Um dos
traços humanos mais curiosos é a
formidável capacidade de fazer
generalizações.
Generalizamos automaticamente.
Esta é
uma generalização.
Tratar
arquitectura, música ou literatura
como questão de gosto, por exemplo,
é uma popular generalização.
Muitos
só se dão conta do absurdo dessa
afirmação quando o objecto passa a
ser medicina, cujos resultados
implicam uma directa
responsabilização em relação à vida;
ou matemática, cujo universo é
muitas vezes pleno de signos
inacessíveis ao comum dos mortais.
Naqueles casos, torna-se claro que
não se trata de gosto, mas de
conhecimento, de referências dentro
de um sistema de ordem. Entretanto,
de uma ou de outra forma, tudo o que
fazemos não é uma questão puramente
subjectiva, absolutamente livre do
ambiente que nos forma.
A
própria subjectividade, aquilo que
sou, também é aquilo que somos, pois
o que denominamos inteligência está
entre nós.
Pois a
palavra humano surge da antiga
expressão humus, significando
terra, e que também gerou o
termo humildade – sentido que
liga-nos a todos.
Todavia, esse sentido de unidade
transformou-se ao longo de milhares
de anos.
Quando
fazemos parte de uma sociedade oral,
o seu ambiente e a natureza das
nossas memórias de curto e longo
prazo projectam pequenos grupos
sociais ligados entre si, num certo
sentido como a forma de uma cebola –
com camadas que vão se superpondo,
sempre dependendo da posição em que
estivermos.
Por
isso, é comum encontrar nas
sociedades típicamente acústicas e
orais grupos que tendem a se fechar
em círculos cada vez menores.
Eu e
os meus filhos contra os meus
irmãos. Eu, meus filhos e meus
irmãos contra os meus vizinhos; eu,
meus filhos, meus irmãos e meus
vizinhos contra os outros... Daí o
velho ditado Árabe – «para os amigos
tudo, para os outros a lei».
Bem
antes de Maquiavel, o próprio
Petrarca aconselhava o príncipe
ideal: «Deves ser o pai dos teus
súbditos; os deves amar como se
fossem os teus próprios filhos,
amá-los como se fossem os membros do
teu corpo. Contra os inimigos,
empregarás armas, guardas e
soldados...».
Petrarca, que viveu entre 1304 e
1374 – embora maravilhoso escritor e
poeta,
e precursor de muito do que viria a
ser o mundo Moderno – ainda tinha
nas
suas veias a escala acústica do
universo medieval.
O
princípio da isonomia é uma ideia de
uniformização.
Um
pouco por todo o planeta, no início
do século XXI, questiona-se a
validade da democracia. Quem seria
igual a quem? Um miserável drogado
teria
o mesmo valor para a sociedade que
um cientista? Um terrorista teria os
mesmos
direitos que um cidadão cumpridor
dos seus deveres?
O
princípio da isonomia acaba com essa
questão – não há mais lugar para
julgamentos de valor. Todos são
iguais face à Lei.
Trata-se de um princípio ideal,
naturalmente.
Não
existe uma igualdade absoluta, como
também não existe diferença
absoluta.
São
pólos de atracção, espécies de atractores estranhos.
O
princípio da isonomia surge na
Antiga Grécia, mais precisamente em
Atenas.
Cícero dizia, sobre a isonomia, que
«o que se segue desse princípio é
que se há
uma quantidade específica de
criaturas mortais, o tamanho das
imortais não
será menor; e, ainda, se os
elementos destrutivos do mundo são
incontáveis, as
forças de conservação também devem
ser infinitas», assim, todos são
iguais face a
um princípio superior. Tudo se
tratando de uma questão de escala.
A
ideia de isonomia parece começar a
tomar forma como conceito
convencional somente a partir do
século V a.C., com Alcmaeon of
Crotona, que viveu
entre 540 e 500 a.C onde actualmente
fica a Calábria, na Itália.
Alcmaeon era um médico e defendia
que «a igualdade – ou isonomia – dos
poderes – tais como o húmido, o
seco, o frio, o quente, o amargo, o
doce e
assim por diante – mantém a saúde,
enquanto que a monarquia entre eles
produz
a doença».
Ele
foi o primeiro, na Grécia, a
defender que o cérebro é o local
onde se
processa o pensamento e,
curiosamente, diversos autores têm
sugerido que essa
ideia apenas lhe terá aparecido após
ter observado o nervo óptico ligando
os
olhos ao cérebro – o facto curioso
está na íntima relação entre a ideia
de
isonomia e a faculdade da visão.
Nascido pouco mais de vinte anos
após a morte de Alcmaeon, Heródoto
defendia que «o governo feito pelo
povo traz consigo a mais bela de
todas as
ideias: isonomia – a igualdade de
todos face a lei».
Contemporâneo de Heródoto,
Péricles, citado por Tucídides,
dizia que «a
nossa constituição se chama
democracia porque o poder está nas
mãos não de uma
minoria, mas de todo o povo. Quando
se trata de determinar disputas
privadas, todos são iguais face à
lei...».
Cerca
de cem anos antes, as reformas
sociais projectadas à partir das
célebres Leis das Doze Tábuas
elaboradas por Sólon – que viveu
entre 638 e 558
a.C. – são por muitos consideradas
como a primeira expressão concreta
do
princípio da isonomia: todos
uniformemente submetidos a um único
e estável
conjunto de leis – mais de cem anos
antes de Alcmeon.
Assim
nasceu o que vulgarmente chamamos de
Estado de Direito.
Por
que essa ideia da igualdade de todos
face à Lei surgiu nessa época?
A isonomia é um dos elementos
fundamentais para a compreensão da
democracia. Outros são a
departamentalização e a atomização
das suas partes
constituintes.
Átomos, departamentos e um universo
de igualdade face à Lei.
São
os departamentos, as partes
estabelecidas em independentes
unidades discretas e um princípio de
igualdade face à Lei que determinam
a ordem
ideal da democracia.
Outro
elemento importante é ser a Lei, ou
corpus legal, um sistema
estável e elaborado pelo povo, de
forma directa ou representativa.
Isonomia
e democracia chegaram a ser
considerados quase opostos por
Platão. Aristóteles defendia na sua
Política que «é mais apropriado que
a lei
governe do que qualquer um dos
cidadãos», e condena o governo onde
«as
pessoas governam e não a lei»,
quando «tudo é determinado pelo voto
da
maioria e não pela lei».
Isto
é, pode haver isonomia sem
democracia, mas aquela é fundamental para a
existência desta, pelo menos em
termos modernos.
Na
isonomia não há questões pessoais.
O
primeiro artigo da Nona Tábua de
Sólon, sobre lei pública, diz que
«nenhum privilégio, ou estatutos,
serão estabelecidos em favor de
pessoas
privadas, para a injúria de outras,
contrariamente à lei comum de todos
os
cidadãos, a qual os indivíduos, não
importando de que categoria, têm
direito de
fazer uso».
A
partir do século II d.C., a
igualdade de todos face à Lei
gradualmente perde
preponderância, com os governos
aumentando as suas interferências
sobre
as vidas dos cidadãos,
principalmente tendo como
justificação a melhoria da
segurança e da performance
económica.
Já no
século VI d.C., o Imperador
Justiniano terminaria
definitivamente com a
ideia de que todos deveriam ser
iguais face à Lei e que esta deveria
servir à
defesa da liberdade dos indivíduos -
lançando um primeiro modelo para a
figura
do príncipe, que se consolidaria
muito mais tarde.
O
antigo princípio Grego da isonomia
apenas viria a ser efectivamente
resgatado já no século XVII, através
das ondas de transformação
produzidas pelo
Renascimento Italiano.
Por
que apenas então é que a isonomia
voltou a ser um elemento
importante na discussão das
estruturas políticas de ordem?
As
respostas a essas questões implicam
saber como a forma que usamos os
nossos sentidos altera e formata os
nossos padrões de pensamento, como a
lógica
é desenhada.
Lógica não como um específico tipo
de raciocínio, tal como defendido por
Aristóteles, mas enquanto princípio
de ordem do pensamento, tal como
defendia George Boole.
Ordem
nada mais é que diferenciação, e
desordem desdiferenciação -
fundamentalmente os dois princípios
basilares da termodinâmica: os
elementos de
agregação e de desagregação.
Toda
a lógica nada mais é que o desenho
das forças de agregação e de
desagregação.
A
emergência da ideia de isonomia e,
logo depois, da democracia, coincide com a
invenção do milagre Grego através da
importação do alfabeto fonético
do
Crescente Fértil, a sua síntese e
aquecimento com a adição das vogais.
Associado ao papiro, a escala de
uso desse artefacto cognitivo gerou
uma
mutação nos padrões de pensamento,
nas estruturas de ordem, nos
princípios de
diferenciação.
Toda
a generalização está inevitavelmente
relacionada aos princípios de ordem
- aos princípios de diferenciação -
mas sempre aspirando à entropia.
A
questão não é se generalizamos ou
não, mas como o fazemos - quais os
princípios que orientam a
organização do nosso pensamento.
O
exercício intensificado do uso do
alfabeto fonético associado a um
meio rápido
como o papiro, ou ainda mais rápido
como o papel, articula dois tipos de
visão:
a periférica e a central.
A
visão central é sensível à cor e à
textura, a visão periférica ao
movimento e à
luz.
Tudo
acontece com a escala da escrita - o
tamanho das letras sobre papiro ou
papel. Se as letras forem muito
grandes, por exemplo, a legibilidade
diminui pois,
dependendo do tamanho, passam a
implicar um envolvimento maior da
visão
periférica. A percepção da forma das
letras é especialmente orientada
pela
visão central.
Lemos
letra a letra e por blocos, sílabas,
palavras e frases - num dinâmico
processo de rastreamento envolvendo
diferentes partes do cérebro e ambos
os tipos
fundamentais de visão.
Quando lemos um texto, conforme a
visão central vai identificando as
letras, a visão periférica dá-nos a
percepção do todo, do sentido do
texto. Tudo muito
dinamicamente, em contínuos saltos
de um lado para o outro, para cima
e para
baixo.
