NÚMERO 04
Março de
2010
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ANTÓNIO JUSTO
O cientista faz, o
artista realiza e o crente celebra
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O Homem na sua essência é
Cientista, Artista e Crente |
O português genuíno, Antero
de Quental, ao questionar-se sobre a verdade
diz: “A Religião chama-lhe Deus; a Ciência
chama-lhe ideia… só a Arte fala do Homem e
do mundo… A metafísica e o espiritualismo só
poderão ser destruídos quando, ao mesmo
tempo, forem abolidas a razão e a
consciência humana.“
(1)
Encontramo-nos na infância da
evolução a caminho do Homem adulto; o nosso
conhecimento é demasiado limitado para poder
compreender a realidade dum universo
ilimitado. No debate público domina o
diálogo do preconceito, o saber da
aparência. Esta situação só pode ser
reconhecida por pessoas instintivamente
empenhadas na descoberta da verdade /
realidade. Albert Einstein desabafava;”Que
mundo é este em que vivemos… onde é mais
fácil quebrar o núcleo de um átomo do que um
preconceito.”
O Homem é o sonho do mundo
entre outros sonhos do universo, a caminho
duma Realidade infinita. Através da Ciência,
da Arte e da Religião, procura encontrar-se
naquilo que o supera numa tentativa de não
ver a sua vida reduzida à de Sísifo. Este
foi condenado a viver no Inferno por causa
das suas manhas, constituindo a sua pena
eterna no trabalho sucessivo de arrastar a
mesma pedra ao cimo do monte rolando ela
para o sopé, sempre que ele atingia com ela
o cume.
Uma nova consciência, dos
tempos novos, a irromper pressupõe a
superação dos Sísifos da Ciência, da Arte e
da Religião para, em conjunto permanecermos
no cimo da montanha a presencializar o vale
do passado e do futuro. Daí, nas cores do
arco-íris unidos iremos todos beber no rio o
fluir da vida. Daí compreenderemos o ser do
Verão e do Inverno no escuro das nuvens, na
força da tempestade, no brilho do Sol que
até a noite pontua. Daí nos reconheceremos
vegetação feita de selva e deserto, aridez e
cascatas, luzes garridas e noites coroadas
de estrelas. Daí avistamos e aceitamos os
extremos em nós, num jogo de miragens e
oásis que nos estimula o apetite da vida.
Daí do cimo do monte, juntos seremos uma
bandeira que o povo vê e numa dança de
procurar e encontrar deixa a saudade humana
ao monte subir e aí gozar o longe e o perto,
o passado e o futuro na proximidade do agora
a desfrutar a amplidão do horizonte. Aí,
povo e sentidos todos reunidos na realização
do sentido a caminho da meta do bem e do
Homem.
As três capacidades humanas
fundamentais são pensamento, vontade e
sentimento. A ciência acentua o pensar, a
arte o querer e a religião o sentir. As
três competências fazem parte da mesma alma,
como referiam já Paulo, Dionísio Areopagita,
Clemente de Alexandria e Agostinho, e
correspondem a três caminhos, na descoberta
das fontes do ser e da verdade.
O espírito humano
manifesta-se através da arte, da ciência e
da religião em contínua inter-acção. As três
disciplinas correspondem a três vias livres
na descoberta da verdade livre. Todas elas
se encontram na mesma pessoa, na mesma
cultura, na mesma disciplina afirmando-se
por vezes uma em detrimento das outras. Por
outro lado, mal-entendidos e contradições
fomentam, também eles, energias para novas
ideias e iniciativas na construção do Homem
que não pode estar sem barreiras nem
contradições. As barreiras da linguagem e
das opiniões levam-nos, de geração em
geração, a arrastar a mesma pedra numa luta
de afirmação e contra-afirmação de esquerda
direita, de teísta e ateu, sem a preocupação
livre de verificar o que está por detrás do
esforço sisífico que nos impele.
O cientista Einstein dizia
“apenas calco as linhas que flúem de Deus”.
Se partirmos de Deus como a definição
indefinida, da arte e da ciência como
definições indefinidas mas sempre a ser
definidas, talvez se torne mais fácil uma
redefinição sempre em acto de definição de
cada indivíduo e de cada cultura e com isto
uma cultura de vida integral.
