda a gente sabe que ganha a vida no putedo, hã? Alto lá, alto lá, que a minha irmã não é para aqui chamada. Quem tem telhados de vidro não atira pedras nos dos outros, ou tu pensas que eu não sei dos teus podres? E eu não sei dos teus? Tu sabes lá nada. Ai não sei? O que tu tens é inveja do que eu tenho.

 

Ao ouvir aquilo, ó Sousa, este ano tu vais para onde, hã? Eu vou para Tenerife, pá, eu viro-me para o gajo e digo-lhe, ó Miró, este ano ainda não sei, ainda não resolvi. O Zica Borges diz que vai ao Brasil, e quer que eu vá com ele, mas não sei se irei, o Brasil já está muito batido, e prontos, cortei a conversa, mas sempre a duvidar que o Zé Molarinho tivesse ido a Benidorm. O Zé tem lá dinheiro para ir a Benidorm, se eu sei que quem lhe paga o jornal é o irmão, o Américo das Ferragens, um gatunaço de marca maior? Conheço o Zé Molarinho, e tal e coisa, o patrão anuncia no jornal dele, mas nada de intimidades. Sei que emprenhou a sobrinha, quem mo disse foi o Regueifas, um pintorzeco de meia tijela que para aí anda, mas que se gaba de ser o maior pintor deste mundo e do outro, e o Zé Molarinho, há uns anitos, até me cravou uns tostõezitos. Veio ter comigo ao café, e disse-me, ó Sousa, este ano tu vais para onde, hã? Ó pá este ano estou a pensar ir às Canárias. Às Canárias? Não queres ir antes aos Açores, pá? Dizem que há lá uma ilha que tem umas festas do caraças em agosto. E eu, que ainda não conhecia a tal ilha, disse-lhe, ó Zé, se calhar até sou capaz, pá. E lá fomos, a tal ilha chamava-se Santa Maria, mas as festas, umas festicas de merda, muita música, muita música, mas só música, o mulherio todo do piorio, e na altura de voltarmos, não é que o tipo vira-se para mim, e diz-me, ó Sousa, eu estou meio desprevenido, paga tu a minha conta que eu pago-te quando chegarmos. E pagou? Pagou merda nenhuma, e se fosse só a conta, ainda vá lá, o dinheiro foi feito para ser gasto, o pior é que o cabrão chega-me cá e só para se dar ares de grande jornalista, logo ele, uma verdadeira alforreca de sofá, só publica no jornal as fotografias onde ele aparecia. Se fomos ambos e se ambos tiramos fotografias, e algumas onde até aparecíamos os dois juntos, por que é que o gajo publica só as dele, hã? Não que eu me importasse, que não sou dessas pequenices, paguei, paguei, está pago, que se foda, mas se não há dinheiro, não há vícios. Por isso é que eu digo, se cada um olhasse mais para o rabo que tem, melhor seria, mas, não senhor, cada um julga-se sempre no direito de foder os outros.

 

Eu, inveja do que tu tens? Nem que me fodesse. Inveja sim. Pois fica a saber que antes queria passar fome a ter o que tu tens. A ter o que eu tenho? O que eu tenho é o que tu nunca tiveste nem vais ter, fica a saber. Isso dizes tu. Isso digo eu, e não sou só eu que o digo. E quem é que o diz, hã? Diz lá, quem é que o diz? Pergunta à Micas Bota que ela diz-to. A Micas Bota? E eu quero lá saber da Micas Bota? Não queres saber agora, depois que ela vendeu a quinta e tu lhe comeste os cobres, uma rapariga que podia fazer um bom casamento, e… E se calhar o bom casamento eras tu, hã? Como se eu fosse de andar às sobras dos outros. E não andas? Ai andas, andas. Ó pá, vê lá o que estás para aí a dizer, eu sou lá de andar às sobras? Ai és, és, que o diga o Meno Mendes. E o que é que pode dizer o Meno Mendes que não é para aqui chamado, hã? O Meno Mendes não é para aqui chamado porque não te interessa que seja para aqui chamado. E se eu me interessasse que o Meno Mendes fosse para aqui chamado? Diz lá, e se eu me interessasse que o Meno Mendes fosse para aqui chamado, hã? Se tu te interessasses que o Meno Mendes fosse para aqui chamado, pergunta à tua mulher que ela diz-to.

 

Então o meu patrão, lá porque é meu patrão, não se julga no direito de me foder? Como se eu não soubesse que o gajo pediu dinheiro ao banco para ir com a amante a Paris, e logo a Paris, que nem praias tem. O tipo foi com a Zuzu, a filha mais nova do Américo das Ferragens, que a mais velha, a Fininha, eu conheci-a antes do Zé Molarinho a emprenhar, o cabrão do pai nem sequer a deixa abrir a janela do quarto, mas a puta da mais nova, a Zuzu, se tivesse vergonha na puta da lata nem sequer para mim olhava, pois só não me pus nela porque não quis. Uma vez, estava eu mais o Zica Borges no Casino da Póvoa, e não é que a gaja vem ter comigo e diz-me, olá, então também por cá? E vira-me as costas como se eu fosse um parolo, um labrego para aí à toa. Mas eu não me fiquei, ai não fiquei, e cantei-lhas, ó D. Zuzu, isto aqui é seu, ou quê, hã? Não é para me gabar, mas nunca fui de me ficar, se não me fiquei na altura que vi o cabrão do pai dela sair dum hotel em Braga de braço dado com uma puta brasileira que há cá na vila, e cumprimentei a gaja e não o cumprimentei e ele, ia-me calar diante da puta da filha? É o calas, ó menina, isto aqui é seu, ou quê, hã? E a gaja respondeu? Nadinha nem sequer, meteu o rabinho entre as pernas e ala que se faz tarde. E vem-me agora o cabrão do meu patrão, ó senhor Sousa, este ano o senhor Sousa só vai tirar as suas férias em setembro, que eu tenho que ir a Paris. Um corno que gasta com a gaja o que tem e o que não tem, e ela pina por aí com meio mundo.

 

Não metas a minha mulher ao barulho, pá, não metas a minha mulher ao barulho que senão… Senão, o quê, hã? Vai-te mas é foder, pá. Ai vou, vou, mas só depois de ti. Vai mas é para a puta que te pariu. Agora é que tu disseste tudo, pá. A mim sempre me pareceu que o meu pai se pôs na tua mãe. E a tua, que até o padre Ilídio se pôs nela na sacristia, hã? Sabes o que tu és, pá? És um corno. E tu? Se eu sou um corno, tu és o quê, hã? Tu querias era ter o que eu tenho. O que tu tens? E para que é que eu havia de querer o que tu tens, hã? O que eu tenho nunca tu hás de ter, fica a saber. Só a casa que eu tenho… A casa que tu tens? Poupa-me, pá, poupa-me e pergunta à tua mulher de que maneira foi que a compraste. E a tua que até o Quim Soutelo lhe foi ao cu, hã? Olha que eu fodo-te, pá. Tu? Logo tu, que nem sequer foste capaz de partir os cornos àquelas gajas no café do Neca? E tu? Por acaso tu correste atrás delas? Eu? Eu estava na casa de banho, senão tu ias ver. Ai ia, ia, ou pensas que não te vi rabinho entre as pernas, sentadinho à tua mesa? E tu que só não te meteste debaixo da tua porque não cabias lá, hã? Vai-te foder, pá. Vai-te foder mas é tu. Olha que eu fodo-te, pá. Cala-te mas é para aí, pá. Cala-te tu. Cala-te tu primeiro, não foste tu que começaste? Cala-te tu, ora o caralho. Calo, o caralho, e se tu és homem, salta para cá meu cagarola dum raio. Cagarola dum raio és tu. Não quero mais cantigas. Ai não queres? Não queres porque nem sequer sabes falar alemão como eu falo, meu maine grosa zoen aina zindere do caralho.

 

Mas se fosse só o dinheiro, vá lá, é dinheiro dele, não é meu, o que me fode é o tipo sair no dia primeiro de agosto, que é uma quinta, e dizer que volta no dia trinta e um, que é um sábado. Mas eu sei que só vou poder contar com ele lá para meados de setembro, e mesmo assim a queixar-se do stress do fim das férias. Ó senhor Sousa, eu nem férias tirei só a pensar na volta. Um stress que Deus me livre. Stress, stress, stress tenho eu, que devia tirar as minhas férias em agosto e não as vou tirar só para o cabrão tirar as dele. Isto tem lá jeito? Isto pode lá ser? Por que é que o tipo não fecha o escritório e todos vão de férias, como faz a maioria, hã? O Zé Molarinho não fecha o jornal dele em agosto? O Zica Borges não fecha o estande? Crise, crise, o caralho, agosto é mês de férias, não é mês de crise. Crise, crise tenho eu, que me fodo a trabalhar, isso é que é crise. Mas aqui em Portugal é assim. Primeiro eu, depois eu, e sempre eu, e os outros que se fodam. Se aquelas gajas assaltaram o café do Neca, que se foda, o dinheiro não era meu.


Capítulo 7


Bruxinha deita a cabeça no meu colo, e eu olho o tronco caído no topo da colina. Um gavião mergulha encosta abaixo, perde-se no arvoredo, e Bruxinha aponta o telhado do hotel.

– Olha, Eduardo, o sol já está quase a bater no telhado do hotel.

Se eu fosse imortal, a minha única finalidade era existir. Só existir, sem precisar viver a justificar-me. Ou a pedir sempre desculpas, ou a mostrar até as cuecas no Facebook. Um boi mugiu ao longe, e o som subiu pela encosta. Bruxinha coloca minha mão sobre os seios, e cruza as dela por cima.

– Eduardo.

– Hã?

– O que é que tu mais querias ter?

– Onde?

– Aqui. Neste momento.

Abanei a cabeça, sem responder. Bruxinha soergue-se, cruza as mãos no meu peito, e apoia o queixo em cima delas. Olhei o tronco da árvore caído no topo da colina, e fechei os olhos. Tínhamos ido para o Hotel Geresiano como poderíamos ter ido para Braga, Montalegre, ou para lado nenhum. Qualquer sítio seria bom se ambos lá fôssemos, e Bruxinha entendesse o que eu tinha que fazer. Bruxinha pressiona as mãos sobre o meu peito.