Uma
pessoa que acabou de ser
alfabetizada tem dificuldade em
compreender um texto, pois ainda não
articula de forma rápida e dinâmica
aquele
processo de saltos oculares no
contexto da escrita. Aprendemos a
vasculhar, e quando o fazemos bem,
lemos em silêncio - nos libertando
da voz e do
ouvido.
Isso
não significa que os antigos
Atenienses liam normalmente em
silêncio.
A
primeira referência à leitura
silenciosa - que desassocia
definitivamente o ouvido
da fala - apenas acontece mais de
cem anos depois de Sólon. Até mesmo
durante o Império Romano, a
existência de celas especiais nos
edifícios e nas casas
pertencentes às classes sociais mais
ricas indica que, muito
provavelmente, grande
parte das pessoas ainda tinha o
hábito de ler em voz alta.
A
presença do papiro não era
suficientemente grande para permitir
o hábito
generalizado da leitura silenciosa.
A
leitura em silêncio cresce
gradualmente com a popularização do
papiro, e
desaparece, de forma relativamente
rápida, com a sua parcial
substituição pelo
pergaminho no final do Império
Romano.
O
pergaminho é um meio mais lento e
mais raro que o papiro.
A
fusão do alfabeto fonético e o
papiro, assim como a leitura em
silêncio, faz
emergir aquilo que no Ocidente
designamos literatura.
A
forma da literatura é a do seu meio.
Unidades discretas intercaladas
numa
estrutura fortemente predicativa,
teleológica.
Seguindo a clássica divisão triádica do mundo Indo Europeu,
geralmente
pensamos em estruturas hierárquicas
como sendo típicas do exército, do
mundo
agrário e das estruturas religiosas,
isto é: típicas de estruturas
pré-literárias.
De
facto, assim acontece, pois se trata
de um novo meio que toma como seu
conteúdo o meio anterior. Qualquer
sistema democrático isonómico
existente é
caracterizado por fortes princípios
de hierarquia.
Tudo
sendo regido pela Lei.
Há
dois tipos de natureza hierárquica -
a teleologia e a teleonomia. A
primeira é a orientação do sistema
para um ponto de atracção, espécie
de
singularidade, que pertence ao
próprio sistema. A predicação é um
exemplo de
como tal acontece. O termo
teleologia foi criado pelo filósofo
Alemão
Christian Wolff, que viveu entre
1679 e 1754. O mundo literário é
fortemente
teleológico.
Teleonomia,
por outro lado, indica uma estrutura
hierárquica gerada sem
intenção - fenómeno típico na
biologia. Teleonomia significa a
emergência de uma
estrutura de ordem hierárquica
gerada pela função, isto é: por um
processo de
coordenação que desenha-se orientado
pela função através de um processo
de
dissipação.
Enquanto que a teleologia estabelece
a posteriori os princípios de ordem,
a
teleonomia os têm a priori, como a
sua natureza primeira.
Na
democracia republicana de carácter isonómico - seja do tipo
presidencialista ou parlamentar -
tudo está orientado para um foco de
poder, com
uma estrutura ordenada pela Lei,
sempre uniformemente acima de todos
- e
tudo é estabelecido em termos
teleológicos.
Em
toda democracia isonómica sempre há
aquilo a que chamamos de
autoridade - nas suas mais diversas
instâncias. A palavra autoridade
nasce de
autor, que é fortemente relacionada
com a escrita. E a autoridade, aqui,
é sempre
um símbolo.
E
assim acontece com o texto
literário, com o fenómeno produzido
pela fusão
do alfabeto fonético e um meio ágil
como o papel, por exemplo.
É a
predicação e a ilusão da
contiguidade.
A
forma de uma sociedade organizada
segundo os princípios da isonomia e da
democracia é a mesma de um texto
literário onde a história e o
símbolo têm um
papel preponderante.
Mais
refinado o texto literário, maiores
as referências teleológicas
internas, mais pontos de atracção
encontramos - mas todos eles
estabelecidos em
função de uma estrutura comum de
acção fortemente hierárquica. Ou
seja, tudo
organizado segundo um ponto de fuga
principal.
Outro
aspecto típico da literatura é a
departamentalização. Tudo no texto é
departamentalizado.
Na
escrita fonética, o som é
departamentalizado em unidades
discretas.
Esse
fenómeno desencadeia um processo de
departamentalização em diferentes
níveis, como uma espécie de processo
de auto-similaridade.
Tudo
na percepção sensorial se fundamenta
sobre a repetição, e a réplica
é a
sublimação por excelência desse
fenómeno.
Assim
também acontece com aquilo que
chamamos democracia moderna.
Todos
os valores sociais têm o seu lugar,
como também as pessoas, segundo um
referencial primeiro - o poder -
antes formalizado pela posse, pelo
dinheiro, e mais
tarde pelo consumo.
Na
literatura, a voz é desencarnada -
separada do corpo, dos seus órgãos
originais. Voz livre da boca e do
ouvido. Não apenas a voz, mas a
própria imagem é
desincorporada, transformando-se em
imaginação - tornando-se sem corpo.
Quando lemos em silêncio, a desencarnação da voz e da própria
imagem do
mundo, associada aos movimentos
oculares, gera uma lógica muito
especial, um
novo tipo de memória.
Enquanto que a voz falada exige uma
grande redundância como forma a
sedimentar a memória de longo prazo,
a escrita funciona como extensão
protética daquele tipo de memória,
libertando a mente para todo o tipo
de
especulação.
Por
isso, a nossa palavra especulação
surge do Latim speculum,
directamente relacionada ao espelho.
Para
além da repetição das frases, outras
duas formas de redundância
especialmente importantes para o
universo oral são as rimas e o ritmo
- elas
realizam um elemento de repetição
suficientemente intenso para
sustentar a
fixação da memória de curto prazo em
memória de longo prazo.
Por
isso, o texto literário liberta a
poesia do canto: o papel
substituindo a função
daqueles elementos de repetição.
E
também por essa razão, os sistemas
orais são muito mais
tradicionalistas que
aqueles cunhados pela escrita.
A
redundância exigida pelo sistema
acústico como condição para a
sedimentação da memória de curto
prazo em longo prazo implica um alto
grau de
repetição.
As
ideias de história, de filosofia e
de ciência trazem consigo o
princípio da
descoberta, de algo que é diferente
- pois o texto sobre o papiro ou
sobre o papel é em
si próprio um sistema de
armazenamento informacional
suficientemente
estável para permitir uma reflexão
sobre. Fenómeno que as correntes
gnósticas
medievais associavam directamente à
Iluminação.
Por
isso, é com a literatura que emerge
a história, a filosofia e a ciência
-
ideias impossíveis num quadro de
grande redundância sistémica.
Não
por outro motivo chamamos a História
Moderna como aquela que
inicia-se com o Renascimento
Italiano e principalmente após
Gutenberg. E também
por essa razão, aquilo que
vulgarmente chamamos de história
clássica
começa, de facto, com a Antiga
Grécia.
História enquanto técnica - logo
transformada, em termos
metalinguísticos, em
tecnologia: a abordagem crítica
sobre a própria técnica -
redesenhando-a.
Foi
necessário o aparecimento de um meio
estável de armazenamento da
memória de longo prazo para que a
noção de história como a conhecemos
pudesse surgir; um sistema de
inteligência artificial que pudesse
dar à nossa
memória de curto prazo um
coeficiente de redundância
suficientemente intenso ao
ponto de nos tornar capazes de
estabelecer com rapidez e
flexibilidade um
exercício de loops informacionais
contínuos sobre um largo contingente
de dados.
Assim, é claro notar que todo esse
complexo sistema de inteligência
artificial estabelecido pela escrita
fonética em fusão com meios como o
papiro ou o
papel não está fora dos seres
humanos.
Fenómeno que ilumina a ideia segundo
a qual aquilo que chamamos de
inteligência está entre nós, e que
aquilo que conhecemos não nos
pertence.
A
palavra moderno lança as suas raízes
ao Indo Europeu *med que
indicava a reflexão sobre as
questões de ordem, gerando não
apenas a palavra
meditação mas, também, medicina –
pois, no passado, a medicina
indicava o acto
de reflexão, de meditação sobre o
funcionamento dos nossos corpos.
No
século XIV a palavra moderno era
resgatada do baixo Latim modernus que no
século VI possuía a indicação de
modo. No século XVI, após a
popularização da
imprensa de tipos móveis, ela
passaria a ter o sentido pejorativo
daquilo que é
feito aqui e agora, com invenção,
mas livre das amarras do passado,
dos
rígidos cânones da tradição e,
portanto, destituído de grande
valor.
O
espírito da invenção, no sentido
moderno do termo, nasce com a
literatura, com a prosa.
O
espírito da invenção implica uma
relativa independência da nossa
memória de longo prazo, isto é, a
liberdade em tomar para si e pensar
sobre – como
alertava Eric Havelock.
Ou
seja, há um terceiro termo que -
associado aos princípios da isonomia e da
democracia - projecta o que
convencionamos chamar de
modernidade: o
princípio da revolução.
E a
revolução é a transformação
paradigmática de uma sociedade - o
todo
transformado. Essa é a lógica da
literatura: cada livro é um universo
em si.
A
transformação paradigmática foi, ao
longo dos séculos, o princípio por
excelência das revoluções
científicas, como mostrou Thomas
Kuhn.
O
texto escrito, tornado literatura, é
único e paradigmático. Universos
precisos, completos. Cada autor tem
como meta ser detentor de um estilo
claro e
inequívoco.
O
sistema da escrita fonética,
estabilizada pelo uso intensivo
através
daqueles meios estáveis, velozes e
flexíveis de armazenamento
informacional, é
paradigmático na sua essência.
O
mesmo acontece com as estratégias
tonais na música ou com a
representação pictórica.
Nas
sociedades orais, acústicas, a
representação plástica geralmente é
estruturada a partir de uma base
geométrica, não raramente
estabelecida por tramas
feitas com linhas ortogonais, como
acontecia com o Antigo Egipto; ou
com os
diagramas geométricos tão típicos do
mundo medieval.
Mas,
quando a escrita fonética emerge,
associada a um meio dinâmico como o
papiro ou o papel, aquela estratégia
pictórica transforma-se rapidamente,
assumindo uma estratégia
antropomórfica - isto é, fazendo
emergir, enquanto
princípio lógico, aquilo que
designamos como ilusão de
contiguidade.
