Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 03|Janeiro de 2010

  NÚMERO 03

JANEIRO 2010

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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As Pierres Vives de Bertrand d’Astorg

 Jean-Luc Pouliquen

 

Poeta e crítico literário, Bertrand d’Astorg (1913-1988) esteve ligado desde o princípio à aventura das Editions du Seuil, que desempenharam um papel importante no panorama intelectual da França do pós-guerra. Estudam-se aqui três de seus principais livros, que constituem uma seqüência coerente e destacada no desenvolvimento de sua obra. Esta se organiza em torno do amor à Mulher, tal qual foi evocado na literatura ocidental através dos séculos, e sob as diferentes formas que pôde tomar. Como poeta, o autor propõe uma aproximação original que põe em relevo a relação complexa que há entre os apelos da existência e a criação literária.

A coleção Pierres Vives foi criada junto às Editions du Seuil em 29 de outubro de 1945 por seu diretor Paul Flamand. Tratava-se para ele, no momento em que sua editora estava para encarregar-se das coleções da revista Esprit, de poder também fazer-se notar, com a publicação de obras que não dependeriam diretamente das escolhas de Emmanuel Mounier e de sua equipe.

Foi imediatamente confiada a Claude-Edmonde Magny a organização desta coleção, cujo título foi extraído de uma frase do Tiers-livre de Rabelais: “Je ne bastis que pierres vives: ce sont hommes ”, referência a uma pedagogia chamando cada um a forjar sua própria linguagem e sua própria sabedoria, sem o quê, os exemplos inscritos na pedra não passam de letras mortas.

Prevista a princípio para publicar poesia, romances e ensaios, Pierres Vives vai impor-se como uma grande coleção de crítica literária, da qual algumas obras, como Histoire du Surréalisme, de Maurice Nadeau, ou Le Degré zéro de l’écriture e Mythologies de Roland Barthes, alcançarão tal destaque, que ganham o formato de bolso.

Mas sucessos de edição não devem esconder a riqueza de um catálogo a ser redescoberto sempre, pela diversidade e profundeza dos assuntos que ele aborda. Entre os primeiros autores da coleção, encontra-se Bertrand d’Astorg, poeta e crítico literário de alta envergadura, ligado igualmente às Editions du Seuil quanto à revista Esprit.

Ele nasceu em Pau, em 1913, sua adolescência nos Pirineus lhe terá permitido conhecer Francis Jammes e fazer amizade com Pierre Emmanuel. É quando de seus estudos em Tolosa que ele conhece Emmanuel Mounier, que o convencerá a ir a Paris. Lá, ele viverá em uma comunidade com Paul Flamand e Jean Bardet, que iriam, os dois, encarregar-se dos destinos das Editions du Seuil.

Em 1945, amadurecido pela guerra, que lhe terá feito atravessar experiências numerosas e intensas (prisão, fuga, École des cadres d’Uriage, Londres, Maquis de l’Yonne, Libertação de Paris), Bertrand d’Astorg publicará em Pierres Vives um ensaio dedicado a Jean Paulhan, que se chama Introduction au monde de la terreur. Em 1952, ele proporá também Aspect de la littérature européenne depuis 1945. Assim, fechar-se-á um ciclo ligado ao grande cataclismo mundial, em que a interrogação sobre o destino coletivo ganhará preeminência em relação a um percurso mais individual.

Nós voltamos nosso interesse para outra seqüência, que começa com Le Mythe de la dame à la licorne, que Pierres Vives publicou em 1963, prossegue com Les Noces orientales, aparecido em 1980 e se termina com Variations sur l’interdit majeur – Littérature et inceste en Occident. Este último livro foi publicado em 1990, dois anos depois da morte do autor; desta vez, porém, junto à Gallimard, na coleção Connaissance de l’inconscient. Foi com grande tristeza que o autor viu recusado pelas Editions du Seuil o manuscrito que havia proposto, embora, segundo nosso julgamento, seja a continuação das duas outras obras.

