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As Pierres Vives de Bertrand d’Astorg
Jean-Luc
Pouliquen
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Poeta
e crítico literário, Bertrand d’Astorg
(1913-1988) esteve ligado desde o princípio
à aventura das Editions du Seuil, que
desempenharam um papel importante no
panorama intelectual da França do pós-guerra.
Estudam-se aqui três de seus principais
livros, que constituem uma seqüência
coerente e destacada no desenvolvimento de
sua obra. Esta se organiza em torno do amor
à Mulher, tal qual foi evocado na literatura
ocidental através dos séculos, e sob as
diferentes formas que pôde tomar. Como poeta,
o autor propõe uma aproximação original que
põe em relevo a relação complexa que há
entre os apelos da existência e a criação
literária.
A coleção Pierres Vives foi criada
junto às Editions du Seuil em 29 de
outubro de 1945 por seu diretor Paul Flamand.
Tratava-se para ele, no momento em que sua
editora estava para encarregar-se das
coleções da revista Esprit, de poder
também fazer-se notar, com a publicação de
obras que não dependeriam diretamente das
escolhas de Emmanuel Mounier e de sua
equipe. |
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Foi imediatamente confiada a Claude-Edmonde
Magny a organização desta coleção, cujo
título foi extraído de uma frase do
Tiers-livre de Rabelais: “Je ne bastis que
pierres vives: ce sont hommes ”, referência
a uma pedagogia chamando cada um a forjar
sua própria linguagem e sua própria
sabedoria, sem o quê, os exemplos inscritos
na pedra não passam de letras mortas.
Prevista a princípio para publicar poesia,
romances e ensaios, Pierres Vives vai
impor-se como uma grande coleção de crítica
literária, da qual algumas obras, como
Histoire du Surréalisme, de Maurice
Nadeau, ou Le Degré zéro de l’écriture
e Mythologies de Roland Barthes,
alcançarão tal destaque, que ganham o
formato de bolso. |
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Mas sucessos de edição não devem esconder a
riqueza de um catálogo a ser redescoberto
sempre, pela diversidade e profundeza dos
assuntos que ele aborda. Entre os primeiros
autores da coleção, encontra-se Bertrand d’Astorg,
poeta e crítico literário de alta
envergadura, ligado igualmente às
Editions du Seuil quanto à revista
Esprit.
Ele nasceu em Pau, em 1913, sua
adolescência nos Pirineus lhe terá permitido
conhecer Francis Jammes e fazer amizade com
Pierre Emmanuel. É quando de seus estudos em
Tolosa que ele conhece Emmanuel Mounier, que
o convencerá a ir a Paris. Lá, ele viverá em
uma comunidade com Paul Flamand e Jean
Bardet, que iriam, os dois, encarregar-se
dos destinos das Editions du Seuil.
Em 1945, amadurecido pela guerra, que lhe
terá feito atravessar experiências numerosas
e intensas (prisão, fuga, École des
cadres d’Uriage, Londres, Maquis de
l’Yonne, Libertação de Paris), Bertrand
d’Astorg publicará em Pierres Vives
um ensaio dedicado a Jean Paulhan, que se
chama Introduction au monde de la terreur.
Em 1952, ele proporá também Aspect de
la littérature européenne depuis 1945.
Assim, fechar-se-á um ciclo ligado ao grande
cataclismo mundial, em que a interrogação
sobre o destino coletivo ganhará
preeminência em relação a um percurso mais
individual.
Nós voltamos nosso interesse para outra
seqüência, que começa com Le Mythe de la
dame à la licorne, que Pierres
Vives publicou em 1963, prossegue com
Les Noces orientales, aparecido
em 1980 e se termina com Variations sur
l’interdit majeur – Littérature et inceste
en Occident. Este último livro foi
publicado em 1990, dois anos depois da morte
do autor; desta vez, porém, junto à
Gallimard, na coleção Connaissance de l’inconscient.
Foi com grande tristeza que o autor viu
recusado pelas Editions du Seuil o
manuscrito que havia proposto, embora,
segundo nosso julgamento, seja a continuação
das duas outras obras.
“Não existe verdadeiramente exercício da
poesia sem uma tentativa de conhecimento
universal, não há verdadeiramente
conhecimento da poesia sem uma abertura a
toda a história da poesia, para além de
todas as civilizações”, foi levado a dizer
Bertrand d’Astorg na ocasião de uma
homenagem feita a Pierre Emmanuel.
