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Crítica e ruptura – A Inocência
de Pensar de Floriano Martins
Teresa Ferrer Passos |
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Na
transgressão das escritas e das imagens, os
ensaios críticos rompem como construções da
palavra e da voz. Nesta ruptura inscrevo
A Inocência de Pensar de Floriano
Martins, recentemente publicado por
Escrituras Editora, com sede em S. Paulo. A
transgressão é, em Floriano Martins, um modo
de ser muito especial que o intelectual deve
subscrever, como se fosse uma superior
necessidade, se não mesmo uma transcendência
terrena.
A essência do pensar torna-se para Floriano
Martins um objectivo de vida. A sua obra
variegada – poesia, ensaio, ficção, pintura,
etc. – marca, em quem a conhece, um percurso
pleno de seriedade. Cada circunstância
torna-se na escrita-imagem de Floriano
Martins, uma paisagem sem nuvens nem véus
mais ou menos velados. A língua apresenta-se
como uma transcendência demasiado humana,
como disse, algum dia, Nietzsche. E dizemos
demasiado humana porque Floriano Martins
ultrapassa toda a palavra escondida ou a
esconder, toda a ideia suspeita ou sob
suspeição; descobrimos nos seus trabalhos
literários ou nas suas composições feitas de
formas-imagens uma intencionalidade
transparente, plena de cântico à natureza, à
forma-imagem, como dissemos atrás.
Se pensar é uma inocência, Floriano Martins
apontou o dedo na direcção certa. Na
verdade, o paraíso está na interioridade
humana ou não está em lado nenhum. O
paraíso, metáfora da natureza pura do Homem,
recolhe-se ao coração aberto como um mar sem
fim, no autor de A Inocência de Pensar.
Numa análise fecunda a um vasto número de
escritores latino-americanos – desde o
Brasil ao Chile e à Venezuela, desde a
Espanha a El Salvador, à Colômbia, Panamá ou
à Costa Rica –, o autor analisa a sua
conformidade com os tempos em que se
projectou a sua escrita, tomando como ponto
de partida fundamental a sua personalidade,
os seus desvios e as suas contingências
perante os obstáculos, os contratempos e as
modas da sua controversa época.
Como escreve a propósito de Sânzio de
Azevedo “o pensamento crítico alimenta a
compreensão histórica da nossa passagem por
este mundo, razão pela qual cabe ao crítico
fundar-se a partir de um diálogo perene com
todas as forças que nos orientam e
desorientam” (p. 228).
Não podemos deixar de fazer uma alusão ao
prefaciador de A Inocência de Pensar,
Jacob Klintowitz. Respigamos do seu texto
elucidativas frases que nos oferecem um
retrato bem definidor da identidade
intelectual de Floriano Martins: nele
“perpassa o mistério da amorosidade”; “ao
invés da sentença, ele prefere o retrato do
artista” (p.11) ou ainda “o único lugar
habitável é a utopia” (p. 12).
Na leitura dos vários ensaios inseridos
nesta obra, encontrámos, abundantemente,
esta ligação de Floriano Martins ao fraterno
diálogo, à busca da personagem oculta nas
palavras e ao fantástico lugar da utopia,
esse estado de espírito construtor da
inventabilidade. De facto, o mundo da utopia
não pode deixar Floriano Martins
indiferente. Ele é um artista da palavra e
da imagem. Por isso, aí se coloca. A utopia
é a transcendência do humano. Nela tudo o
que é humano ganha espaço e um espaço de
futuro.
O caminho da humanidade é árduo, é agreste,
é inseguro. Mas esse caminho pode cobrir-se
de sentidos e de sentimentos que o
dimensionam à escala da sagração deste
“animal pensante” de que nos fala Floriano
Martins. Mesmo quando o célebre marquês de
Sade rompe com a sociedade sua
contemporânea, procurará ele regressar
àquele “paraíso perdido” a que o poeta
inglês John Milton nos quis conduzir? |
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Na entrevista concedida a Floriano
Martins (aqui publicada), Eliane
Robert Moraes, a autora do livro
Lições de Sade – ensaios sobre a
imaginação libertina, diz: “Sade
projecta sua ficção de um homem
completamente livre” (p.158). E,
mais adiante, nesta excelente
abordagem de Sade, Martins indaga:
“Até que ponto interessa distinguir
perdas e ganhos de linguagem,
ocasionados justamente pela obsessão
de um projecto maior que extrapola
os domínios da própria linguagem?”
(p.161). E vai mais longe, em outra
questão posta a Eliane: “Para além
da incitação à liberdade total,
estaria Sade empenhado em descarnar
a tragédia de uma sociedade cuja
hipocrisia confundia virtude e
vício?” (p.163). |
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Ao abordar Amedeo Modigliani, diz-nos
Floriano Martins que ele “definiu uma
erótica, em contraponto a um brutal
preconceito carnal existente” (p.116).
Depois, “caminhando com o espírito de
Ghérasim Luca”, refere a sua conotação
surrealista ao conjugar “amor, erotismo,
sonho, humor negro (…) em uma orgia de
imagens que se enriquecem à medida que
afirmam o quanto estão vivas, atuantes,
dentro do mundo, dentro de nós” (p.121).