No
mundo visual, ao invés dos rígidos
quadros de linhas que designam
o
objecto, que lhe servem de formato
padrão, surge o próprio corpo humano
como
referência fundamental para as
medidas.
Mas,
o corpo não está lá. Trata-se de uma
referência segunda, degenerada,
tal
como ocorre com a metáfora.
É
curioso aqui, questionarmos a
estreita relação entre esse fenómeno
e a
emergência da ideia de isonomia -
cada um é igual face à Lei, não mais
uma Lei
estabelecida por uma entidade
religiosa, mas o ser humano como
medida de todas
as coisas – como defendia
Protágoras, exactamente à mesma
época em que a
ideia de isonomia tomava forma
definitiva.
No
final do Império Romano, assim que a
importação de papiro,
principalmente de Alexandria,
esgotava-se, as ideias de isonomia e
de
democracia desapareciam
gradualmente, e a representação
pictórica voltava a se
sustentar em gráficos fortemente
geométricos. A identificação visual
do
indivíduo desaparecia, dando lugar a
um universo muito mais rico em
termos de
repetição dos eventos visuais
redundantes.
O
ressurgimento daquelas antigas
ideias Greco Romanas aconteceria cerca
de mil anos mais tarde, de forma
gradual, fundindo elementos do
universo
anterior – tal como acontecera antes
com o universo Homérico e a
realidade de
Péricles.
Assim, quando surgiu a tecnologia
da perspectiva plana, a figura do
príncipe trazia como conteúdo as
ideias estabelecidas por Justiniano,
e não a
estratégia traçada pela perspectiva
com um único ponto de fuga.
Isto
é, embora o príncipe seja um ponto
de fuga único, ele ainda não
satisfaz os conceitos de isonomia e
de democracia. Ele é o símbolo para
um novo
meio. Conteúdo de um novo meio.
O
termo literatura surge da palavra
letra – litteris, em Latim.
Por
sua vez, a palavra letra lança-se à
partícula Indo Europeia *l, que terá
surgido de *r – que indicava a ideia
de mover sobre algo, apontando para
o acto de se
deter sobre alguma coisa e mesmo de
libertação.
Daquela antiga raiz surge *lag, que
significava ligar, e *likh que, como
variante fonética de *rikh, indicava
a acção de marcar, de arranhar algo
com um
instrumento.
Uma
das mais antigas palavras em
Sânscrito, presente no Rig-Veda, é laksa,
que indica a ideia de “signo”, com o
qual um proprietário marcava o seu
gado. Um conceito de propriedade,
que indica a ideia de liberdade, de
independência.
Mais
tarde, do Sânscrito laksa surgiria
laksmi, que era a noção de pura
beleza, mulher de Visnu,
representando riqueza e
prosperidade.
As
origens da palavra literatura
associadas às ideias de “ligação” e
de
“signo”.
A
escrita fonética foi o primeiro
sistema de inteligência que
inaugurou de forma
radical o processo de desencarnação
– separando o som da voz. O papiro – e,
mais tarde, o papel – acelerou,
ampliou e modificou esse fenómeno.
Em
termos breves, tal como tratamos de
diferentes tipos de memória,
tomamos aqui diferentes faces do
conhecimento – basicamente a
cognição e a
percepção. Dois sistemas fortemente
referentes um ao outro, sem clara
distinção. Verdadeiro paradoxo, a
divisão faz-se somente com o
objectivo de
compreender o fenómeno – pois apenas
a diferença produz a consciência.
Tomamos a cognição como formação do
conhecimento, na estruturação de uma
complexa rede de relações sígnicas
das mais diversas naturezas; e
percepção como os princípios de
estruturação do ambiente enquanto
qualidade –
considerando o ambiente como sendo
tudo o que constitui as relações de
existência.
Uma
das mentes mais brilhantes de
sempre, o filósofo Americano Charles
Sanders Peirce – que viveu entre
1839 e 1914 – elaborou uma
estratégia para o
estudo da linguagem – verbal ou não
verbal. Chamou-a Teoria Geral dos
Signos.
Peirce era um matemático e, assim,
não elaborou uma estratégia que
estivesse radical ou exclusivamente
ligada à linguagem verbal. Portanto,
o seu método
é aberto a todo o tipo de linguagem.
Sinteticamente, Peirce partiu de
uma estrutura triádica, formada por pólos
relacionais aos quais chamou,
simplesmente, de um, dois e três.
Quando digo a palavra avião, por
exemplo, todos sabemos do que se
trata,
e temos, imediatamente, uma espécie
de imagem – mas não podemos dizer
que tipo de avião é. Não se trata
exactamente de uma imagem. Qual o
modelo, qual o tamanho, qual a cor?
Tudo é desconhecido, mas sabemos,
ainda assim,
que é um avião. Essa espécie de
imagem, de conhecimento
inexplicável, de
relação de qualidade com o objecto,
é o que Peirce chamou simplesmente de um,
ícone, ou ainda primeiridade. A
palavra que desencadeou o processo é a
relação de existência, um índice,
sua segunda categoria relacional, ou
secundidade. Finalmente, quando
compreendemos aquilo que estamos
tratando, levando ao domínio da
razão, temos uma relação de lei,
símbolo, ou
terceiridade.
Agora,
imaginemos quantos graus de
primeiros, segundos e terceiros são
gerados a partir de um único signo –
porque a existência isolada de um
signo é sua
aspiração impossível. Peirce
estabeleceu um grande quadro de
associações
dinâmicas, nascidos daquele
princípio sintético. A fusão de
todos aqueles
elementos é o signo.
Na
realidade, não é possível explodir o
signo em departamentos, e Peirce deixou
bem claro esse facto. Trata-se de
uma fragmentação que é e não é,
simultaneamente.
Assim, o que chamamos de cognição
está para a terceiridade de Peirce, como a
percepção está para a primeiridade,
tendo o ambiente – tudo o que é
qualquer tipo de linguagem – como
secundidade, o que desencadeia todo
o
processo.
Por
isso, o meio é a mensagem, como
defendia McLuhan.
As
ideias de Charles Sanders Peirce,
tal como a brilhante intuição de
Schopenhauer em relação a uma
telecausalidade, estavam muito à
frente do seu
tempo.
E
tudo isso ocorre porque as
metamorfoses humanas não acontecem
linear
e diacronicamente, com um princípio,
um meio e um fim – como nos ensina
a literatura – mas se expandem como
verdadeiros pulsares no espaço
tempo.
Por
essa via, tomar a cognição como
estando mais associada à categoria
do
símbolo, e a percepção às relações
de qualidade com o objecto – ainda
que
enfeixados num mesmo complexo de
acção – permite-nos estabelecer
alguns
interessantes princípios para a
compreensão da mutação da ordem do
pensamento.
Daí
emerge a noção de resolução como um
dado da percepção, e a
definição como elemento cognitivo.
Ao
lermos um texto geramos um universo
de alta definição em baixa
resolução. Lemos um texto literário
e ele torna-se subitamente – como um
efeito
alucinógeno – num verdadeiro cenário
de acção em alta definição.
Mergulhamos na história, como se lá
estivéssemos. Mas, trata-se de um
sistema de
baixa resolução: letras que simulam
sons e sons que simulam acção. Dois
planos
de degeneração que projectam um
simulacro.
No
universo acústico, tudo acontece em
alta resolução e baixa definição
–
exactamente o contrário da
literatura. A voz falada pertence ao
corpo, ela
acontece presencialmente, com
definição total – mas, o nosso
sistema de
sedimentação da memória de curto
prazo em longo prazo, funcionando em
constantes apagamentos, em loops
auto-referenciais, exige um elevado
grau de
repetição, de redundância,
projectando uma realidade de baixa
definição.
Com
uma pequena capacidade de
armazenamento informacional, a
repetição
implica menos diversidade. Essa é a
natureza da imprecisão dos mitos.
Por essa razão,
o mundo oral é francamente
bidimensional, enquanto que o
literário,
operando em profundidade e
organizado predicativamente, é
caracterizado pela
terceira dimensão.
Por
isso, tudo na literatura acontece em
profundidade – como um
mergulho num universo paralelo:
lâminas sígnicas interactivas num
amplo padrão
de simultaneidade.
Um
universo de campos e atractores
operando no sentido de uma única
singularidade: o leitor.
Assim, a música seguiu a literatura
com o aparecimento das sinfonias,
os
trabalhos mais elaborados de
quartetos e conjuntos de câmara, as
fugas e as
mais complexas obras para piano – a
partir do século XV até ao século XX:
espécies de lâminas de eventos em
simultaneidade, com a tonalidade
enquanto
sistema que organiza os sons em
função de uma nota principal, ponto
de fuga num
sistema fortemente teleológico.
Com a
aproximação do século XX,
gradualmente, aquele processo de
organização desintegra-se, com a
Bagatela sem Tonalidade de Lizst,
com o
segundo movimento da Quarta Sinfonia
de Gustav Mahler, com Jeux de Claude
Debussy e, finalmente, com Arnold
Schoemberg, Alban Berg e Anton
Webern.
Tal
como grande parte da música criada
depois do século XIII até ao século XX, o
livro é caracteristicamente um meio
de mão única. Esse traço, aliado ao seu
desenho de grande estabilidade, à
quase imutabilidade das letras e das
suas
relações, projecta uma aspiração à
homogeneidade – assim, nascem os
aspirações por constituir regimes
estáveis em sociedades padrão. Como
um meio de expansão e articulação da
memória de longo prazo, o papiro
projectou a amplificação espaço
temporal do Império Romano – quando
o
princípio de identidade tornou-se
abstracto: a cidadania Romana.
Mesmo
antes de a fusão entre o alfabeto
fonético e o papiro terem
alcançado intensidade suficiente
para gerar o fenómeno Romano, já na
Antiga Grécia
nascia a ideia de oposição entre
corte e província, cidade e
interior, então tendo
como elemento chave a palavra falada
– porque o conteúdo de um novo
meio é
o seu meio anterior. Daí nasce a
ideia de bárbaro, daquele que está
fora de um
contexto por falar diferente. A voz
como conteúdo, como explicação, do
novo
fenómeno.
Apenas pode existir uma relação
entre cidade e interior, corte e
província, quando
elas estão ligadas de alguma forma.
E o papiro providenciou essa
ligação.