“Não existe verdadeiramente exercício da poesia sem uma tentativa de conhecimento universal, não há verdadeiramente conhecimento da poesia sem uma abertura a toda a história da poesia, para além de todas as civilizações”, foi levado a dizer Bertrand d’Astorg na ocasião de uma homenagem feita a Pierre Emmanuel[1]. Pensamos que ele formulava também, por meio dessas poucas palavras, o movimento de sua própria busca. Nós agora nos esforçaremos por encontrar-lhe a dinâmica e por tentar alcançar os horizontes em direção ao qual ele nos conduz.  

Le Mythe de la dame à la licorne

Com esta obra, o autor nos conduz ao coração da floresta. É lá que ele encontrará esse animal mítico que é o unicórnio. Ele lhe permitirá desenvolver uma reflexão sobre o amor tal qual ele se impôs no Ocidente a partir do século XII. Percebe-se imediatamente um parentesco com Denis de Rougemont, cujos trabalhos a equipe de Esprit segue de perto nos anos trinta. Mas Bertrand d’Astorg, poeta proveniente daquela velha civilização occitana, que viu seus troubadours cantarem o amor cortês em todas as cortes da Europa, só poderia abordar este tema com brilho e originalidade.

Seu livro é de uma grande liberdade de forma, em que há uma mescla de prosa poética, récita, ficção e análise literária. Ele se compõe de dois cadernos e um livro de notas.

No primeiro caderno, Pierre, o narrador, conta sua chegada a uma floresta próxima, vindo de Paris. Há algo de bachelardiano nessa busca de um elemento vegetal que lhe corresponda. “Dize-me qual elemento… eu te direi quem és ”, explica o autor, que se confunde com a personagem Pierre. Além disso, é ele próprio que pode ser reconhecido, quando exalta os Pirineus de sua infância, ou quando evoca o elemento Ar, que suas numerosas viagens de avião lhe fizeram atravessar. Mas é a floresta que tem sua preferência, e Bertrand d’Astorg a freqüentou durante muito tempo quando possuía uma pequena casa perto de Fontainebleau. Ela lhe permitiu: “escapar a esta humanidade que a cidade digeriu tão bem, homens-muros, homens-vidro, homens-asfalto, frios e cinzas no inverno, molhados de suor e pegajosos nos tempos quentes, em meio aos quais nós passamos a parte mais obscura de nossa amável existência.”

Ser acolhido pela floresta permite subtrair-se da vida ordinária, apaziguar sua angústia de existir, conhecer um encantamento. Pierre alimenta-se plenamente de sua substância, e percorre seus caminhos, que levam sempre ao espanto. Um objeto esquecido pelo homem em plena natureza é para ele sensação de uma virgindade maculada. Uma cruz sobre uma sepultura abandonada aviva a presença da morte, que ele vislumbrou de perto durante a guerra. Um encontro com um guarda florestal que lhe segreda que sua vida perdeu o equilíbrio depois que ele amou uma cigana, entrevista em uma capela abandonada, reaviva sua interrogação sobre o segredo dos destinos. “Há contida na floresta uma formidável carga de sonhos. Ela transfigura os seres que lhe são confiados…”, revela o autor, cujo único desejo agora é de penetrá-la mais profundamente para ver chegar a si algum animal fabuloso…

Em seu segundo caderno, Pierre evoca um convite, poucos anos depois da guerra, para uma estada em uma casa que amigos possuem nos limites de uma floresta. Trata-se de um casal formado por Beatriz e Bertrand. Antes da guerra, houve uma forte atração entre Pierre e Beatriz. Ela era adolescente, as famílias tinham feito o necessário para que a relação fosse abreviada. Durante a guerra, Beatriz casara-se com Bertrand, mais velho do que ela. A respeito da guerra, Pierre escreve que “ela é sempre parecida com um país perdido, charco, montanha, floresta ou deserto, segundo a experiência de cada um; a qual atravessamos para que possamos ressurgir do outro lado - depois de meses, anos - outros, simplificados, lúcidos também, e separados, desta vez para sempre, de nossa infância e daqueles que fizeram dela um tempo de aprendizagem e encantamento ”. Ele já não se sente atraído por Beatriz, embora saiba que sua capacidade de sedução sobre ela permaneça intacta. A estadia se passa à maneira da velha nobreza de antanho: passeios a cavalo, soirées de poesia, leituras, discussões literárias. Uma noite, para escapar à ambigüidade de sua relação com Beatriz, Pierre parte para a floresta com seu cavalo. É então que ele é surpreendido pelo unicórnio, “sua crina  sedosa esvoaçava sobre sua fronte, o movimento fazia correr arrepios brilhantes sobre sua pelagem e tremular sua espessa cauda. Todo o seu corpo exalava uma luz cinzenta; centelhas às vezes faiscavam de seus cascos. Ele galopava com a cabeça erguida, como para elevar o terrível chifre, onde nervos nacarados enroscavam-se numa espiral regular”. O unicórnio parece, com seu olhar profundo, querer transmitir-lhe uma mensagem que ele não sabe interpretar.