– Hã, Eduardo? Diz-me.

Abri os olhos.

– O quê que eu mais quero agora?

– É.

– Esquecimento.

– Só?

– Tranquilidade.

Bruxinha levanta-se, pega um galho do chão, e quebra-o num gesto brusco.

– Só esquecimento e tranquilidade? É isso, Eduardo?

– É.

 

          Vila Nova de Pardais 7

 

O povo fala, fala, mas não sabe o que diz. Dizem que Vila Nova de Pardais é o que é porque tem que ser, que isto é assim e o mundo não tem volta e coisa e tal, mas a verdade, a verdade verdadeira ninguém a diz. Vila Nova de Pardais é o que é porque as pessoas têm três caras. Três caras, sim senhor, uma para mostrar aos amigos no café, outra para falar a quem é mais, e a outra para usar dentro de casa, que essa corja é assim. No café mata e esfola e faz e acontece, e não mata nem esfola nem faz nem acontece, à frente de quem é mais mete o rabo entre as pernas e é sim senhor, sim senhor, e lambe até o cu ao senhor doutor se preciso for, e em casa bate na mulher e no cão, e nos filhos se os tiver, e toma antidepressivos, que cá em Portugal é assim. Se uma pessoa diz a verdade é invejoso, se uma pessoa vive a sua vida e não se mete na vida de ninguém, é fingido, se uma pessoa vai à missa porque tem fé, quer comprar o céu, se uma pessoa ganha dinheiro, é gatuno, se uma pessoa perde dinheiro, Deus sabe o que faz, ó corja dos diabos, que só a tiro endireita, isto, se endireitar. Aqui há dias encontrei o Salustiano Mangueira à saída da missa, vinha ele mais o Américo das Ferragens e o Couceiro, e diz-me ele, então, senhor Januário, e a vida? A vida, senhor doutor, a vida vai como Deus manda. E o senhor doutor lá pela Câmara? Faz-se o que se pode, senhor Januário, faz-se o que se pode. Temo-lo de novo nas próximas eleições, senhor doutor? Olhe que nas outras votei no senhor doutor. E eu agradeço-lhe a confiança, senhor Januário, mas vamos a ver, vamos a ver, com a política só perdi dinheiro e saúde. Nesta terra, senhor Januário, por mais que uma pessoa queira fazer, é-se preso por ter cão, e é-se preso por não ter.

 

Sem essa, viu? Cansa minha beleza não. Vila Nova de Pardais tem é só bororó, molambo pra dedéu. Mulher sem saber como se produzir, tudo mal ajambrado, esculachado, pior do que favela. Um miserê disgramado, sem beleza e sem touchê. Onde que aqui se vê um corpinho bem arrumado, bem produzido, desfilando na rua que nem misse em passarela, hem? E olha que eu comecei minha vida por cima da carne seca não. Saí de Sampa, conhece Sampa não, oxente? Sampa, São Paulo, a maior cidade do Brasil. Nasci em Juazeiro, terra de meu padim pade Ciço, mas comecei a vida foi em Sampa. Aí, Marineide, conheci Marineide no show do Le Galope, e ela me levou pra Milão. Tá hoje casada com um italianão cheio da grana, um bofe que nem te conto. Mas engoli Milão não. Em Sampa se dizia que Milão tinha mais traveca brasileiro do que barata em barraco de alagado. Era só pintar no pedaço e a grana corria mais solta do que merda no rio Tietê. Tudo bafo, mentira pura. Vandré que tava certo. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Aí, peguei meu boné, eu tava lá pra comer tampado não, sabe como? E me mandei correndo daquela doideira. Nunca fui de dar murro em ponta de faca não. A vida, se a gente não faz por onde, não é ela que vai fazer pela gente não. Aí pintamos no Porto. O turista portuga que peguei em Milão era de lá, e fim de papo. Nunca mais vi Marineide, e foi aquela maravilha. Porto, ô terra boa, minha nossa. Rato branco enrustidão a dar por um pau, baranga de bigode e de gravata pagando os tubos pra dar um banho de gato aqui na misse, ô gente mais mal-amada e malcomida, vixe. Todo mundo morrendo de vergonha de sair do armário, mas tudo doidão pra botar o cu na roda. Mas é como sempre falava Nenê. Nenê foi o bambão que me descabaçou ainda eu tava em Juazeiro. Neném, ele me chamava de Neném, só em Sampa é que botei meu nome de Brenda, em Juazeiro eu me chamava Deusdimar, Neném, a gente só pode escolher o nome que vai ter. O nome que tem, esse, quem escolhe são os pais ou os padrinhos, e nesta vida, se a gente não mete bronca e cospe em cima, apanha que nem boi tatu, liga pros outros não, Neném.

 

É-se preso por ter cão, e preso por não ter? Mas que grande Coninhas me saiu este Mangueira. Rouba quanto quer, até a fonte luminosa do jardim mandou apagar só para roubar mais uns cobres, e vem-me agora papar as hóstias. Para me adoçar a boca dá-me a Medalha de Mérito Económico e Social, como se eu precisasse de medalhas. Eu preciso é que a Câmara seja honesta, isso é o que eu preciso, agora, medalhas? Para que é que eu quero uma medalha? Só se for para a dependurar no pijama, e mesmo assim, só na gaveta do guarda-fatos. E para acabar a festa, ainda é unha e carne desse gabiru desse Américo das Ferragens, outro santarrão papa-hóstias, opa e pálio na procissão do São Marçal, ambulâncias de graça para os bombeiros e coisa e tal, e prende-me uma filha em casa como se prende uma corrécia na cadeia só porque emprenhou do tio, o Molarinho do jornal. O tipo paga o jornal ao irmão porquê, hã? Para o irmão calar a boca, ou o tipo pensa o quê, hã? Que todos pensam que o irmão vive do jornal? É o vives. A outra filha, a Zuzu, é um putoide, o panasca do filho ganha carros e mais carros, e ele anda com a puta brasileira por esses hotéis de Braga, a pensar que ninguém sabe. Um judas escrito e escarrado que eu conheço de ginjeira, filho do falecido Chico da Micas Mota, um pobretanas que nem dinheiro tinha para comprar um rebuçado, e um dia aparece-me cá na vila montado num carrão. Foi isto na altura que o senhor padre Ilídio empandeirou a guarda para Braga por lhe multar o carro em frente à Câmara. E fez ele muito bem, então admite-se lá que um cabo da guarda mande mais do que o presidente da Câmara? O Chico da Micas Mota, o Chico da Micas Mota aparece-me montado naquele carrão, dizia o povo que dado pelo senhor padre Ilídio, de quem vinha a ser filho, mas o povo diz o que diz, o senhor padre Ilídio sempre foi uma pessoa de respeito. Agora o Chico, um gatunaço e um contrabandista de marca maior, o nosso pão a engordar os porcos na Espanha e cá uma fome negra, um nico de broa e meia sardinha assada uma vez ao dia, isto quando havia dinheiro para comprar as sardinhas. Mas é bem certo, quem aqui as faz, aqui as paga, o cabrão do gatunaço bem as pagou, entrevado numa cama anos e anos, o dinheiro ganho no contrabando perdido no jogo e no putedo. Ó família mais filha da puta, o pai, um gatuno, os filhos, o mais velho, o Américo, outro gatuno, o mais novo, o Zé, um chico-esperto que vive à custa do irmão, e a mãe, uma beata fingida que nem sequer um tostão de esmola dava aos pobres. Com estes dois que a terra há de comer, muitas vezes a vi eu a roubar ovos aos caseiros, e a vendê-los na feira. Mas pagou-as, ai pagou, pagou, morreu excomungada na igreja, aos arrancos como se tivesse o diabo no corpo. Tanto isso é verdade que o Firmino Tumba disse-me que o corpo ainda estava inteiro no caixão, que viu-o ele ao limpar o jazigo para a festa do São Marçal, e aparece-me agora o tipo, um gatunaço que roubou o irmão nas partilhas e dá-me uma ambulância aos bombeiros e manda o padre Riço benzer a campa da mãe, outro da mesma laia, e queima-me dúzias e dúzias de foguetes na entrega da carripana aos bombeiros, isto pode lá ser?

 

Liga pros outros não, Neném. Esses branquela morre é de inveja quando a gente leva a vida na boa e tira a barriga do miserê, viu? Se não fosse Nenê eu tava agora onde, hem? Tava era pescando peixe em rio seco. Agora, ó, faço o que eu quero, tenho minhas joias, minhas roupas, meus perfumes, tô bem, e o mundo que se dane. Fiquei no Porto dois anos e nunca tive saudade de Milão. Só aquele sufoco de ver Marineide dona daquele castelão sem mais tamanho, e eu sem nada, nem morta Genoveva. Este corpinho que Deus me deu jogado às traças, essa não. Sai dessa, Brenda. Este corpinho que Deus te deu vale ouro, minha nega. Vou negar não, fiz operações até. Uma pra aumentar o peito. Se brasileiro gosta de bunda, italiano e português gostam é de peitões. As outras foram pra encher onde faltava e amaciar a pele até ficar como pele de neném. Só não mexi mesmo foi no pinto. Sem essa. Se Deus me deu esta estrovenga, um pauzão deste tamanho, sabia o que fazia. Sabia, e como. Foi com ele que paguei a recauchutagem desta maravilha que sou agora. Fiz as operações em Milão, e cheguei no Porto recauchutada, e muito bem recauchutada, meu padim pade Ciço fez até milagre. Só que, depois de um ano de Porto, pintou um pé de chinelo em meu terreiro, eu me enrabicho pelo pinguço, e deu no que deu. Entrei foi em uma furada sem mais tamanho. De bom, bom mesmo, o pinguço só tinha era um manjubão bem pé de mesa, isso ele tinha. Não fosse aquela paixão disgramada, tinha largado meu turista portuga não. Tinha não, nem morta, Genoveva. Mas o amor é lindo e quando bate, bate mesmo, sabe como? Aí, não deu outra. Tive que fugir da raia. Mas tive que fugir da raia, assim. Um bafo de bode daqui de Vila Nova de Pardais, um baitolão que todo mundo conhece, mas que eu não vou dizer o nome, sou boba não, sou de esculacho não, tenho touchê, e fim. Tava com vinte e dois anos, a melhor idade que uma mulher pode ter, vou lá dar uma de bobeira? Eu não. Larguei do Porto, vim práqui, e viva eu. Entrei em Portugal com visto de residência e tudo mais, mas era um sufoco disgramado ver os outros saçaricar nas festas e nas praias e eu ficar no meu canto com aquele pé de cana, sempre me metendo um pé na bunda. Me valeu foi aquele bafo de bode pintar no meu pedaço, e babau, o pinguço se danou. Peguei meus badulaques, vim práqui e me dei bem. Tenho minha vida, tenho minha conta no banco, tenho tudo, quê que mais posso querer?

