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RELIGIÃO, CIÊNCIA,
RITUALIDADES
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO |
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Acreditar em Deus quer
dizer compreender a questão do sentido da
vida. Acreditar em Deus quer dizer ver que
os factos do mundo não resolvem tudo. (Wittgenstein,
Carnets).
Let’s deconstruct science
and make it a narrative among narrative
inside a flow of narratives. (B. Latour,
Spheres and Networks).
Depuis trois cents ans, la
science a plaidé le contraire
pour retomber aujourd’hui sur cette
découverte très scientifiquement au moment
où on s’y attend le moins. Autrement dit,
la pensée apocalyptique n’est plus folle,
elle est en train d’entrer dans la vie
quotidienne Michel Serres. |
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Não há cultura (que Husserl resume na fórmula “mundo do
homem”) que não tenha elaborado e
desenvolvido tradições de sabedoria em que
se exprimem e transmitem visões do mundo,
acompanhada da percepção do lugar que o
homem ocupa na sociedade e no cosmo.
O mundo é
objectivo, objectal, problemático (segundo a
raiz de ob-jectum). A própria cultura
se pode definir como a soma total dos
objectos usuais.
Estas sabedorias são como que o “capital cultural” da humanidade. A
criação de um Studium generale por
toda a Europa, de Lovaina a Oxford, Lisboa e
Cracóvia, entre os séculos XIII e XVI, tinha
como propósito a investigação que tinha como
objectivo interpretar e assumir o mundo de
forma racional. O studium ocupa, de
facto, na Idade Média, o lugar do terceiro
poder, ao lado do sacerdotium e do
regnum. Foi esse o tempo dos
humanistae. Foi claramente o tempo da
subordinação do studium
ao
sacerdotium
e ao
regnum,
com implicações ainda visíveis até ao século
XVII no caso Galileu.
Vimos da guerra dos
paradigmas, da luta pela hegemonia nas
ciências; vimos do divórcio, primeiro, e
depois da coabitação, do concordismo entre
as ciências da natureza e as ciências do
espírito (Dilthey). A dissolução do laço
entre o homem e o universo é efeito da
ciência moderna, copernicana, kepleriana,
galileana, isto é, da descentragem do homem
no meio do universo, da crítica da
finalidade e de um conceito de lei que
alinha os homens ao lado dos outros
fenómenos. Há quatro séculos que esta crise
dura. O exemplo do darwinismo é eloquente. A
visão científica do mundo tornou caduco o
princípio da analogia que Paracelso
levara ao extremo: as plantas medicinais
levavam uma assinatura que identifica e
autentificava as suas virtudes. A situação
no que concerne a relação entre discurso
científico e discurso religioso hoje é ainda
muito contrastante: ou de ignorância mútua,
ou de indiferença. Somos herdeiros de um
conflito que se prolonga desde a Idade Média
tardia e que no século XVII se tornará cada
vez mais manifesto, codificadas que estão
então as regras do espírito científico nas
obras de Bacon, Galileu, Descartes, Locke e
Gassendi. A Alemanha é abalada, no fim do
século XVII, por uma reviravolta do saber. O
sistema religioso de saber e de verdade em
que o papel dos sábios se limitava a lutar
contra as falsas doutrinas é
progressivamente abandonado e substituído
por uma nova organização que visava o
desenvolvimento do saber. Esta passagem é em
grande parte o resultado de uma querela:
trata-se da controvérsia pietista no
interior da igreja luterana. O pietismo
tinha como finalidade introduzir a crença na
vida quotidiana, e por prática reunir em
conventículos e de ler a Bíblia em conjunto.