Essa experiência fantástica é a ocasião de um momento intenso entre Pierre e Bertrand, quando de uma soirée em que eles se encontram frente a frente, e que Beatriz parte por sua vez com seu cavalo para explorar a floresta. Bertrand é, ele próprio, habitado pelo unicórnio, cujo mistério ele tenta penetrar por meio de tapeçarias que o representam, tanto no museu de Cluny, em Paris, como naquele de Cloisters de Nova Iorque. Bertrand não ignora nada desse mito vindo da profundeza das eras, que atravessou a Ásia e o Oriente para se fixar no Ocidente na Idade Média. O unicórnio é um animal selvagem e intocável, somente uma virgem pode encostar sua mão sobre seu assustador chifre sem que ele a trespasse. Ele destila para Pierre o elixir de suas pesquisas. Em Les Noces orientales, livro que ele escreverá em seguida, Bertrand d’Astorg voltará a esse ponto: “espíritos sutis acreditaram descobrir na imagem de um animal fabuloso, o unicórnio - que se vê, sobre algumas tapeçarias européias, manter com uma dama relações enigmáticas - a representação de um mito segundo o qual a mulher casada, e mesmo genetriz, podia alcançar uma segunda virgindade, de uma natureza incerta, para oferecê-la como promessa de alegria e de amor impossível, ao poeta que a canta”. A noite se terminará de modo trágico: Beatriz é trazida morta de seu passeio, com o coração trespassado por um espinho. Ou por um chifre?

A última parte do livro é constituída de um caderno de notas vermelho que, antes de morrer, Bertrand pediu a sua sobrinha que fosse entregue a Pierre. Nós estamos na presença de um puro trabalho de crítica literária: a pesquisa da permanência do mito através de oito séculos de escrita, acompanhada de uma reflexão sobre as funções e os poderes da literatura.

Eis que nos deparamos, antes de tudo, com Atala, que Chateaubriand faz morrer com um veneno, para respeitar o voto de virgindade que sua mãe pronunciou por ela. É assim que ela escapa ao amor que a ligava ao guerreiro indiano Chactas. Depois, em La porte étroite de Gide, é o desejo de perfeição de Alissa que a afasta de Jérôme. A princesa de Clèves, por sua vez, recusa Monsieur de Nemours e “morre de amor, por medo de um dia vir a conhecer, de acordo com a lei da terra, a morte de seu amor”. Nos livros seguintes: La Nouvelle Héloïse, L’Émigré, Volupté, Le Lys dans la vallée, é a mesma dialética que está posta. Rousseau, Sénac de Meilhan, Sainte-Beuve et Balzac pintam mulheres a um tempo acolhedoras e contidas. “A doce, a santa Mme de Mortsauf está em seu leito de agonia: mas esta agonia é uma seqüência de sobressaltos e revoltas. Pois o unicórnio não é somente um animal que se deixa submeter; sua natureza, se ele não é contido pela promessa e pelo amor, o impele a correr e a distanciar-se de forma agressiva”, escreve o autor.

Nós estamos na virada dos anos sessenta, antes do grande abalo de maio de 68, que se empenhará em pôr abaixo todos os mitos e proibições. Explorando o imaginário de escritores que descreveram estas mulheres-unicórnio, Bertrand d’Astorg se inscreve em uma perspectiva completamente diferente. Há nele a fé na literatura para levar a outro plano questões insolúveis no real.