 

E se fosse só a carripana dos bombeiros e os foguetes, vá lá, mas o carro que o corrécio deu ao padre Riço só para ele benzer a campa da excomungada da mãe, hã? Se bem que com dinheiro roubado até eu. Aquilo das ferragens? Aquilo das ferragens só serve é para encobrir as drogas e os carros roubados. Isto tem lá jeito? Mas a culpa é de quem sabe e cala, pois quem cala consente. Esse tipo do jornal, o Molarinho, esse tipo quer lá saber? Se o irmão é quem lhe paga tudo, ele ia lá denunciá-lo? Quem viu o Molarinho como eu vi, que nem sequer sapatos o tipo tinha, e hoje vive à grande e à francesa, dono de jornal. Ó terra de merda, sem respeito, sem nada, então ainda há pouco não assaltaram o café do Neca no centro da vila? Disse-me o Florêncio da Farmácia que até o senhor doutor Santos Silva deu por paus e por pedras. Se bem que o senhor doutor Santos Silva não é pessoa de se meter em bandolas, sabe-a toda, ou não fosse filho do falecido arcipreste de Cujão. Pois assaltam o café do Neca, e a guarda? Onde andava a guarda que nem sequer apareceu? O Molarinho vai denunciar a bandalheira no jornal? Vai, o tanas, é o que vai. Se não fosse a minha mulher, já há muito que eu tinha de cá saído. Vendia a loja, e ala que se faz tarde. Mas a minha mulher tem a mãe no asilo, e cá vou ficando. E quem me dera a mim ter a vida que a velhota tem sem fazer nada, sem lhe faltar nada, e nós a comer o pão que o diabo amassou. Se bem que o diabo só amassa o pão a quem amassa, perguntem-me ao padre Riço se o diabo lhe amassa o pão? Um corrécio que foi corrido a pontapé de Vilarinho do Ó por ter emprenhado uma rapariguita de treze anos, e anda para aí todo lampeiro de carro novo, não tarda muito vai a arcipreste, que ele há grandes amigalhaços por trás. Quem havia de dizer que esta terra chegava a isto, hã? Antigamente havia respeito.

 

Juazeiro? Juazeiro, Deus que me livre, meu padim pade Cícero me perdoe, mas de Juazeiro quero é distância. Aqui também tô bem, se soubesse que Vila Nova de Pardais era assim, nunca, mas nunquinha da silva tinha me mandado pra Milão, ou pro Porto. Tinha era vindo direto práqui. Ô terra boa, sem violência, sem nada. Ô terra mais nem sim, nem não, muito pelo contrário. Todo mundo fazendo de conta, todo mundo se arrumando na boa da melhor, e vamonessa. Só um fuzuêzinho aqui, outro ali, mas só pra constar, todo mundo sabendo que dá é em nada. Político preso por roubar? Nada. Hoje deu um assaltinho à toa num boteco aí. Eu ia passando e até ri. Todo mundo ouriçado no agito, mas só pra ter do que falar. Todo mundo berrando que nem curumim descabaçado, mas todo mundo sabendo que ninguém dá bola pra ninguém. Mete é o pau, e deixa como tá pra ver como é que fica. Mas quer saber? É por isso que eu me amarro nesta terra, ô terra santa. É pra me gabar não, mas todo mundo baba quando eu passo, toda produzida, me rebolando como manda o figurino, e sem dar bola pra ninguém, e todo mundo boca de siri. Caladinho, caladinho. E sabe porquê? Porque se eu botasse minha boca no trombone ia ser um fuzuê muito pra lá de disgramado. Um Deus nos acuda do escambau.

 

Havia respeito, e muito. Ainda me lembro do estupor do Quilino Barba ser preso por dar uma tossidela no meio do sermão do senhor padre Ilídio. Fosse ele fazer isso hoje na missa do padre Riço. Ninguém ligava, ninguém queria saber. Se eu fosse dos bombeiros não aceitava aquela carripana nem à mão de Deus Padre, tinha até vergonha, mas o mundo é assim, e não tem volta, não tem mesmo, eu que o diga. No outro dia não tive que ir a tribunal levado pelas corrécias das minhas irmãs só por ter erguido um murito numa leirica e tapar um carreirito que elas nunca usavam? Mas aquelas corrécias entram-me com uma ação no tribunal, e se eu não me precato ficava até sem a leirica, o que me valeu foi o senhor doutor Amaral, outro que a sabe toda. Meteu o Coninhas a presidente da Câmara, tem-no lá o tempo que quer e vai sair contra ele. Vai sair contra ele, o tanas, é o que vai. Nesta terra ninguém sai contra ninguém, calam é a boca ao povo, tudo farinha do mesmo saco. Mas o senhor doutor Amaral valeu-me, isso valeu, e as corrécias ainda tiveram que pagar as custas. Não que eu queira mal a ninguém, que comigo é de casa para o trabalho e do trabalho para casa, que só a mantença da loja dá-me uma trabalheira dos diabos, e ganho nenhum. Se fosse uma loja de telemóveis ou computadores, essas modernices que todos compram sem olhar a preço, vá lá, uma pessoa ganha quanto quer. Mas loja de roupas, e roupas finas? Estes parolos vão é comprá-las a Guimarães, ou a Braga. Dizem que dão mais categoria.

 

Ia ser um Deus nos acuda do escambau mesmo. Já pensou uma mulher que nem eu, passando na rua e todo mundo se virando pra olhar meu rebolado, de repente virar um homão daqueles, de manjuba arretada? Ia ou não ia virar esta terra de ponta-cabeça, hem? Digaí. Já pensou os bofes casados dizer pras mulheres por quê que gostam mais de minha manjuba do que das xotas delas, hem? Já pensou eu falar prum desses bofes de gravata e paletó, ou pruma dessas beatas fingidas, sabe que perdi minha agenda? Já pensou o tremorão de terra que ia dar? Mas sou boba não. Mamãe aqui sabe se cuidar. Minha agenda vale ouro. Nomes, telefones, lugares, horas, quanto paga cada um, tudo. Tudinho. Sei dar nó até em pingo de água, vai por mim. Se um dia algum desses bofe metido a besta se assanhar pro meu lado, já viu. Ia dar o maior tremelique da paróquia. Ia mesmo. Se eu botasse a boca no trombone, vixe. Não ia ficar pedra sobre pedra nesta terra. Minha agenda tá segura no segredo de um cofre de banco, sou besta não. Se algum troço me acontecer, meu advogado taí pra fazer tremer Vila Nova de Pardais. Tem jornal aí pagando os tubos pra fazer manchete da escandaleira que ia dar. Mas vai acontecer nada não, aqui tô bem, meu pé de meia já tá, ó, e se Deus quiser, mais seis meses, máximo um ano, volto pra Sampa viver minha vida de rainha do pedaço. Mas que cara é essa, Meco, meu Mequinho, meu chamego? Fica assim não, tu é meu xodó, tu sabe, sabe não?

 

Categoria? Categoria é se houvesse um governo como havia dantes, cada um no seu lugar, e ninguém se queixava. Hoje é greves a por todo o lado, ele são os professores, ele são os enfermeiros, ele são os funcionários públicos, ele é tudo. Dantes, tudo limpinho, sem greves, tudo nas horas certas como deve ser. Agora? Agora, é o que se vê, tudo à balda, sem rei nem roque, uma desgraça como nunca se viu antes. Mas que se há de fazer se ninguém quer saber, ninguém faz nada? Uma pessoa mata-se a trabalhar para pagar os impostos, é de casa para o trabalho e do trabalho para casa, não se mete na vida de ninguém, e é governada por ladrões? Isto pode lá ser?


Capítulo 8


O sol já doura o telhado do hotel, e os fetos e as giestas parecem ficar mais verdes. Bruxinha deita-se de costas, e cruza as mãos debaixo da nuca.

– Tu gostas de mim?

– Tu sabes que eu gosto.

– Então diz-me.

– Eu gosto de ti.

Bruxinha volta-se para mim.

– Eu dou-te tranquilidade?

Senta-se, e olha-me fixamente.

– Diz-me, Eduardo, eu dou-te tranquilidade?

Por que é que eu sei que tudo foi criado em função ou pretexto de, e eu sou só efeito? A nossa vida é mesmo uma merda, puta que pariu.

– Bruxinha, tu sabes por que é que tudo isto, toda esta matéria inanimada que está aqui à nossa volta não está na dimensão eternidade? Porque, mesmo sendo eterna, ela tem volume.

– Nós também temos volume, Eduardo.

– Mas há uma diferença, Bruxinha. Toda esta matéria inanimada só existe,  e nós existimos e somos. Nós pensamos, e sabemos que pensamos. Por isso, não somos eternos.

– Eu não quero ser eterna, Eduardo. Para mim não faz sentido. Tu já pensaste nós sermos eternos, nunca morrermos? O que ia ser do mundo se nós…

Passo a mão no rosto dela, devagar. Não é só uma carícia. Muito mais do que uma carícia, é um gesto de entendimento.

– Bruxinha, tu já pensaste que na Natureza a perfeição é sempre inversamente proporcional ao absoluto? Que quanto mais nós duvidamos, quanto mais nós perguntamos, quanto mais nós questionamos, mais o nosso conhecimento nos torna relativos, e mais o Absoluto se distancia?

Bruxinha olha-me.

– Como é que tu sabes disso, Eduardo?

– Pensa. Se assim não fosse, nós seríamos perfeitos, absolutos, e não somos nem perfeitos, nem absolutos.