O
alfabeto fonético e o papiro
estruturam um mundo de figura e
fundo. Isso
permitiu a Aristóteles – pertencente
a um universo já razoavelmente
literário – estabelecer os
princípios lógicos do terceiro
excluído, segundo os quais
as coisas simplesmente existem ou
não existem, assim como os
princípios da
causalidade local: todo o evento tem
uma causa local e anterior.
Apenas o quadro estável de um
universo destacado, separado da
própria
existência, uma realidade sobre a
qual pode-se pensar como um todo
uniforme, é que
permitiu a emergência daquelas
ideias.
A
palavra realidade surgiria
praticamente à mesma época da
invenção de
Gutenberg, e o seu uso conheceria
uma forte expansão após a imprensa
de tipos
móveis ter projectado de forma
amplificada aquele fenómeno de
universo
paralelo.
Mesmo
antes de Gutenberg, com a expansão
do mundo urbano a partir do
século XII – quando o papel começava
a ser fabricado no continente
Europeu,
primeiro na Península Ibérica e
depois na Península Itálica – o
processo de
uniformização gerado pela literatura
fez com que, gradualmente, fossem
padronizados os comportamentos
sociais à mesa e as relações humanas
em geral
– produzindo o que chamaríamos de
boa educação. As estradas seriam
pavimentadas, a mutilação física
dava lugar ao cerceamento da visão
nas prisões, e o
tempo passava a ser definitivamente
departamentalizado em unidades
discretas. Tudo num processo que
seria fortemente amplificado pela
imprensa de
tipos móveis metálicos de Gutenberg.
Erasmo de Roterdão, já no século
XVI, trataria de escrever manuais de
comportamento para crianças. É então
que os livros libertam as mãos
dos
iluminadores e surge o princípio da
caligrafia pessoal – com escolas que
permaneceriam até ao século XX. As
pessoas passaram a ser reconhecidas
não apenas
pela forma como falavam – mais ou
menos obedientes ao texto escrito,
denunciando o seu grau de literacia
– mas também pela letra escrita.
É com
a fusão do alfabeto fonético e o
papiro – mais tarde o papel – que
surge, ainda, o mundo estruturado
por estereótipos – fenómeno típico
do mundo
literário. E o estereótipo opõe-se
ao sagrado. Assim, o mundo Greco Romano
era fortemente pagão, e a religião –
embora presente – colocava-se em
segundo plano.
Como
uma espécie de contradição, a
invenção de Gutenberg surgiu como uma
defesa dos ideais de evangelização
da Igreja Católica – e, embora tenha
gerado
uma formidável onda positiva para a
Igreja, logo faria surgir Martinho
Lutero
e, paralelamente à sua expansão, a
Igreja Católica foi se
dessacralizando ao
longo dos séculos.
O
estereótipo é a base do formato – e,
do comportamento humano aos
artefactos, tudo é formatável no
universo da literatura.
O
mundo literário inaugura, ainda, o
repúdio ao obsoleto.
O
obsoleto não é aquilo que não tem
mais uso, mas sim o que, mantendo-se
funcional, não é mais percebido. O
obsoleto é o que entra no fluxo da
rotina e
torna-se redundante. Assim, no mundo
tribal a ideia de obsoleto
praticamente não
existe.
O
obsoleto pertence ao passado, àquilo
que já está integrado. O papel
pertence ao futuro, ao permanente
exercício de elaboração sobre o
passado,
transformando-o.
É
aqui, ainda, que emerge a noção de
tradição, como produto da
ruptura.
E
também aqui é estabelecida a ideia
de confiança, de trust, como um
compromisso de longo prazo – pois
apenas um meio dinâmico, flexível e
estável como o
papiro e, mais tarde, o papel, cria
a projecção do futuro.
O
aparecimento do telefone no século XIX surge como uma radical
transformação das condições de
definição e resolução estabelecidas
pela
literatura.
Enquanto que a literatura opera em
baixa resolução e alta definição, o
telefone é caracterizado por baixa
resolução em baixa definição.
O
nosso espectro de frequência
auditiva vai dos dezasseis aos vinte
mil ciclos
por segundo – nos ouvidos mais
apurados. Mas o espectro de
frequência
utilizado nos telefones gira em
torno dos apenas três mil ciclos por
segundo, que é a
frequência de maior impacte na média
dos ouvidos. Praticamente todo o
resto
é perdido. Ainda assim, somos
capazes de reconhecer vozes e até
mesmo de
identificar diferentes instrumentos
musicais pelo telefone, pois
possuímos um
sistema neuronal que completa a
informação perdida.
Por
isso, é mais difícil falar línguas
estrangeiras pelo telefone.
Repetimos, involuntariamente, mais
fonemas quando falamos ao
telefone. Falar ao telefone,
fazer-se compreender e entender o
que o outro diz
implica um aprendizado. Pessoas que
nunca falaram ao telefone têm grande
dificuldade tanto para comunicar
como para compreender, quando o
fazem nas
primeiras vezes.
A
baixa resolução e baixa definição
impediu que o telefone se expandisse
para
além da comunicação individual. E o
indivíduo torna-se conteúdo desse
novo
meio, resgatado da leitura em
silêncio promovida pelo papiro e
pelo papel.
O
telefone – ao contrário do que
acontece com a literatura – inaugura
dois
fenómenos fundamentais para se
compreender o que viria a ser, cerca
de cem
anos após a sua invenção, o universo
virtual: o tempo real e duas mãos de
comunicação.
A
forte interacção e o tempo real que
desenham o telefone, não
permitem que haja um formato – após
a ligação ter sido realizada, todo o
resto é
improvisação: a articulação dinâmica
entre as memórias de curto e de
longo termo.
Por
isso, embora tenhamos obras de
vídeo, instalações, cinema ou
livros, nunca existiu uma obra de
arte de telefone – ainda que tenham
existido
experiências com a sua utilização.
O
fenómeno de desincorporação
produzido pelo telefone é diferente
daquele que caracteriza a literatura
– não há mais corpo, mas existe uma
ligação efectiva entre as pessoas.
Não se trata de um meio que articula
lâminas
degeneradas, mas sim uma ligação
directa.
No
telefone tudo é surpresa e nada é
invenção – porque no mundo oral
tudo
opera em diacronia: uma coisa depois
da outra. Assim, para o universo
acústico, o que se sabe agora apenas
terá significado com o que vier a
seguir, que
será sempre uma surpresa.
O
mundo da literatura assegura uma
estabilidade do futuro e projecta
a
aspiração contínua à invenção; no
mundo oral, tudo é mais redundante e
tradicional mas – dada a natureza da
relação entre as memórias de curto e
de longo
termos – haverá sempre o momento
seguinte como elemento essencial.
O
telefone amplifica o fenómeno oral –
a intimidade do universo acústico,
cheio
de elementos inesperados mas sem
invenção, sem descoberta. Tudo é
efémero no telefone.
Sendo
uma espécie de universo ultra
acústico, com um espectro de
frequência reduzido, o telefone
exige uma grande redundância de
informação,
implicando um profundo envolvimento
das pessoas.
Com o
telefone, o desenho do indivíduo
conhece uma mutação – ele
torna-se consciente de si através da
íntima ligação com o Outro. A
participação total
das pessoas ao telefone revela a
experiência sensorial do Outro em
cada um de
nós.
Essa
ligação íntima é gerada pelo tempo
real – improvisação contínua.
Uma
ligação que permitiu – junto com o
automóvel – a rápida expansão
espacial da
família e das cidades.
Com o
aparecimento da rádio, a voz isolada
e amplificada torna-se via de mão
única – também desencarnada, mas com
um espectro de frequência bem maior
e com um traço fundamental: a
explosiva expansão espacial.
A
rádio é sempre a voz do orador – a
comunicação de um para muitos.
Mas,
trata-se de um orador sem fronteiras
– por isso as emissões de rádio
foram
sempre consideradas, desde o início,
como uma questão de segurança de
Estado.
A
rádio reverteu sensorialmente, num
processo oximórico, o fenómeno criado
pela literatura – não mais os mais
diferentes personagens que acontecem
em
nosso corpo, mas personagens feitos
de vozes desencarnadas – uma espécie de
desencarnação do teatro.
Essa
desincorporação fez com que
emergisse o ideal da voz pura.
A voz
sempre foi o elemento de integração
social por excelência – a
primeira coisa que fazemos ao nascer
é aprender a falar.
A
palavra voz surge do Indo Europeu
*wek, que significava falar e passou ao
Sânscrito como vac – indicando não
apenas a voz como também a ideia de
divindade.
Aquele
misterioso ideal da voz pura
praticamente exterminou com o bel
canto,
no canto lírico, e projectou com
todos os poderes a figura do orador
público – não mais uma pessoa
falando para dezenas ou centenas,
mas para
milhões.
Sendo
o elemento de ligação social por
excelência, a voz desincorporada
trouxe
os impulsos do super nacionalismo –
gerando, entre outros desastres, a
figura
de Hitler.
Todo o
nacionalismo é essencialmente
tribal.
Tal
como acontece com a comunicação
oral, a rádio não possui ponto de
fuga –
e grande parte da publicidade que
surgiu após o rádio e o telefone tem
um
forte carácter gráfico
bidimensional.
O
cinema também acontece como via de
mão única – tal como o rádio ou
como o livro – mas lança uma nova
revolução sensorial. Trata-se de uma
linguagem de luz – luz projectada.
Até então, praticamente tudo que
existira fora
luz homogénea projectada sobre uma
superfície de reflexão irregular –
como
acontece com os livros ou as
pinturas. Com o cinema, esse
fenómeno é
invertido, sendo a luz irregular
projectada sobre uma superfície
reflexiva
homogénea.
Não
apenas, sendo uma espécie de câmara
obscura artificial, ampliada para
todos, os fenómenos visuais
relativos ao movimento e à luz, que
tipicamente
funcionalizam a visão periférica,
são subitamente concentrados na
visão central –
sensível à textura e à cor: aqui
acontece o mágico sentido das
fotografias e filmes
em preto & branco: sentidos
invertidos.
Essa
reversão sensorial faz com que o
cinema represente uma
formidável concentração na visão
central, com alta resolução e alta
definição –
desintensificando a visão periférica
– sensível à luz e ao movimento.
A
literatura activa dinamicamente
ambos os tipos de visão.