As origens da querela estão nestas novas
práticas de piedade, que eram as reuniões
privadas, e na reacção da parte conservadora
do clero, muito reticente perante aquilo que
consideravam como uma ameaça para a
autoridade da Igreja estabelecida. Era todo
o sistema de gestão da verdade e do saber
instaurado pela Igreja evangélica que estava
em causa. Aqueles que aspiravam a exigir uma
utilidade social da ciência para lá da sua
simples sujeição à Igreja tiveram aí uma
ocasião excepcional para se fazerem ouvir. O
conflito interno à Igreja e as forças
exteriores de reforma acabam por se
reforçar, levando à afirmação de um novo
sistema científico que autorizava a
existência de um espaço público já em plena
expansão. Por aqui se vê como o nascimento
da ciência moderna desestabilizou o
equilíbrio multissecular do pensamento
ocidental. Em causa esteve sempre a questão
do fundamento, argumento para
fundamentalistas e reducionistas de todos os
bordos. Não é o conceito de razão
absoluta e incondicionada como fundamento o
preconceito essencial da modernidade? A
ciência aparece hoje como a antítese da
magia – acção à distância, como tecnologia
não controlada geometricamente. A ciência
impôs-se aos homens porque, por razões
morais, religiosas, se deixou de perseguir
as bruxas. Mesmo se a ciência experimental,
que tem em R. Bacon um dos seus maiores
epígonos, tem uma dívida para com as
ciências a que chama ocultas. Para Newton,
que praticou a alquimia muito tempo, a
gravitação era um fenómeno oculto
(inexplicado). Mesmo se “A Física é uma
magia controlada pela geometria”, como
escreve R. Thom. Ao fim e ao cabo, a relação
entre magia e ciência é uma relação entre
dois modos de controlo do imaginário; no
caso da magia, o imaginário das pregnâncias
é controlado pela vontade dos homens (ou de
alguns, os mágicos, peritos em práticas
eficazes); no caso da ciência, o controlo é
definido pela generatividade interna à
linguagem formal que descreve as situações
exteriores e sobre que o homem não tem
domínio (1). Este
divórcio tem como origem a
Naturphilosophie, que apareceu no século
XIX. O estudo da física sagrada e da
teosofia revela uma face da modernidade
marginalizada por filósofos como Kant e
Hegel (2). O princípio
moderno da autonomização das ciências
relativamente a uma qualquer tutela
ideológica vai de encontro à exigência de
libertar as ciências humanas de qualquer
juízo normativo, mas acaba por desaguar numa
concepção cientista das ciências, afinal,
uma nova figura da submissão à ideologia. A
ciência tornou-se um moralismo dogmático. No
mundo católico foi a crise modernista que,
no fim do século XIX e no começo do século
XX revelou, de maneira drástica o conflito
entre as pretensões da teologia natural e os
progressos vitoriosos do cientismo (o
cientismo é uma ideologia que afirma que o
valor cognitivo se define pela aplicação
correcta de métodos científicos). Os
modernistas (Alfred Loisy, Edouard le Roy)
tinham em comum uma abordagem fenomenalista
da ciência e uma interpretação simbólica da
fé religiosa. A ciência, diziam, não nos dá
a verdade, no sentido em que de ordinário a
entendemos; ela é a esquematização de dados
empíricos sob forma de construções teóricas
cujo valor é mais operatório e antecipador
do que cognitivo, se este último termo evoca
a descrição do mundo tal como ele é
“realmente”. A verdade religiosa não se
deixa encerrar em formas intelectuais: as
suas intuições de base encarnam em símbolos
sujeitos a mudança, não nos dando nenhuma
versão definitiva, sem se subtrair a
contingências históricas dos meios de
expressão. A única via de acesso à verdade
religiosa é a de a experiência pessoas,
impossível de se manifestar de modo
satisfatório no quando do discurso
intersubjectivo. O divórcio entre Revelação
e ciência está consumado: a ciência não tem
qualquer meio de pronunciar juízos sobre o
divino. A ciência e a religião diferem em
todos os pontos: nos objectos, o modo como
adquirem os seus saberes, a significação das
verdades a que pretendem. Não se trata de
propor a reconciliação das Luzes e do
Romantismo (à maneira de Schleiermacher).
Não se trata de dissolver o cristianismo na
religião em geral, perdendo-se o sentido da
transcendência e fazendo da afirmação de
deus o simples correlato do sentido de
dependência absoluta do sujeito humano. A
teologia de K. Barth aparece como uma
vigorosa crítica da modernidade (do
optimismo Leibniziano ou Rousseauista) que
tendia para a humanização da religião. O
exemplo de Gramsci é ilustrativo de uma
outra atitude: a história da cultura e da
sociedade italiana, desde o Renascimento,
aparece como uma emancipação em relação à
Igreja, uma afirmação da mundanidade contra
a transcendência, projecto que hoje G.
Agamben reclama: “a profanação
implica (...)
uma neutralização daquilo que profana. Uma
vez profanado, aquilo que era indisponível e
separado perde a sua aura e vem restituído
ao uso" (3).
A profanação, tanto quanto a secularização,
é uma operação política mas enquanto esta se
relaciona com o exercício do poder, que
legitima, "reportando-o a um modelo sacro",
a profanação, no entanto, "desactiva os
dispositivos do poder e restitui ao uso
comum os espaços que isso tinha confiscado".