Pensamos que ele formulava também, por meio
dessas poucas palavras, o movimento de sua
própria busca. Nós agora nos esforçaremos
por encontrar-lhe a dinâmica e por tentar
alcançar os horizontes em direção ao qual
ele nos conduz. |
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Le Mythe de la dame à la
licorne |
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Com esta obra, o autor nos conduz ao coração
da floresta. É lá que ele encontrará esse
animal mítico que é o unicórnio. Ele lhe
permitirá desenvolver uma reflexão sobre o
amor tal qual ele se impôs no Ocidente a
partir do século XII. Percebe-se
imediatamente um parentesco com Denis de
Rougemont, cujos trabalhos a equipe de
Esprit segue de perto nos anos trinta.
Mas Bertrand d’Astorg, poeta proveniente
daquela velha civilização occitana, que viu
seus troubadours cantarem o amor
cortês em todas as cortes da Europa, só
poderia abordar este tema com brilho e
originalidade.
Seu livro é de uma grande liberdade de
forma, em que há uma mescla de prosa
poética, récita, ficção e análise literária.
Ele se compõe de dois cadernos e um livro de
notas.
No primeiro caderno, Pierre, o narrador,
conta sua chegada a uma floresta próxima,
vindo de Paris. Há algo de bachelardiano
nessa busca de um elemento vegetal que lhe
corresponda. “Dize-me qual elemento… eu te
direi quem és ”, explica o autor, que se
confunde com a personagem Pierre. Além
disso, é ele próprio que pode ser
reconhecido, quando exalta os Pirineus de
sua infância, ou quando evoca o elemento Ar,
que suas numerosas viagens de avião lhe
fizeram atravessar. Mas é a floresta que tem
sua preferência, e Bertrand d’Astorg a
freqüentou durante muito tempo quando
possuía uma pequena casa perto de
Fontainebleau. Ela lhe permitiu:
“escapar a esta humanidade que a cidade
digeriu tão bem, homens-muros, homens-vidro,
homens-asfalto, frios e cinzas no inverno,
molhados de suor e pegajosos nos tempos
quentes, em meio aos quais nós passamos a
parte mais obscura de nossa amável
existência.”
Ser acolhido pela floresta permite
subtrair-se da vida ordinária, apaziguar sua
angústia de existir, conhecer um
encantamento. Pierre alimenta-se plenamente
de sua substância, e percorre seus caminhos,
que levam sempre ao espanto. Um objeto
esquecido pelo homem em plena natureza é
para ele sensação de uma virgindade
maculada. Uma cruz sobre uma sepultura
abandonada aviva a presença da morte, que
ele vislumbrou de perto durante a guerra. Um
encontro com um guarda florestal que lhe
segreda que sua vida perdeu o equilíbrio
depois que ele amou uma cigana, entrevista
em uma capela abandonada, reaviva sua
interrogação sobre o segredo dos destinos.
“Há contida na floresta uma formidável carga
de sonhos. Ela transfigura os seres que lhe
são confiados…”, revela o autor, cujo único
desejo agora é de penetrá-la mais
profundamente para ver chegar a si algum
animal fabuloso…
Em seu segundo caderno, Pierre evoca um
convite, poucos anos depois da guerra, para
uma estada em uma casa que amigos possuem
nos limites de uma floresta. Trata-se de um
casal formado por Beatriz e Bertrand. Antes
da guerra, houve uma forte atração entre
Pierre e Beatriz. Ela era adolescente, as
famílias tinham feito o necessário para que
a relação fosse abreviada. Durante a guerra,
Beatriz casara-se com Bertrand, mais velho
do que ela. A respeito da guerra, Pierre
escreve que “ela é sempre parecida com um
país perdido, charco, montanha, floresta ou
deserto, segundo a experiência de cada um; a
qual atravessamos para que possamos
ressurgir do outro lado - depois de meses,
anos - outros, simplificados, lúcidos
também, e separados, desta vez para sempre,
de nossa infância e daqueles que fizeram
dela um tempo de aprendizagem e
encantamento ”. Ele já não se sente atraído
por Beatriz, embora saiba que sua capacidade
de sedução sobre ela permaneça intacta. A
estadia se passa à maneira da velha nobreza
de antanho: passeios a cavalo, soirées
de poesia, leituras, discussões literárias.