Com a
visão central temos o típico
fenómeno da sístase – tudo tomado numa
única vez. Quando admiramos uma obra
de arte visual, não olhamos
separadamente as suas partes.
Por
isso, quando a fabricação de papel
tem início no continente Europeu,
surge
a arquitectura Românica –
caracterizada pelo desenho em
compartimentos, pelas
cores e texturas, pois ainda
exercitávamos mais a visão central,
não
tínhamos ainda adquirido a prática
da leitura em silêncio em grande
escala.
Apenas
mais tarde, com o aumento do uso do
papel, do alfabeto fonético e o
aparecimento da leitura em silêncio,
é que a visão periférica é
suficientemente
intensificada para que as catedrais
Góticas possam emergir.
O
fenómeno conhecido como sístase –
tudo tomado numa única vez –
projecta um mundo de departamentos
mas com a sensação de continuidade
e
linearidade, pois a Natureza opera
por contrários. Assim, também o
universo
acústico – cunhado pela diacronia –
projecta um contínuo mundo de
relações
próximas, mas com a sensação de
compartimentação, como as lâminas de
uma
cebola.
A
visão periférica – luz e movimento –
implica o aparecimento da ideia do
paradigma, típica do mundo
literário. Curiosamente, a estrutura
dos filmes de cinema
é, desde o início, e salvo raras
excepções, a da literatura.
Mas o
cinema inaugura uma nova estratégia:
a montagem.
A
montagem acontece devido à
intensificação da visão central.
Conjuntos de
imagens que são montadas de forma a
criar a sensação de continuidade,
replicando o funcionamento dos
movimentos oculares sacádicos.
Por
isso o cinema privilegia os grandes
planos – a montagem necessita de
muitos elementos de similaridade
para constituir um eficiente fluxo
da
história.
A
percepção da forma implica
movimento. Ela depende de movimentos
oculares involuntários,
rastreamentos conhecidos como
movimentos
sacádicos.
Movimentamos os nossos olhos numa
frequência de cerca de dez
varreduras por segundo.
As nossas
retinas necessitam de uma intensa
irrigação
sanguínea – assim, existe à sua
frente uma complexa trama de
pequenas artérias, muitas
delas impedindo a passagem de luz
para as células fotoreceptoras. Se
víssemos tudo, mesmo o que estivesse
parado, também veríamos uma imensa
quantidade de sombras – o que seria
um grande e desnecessário volume de
informação.
Os
nossos cérebros criaram, então, uma
estratégia económica para lidar
com
isso – apenas o que está em
movimento é visível. Por isso, o
olho parado não
vê.
No
cinema somos obrigados, sem que
percebamos, a focalizar a nossa
atenção visual a cerca de um metro
atrás da tela de projecção – para
podermos ver o
filme.
Isto
é, ir ao cinema implica uma educação
– assim como falar ao telefone
ou
fazer um programa de rádio.
Quando focalizamos atrás da tela,
incorporamos uma parte da visão
periférica, que confere a qualidade
de totalidade à acção.
Mas,
isso não ocorre com a televisão.
A
tela da televisão e muito dos
monitores de computadores, com as
suas
frequências de varredura, substituem
os nossos movimentos oculares
sacádicos, fazendo com que os nossos
olhos parem. A percepção da forma
passa dos
olhos para o aparelho de televisão,
como uma espécie de prótese
sensorial
inteligente.
Livre
dos movimentos oculares, todo o
resto desaparece, os nossos
ouvidos ficam mais livres para a
audição, e mergulhamos naquele
universo
televisivo. Isso é o fenómeno a que
chamamos imersão – que apenas se
tornaria
popularmente conhecido com a
revolução virtual.
Mas,
há uma outra revolução inaugurada
pela televisão: a luz emitida
substituindo a luz projectada.
Até
então, o único fenómeno
relativamente controlado de luz
emitida era o
fogo. Com a televisão, a intensidade
da luz em movimento altera todo o
processo perceptivo visual.
A
retina passa a ser massajada pela
luz.
Com a
televisão, a visão periférica
desaparece; mas a massagem de luz
transporta a visão periférica para o
centro, tornando tudo num único e
fluído
movimento.
Meio
de mão única, apenas um sentido na
comunicação, a televisão é
profundamente hipnótica – e o
hipnotismo não conhece cortes ou
montagens.
Mas, a
informação – quase como um mosaico
de luz – não é inteiramente
processada. Somente uma pequena
parte da informação emitida pela
televisão é
memorizada, isto é, passa à memória
de longo prazo.
Como
mostrava McLuhan, a televisão é um
meio frio. A baixa memorização leva a
um preenchimento cognitivo daqueles
vazios, a uma espécie de
participação para completar o
mosaico visual de luz. Uma operação
de restauro da
imagem pela sua superfície – não
preenchemos ideias, mas vazios da
imagem.
A
televisão é um meio superficial por
excelência. Por isso, as novelas
Brasileiras e Mexicanas se tornaram
rapidamente num sucesso mundial.
Também por
isso, os políticos que fazem sucesso
na televisão são, inevitavelmente,
figuras caricaturais.
A
palavra caricatura surge do Latim
caricare, que significava carregar,
exagerar ou, em outras palavras,
aquecer a figura.
Boa
parte do cinema popular tomou
emprestado elementos da televisão,
caricaturando personagens e
situações, tratando-os em primeiros
planos bem
fechados.
O
primeiro plano fechado é outro
elemento essencial na televisão – a
baixa
resolução não permite grande
requinte de detalhes na imagem.
Na
televisão há a desincorporação da
imagem e do som. Ao contrário da
fotografia, que em certo sentido
funciona mais como a literatura:
imagens
bidimensionais simulando acções em
baixa resolução e alta definição, na
televisão tudo é abstracto, tudo
está fora do ser.
Imagens de guerras vistas através
da televisão têm geralmente menos
impacte. Sociedades muito
televisivas se tornam mais
superficiais. Tudo girando em
torno da memória de curto prazo – o
aqui e agora.
Assim
emerge o mundo do entretenimento –
tudo transformado em
superficialidade.
Em
toda essa fabulosa metamorfose
sensorial, a questão da identidade é
sempre
fundamental.
A
identidade – do Latim idem, que
significava igual – apenas pode
existir com a
diferença.
Aristóteles estava alerta para a
questão da identidade e a relacionou
com o
sentido de unidade. Por sua vez, a
ideia de unidade está directamente
associada á da repetição.
Quando
buscamos alcançar uma certo grau de
unidade numa composição
musical, por exemplo, utilizamos
elementos de redundância que
projectam o
sentido de unidade. O mesmo acontece
com a arquitectura, ou com qualquer
outra
linguagem.
Gottfried Wilhelm Leibniz, no
século XVII – pertencente a uma
sociedade já
fortemente literária – defendia que
a questão da identidade poderia ser
compreendida através de uma
formulação simples: se x é idêntico
a y, então tudo o
que for verdade de x também o é de y
– que ficou conhecido como o
princípio da indiscernibilidade de
idênticos, ou simplesmente como a
Lei de
Leibniz.
Curiosamente, Leibniz aplicou o
princípio Aristotélico do terceiro
excluído como conteúdo para a
questão da identidade – pois a sua
identitas
indiscernibilium estabelece a
impossibilidade da existência, na
Natureza, de duas
coisas absolutamente iguais – sempre
um novo meio tomando como
conteúdo o meio anterior.
Bastante visual e literário,
Leibniz sonhava com uma linguagem
universal,
uniforme e padrão.
A
ideia de identidade aqui é a do
indivíduo que reconhece-se como tal
e, assim,
sendo diferente do Outro, mas
pertencendo a um determinado grupo
de
ideias.
Uma
complexa e, em certo sentido,
paradoxal combinação entre
igualdade e diferença, unidade e
diversidade. Misteriosa combinação
das ideias de
Aristóteles e de Leibniz.
A
violência nada mais é que a busca
pela identidade.
Ao
contrário do que muitas vezes se
supõe, a violência não é um atributo
da
pobreza, da necessidade material. A
luta pela sobrevivência não é um
acto de
violência. Há sociedades pobres
violentas e não violentas; e, da
mesma forma,
sociedades ricas violentas e não
violentas.
Tanto
o mundo oral como o da literatura
estabelecem fortes princípios de
identidade. Para o primeiro, a
identidade está no grupo, no clã, na
tribo, no
sistema que permite relembrar a todo
o instante, em elevada redundância,
os
elementos de agregação e de
desagregação.
Com a
literatura, a identidade é
estabelecida com o leitor em
silêncio, ponto
de fuga supremo de todo o processo,
e, portanto, diferente de todos os
mundos
que não lhe pertencem.
Por
isso, o mundo da literatura
geralmente não considera como
violência a
eliminação daquilo que não é
literário, daquilo que não está de
acordo com o seu
mundo. Daí, a violência estabelecida
durante as descobertas marítimas
do
século XVI – que até hoje pertencem
ao imaginário dos países Orientais –
constar dos livros de história como
factos de orgulho nacional. Daí, a
violência brutal
das conquistas da América Espanhola,
a eliminação sistemática dos índios
Americanos, e o fenómeno do racismo.
O
universo da literatura é o da
exclusão – por isso, Aristóteles,
num
momento em que o universo literário
ainda estava no início, elaborou o
princípio do
terceiro excluído. Não se trata de
uma generalização ingénua, mas de
uma
coincidência de princípios lógicos.
No
final da década de 1950 era
estabelecido o início do que viria a
representar uma fascinante
metamorfose planetária, quando o
Presidente Americano Dwight
David Eisenhower criava a Advanced
Research Projects Agency, mais conhecida pelas siglas
ARPA, como reacção dos Estados
Unidos ao
desenvolvimento tecnológico militar
Soviético, especialmente devido ao
lançamento do Sputnik em 1957.
A
função da ARPA era produzir uma arma
invisível e indestrutível. A sua
criação imitou, de certa forma, o
princípio que caracterizou o
projecto
Manhattan, durante a Segunda Guerra
Mundial – a multidisciplinaridade.
Era a
mesma época em que John Cage e Merce
Cunningham se encontravam no
Black Mountain College e passaram a
assumir, com Raushenberg o princípio de
independência e simultaneidade da
música, da dança e das artes
plásticas.