É tão estúpido pensar que
tudo tem de ser é objectivo ou subjectivo,
naturalista ou relativista. Queremos os
factos, a veracidade dos factos, porém os
factos foram construídos. Deste modo se pode
ver como o conceito de objectividade vem
redefinido à luz de problemas que se
levantam. O rigor não está tanto nos
resultados como pode estar no processo para
chegar a esses resultados. Não sendo assim,
a objectividade torna-se fetichista. Há uma
visão fetichista no jornalismo como nas
ciências. Entramos numa época que assinala a
crise da razão central. A ideia centralizada
da razão, da possibilidade de reconduzir
tudo a uma unidade fundamental perdeu-se
pelo caminho. A uma razão central sucedem
razões locais, jogos de linguagem múltiplos.
O pensamento frágil acontece em torno do
programa que pôs em questão o sentido da
transformação da razão. |
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Da
Ciência |
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O começo
do século XVII traz em germe uma reviravolta
do conhecimento, quando Galileu contestou a
realidade das qualidades sensíveis do
universo, pondo-lhe objectos materiais
extensos, dotados de figuras. A natureza
torna-se uma máquina gigantesca: “A
filosofia está escrita nesse imenso livro,
continuamente aberto aos nossos olhos (quero
dizer o livro do universo), mas nada podemos
compreender dela se não aprendemos primeiro
a sua língua e os seus caracteres. Este
livro está escrito em língua matemática e os
seus caracteres são triângulos, círculos e
outras figuras geométricas, sem as quais é
impossível de compreender humanamente uma
palavra sua; fora destas encontramo-nos em
vão num labirinto obscuro” (Saggiatore
VI, 32). Depois de Galileu, a hierarquia das
ciências e dos saberes na universidade ruiu.
Nem a teologia nem a filosofia
(aristotélica) podem ser a “rainha das
ciências”. A tecnociência, como bem o viu
Dominique Janicaud, é praticamente
contemporânea (4) do nascimento da ciência
moderna. Com Descartes e a formulação
matemática deste conhecimento geométrico
funda-se a ciência moderna, a abordagem
físico-matemática do universo. Deus é
Infinito e o mundo é à sua imagem. Em Deus,
é impossível distinguir fins e meios. Nós
somos apenas uma parte do Todo que nos é
inacessível. O mundo tem de ser entendido
como o produto da Sabedoria e da Razão
divina. Segundo a imagem bíblica, o mundo é
a obra dum artesão e a metáfora leva – nos a
ver na natureza uma obra artificial que é
abordada como um mecanismo. Artificialismo e
mecanismo são as duas abordagens cartesianas
da natureza; a Natureza perde a sua
interioridade, a sua orientação para se
tornar obra dum Artesão abandonada ao
engenho de outros artesãos que tentam
compreender os seus mecanismos. Descartes
elimina a ideia de valor da natureza. Ele
não vê nela – como no caso do corpo humano –
senão o agenciamento interno dos órgãos, as
suas propriedades constitutivas. O conceito
de “direito natural” era válido quando os
conceitos de natureza e de razão se
interpenetravam; o que deixou de ser o caso
com m nascimento da ciência moderna e em
particular com a teoria da evolução que
dissociam a natureza e a razão (5).
O sucesso
da ciência levou a considerá-la como um
conjunto de métodos específicos, mas o que
faz o seu sucesso é menos o método que o
tipo de objecto a que se aplica uma
reflexão, liberta dos antigos
constrangimentos do sagrado. A ciência mais
fundamental, a Física, em vez de se unir sob
a égide da electrodinâmica, ou da medicina,
como se esperava no fim do século XIX,
dividiu-se em numerosos ramos; entre estes,
dois, essenciais, a relatividade e a física
quântica, ainda em demanda da sua síntese. O
fantasma perseguida era a Verdade das coisas
e do mundo. Ora, a Verdade, se existe, não é
entidade sobre que o método racional pode
desembocar. O método racional permite
demonstrar a coerência (a não-contradição)
de uma verdade cujos fundamentos ontológicos
(os pressupostos de existência) são
colocados a priori de uma maneira
indemonstrável, isto é axiomática. O facto é
que já não acreditamos numa arquitectónica
da razão pura, na unificação da experiência
possível com a ajuda apenas de um único
sistema de categorias, e as teorias de
grande unificação pertencem, em Física, aos
sonhos da razão.