Uma noite, para escapar à ambigüidade de sua
relação com Beatriz, Pierre parte para a
floresta com seu cavalo. É então que ele é
surpreendido pelo unicórnio, “sua crina
sedosa esvoaçava sobre sua fronte, o
movimento fazia correr arrepios brilhantes
sobre sua pelagem e tremular sua espessa
cauda. Todo o seu corpo exalava uma luz
cinzenta; centelhas às vezes faiscavam de
seus cascos. Ele galopava com a cabeça
erguida, como para elevar o terrível chifre,
onde nervos nacarados enroscavam-se numa
espiral regular”. O unicórnio parece, com
seu olhar profundo, querer transmitir-lhe
uma mensagem que ele não sabe interpretar.
Essa experiência fantástica é a ocasião de
um momento intenso entre Pierre e Bertrand,
quando de uma soirée em que eles se
encontram frente a frente, e que Beatriz
parte por sua vez com seu cavalo para
explorar a floresta. Bertrand é, ele
próprio, habitado pelo unicórnio, cujo
mistério ele tenta penetrar por meio de
tapeçarias que o representam, tanto no museu
de Cluny, em Paris, como naquele de
Cloisters de Nova Iorque. Bertrand
não ignora nada desse mito vindo da
profundeza das eras, que atravessou a Ásia e
o Oriente para se fixar no Ocidente na Idade
Média. O unicórnio é um animal selvagem e
intocável, somente uma virgem pode encostar
sua mão sobre seu assustador chifre sem que
ele a trespasse. Ele destila para Pierre o
elixir de suas pesquisas. Em Les Noces
orientales, livro que ele escreverá em
seguida, Bertrand d’Astorg voltará a esse
ponto: “espíritos sutis acreditaram
descobrir na imagem de um animal fabuloso, o
unicórnio - que se vê, sobre algumas
tapeçarias européias, manter com uma dama
relações enigmáticas - a representação de um
mito segundo o qual a mulher casada, e mesmo
genetriz, podia alcançar uma segunda
virgindade, de uma natureza incerta, para
oferecê-la como promessa de alegria e de
amor impossível, ao poeta que a canta”. A
noite se terminará de modo trágico: Beatriz
é trazida morta de seu passeio, com o
coração trespassado por um espinho. Ou por
um chifre?
A última parte do livro é constituída de um
caderno de notas vermelho que, antes de
morrer, Bertrand pediu a sua sobrinha que
fosse entregue a Pierre. Nós estamos na
presença de um puro trabalho de crítica
literária: a pesquisa da permanência do mito
através de oito séculos de escrita,
acompanhada de uma reflexão sobre as funções
e os poderes da literatura.
Eis que nos deparamos, antes de tudo, com
Atala, que Chateaubriand faz
morrer com um veneno, para respeitar o voto
de virgindade que sua mãe pronunciou por
ela. É assim que ela escapa ao amor que a
ligava ao guerreiro indiano Chactas. Depois,
em La porte étroite de Gide, é o
desejo de perfeição de Alissa que a afasta
de Jérôme. A princesa de Clèves, por sua
vez, recusa Monsieur de Nemours e “morre de
amor, por medo de um dia vir a conhecer, de
acordo com a lei da terra, a morte de seu
amor”. Nos livros seguintes: La Nouvelle
Héloïse, L’Émigré, Volupté,
Le Lys dans la vallée, é a mesma
dialética que está posta. Rousseau, Sénac de
Meilhan, Sainte-Beuve et Balzac pintam
mulheres a um tempo acolhedoras e contidas.
“A doce, a santa Mme de Mortsauf está em seu
leito de agonia: mas esta agonia é uma
seqüência de sobressaltos e revoltas. Pois o
unicórnio não é somente um animal que se
deixa submeter; sua natureza, se ele não é
contido pela promessa e pelo amor, o impele
a correr e a distanciar-se de forma
agressiva”, escreve o autor.