Um raio de sol começa a avançar devagar pelo meu corpo, e um gaio pousa num arbusto, à nossa frente. Olha-nos com atenção, e abre as asas e o bico, espreguiçando-se.

– Estás a ver aquele gaio? Ele só sabe que tem que fazer ninho, pôr e chocar ovos, arranjar comida, e criar filhos. Aquele gaio não sabe que na Natureza a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto, Bruxinha.

– E ele poderia saber isso, Eduardo?

– Não. Por isso ele é mais feliz do que nós.

 

          Vila Nova de Pardais 8

 

Em Vila Nova de Pardais é cada susto que uma pessoa apanha. Ai tu apanhaste um susto, pá? Ó Lito, olha que ainda agora, vinha eu pelo jardim e um tipo dá-me empurrão, que se não fosse eu segurar-me, não tinha hipótese. Ó João, e isso é lá susto, pá? Susto apanhei eu ao levantar-me da cama. O Józito, o meu mais novito, tu conhece-lo, pega-me a pistola, sobe-me à cama, e acordo eu com ele a apontar-me a pistola à cara e a rir-se, tau, tau. Deu-te dois tiros, ó Lito? Deu, pois, tau. tau. Eu salto da cama e tiro-lhe a pistola das mãos… E tu tens licença, ó Lito? Olha que a guarda… Qual licença qual carapuça, pá. Eu sou lá homem de licenças? Mas se te apanham… E eu sou lá homem de me deixar apanhar, ó João? Tu conheces-me, pá. E os tiros, ó Lito? Acertaram-te? Olha que…É o acertas, que eu pulei a tempo, uma bala a cravar-se na cabeceira da cama, e a outra no teto do quarto. Uma dessas nem pelo diabo, ó Lito. É por essas e por outras que eu nunca quis armas. Tu nunca as quiseste porque nunca te viste em apertos. Ó Lito, olha que já me vi em apertos, e que apertos. Uma vez, ia eu namorar a minha Custódia e apareceu-me o Zé Pisco… O Zé Pisco, pá? Aquele caganito que nem um gato pega pelo rabo? Ó João, deixa-me rir, isso é lá aperto, pá? Aperto passei eu na Feira da Ladra, em Vieira, vai para uns três ou quatro anos, no Café do Ruço, tu conheces o Café do Ruço, já lá foste comigo, pá. Pois entram-me uns seis ou sete gajos, uns tipos do piorio, chegam-se ao balcão, e um deles atira-me um encontrão de alto lá com ele. Assim sem mais nem para quê, ó Lito? Assim como te digo, sem mais nem para quê, pá. Mas eu não me fiquei, que não sou de me ficar, e digo ao gajo, então como é? O tipo dá-me um passo atrás, e puxa da pistola…. Ai o tipo puxou da pistola, ó Lito? Puxou, então não havia de puxar? Eu tinha deixado a minha no carro, e fico a ver o que o gajo vai fazer. O tipo chega-se a mim, e diz-me, respeitinho, ouviu? E engatilha a arma. Engatilha a arma, e eu, ao ver aquilo, ai Maria do carvalho, passo-me dos carretos, e digo ao tipo, ai ele é isso? E zumba, prego-lhe um murro na puta da lata, que o mando de escantilhão para cima de uma mesa, passo as mãos num banco e viro-me para os outros, há aí mais algum valente?

 

Gente séria em que Vila Nova de Pardais? Gente séria, o raio que os parta, então pede-se uma licença à Câmara para construir um prédio de seis andares e faz-se um de sete? Então como é? Fica assim? Lá porque o safardola do Eiró dá um apartamento ao presidente da Câmara ninguém diz nada, ninguém faz nada? Isto pode lá ser? Isto tem lá jeito? Quem me contou que o tipo deu o apartamento ao presidente da Câmara é pessoa de confiança, e soube da tramoia. Ai soube, soube, que nesta terra sabe-se tudo. E eu, que nunca fui de me ficar, nem de dar o dito por não dito, só não escrevi uma carta à Judiciária porque o Búrcio, que vem a ser um dos altos quadros das Finanças, e é meu amigo, e além de ser meu amigo, é uma pessoa que eu considero, foi ter comigo ao café e disse-me, ó Gilo, ó Gilo, deixa lá, deixa lá, ó Gilo, deixa lá, não queiras desgraçar o Eiró, todos sabemos que o gajo é um cabrão de marca maior, mas tem mulher e filhos, não os queiras desgraçar, ó Gilo. E eu, que nunca fui de fazer mal a ninguém, nem estou aqui para isso, dei o dito por não dito, e disse ao Búrcio, ó Búrcio, está bem, já que tu mo pedes, está bem, eu não faço a denúncia, mas que o gajo, merecer, merecia-as, ai merecia, merecia. E só não escrevi a carta à Judiciária porque o Búrcio mo pediu. Então na altura das partilhas do meu falecido pai, o sogro da minha irmã, o cabrão do Cangalheiro Velho, não andou para aí a dizer que não aceitava terras, que terras tinha ele muitas e eu tinha que vender tudo e dar a parte da minha irmã em dinheiro, que se não a desse, ele até a divorciava do filho? Ai é? Ó Tónio, disse eu ao cagarola do meu cunhado, diz lá ao teu pai que se ele não se calar, eu parto-lhe a puta da lata, ouviste? Ou ele pensa que eu sou homem de me ficar, hã? Olha que eu não sou homem de me ficar, ouviste? E o cobardolas a mijar-se pelas calças abaixo, ó Gilo, ó Gilo, deixa lá, deixa lá, ó Gilo, deixa lá, tu sabes como é o meu pai, aquilo só ladra, deixa lá, ó Gilo, deixa lá. E meteu o rabo entre as pernas, e lá foi ter com o cobardola do pai, que se ele não fosse, eu dava-lhe quatro estalos na puta da lata até dentro do café se preciso fosse. Ai dava, dava, então não dava? Então não estive quase para os dar ao Simão Badolas, só por andar para aí a espalhar que eu andava metido com a mulher do Caleiro? Se não fosse o Zeca Manco vir ter comigo às pressas, ó Gilo, ó Gilo, deixa lá, deixa lá, ó Gilo, deixa lá, nós somos amigos, que diabo, o Badolas é um corriqueiro, tu sabes disso, ó Gilo. Está bem, ó Zeca, disse-lhe eu, já que tu mo pedes e és meu primo, está bem, desta vez passa, mas vê lá, hã? Diz ao gajo que eu parto-lhe a puta da lata se ele volta a falar no meu nome, ouviste?

 

Há aí mais algum valente? É o há, meteram a viola no saco, e ala que se faz tarde. Assim sem mais, ó Lito? Assim sem mais, pá. Ó Lito, ele havia de haver uma lei para isso. Está uma pessoa descansada… Que lei homem? Essa gajada do governo quer lá saber? Mas a mim ainda está para nascer o mais pintado que me faça cagar nas calças, tu conheces-me, pá. Quem me dera a tua idade, ó Lito, olha que eu já nem direito durmo. Nasce o dia, e lá estou eu acordado a ruminar. E eu, que nem sono tenho, hã? Faz como eu, ó Lito, toma um Xanax. E eu quero lá tomar essas merdas, pá? Um calicito de porto antes de dormir, e prontos. Eu nem café posso tomar, ó Lito. Pois eu se não tomar três ou quatro, não sou ninguém. Eu nem vê-los, olha que ainda há pouco, estava na Florencinha a tomar um sumol…Ai tu não estavas no café do Neca? Estava na Florencinha, mas disseram-me que foi um assalto de alto lá com ele. Ai foi, foi, e eu que o diga, pá. Ó Lito, não me digas que tu… Ó João, tu conheces-me, pá, estive lá do começo ao fim. A mim, disseram-me que foram duas gajas, ó Lito. Duas? Quatro vi eu com estes dois que a terra há de comer, pá. Estava eu à espera do senhor doutor Zambuja, ele quer-me comprar uns campitos, que foi o que tocou à Zefa nas partilhas, quem ficou com tudo foi o cabrão do irmão, o Tónio Cangalheiro, um gatunaço de marca maior, tu conhece-lo, pá. Mas um dia ele paga-mas, ai paga, paga, que se o vir, dou-lhe cabo do canastro. Isso são águas passadas, ó Lito. Águas passadas? Que águas passadas, pá? Quem mas faz, paga-mas.

 

E partia, ai partia, partia, que nunca me custou dar quatro estalos bem dados na puta da lata fosse de quem fosse. Uma vez, vai para aí há uns dez ou doze anos, ainda a Laidinha da Quintã era solteira, e foi, estava eu mais o Cadete na festa da Senhora do Porto d’Ave, não estive quase para os dar ao Nelinho da Torre? Estava eu mais o Melro e o Cadete a beber um copo no café do Raújo e chega-me o Corisqueira e diz-me, ó Gilo, o Nelinho da Torre está no arruado a dizer que te vai partir a cara se tu te atirares à Laidinha. Ai é? Pois diz ao Nelinho que ou ele se cala, ou quem lhe parte a puta da lata sou eu, ouviste? E o cagão do Corisqueira não foi a correr dar o recado? Ai foi, foi, que se não fosse, quem lhe partia a cara era eu. Ainda estive, vai não vai, para ver onde paravam as modas, mas o Cadete puxa-me um braço e diz-me, ó Gilo, ó Gilo, deixa lá, deixa lá, ó Gilo, deixa lá, não vale a pena armar barulhos, tu bem sabes que o Nelinho é um gafoeira. Ó Cadete, está bem, disse-lhe eu, já que tu mo pedes, está bem, por esta vez passa, mas se o gajo… Deixa lá, ó Gilo, deixa lá, e lá me tirou dali, que se não tirasse, ia tudo raso. Ai ia, ia, que não é para me gabar, que não sou disso, mas nunca torci caminho ao mais pintado. Então ainda há pouco não estive quase para arriar umas boas chapadas numa gaja no Café do Neca da Mira? Estava eu mais o Zé Gordo e entra-me uma gaja armada de pistola e diz ao Neca, passe para cá o dinheiro, e rapidinho, rapidinho, senão… E o Neca, que sempre foi um cagarola de marca maior, que se fosse comigo eu dava era logo quatro estalos na puta da lata à gaja, ai dava, dava, então não dava? Mas o Neca, não senhor, em vez de dizer à tipa, vai-te foder, sua puta, não senhor, mete a mão à caixa e dá o dinheiro à tipa, e eu, que nunca pude ver ninguém ir para cima de ninguém, quase me passo dos carretos e se não é o Zé Gordo pôr-me a mão e não me deixar levantar da mesa, rachava a tola à gaja. Ai rachava, rachava, então não rachava? Rachava, e de que maneira. Então está uma pessoa a conversar com os amigos num café e entra uma puta, e faz o que quer à frente de todos? Não senhor, isto não é assim, mas o Zé Gordo segurou-me, ó Gilo, ó Gilo, deixa lá, deixa lá, ó Gilo, deixa lá, o dinheiro não é nosso. E eu, só para não meter o Zé Gordo em bolandas, digo-lhe, ó Zé, está bem, já que tu mo pedes, está bem, fica o dito por não dito.