A
invisibilidade na ciência é ainda mais
notável do que na religião – por isso, nada
é mais absurdo que a oposição entre o mundo
visível da ciência e o mundo “invisível” da
religião [ver Huber, Macho]. Nenhum deles
pode ser compreendido a não ser por meio de
imagens quebradas de tal modo que sempre
apontam para mais uma outra (6). A ciência é
um fenómeno cultural entre outros. A ciência
está na origem da possibilidade de
uma realização em progresso contínuo da
ideia de eternidade do homem que concerne
igualmente as nossas responsabilidades de
ordem ética.
Todo o esforço do pensamento moderno foi
para separar o cultural do natural. A
ciência consiste em mostrar que os fenómenos
culturais não são naturais e que
forçosamente nos enganamos se misturamos os
tremores de terra e os rumores de guerra,
como o faz o texto do Apocalipse. Mas, de
repente a ciência toma consciência que as
actividades do homem estão a destruir a
natureza.
É a ciência que regressa ao Apocalipse.
Não separemos a natureza da sociedade: “The
re-localization and re-embodiment of science
allows us to extract, so to speak, the
epistemological poison out of the sweet
honey of scientific objectivity" (7).
Thomas
Kuhn fala de “transição entre
incomensuráveis, qual o são o sagrado e o
profano, a transição entre dois paradigmas
competitivos, decorrentes das transformações
históricas ocorridas na estrutura interna da
visão alquímica do universo, na elaboração
do novo saber sobre o mesmo universo pela
mão dos químicos" (8).
Não há
apenas realidades “objectivas”, há também
realidades “subjectivas”. Há pontos de vista
sobre aquilo a que chamamos realidades.
Se podemos ter diferentes pontos de vista
sobre uma estátua é porque a estátua tem
três dimensões e permite andar à volta dela.
A objectividade não é a propriedade privada
dos positivistas. Quando analisamos
discursos científicos, todos parecem
assentar mais sobre um “acreditar” do que um
“saber”. Aquilo a que se chama a “ciência” é
mais da ordem do “acreditar” (subjectivo:
mesmo se a comunidade que a ela adere é
imensa) do que da ordem do “saber”
(objectivo). Nunca se viu um observado sem
um observador, que não é independente dos
dados socioculturais, geográficos e
históricos, que volens nolens, o
determinam.
Há uma
racionalidade própria da ciência ocidental.
Mas não há apenas uma racionalidade
científica. A ciência é um feixe de
racionalidades. Não nos dá apenas uma
representação do mundo, mas uma
multiplicidade. O que se deve interrogar é a
pretensão de querer representar o real. “É
provável que o que se deva interrogar seja
justamente essa pretensão de querer
representar o real…seria preciso pôr em
causa as representações que a ciência dá de
si mesma, mas que são também representações
que se reclamam fora da ciência" (9). Hoje é
a própria ciência que reconhece o carácter
hipotético do seu aparato conceptual. O
nascimento da ciência moderna é seguida pela
constatação que a filosofia, como expressão
de “verdade definitiva”, deixa o mundo
inalterado: não dá ao homem o poder de se
libertar da fome, das insídias da natureza,
da dor, da necessidade. O abandono da
verdade deixa-nos todavia na mais insanável
insegurança. A “segurança” do saber
científico é, por definição, relativa:
os princípios e os métodos são hipóteses. Há
uma coisa que a ciência não pode produzir: a
segurança da felicidade, a segurança que não
pode ser dada da “segurança” de qualquer
possível metodologia científica e menos
ainda de uma fé religiosa. Mesmo se a
ciência, enquanto tal, é uma fé. Mesmo para
o cristianismo a fé é uma virtude deste
mundo (10). |
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Da religião |
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A etimologia é uma figura retórica que
indica um significado possível, mas
compatível com a forma da palavra. Religião
não vem de facto de ligar, mas de “re-legere”,
recolher. Não é o vínculo objectivo, é uma
disposição subjectiva e pessoal para
recolher. Não é certeza, mas escrúpulo ou
hesitação: quase um retratar-se. Para Cícero
“re-ligare” tinha forma e fazia causa comum
com “diligere”. Digamos que a “religião” é o
desejo de dar sentido (inter-ligere) a tudo
o que nos acontece por que passa uma certa
nostalgia: o sentido estava lá desde sempre,
mas o homem desviou-o ou perdeu-o. Aquilo a
que chamamos religião, os Gregos
conheciam-no pelo nome de therapeia.
