Esta reflexão foi elaborada sob o signo da dúvida, já que cada vez mais me interrogo pessoalmente sobre as reflexões, sempre provisórias, sempre subjectivas, sempre incompletas. Acredito mais no absoluto, intemporal rigor da poesia. Ao iniciar a escrita, tendo aberto um livro contendo algumas reflexões de Blawatsky sobre a forma de calendário, deparei-e com o seguinte aforismo:
Que é, afinal, uma “autoridade” sobre qualquer questão? Nada mais do que um jacto de luz sobre dado objecto, projectado através de uma simples fresta, mais ou menos ampla, iluminando-o “de um só ângulo”.
Ora, considerando que não sou nem de perto nem de longe, uma autoridade sobre qualquer questão e muito menos sobre esta, penso que qualquer equívoco relacionado com alguma afirmação, ainda que involuntariamente mais dogmática, fica assim relativamente salvaguardado.
A tradição e a modernidade são duas faces de uma mesma moeda estabelecendo entre si uma relação especular: moderno é tudo o que se demarca em relação àquilo que permanece como tradicional, tal como tradicional é tudo o que se demarca em relação àquilo que se apresenta como moderno.
O que não invalida que a tradição possa ser de uma modernidade absoluta, por intemporal. O contrário já não me parece ser verdade.
Tradição é, segundo o dicionário, “transmissão oral dos factos, lendas, dogmas, doutrinas, ritos, costumes, etc, de geração em geração.”
Moderno será o “que existe há pouco tempo; que ocorreu recentemente”.
E Progresso é definido como o “movimento para diante, aperfeiçoamento, melhoramento. E também “Evolução gradual de um ser ou de uma actividade”.
Há que dar atenção a esta característica de “gradual” que muito tem a ver com certas ordens iniciáticas, onde é por graus que as aprendizagens vão sendo feitas.
Cito, a este propósito, um excerto de uma crónica de Miguel Sousa Tavares do dia 1 de Janeiro do ano 2000, in Público:
“O erro de entender a passagem do milénio como um marco, o erro dos milenaristas e de todos os fanáticos dos números redondos, é acreditar que a continuidade se estabelece por rupturas e não por fusões sucessivas”
Ora, assumindo-me como incorrigível e romântica milenarista e fanática de números redondos, não posso deixar de pensar que ele tem alguma razão naquilo que afirma, apenas lhe faltando a capacidade para fazer a grande fusão que defende, que é a fusão entre ambos os processos, é entender que o crescimento se processa de ambas as formas, por rupturas e também por fusões. Recusar-se a ver a ruptura é ficar-se também por uma forma excessivamente romântica e idealista do crescimento e da evolução. Se a ruptura não existisse, nem sequer teria nome. Não é isso ao fim e ao cabo a passagem de grau? Ao mesmo tempo a união entre a ruptura e a fusão, num acto de infinito amor.
Continuo a citar Sousa Tavares na sua reflexão em torno de uma das mais importantes descobertas do milénio, a perspectiva no desenho:
“A condenação de Galileu é o último marco simbólico na tentativa de impor à vontade de conhecimento dos homens o terror de Deus. A partir daí, abre-se o horizonte, e o homem descobre, contra o mundo fechado que lhe propunham, a fascinante visão da profundidade.”
Continua a ser verdade o que diz, mas parece-me também que continua a ser excessivamente parcelar, pois se o homem descobriu na pintura a visão da profundidade, não conseguiu ainda transpô-la para a vida, pois apenas escondeu o terror de Deus com o terror de si próprio, no que se substituiu perfeitamente ao terrível, ameaçador e catastrófico Deus do Antigo testamento. A questão não estava em substituir um terror e um orgulho divinos por outro de rosto mais humano mas igualmente desfigurado e monstruoso, mas em substituir o terror, pelo amor. O caminho para isso? Parece ser esta via sacra em direcção ao progresso, feita de rupturas e fusões que a humanidade vem protagonizando, mas adquirindo cada vez mais consciência do processo. Os graus iniciáticos podem ser uma das formas de aumentar essa consciência.
Habituámo-nos a dividir o progresso em três categorias: intelectual, cultural e material, sendo o primeiro o domínio da mente sobre os problemas e as realidades da vida, o cultural, que tem a ver com a dedicação à função do belo e do verdadeiro na vida, e o material preocupado com a obtenção dos bens indispensáveis a todos os homens.
Talvez o problema venha mesmo daí, desta separação e parcelamento da própria essência.
No entanto, esta ideia de progresso não é uma ideia de sempre. Os Judeus sempre se preocuparam mais com o paraíso antes da queda, os gregos e os romanos com a idade de oiro, e todos os messianismos de tipo judaico em restaurar as glórias passadas.