Através da Arte, da Religião
e da Ciência pretende-se tactear a
realidade, tornar o infinito visível, a
verdade palpável. Entre caos e ordem temos a
vontade de formar, criar nova ordem. O ser
consciente não suporta já deixar-se reduzir
a porteiro da própria cultura ou a
guarda-livros duma vida enlivrada, alheio ao
seu processo e a parâmetros de que faz parte
integral. Já não é gratificante ser
apenas cão de guarda duma ideologia, duma
opinião ou instituição. A verdade da arte,
da religião e da ciência impedem que
a vida se reduza a memória ou a desejo. A
vida e a realidade deixam de estar
aprisionadas em museus, igrejas, faculdades,
fábricas ou ateliers reduzindo o ser humano
a ser cativo: prisioneiro do passado e do
futuro, acorrentado à tradição e ao
progresso. Não
chega ter museus, urge viver com as musas.
Já Heraclito (500 a. C.)
reconhecia: “tudo flúi (panta rhei) e nada
permanece…é na mudança que as coisas acham
repouso”. Por detrás da mudança está o Logos,
o Verbo, a informação, a palavra, a acção, o
repouso na mudança. A mudança através da
aproximação pressupõe a contínua atitude de
se gerar no dar à luz, como revela o
mistério da gruta de Nazaré. Quental refere
esta realidade afirmando que o ”fenómeno
antecedente não cria o consequente, é só
condição para que ele se produza…A causa do
fenómeno está na mesma natureza do ser onde
ele se dá…A natureza é o teatro da História,
não o seu agente. As leis da História têm a
sua última raiz nas leis da consciência” (2),
no espírito.
O processo da aventura
humana, no sentido da liberdade é um apelo
contínuo à consciência. Cada um terá para
isso de integrar e realizar em si mesmo as
várias musas que batem à porta do seu
consciente. Isto se não quisermos
limitar-nos a ser cientistas, artistas e
teólogos que, na fuga à banalidade factual
do quotidiano, amarrados ao tempo e ao
espaço, procuram apenas ultrapassar a
fronteira da morte alheia sem reconhecerem o
horizonte para além da natureza.
O carácter do próprio
pensamento e das ciências, arte e religião,
encerrados nos próprios caixilhos e fixos
nos adequados contornos, não permitem ver
mais do que o que encerram, duma Realidade
mais abrangente. São apenas recortes do
mistério. Assim se mantêm qualidades
encarceradas dentro das próprias
disciplinas, longe da sua essência. A
maioria das pessoas rota em torno da própria
órbita no desconhecimento das outras. Assim
se adia a vida e a História vivendo-se em
segunda mão. A verdade dá lugar à própria
opinião. A religião, encerrada em si
mesma é folclore, a arte encerrada nela
mesma é exibicionismo narcisista, a ciência
encerrada nela mesma é ideologia. A
realidade não se pode confinar num
espartilho, o essencial exige um continente
para dele transbordar. Cada época, cada
pessoa, cada disciplina desfolha um novo
capítulo da vida e da História.
Cada vez se torna mais
difícil manter a vista geral das três
componentes bem como uma visão do que é
específico da arte, da ciência e da
religião. Antigamente era mais fácil agir e
sentir sob o mesmo tecto da arte, ciência e
religião; o seu teto comum e a sua meta são
o Bem, o Belo e a Verdade. As suas colunas
são a religião, a arte e a ciência.
A arte expressa a contínua
mudança do tempo em processo dialogal.
Através dela e da religião o ser humano
procura estabelecer relações entre o mundo e
o que o supera. A arte faz parte da
religião. Deus é a realidade toda e nós
somos parte dela! Para Platão a
poesia deve apresentar Deus como ele é
“porque todos os grandes poetas não produzem
as suas poesias devido à mera destreza, mas
porque estão entusiasmados e obcecados por
Deus”. O mistério fala através do brilho da
obra de arte. A forma esconde um conteúdo
transcendente, não apenas documental.
Trata-se, nesta perspectiva, duma vivência
do verdadeiro, do bem e do belo no mesmo
acto. A arte acorda os sentidos para forças
criativas de toda a espiritualidade. Com as
criações da arte podemos descobrir o criador
em nós. |
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A arte |
Com a diferenciação racional
as disciplinas foram-se emancipando e
diversificando. Hoje encontramo-nos, por
vezes, na esquizofrenia da afirmação pela
contradição. A arte instrumentalizada, deixa
de ter valor, perde o significado em si,
para o receber do serviço prestado ou
pretendido. Na modernidade a arte deixa de
ser verdade.