Os homens do sagrado trazem a aura do
médico. Em Moçambique, no Brasil, na
Argentina, a Igreja Universal do Reino de
Deus anuncia-se com uma palavra de ordem:
“Para de sofrer”. A seita de Epicuro, o
epicurismo (arte de viver, terapia),
indiferente em relação à ciência, foi uma
religião falhada. E não fosse o espírito de
capela que a sustentava, não teria
sobrevivido cinco séculos. Há duas espécies
de religiões para M. Serres: “les
anthropologies et les sociologues épuisent
le sens de celles qui fondent l’appartenance,
où règnent la violence et le sacré.
Inversement, pour celles de la personne, les
expressions ‘sociologie, politique des
religions’ sent l’oxymore" (11). A separação
radical entre crença e fé, entre social e
individual é pertinente para situar estas
duas espécies de religião. No dizer de J.
Kristeva,
“O éter da religião terá sempre sido
receptivo a uma certa virtualidade espectral»
(12). Talvez venha daí a dificuldade de uma
definição adequada deste termo, ou mesmo de
uma possível tipologia. A oposição religiões
primitivas ou religiões naturais
vs religiões de civilização, é uma
oposição que assenta num pressuposto
evolucionista hoje ultrapassado. Pode
sustentar-se uma outra oposição: religiões
nacionais ou étnicas vs
religiões universais (budismo,
cristianismo, islamismo). Pode-se defender
uma terceira oposição: religiões
tradicionais vs religiões com um
fundador, ou ainda religiões cósmicas
vs religiões históricas. E ainda uma
quarta oposição: religiões proféticas
vs religiões místicas. Ou, à maneira
de P. Ricoeur: religiões pagãs, que
relevam do registo da manifestação,
vs religiões que relevam do registo da
proclamação (13). O cristianismo, como
forma escatológica da religião, seria
claramente uma religião de proclamação.
O
homem cria a cultura para exorcizar o medo
diante do aspecto primário, aquilo a que
Ortega chama a selva em que reina Pã (14). A
noção de religião cobre de facto uma série
heterogénea de elementos diferentes. Em
qualquer religião encontramos deuses, ritos,
festas, o sentimento do divino, solenizações
(ritos de passagem), moral, interditos
alimentares, uma boa esperança para as
próximas colheita, a predição do futuro, a
cura dos doentes, o temor numa justiça
imanente, ascetismo, experiências extáticas,
transe, um ethos ou estilo de vida,
pensamento do além, utopias, legitimação
política, identidade nacional, etc.
“Religioso” seria o vínculo comum, a força
objectiva e externa que se sustenta em
conjunto. De um ponto de vista sociológico,
uma sociedade sã é uma sociedade que tem
religião. A religião é, desde o princípio,
linguagem de ordem. Nas tradições
hindus, o mundo – o cosmo como as sociedades
humanas – é regido por uma ordem ou uma lei
fundamental (dharma) que é preciso
respeitar sob pena de arrastar graves
desequilíbrios. Constantino sabia que o
temporal precisava do espiritual: se não se
rendia à divindade o culto que convinha, o
futuro político do Império não estava
assegurado (15). É claro que a religião é
apenas um dos traços fisionómicos duma
sociedade, um traço outrora dominante, hoje
reduzido a uma certa sensibilidade, um
humanismo ou a ritos de passagem. Marc Bloch
dizia que a lei de Cristo “pode ser
compreendida como um ensinamento de doçura e
de misericórdia, mas, durante a época
feudal, a fé mais viva nos mistérios do
cristianismo associou-se sem dificuldade
aparente com o gosto da violência" (16).