Alguns anos antes, ainda durante a
Segunda Guerra Mundial, nos
Laboratórios Psico-Acústicos da
Harvard, um jovem e genial cientista
chamado Joseph
Carl Robnett Liklider utilizava
complexos modelos matemáticos para
compreender como funcionava a
audição humana.
Num
determinado momento, os seus modelos
matemáticos assumiram tal
complexidade que tornou-se
especialmente difícil lidar com
eles. Liklider
observou, então, que quando tratamos
de equações aerodinâmicas ou de
padrões de fluídos, tal como a
viscosidade, o clássico
processamento de
informação numérica não tem mais
importância, e o que passa a
funcionar é o que se
chamou de modelagem.
Em
1960, Licklider lançaria o livro
Man-Computer Symbiosis, onde
defendia, para a estupefacção de
muitos, que «dentro de poucos anos,
os
cérebros humanos e as máquinas de
computação vão ser unidas com grande
proximidade, e o resultado dessa
colaboração vai pensar como ser
humano algum
jamais pensou e processará
informação de uma forma em nada
parecida com as
máquinas de tratamento de informação
que conhecemos hoje em dia».
Em
1962, Licklider era definitivamente
integrado nos quadros da ARPA com o
objectivo de inventar a arma
invisível e indestrutível.
Rapidamente, ele
descobriu que a mais poderosa arma
apenas poderia ser informação.
Assim,
elaborou e passou a coordenar um
programa de interactividade na
estruturação de
redes de computadores, que ficaria
conhecida por ARPANET.
Pela
sua própria natureza, informação
espalhada por diversos pontos,
holograficamente, é algo
indestrutível – pois só poderá ser
destruída se o todo também
o for.
Em
1985, a fusão da ARPANET com a
NSFNET – National Science Foundation Net –
significaria o início do que
conhecemos como Internet. A National
Science
Foundation foi criada em 1981, com o
objectivo de criar uma rede aberta
permitindo aos investigadores
académicos acesso a
supercomputadores.
Dezassete anos antes, em 1968,
Licklider defenderia: «Queremos
enfatizar algo para além da
transferência one-way: o significado
mais e mais
importante do construtivo pela
união, do aspecto do mútuo reforço
através da
comunicação – algo que transcenda a
afirmação ‘agora nós dois conhecemos
um
facto que apenas um de nós sabia
antes’. Quando as mentes interagem,
novas
ideias emergem».
Isto
é, tudo junto na fusão da televisão
com o telefone e, também, de tudo o que
conhecemos. Aqui tem início uma
profunda metamorfose civilizacional
– o
universo virtual.
A
palavra virtual surge do Latim
virtus, que indicava a ideia de
potencialidade.
No
mundo virtual, tudo é possibilidade
total.
As
redes de redes de sistemas de
telecomunicação interactiva em tempo real
estabelecem um meio de meios, em
múltiplo sentido de interacção.
Deixam de fazer sentido os
conceitos de resolução e de
definição. O
universo das redes está presente em
todo o lugar, dos telefones ao
design dos
automóveis, das televisões aos
livros.
No
centro dessa metamorfose
civilizatória surge uma nova
sociedade: o
teleantropos cunhado por René Berger
– o ser humano feito também à
distância, dando
ao conceito de proxemia criado por
Edward T. Hall nos anos 1960 uma nova
dimensão e projectando uma inédita e
surpreendente teleproxemia.
Teleantropos significa, em poucas
palavras, a formação do ser humano
não mais
num contexto local, mas num ambiente
global. Recebemos informações de
todo o planeta, a todo o instante.
Enganamos as estações climáticas
transportando todo o tipo de
vegetais e de alimentos através de
milhares de
quilómetros de distância.
Transportamos todo o tipo de órgãos
humanos, até mesmo
sangue, num certo sentido combinando
todo o tipo de informação
genética. Imagens, sons e ideias
viajam pelo planeta em tempo real.
Mas
essa formidável expansão não
acontece apenas em termos espaciais.
Mergulhamos em antigas culturas já
desaparecidas, línguas que cunharam
antigas civilizações – com a nossa
educação passando subitamente a
penetrar no
mais profundo tecido cultural, nas
referências mais inesperadas,
alcançando as
partículas sub-atómicas, as Super
Cordas, buracos negros, e até mesmo
regiões do espaço sideral nunca
antes sequer imaginadas.
Tudo
forjado pelas incríveis distâncias
no tempo e no espaço, fundidas
quase
sempre em tempo real – esse é o
signo primeiro do teleantropos.
A
proxemia, designada por Edward Hall,
significa uma espécie de
territorialidade local, de carácter
cultural e corporal, que nos faz
questionar por que
razão um Africano ou um Sul
Americano se tocam fisicamente mais
do que um
Europeu do norte, por exemplo.
A
teleproxemia elevou esse tipo de
questionamento às relações
realizadas
através do ciberespaço, ao universo
desincorporado, quando – apenas para
citar um
exemplo – muitas vezes não sabemos
sequer como é a aparência da pessoa
que
está do outro lado da nossa via de
comunicação virtual, embora possamos
sentir
um elevado grau de intimidade com o
seu contacto.
Informação e matéria circulando
velozmente por todo o planeta.
Tudo
se tornando diversidade total.
Tudo
sendo contaminação global.
Espaços em praticamente todos os
lugares, passado e futuro – tudo
coincidindo no aqui e agora.
A
lógica desse fabuloso universo de
múltiplas mãos, inaugurado pelos
sistemas de telecomunicação
interactiva em tempo real e pelos
sistemas
digitais de modelagem, não é mais
aquela do terceiro excluído de
Aristóteles – mas
a lógica do signo de Charles Sanders
Peirce e o princípio lógico que
ficaria
conhecido como terceiro incluído,
elaborado pelo matemático Francês
Stéphane
Lupasco.
Isto
é, ser e não ser – eis a nova
questão.
A
lógica de Lupasco possibilita a
existência e a não existência, tal
como a
célebre experiência do gato de Erwin
Schrödinger. Um princípio que pode
ser
sintetizado em a, não-a, a e não-a –
como a nova condição da realidade.
Emerge
a telecausalidade anunciada por
Schopenhauer ainda no século
XIX – o bater de asas de uma
borboleta na Austrália pode provocar um
furacão nos Estados Unidos.
Curiosamente, muitas vezes
permanecemos
unidimensionalmente estruturados em
termos temporais acerca de um tal
fenómeno – mas, a telecausalidade é,
antes, um fenómeno de espaço tempo.
Isto
é, a causalidade não mais estaria
restrita a um único quadro de espaço
tempo.
Estabelece-se uma realidade do
instável, do imprevisível, da
surpresa a todo o
instante – e, portanto, da máxima
criatividade potencial.
O que
antes era caracterizado por uma
relação estável entre memória de
curto e longo termos, é agora
completamente transformada em um
novo
contingente informacional de longo
termo realizado pelas próteses
digitais em
rede, e pela dinâmica articulação de
outras próteses de memória de curto
prazo.
Os
programas digitais de busca de
informação e edição – de qualquer
natureza de informação – são, por
exemplo, verdadeiras próteses
inteligentes de
improvisação, isto é, de dinâmica
articulação entre memória de curto e
longo
termos.
A
palavra prótese lança suas antigas
raízes etimológicas no termo Indo
Europeu *dhe, que significava
colocar. Passou ao Grego como thê,
que gerou, por
exemplo a palavra thêke,
significando caixa, depósito, ou
colocar dentro – daí
a nossa palavra biblioteca. Junto à
partícula Latina pro, tornou-se
prótese, com o
sentido de colocar algo sobre.
A
prótese não é apenas uma extensão,
mas algo diferente que associa-se
criativamente à função da extensão.
Enquanto que o mundo literário era
privilegiadamente um universo de
extensões do corpo humano, o mundo
virtual revela-se potencialmente
como um
universo de próteses – não apenas
sobre o corpo, mas também sobre as
suas
extensões, sobre aquilo que é
desincorporado.
Nesse
novo universo, as nossas memórias se
tornam tão infinitas como
absolutamente voláteis. Em termos
imediatos, basta considerar a
intrusão de um
vírus e o súbito apagamento de uma
gigantesca quantidade de informação,
num
repentino processo de amnésia – que
pode ser colectiva.
A
extrema volubilidade sensorial trás
à consciência o desenho
multidimensional dessa nova
realidade como uma profunda
metamorfose
civilizacional.
E,
para além do fenómeno de
preenchimento de informação pela
superfície, originariamente gerado
pelas telas de televisão, de forma
semelhante ao que
ocorre com o universo acústico e
tribal, a nossa memória pessoal de
longo
prazo também passa a exigir um maior
grau de redundância, de repetição.
Repetição sobre superfície – e,
assim, temos a emergência do
entretenimento como
signo primeiro de praticamente tudo.
Automóveis, que antes tinham no
transporte a sua principal função,
transformam-se em gadgets. Cidades,
como Paris, Veneza e muitas outras,
são
redesenhadas em gigantescos parques
temáticos.
Roupas
se transformam em símbolos de
marcas. Tudo é rapidamente
esquecido e renovado.
Assim,
desaparecem rapidamente os modos
estereotipados de
comportamento social – tão
característicos a partir da imprensa
de
Gutenberg.
A
identidade torna-se efémera e
volátil. Tudo pode pertencer a tudo
ou a nada,
imediatamente. Mais do que isso,
tudo passa a pertencer a tudo e a
nada,
imediatamente.
O
planeta se transforma na emergência
do obsoleto – tudo tornado no tecido
contínuo do uso e do consumo.
Grandes pensadores que, embora
aparentemente integrados nessa trama
de
profundas transformações,
praticamente não têm mais valor.
Políticos que
alteram livremente antigas leis com
o objectivo de acobertar o que antes
seria
considerado crime – sem que haja
qualquer reacção popular ou qualquer
outro tipo
de reacção.
Pessoas das mais diversas
actividades que se sentem obsoletas,
inúteis – pois
a utilidade está ligada ao futuro,
àquilo que gera algo. Pessoas
ignorantes
eleitas para importantes cargos
públicos, em todo o mundo. Atletas e
actores do
entretenimento recebendo milhões;
professores e filósofos abandonados
pela
sociedade.
A
inutilidade está directamente
associada ao obsoleto e, ambos, à
desfuncionalização.