O cristianismo superou a concepção judaica, mas transportou-a para fora deste mundo. Bacon e Descartes terão sido os primeiros a sugerir que a sorte da humanidade poderia melhorar perante a aplicação da ciência aos problemas humanos. O século das luzes foi o maior defensor do progresso, associando-o à razão. Hegel, através da concepção dialética da história da tese, antítese e síntese.
Há que não esquecer Darwin e o evolucionismo, assim como os ideais marxistas e a filosofia materialista da história.
As duas guerras mundiais, os fanatismo das religiões e o insucesso, quer do marxismo quer do capitalismo e do liberalismo, vieram devolver à humanidade do século XX algum cepticismo em relação à confiança na inevitabilidade do progresso. Surge então a ideia de mudança social contendo o conceito de decadência que actualmente se associa à cultura ocidental.
Do universo tranquilizador e fixo do século XVIII, ao do século XX probabilístico, descontínuo, diferentemente interpretável, regido por um tempo e um espaço que não são absolutos, vai um abismo.
E no entanto, o universo é o mesmo. O que terá mudado? Apenas o nosso olhar. Foi nos olhos e depois nas mãos, que encontrámos a modernidade. O que mudou foi a nossa explicação para o universo, porque as pessoas e os fenómenos são os mesmos. Como no momento da iniciação. Dizem as várias tradições que a primeira revelação que o iniciado tem é a do olhar, quando os olhos são desvendados e a luz resplandece. Depois, é-lhe pedida a pureza das intenções é muito perigoso o contacto com o poder da luz. Muito teríamos a aprender com isto, nós profanos.
A modernidade é o novo olhar, o progresso são as mão limpas.
E no entanto, neste universo que a ciência ocidental veio moldando com um homem em que a consciência da alma veio sendo quase exclusivamente subordinada à da matéria, neste homem dividido, algo está a mudar. Grandes cientistas vêm-nos dando lições importantes. Bohr escolheu para símbolo o yin-tang taoista, Pauli, face à generalidade e equilíbrio do modelo atómico aplicado aos corpos animados e inanimados, acreditou na “anima mundi”, e Einstein afirmou que o princípio orientador de qualquer obra científica é um sentimento em tudo semelhante ao que anima os espíritos tutelares religiosos em todos os tempos.
Damásio contrapõe ao “Penso, logo existo” o “Sinto, logo existo.”. Estamos em tempo de mudança.
Na segunda metade do século XX deixámos para trás a solidez das ciências experimentais da física, da química, da biologia, e a subserviência dos filósofos do século XIX a estas, e com duas guerras para digerir, a velocidade vertiginosa da contemporaneidade, a subserviência do homem à própria máquina que criou, a competitividade e o desencanto da sociedade pós-moderna predispuseram a filosofia e a ciência a um novo encontro. Após um passo de afastamento, estes companheiros reencontram a caminhada conjunta.
Caminharemos finalmente em direcção ao progresso?
Popper considerou a tradição, a intriga e a imaginação intelectuais, como fontes do saber. E acrescenta que não existe uma fonte derradeira do conhecimento. Diz: “Qualquer fonte, qualquer achega, é bem vinda, muito embora seja também objecto de verificação crítica.”
Ora, não é isto, por outras palavras, o que procuramos fazer no trabalho interior? Isto é: aceitar todas as contribuições como participação de direito mas não definitivas?
Na sociedade pós-moderna habituámo-nos a associar por vezes a técnica a uma certa forma de escravização, logo, ao contrário do progresso, porque assistimos justamente à escravização do humano. No entanto aí vem a aproximar-se uma sociedade que não sabemos ainda como designar, mas onde a ciência e a técnica poderão ajudar a aproveitar as possibilidades de libertação que a superindustrialização nos oferece para nos desenvolvermos harmoniosamente como seres individuais e sociais.
Não se trata já apenas de uma questão de qualidade, mas de sobrevivência, que nos obriga a abandonar a velha, mas não morta, visão dicotómica.
A noção de homem simbiótico compromete o crescimento e o desenvolvimento do ser humano com o crescimento e o desenvolvimento de outros seres, animais e vegetais, a natureza, a terra, mas também os objectos e as máquinas, igualmente merecedoras da nossa compaixão, já que estão inocentes da responsabilidade da sua criação, a qual nos cabe exclusivamente.