Les Noces orientales

Este livro prolonga em sua forma a última parte do precedente. É um estudo que apresenta por subtítulo: Essai sur quelques formes féminines dans l’imaginaire occidental. Não há, pois, ficção para abordar o tema escolhido, mas a travessia de uma grande quantidade de obras, que testemunham a amplidão da cultura de Bertrand d’Astorg. No que tange ao método, poderíamos fazer uma comparação com outro crítico literário que mencionamos há pouco, Gaston Bachelard. Nos dois casos, há um enorme apetite de leitura, que acaba por fornecer ao livro uma profusão de referências. Aqui elas serão, claro está, literárias, mas também pictóricas e musicais. Pode-se imaginar a quantidade de notas tomadas pelos dois autores, a fim de reagrupar as citações escolhidas em função dos capítulos que organizarão o livro. Há, no entanto, uma nítida diferença entre Gaston Bachelard e Bertrand d’Astorg. O primeiro utiliza conceitos que toma de empréstimo ou cria ele mesmo como método de entrada no texto, o de ‘complexo’, por exemplo; o segundo é animado pelo puro prazer da leitura, ele se dá conta, evoca, sintetiza, ele analisa também, mas sem aparato teórico. Essa distinção de aproximação poderia estar ligada às próprias obras literárias escolhidas. Bachelard movimentava-se em um universo poético que começava com o Romantismo para se terminar com o Surrrealismo e seus sucessores imediatos. O Romantismo será, para Bertrand d’Astorg, um horizonte além do qual ele pouco se aventurará nesse ensaio. É certo que ele se interessará pela viagem de Nerval ao Egito, por Rimbaud, por Nizan, mas antes de qualquer coisa ele se terá debruçado longamente sobre obras e autores que constituíram nossa cultura clássica. Sua própria formação explica o fato. O autor teve até a idade de 14 anos uma educação domiciliar, por meio de preceptores. Ele se recorda, em Les Noces orientales, que aos seis anos traduzia os versos latinos de Vergílio com seu tio-avô. Bachelard, nascido uma geração antes dele, lamentará não ter estudado latim em seus estudos no colégio. A separação entre Letras Modernas / Letras Clássicas parece-nos aqui ser decisiva no que diz respeito ao tratamento que cada um dará à literatura. Dependendo do ponto de partida, umas predominarão sobre as outras. As numerosas notas de pé de página do livro mostram-nos que Bertrand d’Astorg não ignora nada das últimas produções de seu tempo. Ele aludirá às pesquisas de Michel Foucault, aos filmes de Pasolini quando abordar o tema de Medéia, apenas que ele avançará na dinâmica de uma investigação que lhe é própria, e que possui confiança suficiente em si mesma para não se render a tal ou qual concessão ao pensamento ambiente. É isso que faz toda a originalidade dela, ela convida a uma descoberta ou uma redescoberta de obras que a produção contemporânea encobriu rápido demais.

Mas para um poeta, a escrita toma sempre sua fonte naquilo que alimenta seu imaginário. Na obra precedente, era a floresta que tinha desencadeado a busca do unicórnio. É então a fantasia infantil que é o ponto de partida desta viagem. “Cada um traz de sua infância algumas palavras-chave, que lhe abrem as portas de marfim ou de chifre sobre este ‘não importa onde neste mundo’, em que se estabelecerá a pátria dos seus sonhos: para mim um só - o Oriente ”, confia o autor no começo desse ensaio. Ele prosseguirá um pouco depois: “Minha fantasia, inocentemente, me conduzia a errar em lugares distantes: eu não achava estranho atravessar sozinho os desertos, alcançar os portos dos trópicos onde eu era o único de minha branca espécie “, e ele sublinha ainda: “ Eu não estava ainda em idade de discernir, por detrás da tapeçaria, a divindade ou a jovem mãe, de quem, no entanto, eu adivinhava, desejava a presença, como toda criança”.