Um dos
elementos centrais da identidade é a
função social, aquilo que nos
diferencia e nos une à sociedade.
Sem identidade, emerge a violência,
nas suas
mais diversas formas.
A
volatilidade dos sistemas em rede –
em termos de memória de curto e
longo
termos – amplifica o fenómeno
produzido pela televisão e pelo
telefone,
gerando um universo de
entretenimento. Tudo torna-se
entretenimento, média,
variações do que já se conhece –
tudo associado aos princípios da
inutilidade e da
obsolescência.
O
consumo, antigo padrão social por
excelência, dá lugar ao uso – aquilo
que
viria a ser conhecido como Low Power
Society: uma sociedade de acesso quase
livre a objectos que pouco antes
estavam restritos aos mais ricos.
Clássicos do cinema, gravações
musicais de todos os tipos, imagens
fotográficas em
alta definição, entre tantos outros
objectos passaram a ser
comercializados em
supermercados ou distribuídos, por
vezes a preços simbólicos, através
das redes
virtuais – mas, tudo tendendo a uma
gigantesca mediocridade, ao puro
entretenimento.
Por
outro lado, como se estivéssemos
tratando de um gigantesco
sistema em dissipação, caracterizado
pela viscosidade, emergem pontos de
alta
densidade espalhados pela trama das
redes.
Toda
essa estrutura de complexidade
transforma a natureza das mutações
paradigmáticas em metamorfoses
sintagmáticas – mudanças contínuas
em cadeia
num quadro não-linear.
Assim,
emerge a ideia de uma dinâmica
ideosfera – para além de uma
atmosfera e de uma biosfera – termo
cunhado por Jacques Monnod ainda nos anos
1960.
As
ideias de corte e província
desaparecem, dando lugar às
megacidades, onde
todas as realidades convergem, e ao
campo que gradualmente aproxima-se da
realidade urbana.
A
quantidade de informação altera o
conceito de história – projectando
uma
pós-história, num sentido diferente
daquele anunciado por Francis
Fukuyama. Isto é, a história – como
um perfil de dados específicos
acerca de factos
que desenham uma sequência de
acontecimentos – tecnologia
produzida pela
literatura tomando como conteúdo a
diacronia do universo acústico –
simplesmente desaparece.
Passamos a ter todas as histórias
possíveis sobre um mesmo
acontecimento, todas
verdadeiras, e muitas vezes
contraditórias.
Tal
como é vivido por um líder tribal,
também no universo digital a
história não
mais pode ser cortada aos pedaços.
A
aspiração máxima e impossível do
signo é o seu objecto. Impossível
porque
uma vez alcançada, o signo deixa de
o ser para se tornar no seu próprio
objecto. Da mesma forma, a aspiração
máxima e impossível da história,
uma
vez alcançada, através do imenso
volume de informação, significa a
sua
desintegração.
Por
essa via, os gigantescos bancos de
dados que até mesmo cada um de nós
passou a acumular, revelam-se antes
como espécies de réplicas do
passado, transformando a história
numa multiplicidade de ficções,
todas como
tratamento da realidade –
incorporando todos os tempos num
único sistema.
Isso
levou René Berger a questionar se
não estaríamos, afinal, penetrando no
universo do fim da ontologia – fim
da descoberta de nós mesmos, daquilo
que
constituímos enquanto inteligência.
Alexandre Herculano, nas suas Lendas
e Narrativas, dizia que «com Kant o
universo é uma dúvida: com Locke é
dúvida o nosso espírito: e num
desses
abismos vem se precipitar toda a
ontologia».
Mas na
média, no entretenimento, não há
mais lugar para a dúvida. Todos
os
deveres, que são cunhados pela
dúvida, transformam-se nas certezas
dos
direitos. E todos passam a lutar
exclusivamente pelos seus direitos.
De
facto, não há mais a ontologia do
espírito individual, mas a
emergência de um
outro tipo de dúvida e de descoberta
– presentes um pouco por todo o
lado, mas
também ausentes, tudo formando um
meio volátil de complexidade.
A
antiga ontologia de natureza
literária transforma-se no
incessante
apagamento de descobertas e no
simultâneo aparecimento de novas e
inesperadas
dúvidas, projectadas pela imensa
escala informacional: perplexidade.
Partimos de estruturas sociais
fortemente teleológicas e
transformamo-nos
gradualmente num gigantesco
organismo articulado por espécies de
nuvens
informacionais de natureza
fortemente teleonómica.
A
máxima Socrática, segundo a qual
tudo o que sei é que nada sei –
anunciando o mundo literário,
voltado para o futuro –
transforma-se em tudo o que
sei é tudo e é nada.
A
aspiração a uma verdade absoluta,
razão da dúvida, desintegra-se com
a
própria ideia de verdade. Aquilo que
chamamos de verdade nada mais é que
o
significado das coisas. Quando nos
aproximamos da própria coisa,
deixamos de
tratar de significados.
E,
assim como apenas a diferença produz
a consciência, mergulhamos
gradualmente num mundo de tantas
diferenças que elas praticamente
deixam de
existir. Um mundo de nano-decisões e
de nano-diferenças ou, em outras
palavras, num universo que aspira à
diversidade pela superfície.
É
curioso reflectirmos sobre o facto
de que a literatura produziu a
aspiração a um
universo homogéneo, feito de
partículas discretas
intercambiáveis, mas que
produziu um mundo de profundas
assimetrias; e que o universo
virtual
projecta o ideal da diversidade
cultural e da homogeneidade
económica, gerando um
mundo homogéneo em assimetrias, onde
mesmo as brutais diferenças,
traduzidas pela fragmentação em nano
partículas de acção espalhadas pelo
planeta – evidenciadas pela
violência, pelas guerras e pela
miséria – são, em geral,
tomadas como simples dados de
entretenimento.
Violência e corrupção são a mesma
coisa. A palavra corrupção significa
literalmente romper aos pedaços,
destruir.
Muitos
dos actos de evidente corrupção se
transformaram em dados
anedóticos para discussões sociais
de entretenimento.
Passamos a girar em torno das
categorias que Charles Sanders
Peirce chamou
de primeiridade e de secundidade:
ícone e índice: relações de
qualidade e
relações de existência com o objecto
– essa é a realidade do
entretenimento.
Assim,
a Lei passa a aspirar a um ethos
planetário, como conteúdo de uma
nova realidade, na tentativa de
estabelecimento de uma ética global.
Mas é, de
facto, volátil e não obedece mais à
estabilidade sistémica exigida por
um corpus
legal.
Aquilo
que definimos no Ocidente, ao longo
dos séculos, como arte,
indicava a crítica da cultura, não
pelo conteúdo, mas pela estratégia,
pela
estrutura.
Assim,
no período Moderno, desenvolveu-se a
pintura, a escultura, a
fotografia, para além de todas as
mais diversas manifestações de arte.
Tudo
voltado para o futuro, para o
questionamento, para a mudança, para
a reflexão – o
que dava vida à cultura do que Karl
Popper chamou as sociedades abertas.
No
universo virtual, arte e guerra se
transformaram em entretenimento
contínuo. Mas, quase em paradoxo,
emergem pontos de alta densidade de
não-entretenimento. Pontos por vezes
deslocados no espaço tempo,
localizados
fragmentariamente no tecido da
não-arte. Por isso, não raramente,
espantamo-nos ao
encontrar momentos de alta densidade
em anúncios publicitários, no design
industrial, no cinema ou mesmo na
música popular.
Toda
essa misteriosa estrutura de
complexidade possui fortes elementos
de
ligação ao mundo acústico – pela
superfície. Mas, traz, também pela
superfície, o meio literário –
oposto ao mundo oral – como
conteúdo. Por isso, é um
universo que é rápida e
superficialmente absorvido pelas
sociedades tribais que,
todavia, o tomam como signo por
excelência do inimigo.
Assim,
a nossa estrutura de pensamento, os
princípios de agregação e de
desagregação, as nossas estratégias
de generalização, conheceram uma
profunda metamorfose.
O
humano, antes relacionado ao humus,
à terra, à propriedade visual,
transforma-se em virtus –
desmaterializando-se em
potencialidade total.
Os
antigos princípios de organização
das sociedades orais, desenhadas
por
pequenos grupos sociais ligados
entre si, e das sociedades
literárias
consolidadas na forma da urbis, dão
lugar à pulverização no espaço
tempo.
Por
isso, encontramos no novo universo
virtual grupos que se superpõe numa
ampla estrutura de redes de redes de
telecomunicação interactiva em tempo
real.
Sendo
o princípio da isonomia uma ideia de
uniformização, ele vai se
desintegrando gradualmente.
O
sistema tributário, um pouco em todo
o mundo, passa a ser ineficaz em
relação às grandes empresas ou
grandes fortunas, incindindo mais
ferozmente sobre
o cidadão médio, gerando um efeito
de profunda perda de credibilidade
do
mundo político. Mecanismos contábeis
transferem imediatamente recursos de um
ao outro lado do planeta.
Em
nome da segurança e do bem estar,
tudo transforma-se em perseguição
burocrática, afectando
principalmente o indivíduo.
É
então que, no início do século XXI,
emerge – um pouco por todo o
planeta – questões sobre a validade
da democracia. Quem seria igual a
quem? Um
miserável drogado teria o mesmo
valor para a sociedade que um
cientista? Um
terrorista teria os mesmos direitos
que um cidadão cumpridor dos seus
deveres?
Tudo
passa a ser lugar para julgamentos
de valor, porque nem todos são
iguais
face à Lei – e a própria Lei
torna-se instável.
A
desigualdade face a um sistema
instável que idealmente visa
submeter a
todos, produz o sentido de
insegurança e de perseguição, assim
como a
aspiração – por vezes velada – ao
controle, à vigilância permanente.
A
isonomia, a departamentalização e a
atomização são elementos
fundamentais para a compreensão do
espírito da democracia. Com a
emergência do
mundo virtual, não há mais
departamentos precisos – e, assim,
não há mais
partidos ideológicos. A antiga
atomização, reconhecendo uma
fragmentação em
unidades discretas, desaparece sob a
paradoxal híper pulverização num
sistema de nanodecisões que – tal
como acontece com a luz –
comporta-se,
simultaneamente, de forma discreta e
contínua.