Nós estamos na virada dos anos sessenta,
antes do grande abalo de maio de 68, que se
empenhará em pôr abaixo todos os mitos e
proibições. Explorando o imaginário de
escritores que descreveram estas
mulheres-unicórnio, Bertrand d’Astorg se
inscreve em uma perspectiva completamente
diferente. Há nele a fé na literatura para
levar a outro plano questões insolúveis no
real. |
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Les Noces orientales
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Este livro prolonga em sua forma a última
parte do precedente. É um estudo que
apresenta por subtítulo: Essai sur
quelques formes féminines dans l’imaginaire
occidental. Não há, pois, ficção para
abordar o tema escolhido, mas a travessia de
uma grande quantidade de obras, que
testemunham a amplidão da cultura de
Bertrand d’Astorg. No que tange ao método,
poderíamos fazer uma comparação com outro
crítico literário que mencionamos há pouco,
Gaston Bachelard. Nos dois casos, há um
enorme apetite de leitura, que acaba por
fornecer ao livro uma profusão de
referências. Aqui elas serão, claro está,
literárias, mas também pictóricas e
musicais. Pode-se imaginar a quantidade de
notas tomadas pelos dois autores, a fim de
reagrupar as citações escolhidas em função
dos capítulos que organizarão o livro. Há,
no entanto, uma nítida diferença entre
Gaston Bachelard e Bertrand d’Astorg. O
primeiro utiliza conceitos que toma de
empréstimo ou cria ele mesmo como método de
entrada no texto, o de ‘complexo’, por
exemplo; o segundo é animado pelo puro
prazer da leitura, ele se dá conta, evoca,
sintetiza, ele analisa também, mas sem
aparato teórico. Essa distinção de
aproximação poderia estar ligada às próprias
obras literárias escolhidas. Bachelard
movimentava-se em um universo poético que
começava com o Romantismo para se terminar
com o Surrrealismo e seus sucessores
imediatos. O Romantismo será, para Bertrand
d’Astorg, um horizonte além do qual ele
pouco se aventurará nesse ensaio. É certo
que ele se interessará pela viagem de Nerval
ao Egito, por Rimbaud, por Nizan, mas antes
de qualquer coisa ele se terá debruçado
longamente sobre obras e autores que
constituíram nossa cultura clássica. Sua
própria formação explica o fato. O autor
teve até a idade de 14 anos uma educação
domiciliar, por meio de preceptores. Ele se
recorda, em Les Noces orientales, que
aos seis anos traduzia os versos latinos de
Vergílio com seu tio-avô. Bachelard, nascido
uma geração antes dele, lamentará não ter
estudado latim em seus estudos no colégio. A
separação entre Letras Modernas / Letras
Clássicas parece-nos aqui ser decisiva no
que diz respeito ao tratamento que cada um
dará à literatura. Dependendo do ponto de
partida, umas predominarão sobre as outras.
As numerosas notas de pé de página do livro
mostram-nos que Bertrand d’Astorg não ignora
nada das últimas produções de seu tempo. Ele
aludirá às pesquisas de Michel Foucault, aos
filmes de Pasolini quando abordar o tema de
Medéia, apenas que ele avançará na dinâmica
de uma investigação que lhe é própria, e que
possui confiança suficiente em si mesma para
não se render a tal ou qual concessão ao
pensamento ambiente. É isso que faz toda a
originalidade dela, ela convida a uma
descoberta ou uma redescoberta de obras que
a produção contemporânea encobriu rápido
demais.
Mas para um poeta, a escrita toma sempre sua
fonte naquilo que alimenta seu imaginário.
Na obra precedente, era a floresta que tinha
desencadeado a busca do unicórnio. É então a
fantasia infantil que é o ponto de partida
desta viagem. “Cada um traz de sua infância
algumas palavras-chave, que lhe abrem as
portas de marfim ou de chifre sobre este
‘não importa onde neste mundo’, em que se
estabelecerá a pátria dos seus sonhos: para
mim um só - o Oriente ”, confia o autor no
começo desse ensaio. Ele prosseguirá um
pouco depois: “Minha fantasia,
inocentemente, me conduzia a errar em
lugares distantes: eu não achava estranho
atravessar sozinho os desertos, alcançar os
portos dos trópicos onde eu era o único de
minha branca espécie “, e ele sublinha
ainda: “ Eu não estava ainda em idade de
discernir, por detrás da tapeçaria, a
divindade ou a jovem mãe, de quem, no
entanto, eu adivinhava, desejava a presença,
como toda criança”.
