A célebre frase de que “uma imagem vale mais do que mil palavras” é uma falácia. A imagem para se processar necessita da palavra. Aliás esse mesmo aforismo foi construído com palavras, não? Porque uma imagem encerra um conceito, certo, mas esse conceito decorre da palavra do conceito, quando não da palavra conceito em si mesma, no conceito que ela encerra. Sem a palavra o conceito não existiria.
Todo o pensamento se organiza por palavras. Não é palavra, verdade, mas torna-se lógico pela palavra e sem ela decai por si mesmo, incomunicável, incompreensível. O pensamento e o sentimento: o sentimento explica-se também por ela, a palavra. Antes, quando muito, é emoção. As emoções não são palavras, mas realizam-se em palavras, consumam-se como tal. Uma emoção, mesmo um sentimento, quando verbalizados transformam-se. Se o sentimento é negativo ou opressor liberta, ajuda. A psicoterapia, as psicoterapias passam igualmente por aí. Fármacos ou outros processos são tão só veículos para o pensamento se (re)organizar pela palavra.
Mesmo o sacramento católico da confissão é, em parte, redenção pela palavra, libertador do pecado. E não será por acaso que no hebreu, língua de comunidade onde o irmanamento pela religião é enorme, a cada palavra estão associados conceitos que se declinam e reinterpretam letra a letra, como códigos para a compreensão do sagrado. A Sarça Ardente gravou a fogo em pedra os mandamentos para Moisés os levar ao seu povo em palavras, não em imagens. Porque a palavra é ela mesma imagem de si e do que lhe dá forma. Coisa muito visível no teatro.
Um teatro sem palavras não o chega a ser na sua totalidade. Isto, embora teatro seja mais do que a palavra e as palavras nele não se esgotem nas sílabas com que foram grafadas: das inflexões (sentido) ao movimento em que se envolvem (da luz ao som, do som ao objecto, ao espaço, ao gesto, à relação visual e plástica total), as palavras no teatro enformam-se e vivem para lá da língua em que se suportam. Mas nela se suportam e a ela retornam sempre em certa medida. É a mesma questão da imagem que vale mais do que mil palavras. Trata-se da palavra em comunhão, elemento de sagração do próprio acto teatral. Forma de expurgar o segredo do ser pela sua partilha.
O peso do segredo é tremendo. A não verbalização é o mais difícil: seja para a não-realizar, seja porque ela se não realiza. Torna-se obsessão. Daí a necessidade da confissão do que violou a regra, mesmo que contra uma parede vazia ou em prece. Escrita ou dita, mas mais ainda, suponho, quando dita. O horror do segredo está justamente na solidão que ele provoca. As palavras não ditas martelam o desejo de partilhá-las com o outro.
Uma imagem para valer mais do que mil palavras ao comunicar-se, que é nesse sentido que o aforismo se afirma, pressupõe uma imagem tão impressiva e desmultiplicável nessas mesmas mil palavras ou mais. É uma fixação de verbos sucessivos a alta velocidade na retina primeiro, mas depois no processamento das sinapses ou nos 21 gramas de alma que se diz ter. Portanto, aceito que, num certo sentido, o aforismo possa ter em certos casos e sob certas circunstâncias o seu quê de verdade quantitativa ou cronológica – do instante em que se capta – mas traduz-se em termos de estrutura mental em gramática. O que acontece é tão só a impossibilidade física da articulação das palavras, por vezes associadas num conjunto, pelo aparelho fonador.
Mesmo a matemática – presente também ela na palavra – é “palavrável”, quando se explana e conclui a equação, quando se descreve a geometria. Mas isso, muito melhor do que isso, já foi dito e explicado por filólogos e por matemáticos.
Bem, em verdade, eu não estou a dizer nada que não esteja dito. Quando muito estou a exprimi-lo por ordenações diferentes de palavras, que é o que dá autoria (logo subjectividade) ao que para se concretizar em ensaio (tese) se objectiva pelas… palavras.
Não há doutrina – científica, filosófica, religiosa, política, artística – que se não projecte pela palavra. As únicas sensações que talvez (e o talvez é uma enorme interrogação porque não se pode “estar lá”) não se possam mesmo verbalizar são as que nos ultrapassam por razões exógenas à condição normal do homem. Digo quando há lesões neurológicas, doenças mentais (seja lá o que isso for), experiências metafísicas transcendentais (sejam também lá o que isso for) ou sob o efeito de psicotrópicos. Mas mesmo nessas circunstâncias a explicação do fenómeno é sempre reconduzida à palavra.
Aliás, mesmo sob esses efeitos ou por essas razões, tal ficará a dever-se porque do cérebro só temos uma parcialíssima funcionalidade. Sob o manto que oculta a parte maior do nosso cérebro é provável que estejam todas as outras palavras que ainda não pusemos no dicionário e daí a “impossibilidade” de as dizer. Quem sabe se não vêm de lá os neologismos de poetas e escritores…
Quem sabe isso e quem sabe muita outra coisa: se a própria demência ou doenças como a de Alzheimer se traduzem – para nós que mantemos a lógica ou talvez apenas uma outra forma de lógica - justamente pelo desalinhamento das palavras e pelo esquecimento do seu significado. Mesmo para mal e não apenas para o bem, a medida humana racional é a palavra.
Da palavra enganosa da retórica demagógica ao estudo puro e duro estruturalista, a palavra é o centro de gravidade do discurso comunicante.
A missa, qualquer celebração religiosa (tal como a teatral), protagoniza-se nessa comunhão, mesmo se e quando a doutrina impõe um mediador. Quando não pelo murmúrio o crente dirige-se à Divindade, articulando a palavra nos lábios ou mesmo só que redesenhando-a na mente. Mas uma súplica ou uma adoração recorta-se na palavra com que se pensa o objecto dessa súplica ou adoração.
Afinal de contas no princípio era o Verbo, mas a luz só se fez quando Ele disse “Faça-se Luz!” e não no momento em que pensou dizê-la. Até Ele teve de consumar em Verbo para o Verbo se fazer no mais. |