 

Se não fosse o senhor doutor Zambuja, hoje ia tudo raso no café do Neca. Estava eu à espera dele e entram-me as quatro gajas. Ó Lito, o Carvalhosa, a mim, disse-me que eram duas. E tu acreditaste, ó João? O Carvalhosa, tu conheces o Carvalhosa, pá, o Carvalhosa mente com quantos dentes tem na boca, ó João. O certo é que estava eu à espera do senhor doutor Zambuja, ele entra, não me vê, e senta-se à mesa dos amigos. Mas logo que me viu veio ter comigo, ó senhor doutor, até lhe disse eu, o senhor doutor está lá na mesa dos seus amigos, que se lixe a conversa, ó Lito, diz-me ele, e senta-se à minha mesa como fosse da minha igualha. O senhor doutor Zambuja é boa pessoa, é, ó Lito. Senta-se o senhor doutor Zambuja à minha mesa, e uma das gajas, que estava à porta, faz sinal às que estavam dentro, e zumba, as tipas metem-me as pistolas aos cornos das empregadas de mesa, e uma delas pega o Neca debaixo do balcão e mete-lhe a pistola aos cornos. E tu, ó Lito? Eu? Por mim, acabava com as gajas todas à estalada, mas como não quis armar barulho com o senhor doutor Zambuja ao meu lado… Lá nisso estás certo, ó Lito. Mas olha que ainda assim quis-me levantar, e se não fosse o senhor doutor Zambuja dizer-me, ó Lito, tenha-se, homem, tenha-se, que isto é a sério. Ai o senhor doutor Zambuja disse-te isso, ó Lito?

 

E lá deixei a gaja roubar o dinheiro ao Neca, que bem vistas as coisas, se a guarda, que é paga para manter a ordem, nem sequer apareceu, estou como diz o outro, quem quer vai, quem não quer manda. Mas isto não fica assim, ai não fica, não fica, porque eu ainda hei de escrever uma carta à Judiciária, ai hei de, hei de. Hei de escrever só para eles saberem o que cá se passa, que comigo só se engana quem quer. Comigo é pau, é pau, é pedra, é pedra, e prontos, pois se até o senhor doutor juiz Costa Madruga, que é quem é, no outro dia veio ter comigo ao café e disse-me, ó senhor Hermenegildo, se todos fossem iguais ao senhor Hermenegildo, isto andava bem melhor. E eu disse-lhe, ai disse, ai andava, andava, senhor doutor juiz. Andava, pois então não havia de andar? Que comigo é assim, em tempos de figos não há amigos, fique o senhor doutor juiz a saber.

 

O senhor doutor Zambuja? Disse, pois. E digo-te, ó João, se não fosse por ele ia tudo raso ali dentro, tu conheces-me, pá. E depois, ó Lito? Depois, as gajas pisgaram-se, o Neca cai-me redondo ao chão… Ai o Neca caiu redondo ao chão? Caiu, pois, e de que maneira. Ai sim? Pois o Carvalhosa… E lá vens tu com o Carvalhosa. Ó Lito, mas se ele me disse que… Ó João, diz-me lá, tu conheces ou não conheces o Carvalhosa, hã? Mas é que ele disse-me… E tu a dar-lhe, o Carvalhosa disse-me, o Carvalhosa disse-me, o Carvalhosa disse-te o que bem quis, ó João. Mas estás a olhar para onde, homem? Ouve o que te digo, pá. O Carvalhosa… Olha lá, ó Lito, não é o teu cunhado, o Tónio Cangalheiro, que vem acolá? Acolá, aonde, pá? Acolá, a dobrar a esquina do Américo das Ferragens. É ele, é, o cabrão dum raio, que bem merecia que eu lhe partisse os cornos agora. Ó Lito, tu vê lá, não te queiras desgraçar, homem de Deus. Qual desgraçar, qual carapuça, ó João, não fosse eu ter hora marcada em Braga para levar a Zefa à consulta, e partia-lhe agora os cornos bem partidos. Ó Lito, tu vê lá o que vais fazer, homem de Deus. O que eu havia de fazer eu sei, ó João, mas deixa-me ir, deixa-me ir, senão a Zefa come-me vivo, tu conhece-la, ó João. Vai, vai, que o Tónio já te viu, e parece-me que vem para cá, e a correr. Ai vou, vou, que a consulta da Zefa tem hora marcada. Vai, vai, homem de Deus. Adeus, ó João, até loguinho, mas, olha, se o gajo te disser alguma coisa, tu diz ao melro que desta ele escapa, mas que para a próxima nem Deus o salva, ouviste?


Capítulo 9


O sol já brilha no telhado do hotel. Acendo o cachimbo, e olho o tronco da árvore no topo da colina. Bruxinha segue o meu olhar.

– Será mesmo um tronco seco, Eduardo? Parece uma pessoa.

Não respondo, mas olho-a. Bruxinha continua a olhar o topo da colina.

– Eduardo, diz-me, o que é que é mais importante para ti? O facto de nós estarmos aqui, ou o momento de…

– O facto.

Bruxinha volta-se num gesto brusco, e olha-me.

– E os nossos momentos, Eduardo?

Aponto-lhe o tronco da árvore no topo da colina.

– Bruxinha, tu estavas a olhar para aquele tronco. Ele é um facto. Está lá como nós estamos aqui.

Bruxinha continua a olhar-me, os olhos fixos nos meus.

– E os nossos momentos, Eduardo? Já te esqueceste deles?

– Não. Só que eles já passaram, Bruxinha. Foram só atos que viraram factos.

Bruxinha levanta-se, pega um graveto, e num gesto brusco atira-o ao gaio. O gaio assusta-se, e voa, sumindo no arvoredo do vale.

– Estás a ver? O ato de tu atirares aquele graveto ao gaio virou no facto de ele se assustar, e fugir. Os momentos não existem, Bruxinha. Aquele momento, aquele que eu estava a falar há segundos, já passou. Todos os momentos passam, Bruxinha. Quando eu comecei a falar, era um, só que agora já é outro. O teu pensamento mudou, o meu também, e ambos nós mudamos. Os momentos são apenas atos que viram factos. São como o ato de estar e o facto de ser. Num momento nós só estamos, e no seguinte já somos. Viramos factos. Bruxinha, pensa. Nós fazemos atos, mas, no fundo, no fundo, somos apenas factos. Tu atiraste aquele graveto ao gaio, ele assustou-se, e fugiu. O seu ato de assustar-se virou facto no momento em que levantou voo. E o ato de levantar voo, também virou no facto de sumir no arvoredo, entendeste? Por isso é que nós não paramos de andar, mas nunca saímos do mesmo sítio. De dentro de nós.

Bruxinha pega na minha mão, beija a palma, e olha-me.

– Bruxinho, tu sabes que dia é hoje?

– Bruxinho? Porquê Bruxinho, se tu nunca me chamaste Bruxinho?

– Tu não me chamas Bruxinha? Se eu sou Bruxinha, tu também podes ser Bruxinho, meu tolinho.

Bruxinha sorri-se, e beija-me.

– Mas diz-me, tu sabes que dia é hoje?

– Sei. Hoje é domingo, três de março.

Bruxinha sorri-se outra vez, e passa a mão no meu rosto.

– O dia do meu aniversário, Bruxinho.

 

          Vila Nova de Pardais 9

 

Vila Nova de Pardais mudou muito, ai mudou, mudou, mudou, sim senhor, diz que até carros há que sobem e descem dentro das casas, coisa nunca vista, artes do dianho, Deus me perdoe se peco. Eu não sei nada disso, agora estou para aqui assim, desde que a minha Mélia me faltou, Deus a tenha em bom lugar e lhe fale na alma se puder, agora é este viver como Deus manda, que a minha doença são os anos, noventa e dois para o final deste mês, sim senhor, que outra doença não tenho, não senhor. Mas estou bem, estou, sim senhor, não há do que uma pessoa se queixar, não senhor. Estou cá muito bem, são todos bons comigo, nada me falta, sou muito bem tratado, a senhora doutora Gabriela, uma senhora doutora que é um louvar a Deus, todos os dias que cá vem, todos os dias pergunta, ó Se Joaquim, então como vai a saúdinha? Está melhorzinho, está? E as meninas da enfermagem também são muito boas, muito caridosas, falam comigo como se eu fosse da igualha delas. A menina Zezinha, então, é uma santa, muito minha amiga é, sim senhor, lá isso é. É ela que põe essa tal televisão, que no meu tempo não havia nada disso, uma pessoa a ver o que se passa por esse mundo sentado num sofá, louvado Deus. Se não fossem essas meninas ser quem são, eu nem sei o que seria de mim, se calhar até já tinha morrido. Mas, ainda assim dá-me muita saudade da minha casinha, isso dá-me, que muita saudadinha eu tenho dela. Mas tem que ser, se a vida é assim, que hei de eu fazer?