Fala-se agora em meta-ciência, ciência ética, ou, como diz Raquel Gonçalves com graça, a “Moral da História”, uma ciência culta, filantrópica, mas mais que isso, amiga de todos os seres, animados e não animados, visíveis e não visíveis, uma ciência integrante, consciente, reflexiva e ética, com objectivos culturais e não económicos, que sirva a inteligência do universo e não as potências económicas.
É momento propício para acolher o pensamento de um filósofo como Levinas, judeu nascido na Lituânia em 1906, que rompe com a tradição filosófica que de Platão a Hegel fazia percorrer ao “Outro” o caminho até ao “Mesmo” através do saber/poder do pensamento. Estes filósofos, ao pensarem o outro queriam neutralizar a sua alteridade. Pensamentos de totalidade, pensamentos totalitários? Levinas coloca o momento ético (encontro com o outro) antes do ontológico (triunfo do ser) e demarca-se também do pensamento heideggeriano que amarrava o Outro ao Ser.
O Outro é outro: seria este o grande espanto, o primeiro e o último, de Levinas. É sobre esta afirmação que ele edifica a sua filosofia que pretende “sabedoria do amor ao serviço do amor”. Esta proposição/definição exprime uma exigência: se a filosofia quer compreender a humanidade – o humanismo – do homem, ela deve, sem vergonha nem ênfase, colocar-se “ao serviço” deste mistério – o Outro -, deste milagre – o amor -, não pretender mais que uma generosidade do Mesmo em relação ao Outro e uma ingratidão do Outro em relação o Mesmo. Porque a “gratidão seria precisamente o retorno do movimento à sua origem”, o Humanismo do outro homem.
A moral da sua filosofia enuncia pois um sim ao Outro. Sim à sua ausência. Sim à fraqueza do pensamento. Sim à sua indiferença. Sim à renúncia. Sim ao meu sofrimento pelo outro e sim à minha morte. Sim ao bem do outro. Sim ao sacrifício e à dádiva. Sim ao amor e à moral do amor.
O tema é tão lato que poderíamos levar o resto da vida a reflectir sobre ele e não chegaria. Até porque se pode aplicar a todas as áreas da nossa existência.
Vejamos um tema aparentemente tão comezinho como é o do vestuário: Grande parte da protecção que nos é oferecida pela roupa parece ter uma raiz mais mágica e simbólica do que real. Não me refiro apenas às imagens e aos amuletos, mas aos seus substitutos, as gravatas suspensas no peito, as pulseiras, as actuais tatuagens no corpo. A necessidade, ainda que inconsciente, de perpetuar símbolos antigos leva-nos a pensar que o ser humano não quer ou não pode abdicar da tradição, mesmo num nível ainda considerado tão pouco nobre, como o vestir. O vestuário ou os paramentos simbólicos na sua relação com as energias mais subtis dos chacras. Pensemos na simbologia do vestir. Não deveríamos nunca envergar o nosso vestuário sem nos relacionarmos com este acto em termos simbólicos, ignorando a alteração que o gesto tem a capacidade de trazer ao nosso corpo e consequentemente à nossa vida, ele pode ser uma verdadeira ponte entre a tradição e o progresso através de um pensamento verdadeiramente moderno, quer dizer, abrangente, complexo, unificador no verdadeiro sentido, isto é, um pensamento onde a tradição e o progresso se fundam numa mesma coisa.
É esta a moderna alquimia, a renovação do antigo, transmitindo-lhe uma nova vida à luz da modernidade.
Os alquimistas medievais procuravam aquilo a que chamavam a Quinta Essência, um espírito subtil expandido por toda a natureza e que se vinha juntar aos quatro elementos. Todas as destilações que eles tinham feito de muitos corpos para extrairem o “espírito” tinham falhado o isolamento desta Quinta essência.
É a alquimia luliana que a atinge, ao descobrir que o álcool, a aguardente que ela acabava de purificar, se revelava capaz de extrair das plantas várias espécies de substâncias aromáticas voláteis. Bastava para isso que esta aguardente, da qual o operador testava o grau de purificação pela sua inflamabilidade, atingisse um estado de grande pureza.
Pierre Lazlo, grande químico contemporâneo, chama a atenção para a cada vez maior intercomunicação entre as ciências e a não ciência, entre as técnicas e a não-técnica, e a filosofia, e desta, recentemente, a ética, assim como uma perspectiva social e verdadeiramente humanista de onde os outros seres não sejam arredados.
Diz ele: “Reabilitar a Alquimia como uma verdadeira ciência de onde a química moderna muito herdou, quer se trate de conceitos quer de procedimentos.[...]”
Aliás há que não esquecer o fascínio que a alquimia sempre despertou, mais ou menos assumidamente em alguns cientistas, desde a actividade alquímica secreta de Newton, aos processos ainda hoje utilizados, a destilação, o reconhecimento e a união dos contrários. Foram de alquimistas os primeiros laboratórios conhecidos.