A mulher, como na obra precedente, permanece
como o pivot da escritura. É ao redor
dela que se organiza o confronto entre
Oriente e Ocidente. Les Noces orientales,
tal é o título do ensaio que o autor dedica
àquela “que o destino de sua família -
proveniente da
Damasco dos jardins férteis - trouxe, com
escala em Alexandria e Atenas, até a margem
esquerda do Sena”, isto é, sua
própria esposa.
Ele vai então esforçar-se por mostrar de que
modo a literatura ocidental através dos
séculos pôs em cena tais amores além das
fronteiras. O quadro é bastante sombrio,
Vergílio na Eneida conta como Enéias
abandona Dido em Cartago para fundar Roma.
Ela não sobreviverá ao abandono. Eurípedes
consagra uma tragédia a Medéia, que Jasão
afasta de seu reino da Cólquida, ao pé do
Cáucaso, para traí-la em seguida em Corinto
com Creusa, filha do rei Creonte. Medéia
vinga-se de Creusa por meio de um veneno,
depois mata os dois filhos, que teve de
Jasão, antes de fugir em direção ao céu, em
uma carruagem que o Sol lhe enviara.
Plutarco, depois Shakespeare, dirão como a
morte unirá para sempre os amantes
Antônio e Cleópatra depois de sua
derrota em Actium, contra os
exércitos de Otávio.
Bertrand d’Astorg prossegue com a personagem
Salomé, encarnação suprema da sedução
oriental. Ela obterá de Herodes a cabeça de
João Batista. Lembrando-nos como Gustave
Moreau na pintura, Massenet e Richard
Strauss na música, Mallarmé, Flaubert ou
Oscar Wilde na literatura, a representaram,
ele nos faz medir o impacto do mito sobre o
imaginário europeu do fim do século XIX.
Corre através dos séculos uma reiterada
curiosidade em relação ao Oriente, cujo
propulsor escondido Bertrand d’Astorg tenta
revelar. “O Oriente é o lugar do imaginário
onde o amor prometido é prazer e perigo, mas
onde o perigo mesmo é fascínio do amor. Um
certo Ocidente fechado, racista, endógamo
não teria nunca a última palavra”, observa
ele. A leitura que ele oferecerá do
Orlando Furioso de Ariosto bem como da
Jerusalém libertada de Tasso, duas
fábulas heróicas italianas escritas no
século XVI, tocará de novo na questão. Na
Renascença, as Cruzadas serão sempre fonte
de inspiração. Tasso imaginará os amores do
cristão Tancredo com a etíope Clorinda, que
também terminarão em sangue.
Que se busquem as vias terrestres ou
marítimas, que se viaje à China com Marco
Pólo, às Índias com Vasco de Gama, ou ainda
além da Pérsia, em busca do Reino do Preste
João, o Oriente é sempre promessa de
encantamento e efusão de um desejo que não
pôde cumprir-se totalmente no Ocidente, seja
ele de ordem material, sensual ou
espiritual.
À diferença do Mythe de la dame à la
licorne, Bertrand d’Astorg escreveu esse
ensaio depois de maio de 68, nos anos de
contestação do modelo ocidental, de
contra-cultura e de uma nova busca
existencial, que conduzirá numerosos jovens
a tomar o caminho da Índia. Sem dúvida ele
quis, à sua maneira, rica
de
seu passado, de sua capacidade de poder
oferecer olhares abrangentes, dar sua
contribuição, com a palavra de alguém mais
experiente. É aquela de um poeta que jamais
cedeu à ilusão da tabula rasa, e que
sabe que as grandes criações literárias nos
ensinam aquilo que desde a origem inquieta o
íntimo do ser humano. “Já começou certamente
a era das bodas espirituais, que transfunde
no espírito do Ocidente alguma coisa da
fidelidade do Oriente ao sagrado de cada
hora, de sua busca das relações de cada vida
no universo: a obra de poetas diversos da
Europa nos assegura isso. É, desse modo, uma
grande festa do espírito que se prepara, mas
ela não será fidedigna se se perder, por
ignorância, a tradição, que atravessa vinte
e cinco séculos, da celebração das bodas de
sangue, que fez da cultura do Ocidente uma
fonte de fantasia para todos, uma outra
festa…” tinha ele anunciado no início do
livro. |
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Variations sur l’interdit
majeur – Littérature et inceste en Occident |
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É, pois, com um tema difícil que Bertrand
d’Astorg encerrará este tríptico, que terá
explorado as diferentes formas de amor, tais
como elas podem ser vistas por um homem
ocidental. A publicação do livro em uma
coleção de psicanálise parecia plenamente
indicada para um tema como o incesto. É
Jean-Bertrand Pontalis e Nikè d’Astorg,
filha do poeta, ela mesma psicanalista, que
prepararão a edição do livro, visto que o
autor não pôde ver em vida a publicação seu
livro.