 

Vila Nova de Pardais só tem defeitos, e é verdade. Ai é, é, que sempre foi uma terra de comadres, toda a gente a saber da vida de todos, e uma pessoa não pode nem sequer sair à rua mais bem vestida que logo o comadrio corta na casaca. Não há respeito, não há educação, até a virtude foi camélia que já deu flor, sim senhor, mas eu não ligo para isso, que não sou lorpa. Se não há mal que sempre dure, também não há bem que nunca acabe. Se bem que isto de defeitos e virtudes, é como diz o outro, ora agora viro eu, ora agora viras tu, e prontos, estamos conversados. E de mais a mais nos tempos de hoje ninguém sabe de nada, nadinha nem sequer. Nem a velha senhora havia de saber, e mais durou quarenta e tal anos, mas uma coisa eu digo, o santinho de Santa Comba se bem sabia o que dizia, melhor sabia o que fazia. Ai sabia, sabia, que muitos há por aí que dizem que ele era isto, que ele era aquilo, mas a verdade é que havia respeito. Havia respeito e havia educação, então não havia? Se hoje Portugal está como está, a culpa não foi dele, foi dos gatunaço que andam por aí, tudo à balda, tudo ao deus-dará. Está certo que alguns aproveitaram, aproveitadores sempre os houve, mas como agora? Essa cambada da Câmara a roubar quanto quer, greves por tudo quanto é canto, e a canalha toda metida na droga? Naquele tempo não havia nada disso. Greves para quê se todos trabalhavam? E drogas? Que drogas?

 

Mas que hei de eu fazer, se os meus filhos meteram-me cá, que era melhor eu vir, que eles não podiam cuidar de mim, que cada um tinha a sua vida, e mais isto e mais aquilo? E eu para cá vim, que bons filhos eles são, lá isso são, Deus os abençoe. Para cá vim e não me queixo, não senhor, estou aqui muito bem, não me falta nada, nadinha desta vida, são todos muito meus amigos, ele é o almocinho, ele é a merendinha, ele é o caldinho, ele é o remédinho, ele é tudo, tudo às horinhas certas, até o chazinho que nos dão às tardes, tão bom, tão bom, que uma pessoa até adormece nem que não queira e fica descansadinho sem dar trabalhos a ninguém, é, sim senhor. E eu tomo-o sempre que mo dão, que eu faço tudo que me mandam, ai faço, faço, que as pessoas que cá estão são todas minhas amigas, lá isso são. E é o que me vale, que se não fosse desta maneira, nem sei onde ia parar. Mas não há nada como a nossa casinha, o nosso luminho, a nossa aguinha, o nosso presiguinho, que eu bem disse aos meus filhos, ó meus ricos filhos, eu não quero ir para o lar, deixai-me cá ficar que eu quero morrer na minha casinha, não me leveis para o lar, ó meus ricos filhos, aqui nasci e aqui quero morrer.

 

Naquele tempo não havia drogas, o que havia era fome. Fome, sim senhor, e muita, se bem que isto de fome é coisa antiga, sempre a houve e sempre a há de haver. Hoje não a há fome? Pelo amor de Deus não me venham dizer que hoje não há fome, há fome e muita, sim senhor. E drogas? Drogas, isso nem se fala, há-as para aí quantas uma pessoa quiser. No meu tempo, as drogas que havia era um copito, um cigarrito, e quando muito uma escapadela à Quina das Trinas, uma casa de putas que havia em Guimarães. Cá na vila havia-as, pois claro que as havia, havia-as e muitas, mas tudo escondido, tudo por debaixo dos panos, que casa de putas a sério, Deus me livre. Eu nunca fui à Quina, que o dinheiro era pouco, e o pouco que havia era para comprar uns cigarritos na venda do Zé Gago, benza-o Deus, homem de poucas falas, mas amigo do amigo, uma pessoa que sempre fez pelos outros o que esses tipos de agora não fazem por ninguém. Fiava o que podia e o que não podia, e no fim que fim teve o desgraçado, hã? Morreu pobre e sozinho que nem dinheiro tinha para os remédios, e isto já depois do 25 de Abril. Depois do 25 de Abril, sim senhor, e andam-me agora esses bandalhos a dizer que Portugal mudou para melhor? Como mudou para melhor, se no enterro do Zé Gago não se viu nem sequer um cristão que lhe rezasse uma ave-maria e um pai-nosso pela alma? E não se viu ninguém, só porque diziam que o Zé Gago rezava pela cartilha do senhor padre Ilídio e do senhor major Lopes, e todos se cagam de serem chamados de fascistas. Lá que o Zé era da situação, era, isso era, mas que situação, se a situação era o que era, ou uma pessoa dizia amém com quem mandava, ou ia preso, hã?

 

Mas os meus filhos, coitadinhos, cada um com a sua vidinha, não puderam. A minha mais velha, a Emília, professora lá para baixo, diz que para esses Alentejos, casada, com três filhos e dois netos, diz que dois meninos que são um louvar a Deus. Eu nunca os vi e muito gostava de os ver, que nunca cá vieram, mas a minha Emília é muito boa filha, é, sim senhor, até já prometeu cá vir mais eles, e se calhar vem para o Natal, que eu muito gostava de os ver antes de morrer. Diz que são duas joias de rapazes, mas o que é que se há de fazer? A vida é assim e cada um vive como Deus manda, e eu não me queixo, não senhor. Eu nunca me queixo, que cá nada me falta, nadinha desta vida, todos muito meus amigos, a senhora doutora Gabriela, uma senhora doutora como nunca vi outra igual, todos os dias que cá vem, todos os dias pergunta, ó Se Joaquim, como vai a saúdinha? Está melhorzinho, está? E as senhoras enfermeiras, essas nem se fala, é sempre, ó Se Joaquim, quer mais um cobertorzinho, quer? Ó Se Joaquim, vamos lá ver a televisãozinha? Ó Se Joaquim, olhe que são horas do chazinho, dão-se todas comigo como Deus se dá com os anjos, dão, sim senhor.

 

Se bem que hoje é igual. Se uma pessoa tem amigos no poleiro safa-se, se não tem, prontos, é preso, e acabou-se. E a roubalheira? Da roubalheira nem se fala, nunca em Vila Nova de Pardais se roubou tanto como se rouba hoje. Hoje, até à luz do dia se rouba, não me venham dizer que não se rouba, que se rouba. Então ainda há pouco não andou o diabo lá pelo café do Neca? Não entraram meia dúzia de gajas, vindas sabe Deus donde, uns putoides que no meu tempo nem à mão de Deus Padre entravam cá na vila, quanto mais num café, e não entraram e não fizeram o que quiseram à vista de toda a gente? E alguém fez alguma coisa? Nada, nadinha nem sequer. Pois no meu tempo, o senhor padre Ilídio e o senhor major Lopes impunham respeito, ai impunham, impunham, saiu da linha, cadeia, não é como agora que ninguém respeita ninguém. Então entram-me as tipas no café do coitado do Neca, e prontos? Rouba-se o que se quer, e nem um pio? Isto pode lá ser? O pobre do Neca fica sem o seu rico dinheirinho, e a guarda apareceu? Apareceu, o tanas, é o que apareceu. Se fosse naquele tempo ia tudo raso, ai ia, ia, que era o senhor padre Ilídio na câmara, era o senhor major Lopes na administração, era a guarda no posto, era tudo. Até o povo nas freguesias, que se aparecia algum corrécio levava-o o diabo, entregava-se à guarda, e prontos, era preso e bem preso. Agora? Agora, não há justiça, que os tribunais soltam até os que a guarda consegue prender. Isto pode lá ser?

 

Mas não há nada como a nossa casinha, ai não há, não há, mas seja pelo amor de Deus, que a minha Emília, e não digo isto por ela ser minha filha, mas é uma boa rapariga, viva como um alho, sempre estudou muito, e logo que pôde, casou-se. E fez ela muito bem, que eu também casei logo que a minha Mélia deixou de servir na casa da senhora dona Francelina, Deus que a tenha em bom lugar e lhe fale na alma se puder, uma senhora que não havia outra igual, muito dada, muito amiga dos pobres. Sempre que eu lá ia, isto no tempo que andava a guerra na Espanha, a senhora dona Francelina dava-me dois tostões, que era muito boa esmola naquele tempo, e dizia-me, ó Quim, tu nunca te esqueças de Deus, olha que Deus Nosso Senhor é a salvação dos pecados do mundo, ouviste, ó Quim? Reza, meu filho, reza, que o nosso santo protetor, coitadinho, se não rezasse todos os dias a Nossa Senhora de Fátima lá em Lisboa, o mundo já se tinha acabado e esta nossa terra já não era nossa, era dos inimigos da nossa Santa Madre Igreja, era dos comunistas, dos hereges, ó Quim, ai minha Nossa Senhora do Sameiro que até me dá um flato só de pensar nisso. Ó Mélia, traz-me cá depressa um copo de água morna com açúcar, que eu até nem gosto de me lembrar. O senhor padre Ilídio, coitadinho, só ele é que sabe dos pecados do mundo, só ele é que sabe o que esses pecadores dizem no confesso, tão novinho, coitadinho, mas um santinho que nunca nesta terra se viu igual. Ó Quim, tu nunca te esqueças dos pecados do mundo, ouviste, ó Quim?

 

Está certo que naquele tempo a vida era outra, uma pessoa tratava da sua vida, e a vida dos outros era a vida dos outros, mas havia respeito, muito respeito, e as pessoas ajudavam-se umas às outras, que se havia um fogo nalguma casa, os sinos tocavam a rebate, e o povo ia e salvava o que podia. Hoje, se alguém vai, vai é ver os bombeiros a trabalhar, ninguém ajuda ninguém, e o pior é que ninguém quer trabalhar, essa é que é essa, basta uma pessoa trabalhar uns meses e deixar de trabalhar, que o governo paga-lhe para ficar em casa à boa vida. Isto pode lá ser? Hoje, ninguém quer saber, se arde, deixa arder, se mata, deixa matar, desde que não arda a minha casa e não me matem a mim, deixa arder e deixa matar. Isto está como há de ir. A minha santa mãe que Deus tenha em bom lugar, sempre dizia, vai-te mundo cada vez a pior, e é bem certo. Se naquele tempo não havia reformas para quem trabalhava, ao menos havia leis. E hoje? Hoje, se há leis para tudo, ninguém as cumpre, e o que vale a minha reforma, hã? Meia dúzia de tostões que mal dão para comprar uns cigarritos e tomar um copito. Reformas a valer só para os políticos, que roubam quanto querem e nem presos são, essa é que é essa.