Grupos interdependentes, elementos
discretos e simultaneamente
contínuos e uma desigualdade dos
indivíduos face à Lei: elementos
turbulentos de um
sistema instável e volátil,
redesenhando os princípios da
democracia.
Ficamos chocados quando
testemunhamos – um pouco em todo o
mundo – a
livre transgressão daqueles antigos
princípios que fizeram emergir o
ideal da
democracia e da isonomia. Mas é
importante notar que não há
praticamente
qualquer reacção quando tal
acontece.
Enquanto que na isonomia e na
democracia não há questões pessoais, no
universo das telecomunicações
planetárias interactivas em tempo
real tudo é
pessoal.
A
profunda transformação sensorial
conduz a algo semelhante, em certo
sentido, às ideias defendidas pelo
Imperador Justiniano, no século VI
AD,
justificando - em nome da segurança
e do bem estar geral - o fim do
princípio da
igualdade de todos face à Lei, fim
de um corpus legal estável, e o fim
do direito do
indivíduo tal como o conhecemos.
Mas
agora a figura do príncipe acabaria
por ser substituída pela das
grandes corporações planetárias que
vão substituindo gradualmente os
governos eleitos.
Por
outro lado, estabelecidas na
profunda volatilidade do sistema,
surgem
- efémeras - redes de corporações
virtuais e de organizações não
governamentais.
Alguns
historiadores defendem que a
emergência de um quadro de grande
complexidade é sinal evidente de
futuro colapso e decadência.
Trata-se, entretanto, de uma falsa
questão. No universo da biologia,
todos os
organismos superiores são complexos.
A
complexidade emerge como resultado
teleonómico de sistemas de
comunicação e de armazenamento
informacional suficientemente
flexíveis e
dinâmicos. Quando essa condição
deixa de existir, o sistema entra em
colapso e,
naturalmente, simplifica-se.
A
complexidade não é, em si mesma, um
sinal de decadência iminente, mas
sim uma eventual perda de
flexibilidade e dinâmica
informacional.
Outra
questão que por vezes tem sido
colocada é saber como pensamos,
se
aquilo que sabemos é antes a nossa
forma de conhecer, tal como defendia
Kant,
ou se há uma verdade absoluta,
matemática, superior à estrutura do
ambiente.
Por
exemplo, poderá o estabelecimento do
silogismo, surgido com a
escrita, representar uma verdade
absoluta?
A
resposta está na escala. O tempo
assimétrico defendido pelos
investigadores de sistemas
dissipativos funciona numa
determinada escala, como
ensinou John Wheeler. O mesmo
acontece com a natureza das
partículas
subatómicas, com as Super Cordas ou
com os buracos negros.
Se
existisse uma verdade absoluta,
superior à estrutura do ambiente, o
mundo
não estaria em contínua
transformação.
Não se
trata, entretanto, da defesa de uma
via sensacionalista, colocando as
faculdades sensoriais como soberanas
no processo de estruturação
mental: sentidos, processos
neuronais, linguagem verbal ou não
verbal, tudo
estabelecendo uma trama sinergética
de acção.
Tratamos de um mundo em contínua
metamorfose, onde os valores
humanos estão sempre em
transformação.
Não
significa defender que a democracia
ou a isonomia simplesmente
deixaram de existir. Embora em
alguns aspectos, essa afirmação
possa até ser
verdadeira.
O mais
interessante é observar esse
processo de mutações e reflectir
sobre
a natureza das mudanças.
Também, não se trata de querer mudar
o mundo. «Como mudar o mundo, você
só tornará as coisas piores», dizia
John Cage. A estratégia é mudar num mundo
em mudança.
Para
mudar é preciso conhecer.
O
universo do híper cultura enquanto
entretenimento intensivo gerou um
outro fenómeno: a tendência para o
jogo de soma zero.
Os
jogos de soma zero são aqueles onde
há perdedores e vencedores, presas
e predadores - tal como acontece nas
florestas, nos mares.
A
natureza daquilo que chamamos de
civilização é essencialmente jogo
de
soma não-zero: colaboração.
Um dos
traços característicos do universo
Greco-Romano era exactamente o
elevado grau de conflito na
concorrência entre pessoas. O papiro
e o alfabeto
fonético reduziram as relações
interindividuais redundantes que
asseguravam os
laços de identidade no universo
acústico.
As
redes de telecomunicação interactiva
global em tempo real acentuam ainda
mais esse fenómeno. Por isso, muitas
pessoas aderem às conversas em
tempo real, que muitas vezes não têm
qualquer sentido, mantendo-se na
superfície, mas que dá aos seus
utilizadores a sensação do contacto
redundante, típico
das sociedades orais.
Tornamo-nos imediatamente tudo:
editores, compositores, fotógrafos,
dactilógrafos, secretários,
realizamos as funções do correio,
fazemos muito do
trabalho dos contabilistas, dos
analistas, redactores, escritores -
tudo sem sair de
casa.
Ao
invés de libertar o ser humano do
trabalho, os sistemas digitais
concentraram as mais diversas formas
de trabalho em cada pessoa.
Não é
mais necessário negociar, orientar,
estabelecer estratégias entre
pessoas - mas apenas participar,
elaborar e entrar no fluxo. Não há
mais futuro, mas
tudo aqui e agora.
O
efeito gerado pela participação
massiva e superficial nas redes é a
da
anulação do Outro. Todos correndo
pela concorrência, por aquilo que
ficou
convencionado como competição - que
nada mais é que jogo de soma zero.
Uma
questão de identidade: a eliminação
do Outro para o estabelecimento
do Eu
que, desincorporado, tornado
efémero, precisa de ser
continuamente
renovado, tal como acontece com
qualquer produto comercial.
Assim,
a educação, a cultura e a saúde vão
sendo considerados,
gradualmente, como bens a serem
adquiridos, e não como direitos de
cidadania.
O
mundo das redes desintensifica a
noção de colectividade urbana; mas também
desintensifica a noção do super
indivíduo, ambas formalizadas pela
literatura. É o paradoxo dos fones
de ouvido que transferem a
estereofonia para o
centro da cabeça, e dos suportes de
música que alteram o ambiente
acústico
transformando-o de colectivo, como o
urbano, em estritamente individual,
mas
cunhado por uma imensa média; e as
conversas contínuas e superficiais
em tempo
real nas redes, ou mesmo
participação em jogos, não menos
superficiais, por
pessoas distantes milhares de
quilómetros umas das outras.
Agora,
é o indivíduo por quinze minutos -
tal como a fama anunciada por Andy
Warhol - sempre precisando de ser
renovado. E a identidade passa,
muitas vezes,
a ser estabelecida por algum tipo de
violência - através da competição,
através de um nihilismo devorador e
consumista, ou mesmo através de
actos de
agressão física, tudo dependendo de
cada um.
O
indivíduo passa a pertencer a uma
colectividade sem ethos, flutuante e
instável.
Um
mundo feito de colectividades sem
ethos não possui mais políticas de
esquerda ou de direita que, nascidos
na Revolução Francesa, tornam-se
símbolos
utilizados muitas vezes sem qualquer
relação com o seu antigo
significado.
Nas
redes não há mais centros ou
explicações absolutas – pois a
explicação é uma
questão predicativa por excelência.
A
palavra fé - tão afastada do mundo
científico, considerada como algo
pessoal, profundamente subjectivo,
sem possibilidade de generalização -
tem a sua
origem etimológica na raiz Indo
Europeia *bheidh, que significava a
ideia de ter
confiança, transformou-se no Latim
fides.
É daí
que emergem os princípios da
fidelidade e do trust - ambos
fortemente relacionados à
expectativa do futuro, amplificada
pelo alfabeto
fonético e pelo papel.
Mas,
se a antiga ideia de fé estabelecia
a crença num Deus isolado,
pertencente a um universo paralelo,
intocável - o mundo virtual, como
potencialidade total, transforma
aquele mundo, antes inatingível, no
aqui e
agora. Assim, a antiga fé naquilo
que virá transforma-se na fé como
algo
imediato, livre do futuro.
A
palavra fé sempre esteve associada
ao sagrado - e o universo literário,
com a
expansão do estereótipo,
desintensificou fortemente a
presença do
sagrado.
A
condição do sagrado é aquela do
tempo livre, do livre pensar.
Com a
fusão entre o alfabeto fonético e o
papiro, a prosa tomou o lugar da
poesia.
Gradualmente, a revolução virtual
faz emergir uma nova condição do
sagrado, de uma nova condição de
tempo livre, e um novo tipo de
poesia - muitas
vezes não verbal. Por essa via, a
antiga fé num mundo paralelo visual
transforma-se num outro tipo de fé,
mergulhando pelo fabuloso universo
digital.
O
antigo ideal da confiança, fixo na
expectativa do futuro,
transformou-se na
vivência imediata de toda a
informação.
O
mundo constituído pelo
entretenimento contínuo, livre de
dúvidas, com
tudo previamente conhecido, projecta
- paradoxalmente - um sentido de
dúvida contínua: nada se pode saber,
pois tudo já é conhecido e apenas a
diferença produz a consciência,
assim a dúvida é total.
Tudo
se transformando em permanente
dúvida - não mais uma dúvida
precisa, específica e especializada,
voltada para o futuro, aspirando a
uma
explicação.
A
palavra dúvida surge do Indo Europeu
*duwo, que projectou a nossa
palavra dois. Passou ao Latim dubio
- que significava a indecisão entre
duas ou mais
alternativas.
Num
universo de pós-história, desenhado
pela mudança contínua, ainda que
num quadro de superfície; tudo são
certezas, entretenimento que repete-se,
mas a quantidade de informação nos
traz todo o tipo de incoerências, de
instabilidade e de turbulência, numa
onda paradoxal, cuja fabulosa escala
projecta um mundo onde praticamente
tudo pode ser caracterizado pela
dúvida.
Uma
nova civilização, iluminada por um
antigo ditado Zen: «Quando há
suficiente fé, há suficiente dúvida
- que é o grande espírito do
questionamento, e
quando há um grande espírito de
questionamento, há iluminação».
Um
pensamento que nos faz admirar a
proximidade fonética entre a
palavra Latina mundus - mundo em
Português - e a expressão Budista
Japonesa mondo,
que significa literalmente perguntas
e respostas.
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