Picasso (1923) dizia: “o
artista tem que saber de que maneira pode
convencer outros da veracidade das suas
mentiras.” Tratava-se da verdade
reduzida ao seu aspecto sensorial. A
necessidade de emancipação dos poderes
estabelecidos correspondia a uma necessidade
de desenvolvimento adequada à consciência do
tempo. Também a mentira pode acordar para a
verdade.
Sócrates defendia o agir
correcto através do conhecimento correcto.
Para Kant (1724-1804) as únicas
fontes do conhecimento são os sentidos e a
razão. Os sentidos (espaço e tempo) são o
pressuposto da imaginação sensorial, da
aparência (mundo das formas). Aqui a arte
quereria apenas a verdade dos sentidos. Mas
a percepção impelida pela alma dá-lhe mais
profundidade activando a razão criativa.
A experiência de jovens que
diminuem a capacidade auditiva devido a
músicas demasiado altas, adverte-nos para o
perigo de se querer deslumbrar com a forma,
com o exterior das coisas, à custa do seu
interior. A demasiada ressonância exterior
pode impedir a ressonância interior, o
acordar da alma, ficando-se apenas pelo
nível sentimental, pelo formal. Consumidores
da arte são, por vezes, obrigados a aceitar
a perversidade como normalidade. Neste caso
pode tratar-se duma arte reduzida a espelho
de fantasias mórbidas; certamente que também
a patologia das emoções não deixa de ter um
certo estímulo.
Uma vivência exagerada ao
nível dos sentidos (da forma das coisas)
pode conduzir à percepção da essência da
realidade. A arte dirige-se a vivências que
humanizam o Homem. Toda a obra de arte tem
um carácter religioso que advém do seu
reflexo no interior de cada observador.
A experiência dos sentidos é
o ponto de partida para a fantasia criativa.
Através do prazer dos sentidos o artista
chega à transcendência dos mesmos, para
entrar no seu Espírito, e poder levar uma
vida não só com gozo mas com felicidade! Na
ressonância transformamo-nos na obra de
arte. No que diz respeito a um concerto de
piano, poder-se-ia afirmar que o corpo se
torna no piano a tocar; a sua vibração
acorda o espírito para uma esfera já não
limitada à forma. Também no deixar-se
embrenhar na escrita dum texto pode
acontecer como que o orgasmo do contexto.
Então, “a mentira” da forma faz reviver a
verdade e despertar para novas realidades. A
arte envolve-nos na esfera da imaginação e
da recordação fazendo vibrar em nós a outra
dimensão, o espírito.
Na arte o ser transforma-se
de modo a poder realizar as suas intuições.
Ela preocupa-se com a realidade. O agente,
através da vontade (arte) cria-se e
realiza-se a si mesmo como obra de arte como
parte da realidade que reconhece e nela
flúi. O artista cria algo, realiza as suas
intuições reorganizando de novo o mundo das
suas percepções. No acto de realizar, o
artista experimenta-se como ser livre, como
espírito liberto. Entra no mundo do além, no
mundo das ideias e torna-as presentes no
aquém.
O artista derrama na obra
energia concentrada. Na qualidade de ser
livre, liberta a realidade e constrói um
novo mundo ao serviço dum mundo novo. Pela
arte o Homem transcende a sua realidade de
produto (criatura) para se tornar produtor.
De criatura passa a criador. Assim ilumina a
natureza projectando-a para lá dos sentidos
com o holofote do espírito. O mundo das
ideias é encaminhado no sentido humano, no
reconhecimento de que o Homem é a
consciência da natureza. Nele ela
reconhece-se. Como obreiro da realidade tem
uma meta a consciencializar. Não é
indiferente fazer ou não fazer ou
desaparecer na massa. O problema é deixar de
fazer, deixar de caminhar no sentido do bem,
da verdade e do belo!
O artista ao fazer o ponto da
situação da arte do passado e do presente e
das suas sub-culturas terá de ter sempre
presente o facto evolucionário (ou melhor,
situado) da História. (Não seria adequado
falar-se da evolução do pensamento mas sim
da vulgarização do pensamento, não do saber
mas de saberes). De facto, a verdade é
interpretável à luz dos fundamentos éticos e
dos novos conhecimentos.