Tudo na nossa civilização se tornou fé: a
ciência, a moral, a política, a arte, a
religião e até a incredulidade religiosa. Na
língua grega a palavra que corresponde a
“verdade” significa “não estar escondido”,
"não permanecer escuro”. Serve e não se
preocupa com a verdade. As religiões
constituiram-se como “catarses” ou
“purificações” das variantes do “mal” que
são os diferentes destinos do ódio. Com
efeito, o homem religioso é interpelado, ao
longo da história, a purificar-se das suas
manchas (que são diversas “matérias” no
limite do “limpo” e do “estranho” e que
remetem em última instância para o corpo
maternal e para o sangue nas religiões ditas
primitivas) para se purificar das
abominações alimentares (no budismo, e de
outro modo no judaísmo e no Islão), e a
purificar-se dos seus ódios assassinos,
sacrificiais ou fraticidas (17). Uma
perspectiva meramente externa (que visa
explicar a religião) não vê aquilo que
visa a consciência religiosa. Com efeito, a
religião não visa explicar a forma da
sociedade, nem a crença é o único modo de
explicar a religião. O cristianismo promete
o Reino dos Céus a quem tem fé em Cristo,
como a ciência promete o Reino da terra a
quem tenha fé nas leis científicas. A
ciência hoje não tem qualquer dificuldade em
reconhecer que é uma fé. Uma boa questão,
entretanto emerge: “Ma la fede, in quanto
tale, non è forse la forma originaria della
violenza?" (18). E estará a ciência,
enquanto doxa, ao abrigo da
violência? |
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Ritualidades |
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Para além da religião subjectiva,
que tem a sua fonte na receptividade
transcendental e na abertura ao Outro, o culto,
enquanto forma objectiva (da oração,
dos gestos, dos actos) vem contrabalançar a
tendência que tem o sentimento religioso
para se dissolver no inapreensível,
suscitando no homem uma relação justa com
Deus. É, porém, enquanto fundamento da ordem
jurídica e política e da cultura que a
religião se torna ambígua. Não há ordem
jurídica nem forma de governo que não
procure fundar a sua legitimidade na
religião. Por outro lado, a religião está
intrinsecamente orientada para a criação de
culturas (arte, poesia, música, filosofia) e
para as diferentes formas de vida social. O
rito é uma operação. Um axis mundi
que liga eficazmente os diferentes planos da
existência segundo determinadas
correspondências. Nesta concepção, o rito
age ex opere operato, por obra da
própria operação, no que se aproxima da
técnica. Que efectua o rito? O sagrado, como
se entende da etimologia do rito religioso
por excelência que é o sacrifício.
Quando a forma expressiva deixa de
corresponder ao conteúdo do sentimento
vivido, a prática do rito degrada-se em
ritualização. Os dados antropológicos
actuais já não permitem colocar a magia e a
religião simultaneamente como duas espécies
de factos sociais e duas essências opostas.
A noção de “eficácia simbólica” que
Lévy-Strauss pôs em evidência é decisiva
para pensar a questão da “sacramentalidade”
e da “magia” que deixam de poder ser
consideradas práticas rituais antagónicas
(19). Para não serem vítimas de “pré-noções”
e “preconcepções” (Durkheim) as ciências
humanas são levadas a reestruturar o campo
das definições e a colocar globalmente os
termos de pensamento e de acção simbólicas.
Desde os trabalhos de Glock (1961) e de Stark e Glock (1968), que os
critérios para medir o grau de pertença ao
grupo católico deixaram de assentar
exclusivamente na análise da prática
religiosa. È que esta é apenas uma das
várias dimensões que estruturam o campo
religioso (Bourdieu, 1971). O “objecto
religioso” de Glock é perspectivado segundo
cinco dimensões:
a) a dimensão experiencial, que contempla a comunicação com a
divindade, e que é constituída pelos
sentimentos, e percepções e sensações
experimentados por um indivíduo;
b) a dimensão ideológica, mais fundada em crenças do que em sentimentos
religiosos e que inclui todas as
representações sobre a natureza da realidade
divina;
c) a dimensão ritualista, que se reporta ais aos actos que as pessoas
cumprem no domínio religioso do que aos seus
sentimentos e pensamentos;
d) a dimensão intelectual, que designa os conhecimentos que os
indivíduos têm dos dogmas que fundam a sua
fé;
e) a dimensão sequencial, que se relaciona com o que as pessoas fazem,
assim como as atitudes que adoptam, em razão
das suas crenças, práticas e experiências
religiosas.
O rito faz parte do agir humano, na confluência do dizer e do fazer. É
uma acção e igualmente relação social. A
origem e a evolução do rito e das suas
concepções são condicionadas por duas
perspectivas opostas. Por um lado, a
“perspectiva naturalista”, também chamada “o
ponto de vista de Deus”, que se reconhece no
slogan epistémico: “No princípio era a
acção”. O rito é uma criação dos deuses
(sejam eles Pessoa, natureza, lei), ou, por
outro lado, uma criação da evolução natural
das espécies (psicologia da adaptação de
Darwin). Em ambos os casos, teológico e
naturalista, o rito é já estruturado,
articulado, tecido, que o homem encontra e
põe em acção. Por outro lado, a “perspectiva
artificialista” ou construtivista, também
chamada “o ponto de vista da humanidade”.
Esta perspectiva procede de uma outra
lógica. A acção ritual deixa de ser
considerada como um ready-made um
dado original de essência natural ou divina,
mas uma construção humana, que se desenvolve
segundo três estádios: a pacificação, a
prescrição, a retomada ética. Antes de ser
repetição, o rito é criação, ética e
estética. A determinação axiológica faz
parte das atitudes a ter diante do ritual.