Ser acolhido pela Gallimard em uma coleção
da Nrf tê-lo-ia certamente deixado
satisfeito, e ele teria também recordado
que, ao sair da guerra, em 1946, ele
publicara com mesma editora. Com efeito,
Albert Camus, que dirigia nessa época a
coleção Espoir, retivera as Quatre
Elégies de printemps de Bertrand d’Astorg
e, ao mesmo tempo, os Feuillets d’Hypnos
de René Char.
Esta última obra de Bertrand d’Astorg
enquadra-se perfeitamente como o
prolongamento das duas precedentes. Ela
reencontra a liberdade de forma da primeira.
Ela está constituída de quatro variações, no
sentido musical do termo. Em algumas, a
crítica literária está posta em relevo; em
outras, a ficção. O estilo do autor é o
mesmo, com a mesma fluidez, com a mesma
carga de poesia e estímulos de nosso próprio
imaginário. A análise psicanalítica não
interferirá em sua leitura. Esta se mantém
com os mesmos objetivos.
Na abertura da obra, ele previne a respeito
de suas intenções: “que o leitor não espere
encontrar aqui explicação à realidade do
incesto, mas uma tentativa de elucidação do
modo como o incesto em nossa literatura (e
naquela de nossos vizinhos) foi imaginado,
ou melhor, como foi posto em forma de obra
literária”.
Em Les Noces
orientales,
ele já se tinha perguntado: “Teríamos nós
então necessidade de uma região distante,
que nos seria terra de exílio voluntário,
para que ali encontre acolhimento aquilo que
é indizível, e nesse lugar se transforme em
modos de expressão do secreto?”
e explica pouco depois que “Diderot
dissimula, na utopia taitiana, a esperança
de uma libertação do amor, de tal modo que
será quebrada inclusive a proibição do
incesto…”. É Diderot precisamente quem
inspirará a primeira variação.
Esta, que cobre mais de um terço do livro,
vai muito além do tema proposto. Tomando
como ponto de partida o Supplément au
voyage de Bougainville, Bertrand
d’Astorg nos faz abordar essas terras
longínquas, onde, no século XVIII, e mesmo
um pouco antes, os Europeus se aventuraram,
animados por esta fantasia milenar de um
lugar distante e paradisíaco. O Oriente
estava carregado demais de civilização para
permitir essa confrontação com a origem. No
Pacífico, nas costas da América Latina, a
vida parece regulada pelas leis da natureza.
O velho Taitiano, que interpelará
Bougainville depois que os homens
desembarcaram na ilha, resumirá em poucas
frases o pomo da discórdia: “tu espalhaste
uma moral de remorsos e pavor que obscureceu
as relações amorosas em que, segundo nosso
costume, cada um se entrega a quem lhe
agrada e lhe proporciona os frutos de seu
amor. Tu inoculaste o ciúme, a ira, a idéia
de mal, o sentimento do pecado “. A partir
daí, pode colocar-se a caminho a reflexão de
Diderot
sobre a quebra dos tabus e das proibições.
Bertrand d’Astorg a situa num plano pessoal,
depois coletivo. O filósofo das Luzes tem
contas a prestar com sua própria vida
amorosa. Sua adolescência foi difícil, seu
casamento um fracasso. Ele se diz apaixonado
por sua filha, Angélique, que não demorará a
casar-se. Mas esta literatura do incesto,
que se encontra sob formas diversas em
autores como Casanova, Sade ou ainda Restif
de La Bretonne, significa mais do que o
desejo de celebrar o fim das proibições, ela
é o anúncio da chegada de uma nova ordem.