A razão crítica acompanha o
artista na sua representação artística. Para
se não ser subjugado ao domínio da razão
surge o sentimento, a religião como culto
integrador. O pensar grego procura responder
às questões através da reflexão e da
plausibilidade e o pensar moderno através de
tentativa e contínua observação. |
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Ciência |
Com a idade moderna de
Copérnico e Galileu inicia-se a era
científica. Nicolau Copérnico mudou a imagem
do mundo ao colocar a terra a andar à volta
do Sol, passando este a ser um ponto entre
outros do universo. Isaac Newton (1643-1727)
descobre a lei da gravitação tornando-se o
pai da física mecanicista.
A leitura do universo começa
assim a contrapor-se à leitura bíblica.
Deixa de haver a verdade para haver
doutrinas, opiniões. A ciência divorcia o
Homem da natureza que quer máquina e enceta
a via dialéctica reservando para si a Terra
e para a religião o Céu. A realidade passa a
ser apreendida no objectivo e factual
perdendo o seu carácter processual e
subjectivo.
O cientista reconhece algo na
terra e preocupa-se com o geral, com o
possível; para ele a ciência é a
possibilidade. O pensamento é um caminho
para a liberdade. Ele investiga o mundo dos
objectos, a crusta da realidade. Do mirante
do pensamento consegue observar o acontecer
do mundo. O pensamento começa por reduzir
tudo a objecto para assim o poder observar
como realidade individualizada. O pensar
grego reduzia a realidade às ideias, o
judaico cristão ao agir.
Kant acreditava na capacidade
da verdade se afirmar e resumiu o agir
responsável ao imperativo categórico: “Age
de maneira que a Máxima da tua vontade possa
valer em cada momento como princípio duma
legislação geral”. Para ele, moral terrena e
religião correspondem-se, cobrem-se porque a
lei moral no agir é orientada pela razão e
corresponde aos mandamentos. A crença em
Deus não se pode reduzir a uma declaração de
confissão; o seu reconhecimento dá-se
através do cumprimento da sua obrigação.
“Tem coragem de agir segundo a tua razão”,
exorta Kant. Esta exigência tornou-se a
essência do iluminismo e fomenta o espírito
crítico em todas as disciplinas, incluindo a
teológica. O seu compatrício Bento XVI
corrobora: “Não agir razoavelmente é
contrário à natureza de Deus”. Adverte ao
mesmo tempo para o relativismo esvaziante.
O pensamento tropeça nele
mesmo ao reduzir o mundo a discurso e ao
obstinar-se na objectividade. Neste percurso
a ciência desvincula-se do Homem e da
natureza.
A física quântica demonstrou
que a realidade não se deixa definir apenas
pela objectividade, dado, esta ser
essencialmente subjectiva. A ciência precisa
sempre dum acto posterior em que o sujeito
pensante pode ver para lá do objecto
individual restituindo-lhe o seu carácter de
sujeito, o que implica a superação do
dualismo. No fundo também o objectivismo
científico não passa duma soma de
subjectividades cristalizadas. Rudolf
Steiner, em “Ciência da Liberdade”, designa
o caminho da Ciência para a verdade como
“monismo” onde o aquém e o além se
transformam nas duas partes da mesma
realidade ao alcance de quem procura. A
tecnologia é a arte da ciência. O
conhecimento provém da união da ideia com a
percepção.
As teorias são, também elas,
modelos (hipóteses e métodos) de explicação
duma realidade inexplicável. A verdade
científica permanece verdadeira até à nova
descoberta. Novas teorias científicas,
parecem contrariar aspectos da teoria de
Copérnico colocando de novo a Terra com o
seu Sistema Solar num lugar central do
universo (cfr. Teoria em torno do cosmólogo
Clifton). Também a contínua expansão do
universo desde o Bing Bang, há cerca
de 13,7 mil milhões de anos, provocada pela
“energia escura” ou força anti-gravidade
(70% do conteúdo da energia do universo) é
questionada. Ninguém consegue determinar a
natureza da energia escura sendo a sua
existência controversa, no próprio mundo
científico. Também aqui as certezas caem
como as folhas do plátano no Outono. Hoje
como ontem torna-se óbvia a atitude sábia e
humilde de Sócrates de que “sei que nada
sei”. No nevoeiro cerrado da floresta virgem
da realidade vai-se fazendo caminho, passo a
passo, na procura da realidade / verdade.