Radcliffe-Brown falava de “valor ritual”
para determinar a relação sujeito/objecto
vivida qualitativamente em termos de
bom/nefasto, permitido/proibido. Este
elemento de análise dá assim conta daquilo
que Mauss e Durkheim chamavam rito negativo,
ao mesmo tempo que das atitudes dos
protagonistas do ritual: ansiedade,
seriedade, indiferença, paródia, emoção ou
racionalidade. O processo ritual é levado a
produzir o seu próprio espaço, material e
lógico e interaccional. Os conceitos de
objecto transicional e de espaço potencial
de D. W. Winnicott (1975) são determinantes
para a compreensão do processo ritual. O
rito, como manipulação simbólica, tem por
vezes outros efeitos que a cura dos corpos.
São efeitos que procuram as religiões
espirituais. A.
Vergote
chamou a atenção para o eixo clínico da
polarização de qualquer dispositivo ritual e
para a sua deriva patológica (20). As
doenças do rito são o ritualismo, que é o
comportamento estereotipado ou a formalidade
fossilizada, quando o sentido se retirou da
forma ou quando o excesso de codificação
domina. Freud tenta compreender a religião a
partir da semelhança que via entre o
cerimonial nevrótico e o rito religioso
(21). O nevrótico obsessional cumpre com um
cuidado meticuloso actos insignificantes,
como contar repetidamente livros numa
estante, caminhar sobre a aresta das pedras,
etc. Antes de se deitar, a criança que se
virá a tornar no “homem dos lobos” deve
beijar imagens piedosas, fazer sinais da
cruz sobre si e a cama. O cerimonial
obsessional é, então, a repetição, a
ritmização das acções mais indiferentes.
Três traços formais aproximam este
cerimonial do rito religioso: a angústia de
consciência no caso de não cumprimento dom
acto, o isolamento do acto em relação às
outras actividades, a meticulosidade na
execução do acto. O autor deste ritualismo
obedece a uma injunção cujo sentido
desconhece. Aqui estaria o modelo de toda a
crença: credo quia absurdo. A nevrose
é a caricatura meio-cómica, meio lamentável
de uma religião privada. As rubricas não
toleram qualquer espontaneidade de
expressão. As características deste culto
aparentam-no ao cerimonial obsessional:
formalização rigorosa e rígida, isolamento
em relação a formas vivas da cultura,
ausência ou forte redução da intenção
simbolizante e angústia pelo não-cumprimento
do rito. |
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Coda |
Não deixa de ser interessante saber que os
Modernos, lutando contra as utopias, são
aqueles que mais cultivaram a utopia (Latour,
2009: 141). O “princípio de irredução” é uma
precaução e uma exigência, que I. Stengers
enuncia como a passagem do “isto é isto” ao
“isto não é mais do que isto” ou ao “é
somente isto”. Este princípio prescreve um
distanciamento em relação à pretensão de
saber e de julgar. Os religiosos e os
cientistas correm o risco de se tornar
sábios, não os cobrisse a aura e a
autoridade que lhe creditam as nossas
sociedades. O próprio do ser humano é
escolher ser humano: “à lui de choisir entre
le Royaume et les ténèbres" (22).
Que concluir? “Não precisamos de
comunicação, temos até demasiada, carecemos
de criação. Precisamos de resistência ao
presente" (23).
O mundo moderno alimenta-se das correntes
heterodoxas – místicas – do cristianismo.
Troeltsch tinha essa consciência ao falar de
“religiosidade vagabundeante”, de cariz
“naturalizante” ou mesmo “panteísta”, ou
daquilo que está por trás do pensamento
moderno, em especial o idealismo alemão de
Hegel e de Shelling em matéria de pensamento
místico ou esotérico. Dante junta no mesmo
“céu” do Paraíso Tomás de Aquino,
Siger de Brabant e Alberto Magno. Não há,
pois, incompatibilidade entre a Grécia e a
Revelação, o averroísmo latino, o
intelectualismo integral entram no mesmo
convívio de transmutação das ideias. Passou
o tempo dos concordismos. Podemos ver a
ciência como movimento de secularização
constante e irreversível. Podemos considerar
que a ciência se deve colocar ao serviço da
religião (o concordismo e o
fundamentalismo). Podemos encetar no diálogo
nas suas várias figuras: convergência,
complementaridade, interacção ou
colaboração. Os concordistas caem sempre no
impasse da sua própria concepção cientista
do pensamento: a fé não pode ser
demonstrada, não há prova científica do acto
criador (24).