A mulher, como na obra precedente, permanece como o pivot da escritura. É ao redor dela que se organiza o confronto entre Oriente e Ocidente. Les Noces orientales, tal é o título do ensaio que o autor dedica àquela “que o destino de sua família - proveniente da Damasco dos jardins férteis - trouxe, com escala em Alexandria e Atenas, até a margem esquerda do Sena”, isto é, sua própria esposa.

Ele vai então esforçar-se por mostrar de que modo a literatura ocidental através dos séculos pôs em cena tais amores além das fronteiras. O quadro é bastante sombrio, Vergílio na Eneida conta como Enéias abandona Dido em Cartago para fundar Roma. Ela não sobreviverá ao abandono. Eurípedes consagra uma tragédia a Medéia, que Jasão afasta de seu reino da Cólquida, ao pé do Cáucaso, para traí-la em seguida em Corinto com Creusa, filha do rei Creonte. Medéia vinga-se de Creusa por meio de um veneno, depois mata os dois filhos, que teve de Jasão, antes de fugir em direção ao céu, em uma carruagem que o Sol lhe enviara. Plutarco, depois Shakespeare, dirão como a morte unirá para sempre os amantes Antônio e Cleópatra depois de sua derrota em Actium, contra os exércitos de Otávio.

Bertrand d’Astorg prossegue com a personagem Salomé, encarnação suprema da sedução oriental. Ela obterá de Herodes a cabeça de João Batista. Lembrando-nos como Gustave Moreau na pintura, Massenet e Richard Strauss na música, Mallarmé, Flaubert ou Oscar Wilde na literatura, a representaram, ele nos faz medir o  impacto do mito sobre o imaginário europeu do fim do século XIX.

Corre através dos séculos uma reiterada curiosidade em relação ao Oriente, cujo propulsor escondido Bertrand d’Astorg tenta revelar. “O Oriente é o lugar do imaginário onde o amor prometido é prazer e perigo, mas onde o perigo mesmo é fascínio do amor. Um certo Ocidente fechado, racista, endógamo não teria nunca a última palavra”, observa ele. A leitura que ele oferecerá do Orlando Furioso de Ariosto bem como da Jerusalém libertada de Tasso, duas fábulas heróicas italianas escritas no século XVI, tocará de novo na questão. Na Renascença, as Cruzadas serão sempre fonte de inspiração. Tasso imaginará os amores do cristão Tancredo com a etíope Clorinda, que também terminarão em sangue.

Que se busquem as vias terrestres ou marítimas, que se viaje à China com Marco Pólo, às Índias com Vasco de Gama, ou ainda além da Pérsia, em busca do Reino do Preste João, o Oriente é sempre promessa de encantamento e efusão de um desejo que não pôde cumprir-se totalmente no Ocidente, seja ele de ordem material, sensual ou espiritual.

À diferença do Mythe de la dame à la licorne, Bertrand d’Astorg escreveu esse ensaio depois de maio de 68, nos anos de contestação do modelo ocidental, de contra-cultura e de uma nova busca existencial, que conduzirá numerosos jovens a tomar o caminho da Índia. Sem dúvida ele quis, à sua maneira, rica de seu passado, de sua capacidade de poder oferecer olhares abrangentes, dar sua contribuição, com a palavra de alguém mais experiente. É aquela de um poeta que jamais cedeu à ilusão da tabula rasa, e que sabe que as grandes criações literárias nos ensinam aquilo que desde a origem inquieta o íntimo do ser humano. “Já começou certamente a era das bodas espirituais, que transfunde no espírito do Ocidente alguma coisa da fidelidade do Oriente ao sagrado de cada hora, de sua busca das relações de cada vida no universo: a obra de poetas diversos da Europa nos assegura isso. É, desse modo, uma grande festa do espírito que se prepara, mas ela não será fidedigna se se perder, por ignorância, a tradição, que atravessa vinte e cinco séculos, da celebração das bodas de sangue, que fez da cultura do Ocidente uma fonte de fantasia para todos, uma outra festa…” tinha ele anunciado no início do livro.