Para isso não parecem ser suficientes as
catanas dos sentidos e do pensamento. O
pensamento causal da ciência e a visão
mecanicista e determinista de Newton
revelam-se como inválidos para grande parte
da realidade física, como confirmou a
mecânica quântica. Uma ciência divorciada,
sem meta continuará a vaguear no labirinto
que envolve o Homem desviando-o dele mesmo.
Não chega a lógica nem as categorias causais
para descrever a realidade. “A lógica
leva-nos de A para B. A imaginação leva-nos
a todo o lado” (Albert Einstein).
O caminho do conhecimento do
Homem ultrapassa a sua abordagem científica.
A ciência procura conhecer a unidade da
realidade. Através da intuição podemos
consciencializar-nos da sua componente
material e espiritual. „A ciência levanta os
olhos para a ideia através da sensualidade
(sentidos), a arte avista a ideia na
sensualidade (sentidos) ”
(3).
A cultura dá um passo em
frente procurando superar a sensualidade
através do espírito. Na religião prevalece o
acto integrador da fé. O crente faz parte
integrante do acto (litúrgico) não se
distanciando dele como observador, ao
contrário do que acontece na ciência
mecanicista e determinista. |
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Religião |
Antero de Quental, homem
íntegro, que não parou numa posição ou
opinião, confessa o perigo em que incorreu,
afirmando: “Eu acreditei em muitos dogmas da
moderna superstição do Progresso”
(4).
O caminho da religião (re-ligare,
religo e re-legere, recolho) é um processo
de re-união ao protótipo divino (síntese
Jesus Cristo), presente no mais íntimo de
cada um (a natureza de Cristo em nós). Esta
é a religião interior do Homem adulto, do
super-homem de Nietzsche. Aí, no âmago do
ser, se realiza o Homem a acontecer. Jesus é
o primeiro super-homem, o primeiro Homem
realizado. A máxima
“Ama e faz o que quiseres” de Agostinho, é o
resumo da vida cristã, a vida do Homem
superior.
O Homem realiza-se a caminho
da liberdade, integrando o pensamento e a
acção no sentir. No momento religioso o
mundo dos sentidos encontra-se em harmonia
com o mundo espiritual numa relação de
encontro de Homem e Mundo, de Homem e mundo
em/com Deus. A criatura participa do criador
(o cristianismo não é um monoteísmo puro,
nele integra a natureza criada); aí a pessoa
alcança a consciência mais alta da verdade.
Realiza-se misticamente a união do eu com o
mundo, tudo isto em processo. Neste estado
de consciência dá-se a percepção da alma das
coisas. Em termos cristãos trata-se da
experiência da transubstanciação. O processo
de desenvolvimento do eu e da consciência
poderia ser comparado à incarnação e
ressurreição. Primeiro dá-se a descida, a
incarnação do Espírito (Cristo) em Jesus
para depois se dar a subida de Jesus
(matéria) em Cristo, o eu espiritual. O que
em termos cristãos poderia ser referido como
a experiência da realidade da Trindade. Não
se está no mundo, é-se mundo com o mundo a
gerar o mundo, a Realidade. O ser humano
deixa de ser parteira para se tornar em
grávida. A gravidez da vida resulta da
gestação do espírito na matéria que se
encontra sempre em processo de dar à luz. A
religião é a alma da cultura e ao mesmo
tempo o sémen da arte e da ciência. O ser
religioso experimenta-se como ser limitado e
incompleto, a acontecer na relação com o
outro. Religião é ao mesmo tempo lugar da
experiência, da ideia, do rito e da
ortopraxia.
Ora et labora como diz a
regra beneditina. Aqui não há contraposição
mas sobreposição e osmose das diferentes
componentes ou perspectivas do ser humano. A
arte que antigamente tinha a sua casa na
igreja viu-se obrigada a sai para a rua
devido à estreiteza das suas janelas. É
necessário que ela reentre não como escrava
mas como senhora!
O Cristianismo olha para o
mundo com o olhar interior da oração e da
acção partindo dum ser humano ao mesmo tempo
criatura e criador. A religião e as outras
disciplinas têm-se fixado demasiado nas
insuficiências humanas e nos limites
descurando o carácter complementar de todos
os sectores da vida e da realidade.