 

Sempre alembrei do que a senhora dona Francelina me dizia, e tanto alembrei que na maré que nasceu o meu Francelino pedi à senhora dona Francelina que o batizasse pelo amor das santas almas, e ela fez-mo, fez-mo, sim senhor, que nunca conheci ninguém tão amiga dos pobres, tão boa senhora, tão dada, tão santa como ela. E o meu Francelino, coitadito, bom filho como há poucos neste mundo, até na hora da morte da minha Mélia, quem mo disse foi o Tónio da Mina, que eu lá desses telefones nunca entendi nem entendo, ó Se Joaquim, o seu rapaz telefonou, e diz que não pode vir para o enterro, mas diz que vem para o Natal, ouviu? A outra minha filha, a mais novita, a Patrocina, é professora em Braga, está lá muito bem graças a Deus, e cá vieram todos pelo Natal, isto já lá vai, deixe-me ver, ai já lá vai para mais de cinco anos, ai vai, vai, nevava se Deus dava, que nunca se viu tanta neve em Pedra a Pé como naquele inverno. Pedra a Pé é a freguesia onde eu nasci, e foi lá que me criei e casei, e também foi lá que nasceram os meus três filhos, a minha Emília, o meu Francelino, e a mais novita, a minha Patrocina. E naquele Natal eles cá vieram, vieram, sim senhor, que foi pelo São Martinho que a minha Mélia morreu, e eles disseram-me, ó pai, tu não podes ficar neste cortelho sozinho. A minha Emília, a minha mais velha, eu também já não a via há um ror de anos, mas foi ela que me disse, ó pai, tu não podes ficar neste cortelho sozinho, e o Francelino, coitadito, um bom rapaz, sério, trabalhador como há poucos, também me disse, ó pai, a Emília está certa, vossemecê não pode ficar neste cortelho sozinho. A minha Emília mais a minha Patrocina é que me tratam por tu, que eu sempre as mandei tratar os mais velhos com obrigação e respeito, mas que quer?

 

Ainda bem que os meus filhos foram para o Luxemburgo, que na altura de vir, hão de trazer boas reformas e a vida ganha, ai hão de, hão de, que no meu tempo uma pessoa trabalhava de sol a sol e não ganhava nem para uma côdea, que até a minha falecida mãe ia pedir à senhora dona Virinha das Leiras a metade da vacina que sobrava ao filho dela para eu também ser vacinado, que nem vacinas para os pobres havia naquele tempo. Não havia vacinas, mas havia santidade, isso havia, não é como agora que se um pobre de Deus não tem o que comer, ou como pagar a renda da casa, o que é que as pessoas dizem, hã? Vai trabalhar, vagabundo. Ai dizem, dizem, e quando não dizem, atiram-lhe os cães às pernas, que ele há portugueses de primeira e portugueses de segunda, ai há, há. De primeira, os políticos e os que são da cor do partido que está no poleiro, e de segunda, os que não têm nem sequer o que comer. Eu digo isto, e se o digo é porque sei bem o que digo, sou presidente da junta de freguesia de Pedra a Pé, não porque o quisesse ser, mas porque os amigos me meteram lá à fina força, que nunca fui de políticas, mas antes fosse, que muitos conheci eu a apanhar landes para os porcos pelos montes, e hoje mandam nisto como quem manda nos cães, barriga cheia, carros topo de gama, casas de primeira, reformas milionárias, tudo do bom e do melhor. O falecido Chico da Micas Mota, um chico-esperto de marca maior, um tipo sempre pronto a passar a perna aos outros, que nunca foi nem sequer capaz de aprender a tabuada, e o que foi ele, e o que sou eu na vida, hã? O tipo, na altura que o senhor padre Ilídio veio para cá e foi a presidente da Câmara, ninguém hoje faz ideia do que aquilo era, naquele tempo uma pessoa não podia nem sequer fungar dentro de uma igreja. Lembro-me de uma vez que o meu pai, tinha ele vindo da Espanha pneumónico, coitadito, vai o meu pai à missa e a tossidela sai-lhe da boca, ia o senhor padre Ilídio a meio do sermão, e foi o meu pai preso por perturbar a ordem. Sim senhor, foi o meu pai preso por perturbar a ordem, veja-se de que maneira mandavam os padres nesta terra naquele tempo.

 

Isto de tratamentos mudou muito, diz que agora os filhos tratam os pais todos por tu, parece que aprendem nas escolas, eu não sei, no meu tempo só ia à escola quem tinha posses, os filhos pediam a bênção aos pais, que eu sei bem o que era aquele tempo, nunca fumei à frente do meu pai, e mais já tinha casado e tinha os meus três filhos, mas que quer? Diz que o mundo agora é assim, e assim como assim, o mundo não tem volta, mas o meu Francelino sempre me tratou como eu o acostumei, que era como eu tratava o meu pai que Deus tenha em bom lugar e lhe fale na alma se puder, ó pai, vossemecê, isto, ó pai, vossemecê, aquilo, que obrigação e respeito uma pessoa criava no berço. Mas é como diz o outro, se neva em agosto é porque a Deus dá gosto, que isto de obrigação e respeito, já a minha santa mãe dizia, cada roca com seu fuso e cada terra com seu uso. A senhora doutora Gabriela diz-me que eu havia de ver mais a tal televisão para ver o que hoje se passa por esse mundo, que me fazia até bem, mas nesta minha idade eu só quero é alembrar da minha casinha e das minhas leirinhas depois das tornas que dei aos meus quatro irmãos. Eu, o mais velho, todos homens e todos solteiros, só eu casado, e a minha Mélia a dizer-me, ó Quim, dá as tornas das partilhas aos teus irmãos para nós podermos trabalhar no que é nosso, compõe-nos logo, que eu ajudo-te. Matei-me a trabalhar mais a minha Mélia, ela na jorna e eu nos montes de sol a sol, e a seco, que a seco ganhava-se mais do que a de comer, e olhe, Deus ajudou-nos, a mim e à minha Mélia, e lá conseguimos compor os meus irmãos, graças a Deus.

 

Naquele tempo os padres mandavam que se fartavam, mandavam muito mais do que a guarda, ai mandavam, mandavam, que para soltar o meu pai, se não fosse a senhora dona Virinha das Leiras meter um empenho ao senhor arcipreste, o meu pai tinha morrido na cadeia. Um homem sério, trabalhador, amigo do amigo, o mais que fazia era trazer um lenço de seda de contrabando para a minha mãe, quando cá vinha pelo Natal, não me chame eu Adalberto Chispa, se isto não é verdade. Naquele tempo tudo na Espanha era mais barato, e ainda hoje o é, a gasolina e o gasóleo então nem se fala, mas se o meu pai quisesse comprar o lenço cá na vila, as bocas do mundo logo tocavam castanholas, a quem o Quilino roubou o dinheiro, hã? E a fome que havia nesta terra? Os lavradores, coitaditos, obrigados a dar as colheitas ao manifesto e a morrer à fome, se bem que hoje também se morre à fome, ninguém mais lavra as terras, todos emigrados ou reformados, os filhos dos caseiros todos doutores, a alma até me dói de ver essas terras a monte, sem colher nada. Mas é como diz o outro, vão-se os dedos, ficam os anéis, se bem que se naquele tempo nem sequer trabalho havia, quanto mais anéis? Era um tempo do caraças, tinha eu vindo da tropa, e um dia vejo entrar na vila o Chico da Micas Mota a sair dum carro, todo repimpa, de chapéu à banda e sapatos de duas cores, a fumar um cigarro dos feitos, cigarros dos feitos quem os fumava? Fumava-os o senhor doutor juiz, o senhor doutor do partido, o senhor major Lopes, e poucos mais.

 

Se não fosse a minha Mélia não tinha nem sequer um pataco de meu para deixar para os meus filhos, e não me arrependo, não senhor, que os meus filhos sempre me trataram muito bem e sempre foram muito meus amigos. Ai foram, foram, na maré que quis fazer as partilhas, diz-me a minha Emília e a minha Patrocina, partilhas para quê, ó pai? Nós não queremos partilhas, nós vamos é vender o que tu tens, que tu já não tens idade nem para cuidar de ti. E o meu Francelino, vende-se tudo, ó pai, reparte-se, nós ficamos cada um com a sua parte, e vossemecê fica com a sua para pagar o lar, e prontos, fica tudo como deve ser. E assim foi feito, e eu estou cá muito bem, são todos meus amigos, nada me falta, tratam-me todos muito bem, ele é o remédinho, ele o almocinho, ele é a merendinha, ele é o caldinho, ele é o chazinho, ele é tudo, tudo às horinhas certas, e a senhora doutora Gabriela todos os dias que cá vem, a perguntar, ó Se Joaquim, então a saúdinha? Como vai a saúdinha, hã, Se Joaquim? Cá no lar nada me falta, não senhor, são todos meus amigos, as senhoras enfermeiras sempre a dizer-me, ó Se Joaquim, vamos tomar o chazinho? Ó Se Joaquim, vamos lá ver a televisãozinha? No meu tempo não havia disso, nem sequer luz elétrica havia, que também nunca foi precisa, o azeite da candeia alumiava tudo e bem alumiado, louvado Deus, mas cá no lar uma pessoa tem tudo o que precisa, lá isso tem, sim senhor. Ele é o remédinho sempre às horinhas, ele é a comidinha bem feita e a caminha bem lavada, sem falar no banhinho que as senhoras enfermeiras nos dão.

 

O povo, esse, coitadito, fumava dos fortes, de mortalha, e isso se havia uns tostõezitos a mais, que se não houvesse, fumar, só aos domingos e dias santos, ó vida do caraças. Pois vejo o Chico da Micas Mota a vir direito a mim, e diz-me ele, ó Chispa, o que estás tu a fazer por cá, pá? Ó pá, digo-lhe eu, estou à espera. Estás à espera? À espera de quê, pá? À espera de entrar para Guarda Nacional Republicana. Entrares para a guarda? Deixa-te de lérias, pá, diz-me ele a rir-se e a tirar da algibeira um maço de três vintes. Vai um? Ó pá…Tira, tira dois, pá. E eu lá tirei os dois cigarritos e acendi um com o isqueiro dele, que naquele tempo para uma pessoa usar isqueiro pagava uma licença do caraças. Acendo o cigarro, era o primeiro dos feitos que eu fumava, e diz-me o Chico, ó pá, tu és um azelha, e eu já meio lixado, azelha, eu? E ele a rir-se, azelha, sim, pá, a quereres entrar para a guarda? Olha para mim, pá. Vê lá se eu quis entrar para a guarda, hã? A vida é de quem a sabe levar, pá. E não é que aquele chico-esperto me convida para tomar um copo? Mas um copo a sério, um branco de marca, engarrafado? Eu nunca gramei aquele tipo, mas se hoje sou o que sou, devo-o a ele, que se o tipo precisou dum fulano para ir mais ele bater à porta dum lavrador e esquiçar as cortes do gado e as medas da palha, esse fulano era eu. Isto para ver onde o gajo escondia o azeite, o milho, ou o vinho que não dava ao manifesto, e que o Chico, a mando do senhor padre Ilídio, passava depois para a Espanha de contrabando.

