Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 04|Março de 2010

NÚMERO 04

Março de 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Da palavra à poesia: uma (provisória) leitura da obra de Andityas Soares de Moura

 

Henrique Marques-Samyn

Se o pensamento de matriz clássica define o fazer poético como um produto da arte e do engenho, ou seja, da convergência de uma predisposição interior do poeta e do manejo hábil das palavras, certa tendência moderna vem privilegiando a técnica sobre o lirismo – o que, conquanto tenha os méritos de valorizar o labor criativo e redimensionar o mito da genialidade, por outro lado enseja concepções de poesia que a aproximam de (quando não a reduzem a um) exercício intelectual. No âmbito desse pensamento, de inegável vigência na contemporaneidade, o fazer poético resulta, na pior das hipóteses, em criações logogríficas ou trocadilhescas – produções que se opõem diametralmente ao trabalho dos que procuram desvelar novas possibilidades criativas a partir daquelas premissas: redefinida, a criação poética passa a ser concebida como um jogo alicerçado na experiência com a palavra, o que evidentemente pode assumir muitas formas – todas, entretanto, regidas pela erudição criadora que lhe serve como fonte e fundamento.

É em meio a essa estirpe de poetas-pensadores que Andityas Soares de Moura nasce literariamente. Autor de uma obra que principia com Lentus in umbra (2001) – já que Ofuscações (1997) é considerado, pelo próprio poeta, um livro imaturo –, Andityas não se recusa a assumir, desde o começo, uma atitude de desconfiança perante a palavra: de fato, o problema de como expressar (poeticamente) aquilo que se intenta dizer jamais o abandonará, fazendo-se presente inclusive nos poemas mais recentes incluídos na antologia Algo indecifravelmente veloz (2007). Não obstante, esse – para muitos, paralisante – questionamento serve, para Andityas, como um impulso que motiva a inteligência criadora: é assim que se deve compreender a fragilidade da linguagem perceptível em sua obra, embora seja necessário esclarecer que afirmá-lo não implica defender qualquer tipo de juízo estético. O adjetivo ‘frágil’ refere-se precisamente ao estado da linguagem sobre a qual trabalha o poeta: uma linguarem reduzida a fragmentos – resquícios dos séculos de fazer poético que Andityas pacientemente recolhe, a fim de fazer das ruínas novas catedrais. Qualquer edificação, contudo, será sempre provisória: eis um poeta cuja consciência histórica suporta a certeza de ser um herdeiro de vozes milenares; um criador cuja obra é permeada de ecos e ressonâncias – e que portanto se ergue sobre paredes que, a cada momento, estremecem sob o som das vozes da tradição. Será preciso procurar entre as ruínas novas pedras, e outra vez lapidá-las, para erigir novos edifícios: tarefa digna de um Sísifo, que Andityas Soares de Moura não recusa reclamar para si.

Apenas levando-se em conta essa proposta é possível compreender uma trajetória explícita nas primeiras obras de Andityas, que pode ser definida em termos de uma reconstrução de sentidos – o que diz respeito tanto ao texto quanto à matéria de que é composto. Lentus in umbra (2001) apresenta predominantemente construções fragmentárias: vocábulos que, isolados sintática e/ou graficamente, indiciam significações parciais, cabendo ao leitor decifrá-las a partir das (não menos fragmentárias) estruturas vizinhas; estilhaçadas imagens que se sobrepõem – comumente, vestígios da tradição recolhidos pelo poeta, que não raro sofrem interferências que culminam em um processo de desconstrução.

Não parece despropositado evocar, a respeito do procedimento adotado por Andityas nesse primeiro momento, o princípio estilístico da montagem, conforme pensado por Walter Benjamin; um método que, inversamente ao que pode parecer à primeira vista, nada tem de arbitrário, cujo fim precípuo é uma explosão de estruturas consolidadas que visa à abertura de novas possibilidades. Entretanto, cabe observar os diversos âmbitos em que se inscrevem essas propostas: se a montagem döbliana, analisada pelo filósofo alemão, representava uma estratégia de enfrentamento perante o turbilhão urbano que incitava ao alheamento, a técnica empregada por Andityas tinha outros fins: denunciar a banalização de fórmulas tradicionais, o esvaziamento das vanguardas, o precário lugar do poeta hodierno perante a história. Rechaçando as duas saídas extremas – o servilismo voluntário ou a contestação alienante –, indaga o poeta sobre a própria possibilidade de construção de algo original nos tempos atuais; a polifonia que acolhe em suas composições a um só tempo saúda e subverte a tradição. O poeta desfere um tapa que simultaneamente fere e afaga os colossos de outrora.