De relevante interesse são também as
polémicas biográficas à volta de Carlos
Drummond de Andrade (47 páginas) ou as suas
considerações sobre António Bandeira (com 45
páginas). Debruça-se sobre “os segredos da
imaginação” em Marcel Schwob. Refere-se a
Max Ernst como “um dos nomes cimeiros da
arte neste nosso controvertido século”
(p.111), uma dessas “criaturas de fogo” do
tempo. E não podemos esquecer a sua
entrevista a Michel Roure, “absolutamente
clandestino”, numa verdadeira “sequência de
filmes ou de documentários” (p.167).
Nestes socalcos da literatura e da vida se
envolve Floriano Martins, quer através do
artigo, quer através das perspicazes
entrevistas, aqui reunidas. E tudo faz com a
força dos impulsos da “Inocência de
Pensar”, porque “na língua [a língua
portuguesa] é que se encontram as raízes das
nossas ambiguidades” (p.139). A língua, nota
Floriano, não a cultura. E aqui chama a
atenção para a criatividade, a invenção de
uma língua, como sendo o seu mais importante
sustentáculo. A língua é a raiz e o notável
instrumento de todo o pensar e, como tal, a
língua lança as bases de uma fulgurante
“inocência”. Uma inocência a arriscar e
sempre pronta para a novidade.
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Teresa
Ferrer Passos (Portugal, 1948).
Historiadora, ensaísta, poeta e
narradora. Criou, em 2007, um sítio
web intitulado Harmonia do Mundo:
www.harmoniadomundo.net.
Recebeu o Prémio/Monografia,
atribuído pela Sociedade Histórica
da Independência de Portugal, em
1989, ao ensaio intitulado Fernão
de Oliveira — 1º Gramático de Língua
Portuguesa, livro que viria a
ser publicado em 1994. Traduziu A
Semana Santa (romance
histórico), de Louis Aragon (2003).
Publicou, dentre outros livros: O
Sentimento Patriótico em Portugal
(colectânea de artigos
publicados sobre a psicologia
colectiva do povo português, 1983),
A Revolução Portuguesa de
1383-1385 (ensaio histórico,
1984), Eu, Nuno Álvares
(romance histórico, 1987),
Fragmentos-de-Sol (poesia,
1993), O Grão de Areia
(contos de ficção científica, 1996),
Álbum de Amor (poesia, em
co-autoria com Fernando Henrique de
Passos, 1998), A Restauração de
1640 e D. Antão de Almada
(1999), Ensaios Literários e
Críticos (2001), Anunciação
(romance, 2003), e Novo Álbum de
Amor (em co-autoria com Fernando
Henrique de Passos, 2005). Contacto:
termarpassil@harmoniadomundo.net. |
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Floriano
Martins (Fortaleza, 1957)
Poeta, ensaísta,
tradutor, editor e artista plástico.
Participou das seguintes mostras
coletivas:
“O surrealismo”
(Escritório de Arte Renato Magalhães
Gouvêa, São Paulo, 1992),
“Lateinamerika und der Surrealismus”
(Museo Bochum, Köln, 1993), “Collage
- A revelação da imagem” (Espaço
expositivo Maria Antônia/USP, São
Paulo, 1996), e “I
Muestra Internacional de Poesía
Visual y Experimental” (Escuela de
Artes Plásticas Armando Reverón,
Caracas, 2009). Em 2005, participou
como “artista convidado” da edição #
17 da Agulha – Revista de Cultura,
com uma mostra de 50 colagens.
Assina diversas capas de livros seus
e de outros autores. Em maio de 2000
realizou o espetáculo Altares do
Caos (leitura dramática
acompanhada de música e dança), no
Museu de Arte Contemporânea do
Panamá. Um ano antes também havia
realizado uma leitura dramática de
William Burroughs: a montagem
(colagem de textos com música
incidental), na Biblioteca Mário de
Andrade, em São Paulo. Em 2006, a
mostra Teatro Impossível,
reuniu leitura de poemas, canções,
colagens e fotografias (Centro
Cultural Banco do Nordeste,
Fortaleza). Espetáculo similar
realizou em 2009, durante o Festival
Internacional da Cultura (Colombia).
Esteve presente em festivais de
poesia em países como Chile,
Colômbia, Costa Rica, República
Dominicana, El Salvador, Equador,
Espanha, México, Nicarágua, Panamá,
Portugal e Venezuela. Coordena a
coleção “Ponte Velha”, de autores
portugueses, da Escrituras Editora.
Em 2009, publicou os seguintes
livros:
A alma desfeita em
corpo
(poemas,
Lisboa), Fuego en
las cartas (antologia poética,
Espanha),
A inocência de Pensar
(ensaios, Brasil) e
Escritura
conquistada.
Conversaciones con
poetas de Latinoamérica.
2 tomos (entrevistas, Venezuela).
CONTATO:
floriano.agulha@gmail.com |
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