 

Com este mal das vistas que tenho, faz para o São Miguel uns cinco anos, mal vejo as figuras, só ouço as notícias, que muito mal enxergo, sim senhor. Ainda há pouco, foi um senhor de Serafão que já cá vivia na maré que eu para cá vim, disse-me ele que até mortes houve hoje na vila, diz que foi a menina Zezinha que deu a nova, que logo pela manhãzinha roubaram um café, que mataram o dono a tiro e mais os fregueses, coitadinhos, descansadinhos a tomar o cafezinho, uma desgraça como eu nunca ouvi falar, que desgraças bondam as minhas, mas as pessoas gostam de ver essa tal televisão, que é a única distração que nos dão, essa televisão mais o chazinho que nos dão às três horas, e uma pessoa dorme regaladinha, regaladinha, que cá no lar é tudo às horinhas certas, é, sim senhor. São para mais de trinta os que estão cá comigo, ai são, são, que agora, os filhos, nenhum deles quer saber dos pais. Eu, se não fosse a falta da minha Mélia, da minha rica casinha e dos meus ricos filhos, nada me faltava, mas tem que ser, tem que ser, a vida é assim, cada um com a sua cruz, que eu nunca pensei acabar assim, a minha Mélia com Deus nosso Senhor, a minha rica casinha vendida e os meus ricos filhos por esse mundo, mas que quer? Se bem que eu estou cá muito bem, ai estou, estou, que ele há muitos que nem filhos têm para os cá vir ver, e eu, graças a Deus, ainda tenho os meus, a minha Emília, o meu Francelino e a minha Patrocina. Tenho o retrato deles, tirado no dia que vendemos a casinha e as leiricas, que os meus filhos, benza-os Deus, são muito meus amigos, lá isso são, sim senhor. Fomos de carro a Braga, não foi de autocarro, não senhor, fomos de carro, no carro da minha Patrocina, que parece que foi em Braga que fizemos a escritura.

 

E não me arrependo desses contrabandos, não senhor, que se não fosse eu, seria outro. Só me arrependo é de não fazer o que aquele chico-esperto fazia antes de passar a fronteira. Se a coisa calhava bem, ficava ele com a metade, se a coisa calhava mal, e ele tinha que repartir com os fiscais, ficava com um terço, mas que ficava sempre com algum, isso ficava. Mais da metade das quintas que hoje andam por aí a mato, ou são dos herdeiros do senhor padre Ilídio, ou foram vendidas ao desbarato pelo Chico da Micas Mota, um estroina que deu cabo de tudo em vida, mulheres, jogo, bebida, o diabo. O que valeu ao Américo das Ferragens foi casar rico, um fortunaço que Deus me livre, roubado nas minas do volfrâmio da Borralha, mas o irmão, o Zé Molarinho do jornal, esse, coitadito, comeu o pão que o diabo amassou até emprenhar a sobrinha, e o Américo, para calar a boca ao povo, pagar-lhe o jornal e a vida que ele leva. Algumas dessas quinticas que o Chico da Micas Mota vendeu ao desbarato comprei-as eu no bom tempo, que as três primeiras que tive, deu-mas o senhor padre Ilídio como paga dos serviços que lhe fiz, e muitos foram. Ai foram, foram, que muito suei por esses montes fora a guiar camionetes de noite, sem comer e sem dormir. Roubar, como sempre fez o falecido Chico, isso nunca roubei, e bem podia ter roubado. Ai podia, podia, que roubar, sempre nesta terra se roubou, e a questão não é roubar, é saber roubar. Se quem rouba uma galinha, vai preso, quem rouba o galinheiro sai político, e rouba ainda mais, que nesta terra sempre se roubou, e muito, e se agora não se roubam quintas, que ninguém as quer, rouba-se nos impostos, rouba-se nos bancos, rouba-se em tudo, e de que maneira, se o governo justa um hospital ou uma autoestrada por milhões, e no fim o preço dobra, só dobra porque metade vai para o bolso dos políticos. A minha santa mãe que Deus tenha em bom lugar, sempre dizia, vai-te mundo cada vez a pior, mas se fosse hoje, sabem o que ela diria? Vai-te Portugal, cada vez a pior, e quem diz Portugal, diz Vila Nova de Pardais, essa é que é essa.

 

Eu não sei ler nem escrever, mas o senhor doutor notário nem se importou, fez a escritura, e não me arrependo, não senhor, que os meus filhos, Deus olhe por eles e dê muita saúdinha, os meus filhos, são muito meus amigos e nunca me faltaram com nada, nadinha nem sequer. A minha parte das partilhas e a minha reforminha, veio tudo para cá, e graças a Deus dá para tudo, e cá vou vivendo como Deus manda, que cá no lar nunca me faltou nada, ele é o almocinho, ele é a merendinha, ele é o caldinho, ele é o remédinho, ele é o chazinho para o descansinho, ele é tudo, e tudo às horinhas certas. Diz a minha Emília que este ano, se a vida lhe correr à feição, vem para o Natal, o meu Francelino, diz a menina Zezinha que mandou uma carta a dizer o mesmo, e a minha Patrocina diz que este ano se calhar não pode, mas que para o ano vem de certeza e que me vai trazer uma prenda, Deus que a ajude, boa filha é, mas o que eu queria era morrer na minha rica casinha e ser enterrado lá em Pedra a Pé, no cemitério onde enterrei a minha Mélia, mas se não puder, seja com a graça de Deus, que ele há muitos que nem a vida que eu tenho são capazes de ter. Muitos nem filhos têm para mandar rezar uma missinha pela alma, que eu graças a Deus, tenho, foi o meu Francelino que mo disse, ó pai, vossemecê há de ter missa cantada, e rezada pelo senhor arcipreste, ouviu? Que bom filho ele é, sim senhor, e eu digo sempre aos meus filhos, ó meus ricos filhos, rogai a Deus por vós, que se vós chegares à minha idade, pedi a Deus que os vossos filhos façam por vós o que vós estais a fazer por mim, ouvistes? Olhai, que eu nunca fiz à minha santa mãe, que Deus tenha em bom lugar e lhe fale na alma se puder, o que vós fazeis a mim, que nunca a meti num lar, e morreu entrevadinha anos e anos numa enxerga, o luminho sempre aceso, coitadinha, e a minha Mélia a olhar por ela dia e noite como se filha dela fosse, que nada podia fazer a não ser olhar por ela, coitadinha. Mas que quer? A vida de uma pessoa muda quando tem que mudar e que pode uma pessoa fazer a não ser pedir a Deus que lhe dê vida e saúdinha, se a minha casinha e as minhas leirinhas nunca mais as posso ver?


Capítulo 10


 

A fotografia eu reconheci, era do Eduardo.

 

 

 

 

 

O que me assombrou foi a notícia.

 

MORTE MISTERIOSA NA SERRA DO GERÊS

 

Foi sepultado no dia passado dia 9, sábado, no Cemitério Municipal de Vila Nova de Pardais, o nosso estimado conterrâneo, o Senhor Doutor Eduardo da Cunha Júnior (ECJ), eminente causídico desta Vila, casado com a Excelentíssima Senhora Doutora Dora da Silva (DS), também eminente advogada do Foro da Comarca de Braga.

O infausto acontecimento da morte do nosso estimado conterrâneo deu-se num dos quartos do Hotel Geresiano (HG), tendo o corpo sido trasladado para o Hospital São Marçal (HSM) desta Vila, onde foi feita a consequente autópsia, depois de os Agentes da sempre ativa Polícia Judiciária (PJ) terem liberado o cadáver. Na manhã do passado dia 4, segunda-feira, Agentes da diligente Guarda Nacional Republicana (GNR) de Terras de Bouro, dirigiram-se ao local, alertados que foram pelo gerente do supracitado HG.

Lá chegados, inquiriram as possíveis testemunhas do infausto acontecimento, e o único indício que alertou os Agentes da diligente GNR de Terras de Bouro, para um possível crime passional, foi o facto de na ficha de entrada do HG, efetuada ao anoitecer do dia 2, sábado, não constar o nome de nenhuma acompanhante, e, segundo o depoimento do rececionista, uma mulher estar à porta do HG á espera que o nosso estimado conterrâneo ECJ preenchesse a supracitada ficha de entrada. Entretanto, segundo o testemunho de uma camareira, essa misteriosa e desconhecida acompanhante não dormiu no hotel, pois só uma toalha de rosto e uma almofada foram utilizadas.

Feita a autópsia, de acordo com a lei no HMS, verificou-se ter sido a causa da morte uma fatal superdose de barbitúricos. Até ao fechamento desta edição, a identidade da misteriosa e desconhecida acompanhante, a provável ministradora da fatal superdose de barbitúricos, que referendou o possível crime passional, era ainda desconhecida. De acordo com o que a nossa reportagem apurou, a sempre ativa PJ continuará a efetivar diligências até que o anonimato da misteriosa e desconhecida acompanhante seja desvendado.

À família enlutada, aqui deixamos as mais extremadas condolências do Notícias de Pardais.

Agora eu sei que na Natureza a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Quanto mais eu penso, quanto mais eu raciocino, quanto mais eu pergunto, quanto mais eu questiono, mais o meu conhecimento me torna relativa, e mais o Absoluto se distancia.


Cunha de Leiradella

E-mail – leiradella@sapo.pt


revista triplov

INDICE / SÉRIE VIRIDAE / 01 / CUNHA DE LEIRADELLA

Portugal / junho 2021