Na variação que segue, Bertrand d’Astorg
continua sua exploração com Chateaubriand,
Melville, Mary Shelley, Beckford, Emily
Brontë, Henry James. “À sombra desses nomes
reverenciados, os rios da ardente adelfia
encontram sua fonte, incham-se de cem
afluentes, vindos às vezes de longe,
estendendo-se há dois séculos num fluxo
quase invasor”, observa ele. Desde os mitos
de Édipo e de Antígona, de Ísis e de Osíris,
o incesto não interrompeu jamais seu curso
escondido pelas vielas do inconsciente. Para
Bertrand d’Astorg “o papel do artista é
desvendar, resgatar a verdade dissimulada na
vida, em si mesmo ”. Ele sabe o preço que
este pagará por tal ambição.
A terceira variação é consagrada a L’Homme
sans qualités de Robert Musil, que as
Editions du Seuil tinham publicado já em
1956, na tradução memorável de Philippe
Jaccottet. Bertrand d’Astorg passou os
últimos anos de sua vida anotando a obra do
grande autor austríaco. Numa espécie de
identificação com Musil, ele se encontrou
numa situação desconfortável, que impedia a
repetição ou o plágio. Então, frente ao que
ele considerava ser como uma evocação das
mais bem acabadas, decidiu finalmente
extrair as páginas do livro relativas a
Ulrich e sua relação com a irmã, Agathe,
para mostrar a permanência do incesto
“adélfico” no século XX.
Na última variação, Bertrand d’Astorg retoma
sua escrita criadora, imaginando duas cartas
que relatam um fenômeno estranho observado
sobre os declives do Etna, ao fim do século
XVIII. Na primeira carta, um certo John
Crafford escreve ao enviado extraordinário
da Inglaterra na corte de Nápoles a respeito
do ocorrido com sua filha, grávida do
vulcão. Na segunda, o Comissário de
Segurança da República Francesa, Jules
Malicorne, informa a seu ministro da
polícia, Fouché, os resultados de sua
investigação sobre William Beckford, autor
de Vathek. Descobre-se então que os
poderes ocultos atribuídos ao Etna serviram
para dissimular um incesto. Na realidade,
esta intriga se duplica com o surgimento de
Beckford, começada em Les Noces
orientales. Ela responde a uma questão
já levantada por Bertrand d’Astorg: é
somente escrevendo sua obra em francês que
Beckford, cidadão inglês, pôde contar aquilo
que seria inconfessável na língua de seu
país.
Assim se fecha esse livro, deixando ao
leitor a tarefa de encontrar sua própria
porta de saída. Bertrand d’Astorg teve a
audácia de abordar um tema que seu meio
intelectual estava pouco inclinado a tratar,
recusando-lhe mesmo a edição. Os anos que
correram após a aparição dessas
Variations mostraram que muitos limites
haviam sido franqueados desde então, mas sem
a graça e a delicadeza de que ele se havia
cercado. Resta interpretar o sentido de sua
pesquisa. Na apreciação crítica que fará das
Variations para a Nouvelle Revue
Française (2), Richard Blin escreverá:
“O incesto, em sua terrível nudez, era
talvez para ele – é em todo caso para nós –
uma dessas palavras capazes de condensar um
tal amor à literatura, tanto ele ultrapassa
o desejo, e deixa esse gosto do inacabado
próprio aos sonhos que se retiram. Tanto ele
toca de perto a lei e o limite – margens de
onde o escrito tira sua força muda e a
matéria de sua luz redentora”.
Amor à literatura
é o que também nós reteremos, a um tempo por
este livro como por seus dois precedentes.
Seria como o ápice de um triângulo isóscele
que terá em sua base, de um lado a
sensibilidade de um poeta, de outro o
legado da cultura ocidental. E é somente
dentro dessa configuração que a figura
geométrica conservaria equilíbrio e
harmonia. As Pierres Vives de
Bertrand d’Astorg poderiam constituir-lhe o
pedestal. |
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Jean-Luc
Pouliquen (França, 1954).
Poeta e crítico literário
francês. Ensaísta. Autor de
As crianças são poetas, método para
despertar a poesia
(2007), Bachelard: un regard
brésilien (com Marly Bulcão)
(2007), e Portraits de Rio de
Janeiro (2009).
O presente ensaio tem a tradução de
Carlos E. C. Scherer. Contato :
jeanlucpouliquen@hotmail.com. |
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