Deixam-se assim deslumbrar no dualismo duma
dialéctica que vive da contradição e da
auto-afirmação à custa do outro. A
dialéctica é superada pela poética e pela
religião (se bem entendidas!). Religião é
processo, caminho de / para Deus. A tua
conduta é que determina a verdade da tua
religião, a tua veracidade.
Ciência, arte e religião são
diferentes formas de procura e de realização
da mesma realidade que é o Homem, o mundo e
o que o transcende; têm de comum o mundo
espiritual e uma meta conjunta que é o Bem,
a Verdade e o Belo. A mística é a fonte de
encontro onde todos vão beber numa missão de
descoberta e revelação. Trata-se de
redescobrir e reinterpretar o mundo até
agora revelado e de gerar novos mundos.
Para isso é necessário entrar
na relação dinâmica entre as três no sentido
de criar uma nova forma de estar para se dar
à luz uma nova realidade. A ciência e a arte
pressupõem a religião, como podemos
interpretar no aforismo de Goethe:”quem
possui ciência e arte, tem também religião;
quem não tem as duas, tem religião”! A
religião é o substrato.
A música clássica é um
exemplo acabado da sintonia da ordem divina
do mundo, por isso se tornou insuperável.
Teilhard de Chardin fala-nos da
“convergência” do ser. A experiência
religiosa testemunha uma evolução da
experiência espiritual que se processa na
abertura do espírito. Constata-se ao longo
da história humana um evoluir de
consciências. Ao estádio arcaico,
pré-paradisíaco seguiu-se o estádio mágico e
mítico para passar ao estádio
mental-racional em que nos encontramos. No
horizonte já se adivinha o próximo estádio,
o estádio integral. Neste estádio passa-se
da afirmação pela contradição, duma
“mentalidade do ou…ou” para a “mentalidade
do não só…nas também”. A visão a-perspectiva
integra as visões perspectivistas numa
panorâmica global integral. Neste estádio da
consciência integral já não se reconhecerão
as respostas do estádio mental-racional como
respostas definitivas. “O mundo deu o salto
das formas da consciência mágica e mítica
por volta do ano 500 a.C., o que entre nós
aconteceu de forma mais vincada do que na
Ásia; agora a humanidade prepara-se de novo
para um salto; este leva-nos da consciência
mental arracional para a consciência
integral arracional”
(6).
No estádio pré-parasidíaco
bíblico a alma ainda se encontra embrulhada
na natureza, em estado de sonolência. A alma
dorme sem descobrir o outro, sem a
consciência da diferença de homem e mulher,
num estádio androgínico. Na fase de passagem
mágica-mítica descobre-se como sexuado, nota
a diferença (altura em que Eva, mais
desenvolvida abre os olhos de Adão para a
realização, a autoformação). A alma
adormecida procura fora o que nela dorme. A
consciência mítica leva o Homem a separar-se
da união mágica. Começa a olhar para dentro
de si mesmo, reflectindo então nos mitos as
paisagens da alma. É o princípio da
reflexão, da percepção polar.
Milhares de anos mais tarde,
o Mestre de Nazaré, vivendo embora em
ambiente de consciência mítica, supera o
pensar mítico e vence a esfera
mental-racional presente nos fariseus numa
interpretação bíblica demasiado enredada em
abstracções. A transparência do mundo
torna-se visível nele; nele irrompe o aquém
e o além, o “não só…mas também”, a divindade
e a matéria reconciliada no Homem. No
acontecer de J. Cristo realiza-se a
estrutura da Consciência integral. Os
discípulos vivem a transfiguração do mundo
através da força espiritual. Hoje, apesar de
muitos se encontrarem ainda sob as auroras
mágica, mítica, mental racional, mais que
nunca, através dos avanços da ciência e da
reflexão, se encontram mais pessoas
preparadas para compreender a estrutura
integral da consciência a-perspectiva a
querer irromper.
Esta é a fase em que a
Ciência, a Religião e a Arte se irmanam.
Nesta nova fase do desenvolvimento a
religião ou se torna mística ou perde grande
parte do seu sentido, como afirmava Karl
Rhaner.
Para Teilhard de Chardin
evolução é o subir da consciência do mais
profundo da matéria no sentido convergente
do Ponto Ómega
(5).