Variations sur l’interdit majeur – Littérature et inceste en Occident

 É, pois, com um tema difícil que Bertrand d’Astorg encerrará este tríptico, que terá explorado as diferentes formas de amor, tais como elas podem ser vistas por um homem ocidental. A publicação do livro em uma coleção de psicanálise parecia plenamente indicada para um tema como o incesto. É Jean-Bertrand Pontalis e Nikè d’Astorg, filha do poeta, ela mesma psicanalista, que prepararão a edição do livro, visto que o autor não pôde ver em vida a publicação seu livro.

Ser acolhido pela Gallimard em uma coleção da Nrf tê-lo-ia certamente deixado satisfeito, e ele teria também recordado que, ao sair da guerra, em 1946, ele publicara com mesma editora. Com efeito, Albert Camus, que dirigia nessa época a coleção Espoir, retivera as Quatre Elégies de printemps de Bertrand d’Astorg e, ao mesmo tempo, os Feuillets d’Hypnos de René Char.

Esta última obra de Bertrand d’Astorg enquadra-se perfeitamente como o prolongamento das duas precedentes. Ela reencontra a liberdade de forma da primeira. Ela está constituída de quatro variações, no sentido musical do termo. Em algumas, a crítica literária está posta em relevo; em outras, a ficção. O estilo do autor é o mesmo, com a mesma fluidez, com a mesma carga de poesia e estímulos de nosso próprio imaginário. A análise psicanalítica não interferirá em sua leitura. Esta se mantém com os mesmos objetivos.

Na abertura da obra, ele previne a respeito de suas intenções: “que o leitor não espere encontrar aqui explicação à realidade do incesto, mas uma tentativa de elucidação do modo como o incesto em nossa literatura (e naquela de nossos vizinhos) foi imaginado, ou melhor, como foi posto em forma de obra literária”.

Em Les Noces orientales, ele já se tinha perguntado: “Teríamos nós então necessidade de uma região distante, que nos seria terra de exílio voluntário, para que ali encontre acolhimento aquilo que é indizível, e nesse lugar se transforme em modos de expressão do secreto?” e explica pouco depois que “Diderot dissimula, na utopia taitiana, a esperança de uma libertação do amor, de tal modo que será quebrada inclusive a proibição do incesto…”. É Diderot precisamente quem inspirará a primeira variação.

Esta, que cobre mais de um terço do livro, vai muito além do tema proposto. Tomando como ponto de partida o Supplément au voyage de Bougainville, Bertrand d’Astorg nos faz abordar essas terras longínquas, onde, no século XVIII, e mesmo um pouco antes, os Europeus se aventuraram, animados por esta fantasia milenar de um lugar distante e paradisíaco. O Oriente estava carregado demais de civilização para permitir essa confrontação com a origem. No Pacífico, nas costas da América Latina, a vida parece regulada pelas leis da natureza. O velho Taitiano, que interpelará Bougainville depois que os homens desembarcaram na ilha, resumirá em poucas frases o pomo da discórdia: “tu espalhaste uma moral de remorsos e pavor que obscureceu as relações amorosas em que, segundo nosso costume, cada um se entrega a quem lhe agrada e lhe proporciona os frutos de seu amor. Tu inoculaste o ciúme, a ira, a idéia de mal, o sentimento do pecado “. A partir daí, pode colocar-se a caminho a reflexão de Diderot sobre a quebra dos tabus e das proibições. Bertrand d’Astorg a situa num plano pessoal, depois coletivo. O filósofo das Luzes tem contas a prestar com sua própria vida amorosa. Sua adolescência foi difícil, seu casamento um fracasso. Ele se diz apaixonado por sua filha, Angélique, que não demorará a casar-se. Mas esta literatura do incesto, que se encontra sob formas diversas em autores como Casanova, Sade ou ainda Restif de La Bretonne, significa mais do que o desejo de celebrar o fim das proibições, ela é o anúncio da chegada de uma nova ordem.