As religiões formam-se num campo constituído
pelo processo psíquico bipolar ou nuclear da
meditação que purifica e da simbolização que
permite a comunicação. São por isso
obrigadas a negociar, dizia Derrida, “o
paradoxo de uma nova aliança, entre o
teletecnocientífico e as duas fontes da
religião (o indemne, heilig, holy,
por um lado, a fé ou a crença, o fiduciário,
por outro”) (25).
O debate actual do discurso religioso não é
o inominável, mas o (mal) nomeado, o (mal)
dito, a estereotipia morta. Qualquer que
seja a posição a adoptar, é necessário
repensar a questão dos limites de validade
dos nosso discursos e das instâncias a
partir das quais cada discurso se agencia. O
que só é possível no horizonte universal e
na troca, na confrontação e no diálogo com
as diversas instâncias de racionalidade que
presidem às diversas ordens do humano. Não
há totalidade sem mentira, dizia Adorno. G.
Holton liga, num texto publicado na
Scientific American a controvérsia
acerca do fim da ciência com os cientistas
que adoptam uma visão “linearista”
(optimistas) e os que adoptam uma visão
“ciclista” (pessimistas) (26).
Do interior desse teatro em que se degladiam
duas visões do mundo antagónicas, emerge
agora uma visão hierárquica em que cada
nível de escala e de complexidade tem as
suas próprias características e leis, não
redutível aos que estão no nível a seguir.
Nem a fé religiosa nem a teologia dão
respostas a questões colocadas e não
resolvidas pelo saber científico ou
filosófico: seria adoptar uma postura
arrogante ou triunfalista do tapa-buracos
(D. Bonhoeffer). Há, porém algo de comum à
religião e à ciência: o mundo.
Os acontecimentos
que se passam debaixo dos nossos olhos são
naturais e culturais, isto é, são
apocalípticos. Até agora, os textos do
Apocalipse faziam rir. Todo o esforço do
pensamento moderno foi para separar o
cultural do natural. A ciência consiste em
mostrar que os fenómenos culturais não são
naturais e que forçosamente nos enganamos se
misturamos os tremores de terra e os rumores
de guerra, como o faz o texto do Apocalipse.
Mas, de repente, a ciência toma consciência
que as actividades do homem estão a destruir
a natureza. É a ciência que regressa ao
Apocalipse. O princípio antrópico dá
ao homem um lugar preponderante no universo,
mesmo se a palavra deve ser dada também ao
“não-humano” no “parlamento das coisas” (B.
Latour). O ser humano é um ser do mundo, mas
irredutível à ordem do mundo ou ao devir do
mundo. Há um mundo único e de múltiplas
ciências, de múltiplos sistemas abertos ou
fechados. E cada uma tem a sua linguagem de
descrição, a sua maneira de formular ou
esquivar a finalidade. Que cada discurso dê
conta da sua função própria: a ciência, o
simbólico-cultural, a demanda da verdade, o
como e o porquê do real. Cabe-nos trabalhar
nas fronteiras dos diferentes discursos, na
genealogia das suas constituições e entrar
naquilo a que H. Atlan chama uma “intercrítica"
(27).
Sem fantasmas nem tiranos ao leme.
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Notas |
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(15)
Paul Veyne, Quando notre monde est devenu chrétien, Paris, Albin
Michel, 2007, p. 171.
(18)
E. Severino, op. cit., p.
83.
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José Augusto Mourão (Portugal)
Professor Associado com
Agregação da Universidade Nova de
Lisboa. Presidente do ISTA
(Instituto S. Tomas de Aquino),
Director da Revista de Comunicação e
Linguagens. Rege as cadeiras de
Semiótica, E-textualidades e
Hiperficção e Cultura no
Departamento de Ciências da
Comunicação. Livros publicados: A
visão de Túndalo: em torno da
semiótica das Visões (INIC, Lisboa,
1988); Sujeito, Paixão e Discurso.
Trabalhos de Jesus (Vega, 1996); A
sedução do real. Literatura e
Semiótica (Vega, 1998); Ficção
Interactiva. Para uma Poética do
Hipertexto (Edições Universitárias
Lusófonas, 2001); O fulgor é móvel -
em torno da obra de Maria Gabriela
Llansol (Roma, 2004); com Eduardo
Franco: A influência de Joaquim de
Flora na Cultura Portuguesa e
Europeia (Roma, 2005); O Mundo e os
Modos da Comunicação (Minerva,
2006); com Maria Augusta Babo:
Semiótica. Genealogias e
Cartografias (Minerva, 2007). A
Literatura electrónica (Vega, 2009). |
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