A meta da História cósmica e humana é o
Ponto Ómega. O desenvolvimento da
consciência na matéria encontra-se
documentado em J. Cristo no qual a matéria
floresce no espírito, tal como a vela
ardente que em si reúne matéria e
“espírito”.
A teologia da Trindade e a
Física quântica reconhecem a Realidade, por
diferentes vias, como relação de
complementaridade e interacção. No princípio
era o Verbo, a informação!...
Também a biologia reconhece
na natureza o princípio da colaboração em
contraposição duma biologia em serviço da
ideologia, unilateralmente centrada no
princípio da selecção natural.
É óbvio o surgir duma nova
era em que a dialéctica se revela apenas
como uma técnica de abordagem e não como a
realidade adulterada numa perspectiva
meramente linear ou cíclica
(ocidental/oriental). A dialéctica é
superada pela poética, pela religião e pela
física quântica. No encontro da Ciência da
arte e da Religião processa-se ao mesmo
tempo o encontro do Ocidente com o Oriente;
os dois pólos da realidade reconciliam-se
numa perspectiva integral.
A Realidade é a-perspectiva
sujeita a abordagens de perspectiva que,
como tais, só se tornam verdadeiras numa
relação de complementaridade. A apreensão da
verdade é possível, muito embora na
consciência da roupagem da própria
perspectiva.
Não se trata de não progredir
ou de não regredir mas de evitar o
pragmatismo oportunista e de entrar num
processo de mutação na colaboração de
ciência, arte e religião, em respeito mútuo.
Auto-afirmação através da
afirmação e confirmação do outro.
A Realidade é como uma casa
feita só de portas e janelas. Na existência
sabida e sentida, por mais portas que se
abram, mais portas ficam por abrir. A
religião, a Ciência e a Arte não poderão
continuar a reduzir a sua missão a porteiros
da realidade, reconhecendo-se parte dela.
No fazer, realizar e crer
estamos todos a dar resposta à questão: quem
sou eu? Eu sou no tu do nós!
Ulisses é o protótipo do
Homem ocidental, que é de natureza
transpessoal.
Ele no seu plano, ao contrário da ciência e
da tecnologia, tinha uma meta existencial na
vida que era atingir a “sua terra”, o
Bem, a Verdade e o Belo. Porque tinha sempre
uma meta maior a atingir, não se perdeu nem
reteve numa circunstância da vida ou num
lugar. Ítaca e Penélope davam-lhe força para
continuar o seu caminho. O caminho
enriquece-o e a meta torna-o sábio. Ao
chegar à terra tinha conseguido reunir nele
todo o saber da vida. Tinha chegado ao
profundo dele mesmo! |
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Notas |
(1)
Antero de Quental, Pensamento Português, p.
146, Editorial Verbo
(2)
Antero de Quental, Pensamento Português, p.
191 Editorial Verbo
(3)
Rudolf Steiner in Grundlinien
einer erkenntnistheorie der Goethschen
Weltanschaung, mit besondrer Rücksicht auf
Schiler.GA Bibl.-Nr.2 Dornach, 7.Aufl.1979
(4)
Antero de Quental, Pensamento Português, p.
102, Editorial Verbo
(5)
Pierre Teilhard de Chardin, O Fenómeno
Humano, Livraria Tavares Martins, Porto 1965
(6)
Jean Gebser, Hasienfiebel, p.157, Bern 1962
©
António da Cunha Duarte Justo,
Pegadas
do Tempo |
ANTÓNIO da Cunha Duarte JUSTO
. Nasceu em
Várzea-Arouca (Portugal)
Professor de Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da disciplina de português na Universidade de Kassel .
Algumas publicações: Chefe Redactor de Gemeinsam, revista trimestral do Conselho de Estrangeiros de Kassel. Editor da Brochura bilingue: "Pontes Para um Futuro Comum – Brücken in eine gemeinsame Zukunft", Caritas, Kassel. Autor de „Kommunalwahlrecht für Ausländer – Argumente“, Kassel, 1987. Co-autor de „Ausländerbeiräte in Hessen - Aufgaben und Organisation“, AGAH e Hessische Landeszentral für politische Bildung, Wiesbaden, 1988.
Colaborador de vários jornais e do programa de rádio semanal de português de Hamburgo.
E-mail:
a.c.justo@t-online.de.
http://blog.comunidades.net/justo
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