Na variação que segue, Bertrand d’Astorg continua sua exploração com Chateaubriand, Melville, Mary Shelley, Beckford, Emily Brontë, Henry James. “À sombra desses nomes reverenciados, os rios da ardente adelfia encontram sua fonte, incham-se de cem afluentes, vindos às vezes de longe, estendendo-se há dois séculos num fluxo quase invasor”, observa ele. Desde os mitos de Édipo e de Antígona, de Ísis e de Osíris, o incesto não interrompeu jamais seu curso escondido pelas vielas do inconsciente. Para Bertrand d’Astorg “o papel do artista é desvendar, resgatar a verdade dissimulada na vida, em si mesmo ”. Ele sabe o preço que este pagará por tal ambição.

A terceira variação é consagrada a L’Homme sans qualités de Robert Musil, que as Editions du Seuil tinham publicado já em 1956, na tradução memorável de Philippe Jaccottet. Bertrand d’Astorg passou os últimos anos de sua vida anotando a obra do grande autor austríaco. Numa espécie de identificação com Musil, ele se encontrou numa situação desconfortável, que impedia a repetição ou o plágio. Então, frente ao que ele considerava ser como uma evocação das mais bem acabadas, decidiu finalmente extrair as páginas do livro relativas a Ulrich e sua relação com a irmã, Agathe, para mostrar a permanência do incesto “adélfico” no século XX.

Na última variação, Bertrand d’Astorg retoma sua escrita criadora, imaginando duas cartas que relatam um fenômeno estranho observado sobre os declives do Etna, ao fim do século XVIII. Na primeira carta, um certo John Crafford escreve ao enviado extraordinário da Inglaterra na corte de Nápoles a respeito do ocorrido com sua filha, grávida do vulcão. Na segunda, o Comissário de Segurança da República Francesa, Jules Malicorne, informa a seu ministro da polícia, Fouché, os resultados de sua investigação sobre William Beckford, autor de Vathek. Descobre-se então que os poderes ocultos atribuídos ao Etna serviram para dissimular um incesto. Na realidade, esta intriga se duplica com o surgimento de Beckford, começada em Les Noces orientales. Ela responde a uma questão já levantada por Bertrand d’Astorg: é somente escrevendo sua obra em francês que Beckford, cidadão inglês, pôde contar aquilo que seria inconfessável na língua de seu país.

Assim se fecha esse livro, deixando ao leitor a tarefa de encontrar sua própria porta de saída. Bertrand d’Astorg teve a audácia de abordar um tema que seu meio intelectual estava pouco inclinado a tratar, recusando-lhe mesmo a edição. Os anos que correram após a aparição dessas Variations mostraram que muitos limites haviam sido franqueados desde então, mas sem a graça e a delicadeza de que ele se havia cercado. Resta interpretar o sentido de sua pesquisa. Na apreciação crítica que fará das Variations para a Nouvelle Revue Française (2), Richard Blin escreverá: “O incesto, em sua terrível nudez, era talvez para ele – é em todo caso para nós – uma dessas palavras capazes de condensar um tal amor à literatura, tanto ele ultrapassa o desejo, e deixa esse gosto do inacabado próprio aos sonhos que se retiram. Tanto ele toca de perto a lei e o limite – margens de onde o escrito tira sua força muda e a matéria de sua luz redentora”.

Amor à literatura é o que também nós reteremos, a um tempo por este livro como por seus dois precedentes. Seria como o ápice de um triângulo isóscele que terá em sua base, de um lado a sensibilidade de um poeta, de outro o legado da cultura ocidental. E é somente dentro dessa configuração que a figura geométrica conservaria equilíbrio e harmonia. As Pierres Vives de Bertrand d’Astorg poderiam constituir-lhe o pedestal.  

 

(1) Pour Pierre Emmanuel, Paris, Editions du Seuil, 28 de maio de 1969, pág. 12.
(2) Le Modelé de l’imaginaire (Pour saluer Bertrand d’Astorg),  n°453, octobre 1990.

 Jean-Luc Pouliquen (França, 1954).
Poeta e crítico literário francês. Ensaísta. Autor de
As crianças são poetas, método para despertar a poesia (2007), Bachelard: un regard brésilien (com Marly Bulcão) (2007), e Portraits de Rio de Janeiro (2009). O presente ensaio tem a tradução de Carlos E. C. Scherer. Contato : jeanlucpouliquen@hotmail.com.

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