A urgência de seguir um passo além resultou em Os enCANTOS (2004). Obra difícil, considerada por Ivo Barroso “um morceau de bravoure, mas também uma espécie de recaída”, por conter “pouco de vivência”; não obstante, trabalho que ocupa um lugar determinado – em certa medida, necessário – na trajetória literária de Andityas. É esse o livro em que o poeta radicaliza as experiências iniciadas em Lentus in umbra, apropriando-se (linguística, formal e tematicamente) dos repertórios poéticos galego-português e provençal. Se a tentativa de reescrevê-los a partir do seu estro não é de todo bem-sucedida, se o tributo à tradição acaba por sufocar a voz de quem lhe rende preito, cabe por outro lado conceber a obra como um momento de transição: ali o poeta exercita a linguagem e testa sua própria dicção, levando as montagens e sobreposições até um extremo em que o próprio sentido acaba por esvanecer-se em meio a citações e fragmentos. Livro intervalar, talvez seja possível pensar Os enCANTOS como uma espécie de obra incompleta por natureza, como o registro de um feixe de movimentos destinados a realizar-se num ponto futuro: estão ali os tênues traços de uma figura inacabada.

Os dispersos vetores finalmente se reúnem em FOMEFORTE (2005), no qual a lírica de Andityas Soares de Moura assume uma forma definida. Embora ainda predomine a dicção fragmentária, já se pode perceber nesta obra a preocupação deliberada com a construção de sentidos mais fixos; aproximando-se de suas fontes íntimas, começa o poeta a esboçar um conjunto de temas mais definidos. Conquanto ainda presente – algo, aliás, inevitável –, o vasto referencial histórico agora ocupa um nível subjacente: a citação começa a ceder espaço para a sugestão poética; alcançando aos poucos sua liberdade, o lirismo passa a nutrir-se do conhecimento, não mais vendo nesse o seu senhor. Nos Poemas do Amar Durecido, já se entrevê um espaço arduamente conquistado – os novos horizontes rumo aos quais seguirá o poeta. Os experimentos tornaram-no um senhor de sua arte; agora, o poeta-pensador toma as rédeas e encaminha o seu carro para territórios noturnos, o que enseja irrupções de intenso lirismo – exemplo maior é “Caminho da mãe”, que traz os admiráveis versos: “Não nos falamos muito. / Nos jardins de Minas / – agreste Minas onde / mamãe me pariu – / se ensina que a palavra / só não vira equívoco / quando é pouca // e sussurrada”. Entretanto, é possível avançar ainda mais.

Algo indecifravelmente veloz (2007) traz, na seção de inéditos, obras assinadas por um novo poeta. Evidentemente, nada foi perdido no longo caminho: a destroçada linguagem, paulatinamente reconstruída, traz agora em cada arranjo as marcas de um singular estilo; a erudita herança, antes exposta, faz-se ainda presente – mas apenas como ponto de partida: na obra acabada, ei-la resguardada entre os versos. Tendo encontrado o seu lugar, pode o poeta erguer-se perante a tradição: já não é mais dela um servo, porque a renova em seu estro. Renunciando ao fragmento, deixando para trás as ruínas sobre as quais anteriormente caminhara, Andityas alcança uma dicção mais afeita ao pensamento de fôlego; as bruscas rupturas e as rígidas montagens cedem espaço a discursos extensos, tecidos com a rude matéria das vivências. Poemas como A palavra (“Só a palavra certa, Amor, / só a palavra certa pode nos salvar”) ou Quid est veritas? (“Só queria dizer a verdade. // O resto sempre foi silêncio, pó e enigma”) encerram uma pungência desconhecida nas obras anteriores. Entretanto, nenhum caminho foi trilhado em vão: sem cinzelar a dura pedra, chegaria o poeta à delicada escultura? Aqui e ali, podem-se entrever as marcas dessa trajetória; as cicatrizes de um extenso caminho – uma década – ao longo do qual o poeta buscou a si mesmo, tateando as trevas à luz de archotes. Despojada de alheias sombras, a poesia de Andityas Soares de Moura pode enfim soar plena, escrevendo a história que antes se ocupava de questionar. A voz dos séculos é, agora, a sua voz.

Henrique Marques-Samyn é escritor, tradutor e pesquisador acadêmico. Colabora regularmente com vários periódicos, entre os quais o "Jornal do Brasil", e tem diversos textos publicados em livros e periódicos estrangeiros.
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