É esta alquimia que temos hoje que redescobrir, sendo que o processo é cada vez mais o de ligar a consciência aos apelos e às pulsões do inconsciente.. Se não temos um laboratório de alquimista, temos as nossas cozinhas, se não temos retortas, temos os nossos corpos, se não temos o espaço para o recolhimento, temos a alma, sempre pronta a acolher-nos quando não nos esquecemos dela. É esse o nosso laboratório; não nos esqueçamos de trabalhar primeiro a pedra sobre que ele assenta, nós próprios, porque todos os ideais de purificação tendo como alvo o exterior nunca deram bons resultados. Há que virarmo-nos para o próprio observador e fazer a grande alquimia de transformá-lo em observado. Aí veremos reflectido o mundo, com as suas virtudes e os pecados, porque tudo está em nós, microcosmos de tudo o que existe, por isso mais responsáveis do que ninguém.
A via é a do estudo e da meditação para uma maior consciencialização do processo evolutivo até aos nossos dias, para atingirmos pelo menos alguns laivos de compreensão que nos impeçam de acreditar que tudo o que existe foi descoberto por nós, quando afinal não passamos de herdeiros que pouco fizeram para merecer a riqueza recebida.
É conhecida de todos a cada vez maior aproximação das novas descobertas da ciência a um saber tão antigo que ignoramos de onde vem, embora, por comodidade, nos tenhamos habituado a atribuí-lo a Hermes Trimegisto, o símbolo do grande saber oculto, com os seus aforismos.
A tradição é tanto mais válida quanto faz de nós seres modernos na acepção da palavra que nos interessa, quer dizer, esclarecidos, conformes e vibrantes com o nosso tempo, anseios e necessidades.
E ela é tanto mais válida quanto mais recua, como se a distância a limpasse.
A tradição é o lugar para onde nos é permitido o movimento de recuo necessário a um olhar distanciado, ou crítico, sobre a modernidade. E se o que está em cima é como o que está em baixo, talvez a modernidade seja uma certa forma de manter viva a tradição e aquela seja a chama viva intuitiva e inteligente com que a humanidade sempre se antecipou ao seu próprio futuro.
A tradição traz mais consciência à modernidade, logo, mais progresso.
O progresso surge quando da luta entre a tradição e a modernidade nenhuma é completamente derrotada e o equilíbrio irrompe.
Sendo nós seres em trânsito entre milénios, no patamar entre o passado e o futuro (privilegiados que somos), é profundamente conscientes dessa condição de seres de passagem que olharemos e escutaremos, com uma particular atenção à reunião das coisas antigas e das outras que estão ainda aí (permanentemente) a nascer e que apenas poderemos reconhecer em pequenos e instantâneos sinais.
Procuraremos ouvir no som das sirenes de Álvaro de Campos ou nas campainhas/flores olhadas por Alberto Caeiro o eco dos estranhos e desconcertantes sons que aí se vêm instalando por vias virtuais.
Não queremos alienar-nos, nem do som arcaico do vento ou do velho gongo do cinema antigo nem da vibração electrónica das tecnologias em permanente mudança. Queremos tudo. Que nos sintamos tão felizes e tão nosso meio, na nossa cozinha como ao volante de um carro, ou sob a abóbada de um templo, como mergulhando nas sensuais e acariciadoras páginas de um livro ou navegando nas águas da internet, passeando com uma flor numa mão e na outra uma disquete, por entre peças de arte que queremos ver por aí expostas em todo o lado para que nos transportem até ao mais fundo de nós mesmos através do som cavo do inconsciente.
Para isso contaremos com todos, pois a lógica do futuro não é exclusiva, mas inclusiva.
Na ainda recente mágica e tão real quanto virtual passagem para um novíssimo e polémico milénio que ainda não tinha chegado e já despertava paixões e acendia discussões acerca da data do seu nascimento (2000 ou 2001?), é com o precioso sentido da relatividade das coisas e das datas e de tudo que o iniciamos, o que já não é mau. Assim há esperança de nos irmos aproximando do progresso. Mais importante que o rigor do número é o sentimento, e este sentimento de entrar numa nova fase da vida da humanidade é rigorosamente mágico.
Fica a esperança que este homo sapiens a que a tradição nos habituou possa assim passar pelo moderno tecno sapiens em que se vem transformando sem que se destrua, mas que continue a sua caminhada rumo ao progresso, isto é, àquilo que gostaríamos de poder vir a designar um dia como o homo amorosus. |