Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX Número 02|Novembro de 2009

 

NÚMERO 02

NOVEMBRO 2009

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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MARIA LÚCIA DAL FARRA

 

 

OBRAS PORTUGUESAS E AFRICANAS DA HORA

Esboço de aproximação: obras portuguesas e africanas da hora

Numa amostragem dos 10 títulos mais significativos de literatura estrangeira em língua portuguesa publicados no Brasil no ano passado, me dou conta de que 6 são portugueses, 2 moçambicanos, 1 angolano e 1 caboverdiano: ao todo 8 romances e 2 livros de poemas. Tentando sondar em que critério se basearam as editoras para a publicação destas obras no Brasil – e no caso estão envolvidas a Cia. das Letras, a Alfaguara, a Escrituras, a Record e a Língua Geral – vou buscar aproximar tais títulos a ver se colho alguma evidência a considerar, para além da óbvia presença do lobbie junto às casas de publicação e, certamente, da boa repercussão alcançada por cada um destes em seu país de origem.

Se considero de maneira global os gêneros presentes aqui, a porcentagem de 20% de poesia diante dos 80% de narrativa não causa estranheza: os leitores brasileiros de poesia parecem se comprimir de fato nessa pequena faixa de interesse; resta, entretanto, conhecer que natureza poética tal safra ostenta – e é o que veremos.

Assim, no esboço de um perfil que dê alguma identidade a esta produção literária, percebo que a interlocução entre tais obras e a cultura ou a literatura brasileira, se fica esbatida ou difusa em grande parte delas (constando apenas de pura menção, citação ou de epígrafe) - em dois romances portugueses, pelo menos, ela se asila diretamente, integrando mesmo a sua temática central. Refiro-me a Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, e a A eternidade e o desejo, de Inês Pedrosa. Em ambos, o encontro de uma síntese, ainda que contraditória, entre as duas culturas, se sobressai num acordo de mestiçagem que busca fundir, sem apascentar, harmonias e dissonâncias entre Portugal e Brasil.

O mesmo ocorre nos dois únicos livros de poemas desta listagem, em O osso côncavo, do moçambicano Luís Carlos Patraquim, e em Lisbon blues, do caboverdiano José Luiz Tavares. Nestes, poetas brasileiros como Drummond, Bandeira e João Cabral comparecem de corpo inteiro e são invocados para entrar em algum tipo de entendimento com tais poéticas, transmutados em releituras, citações ativas e, enfim, em matéria básica para quaisquer antropofagias poéticas.

E para já desponta um dado notável concernente a todos os títulos: tanto a frisada preocupação de índole social quanto numa marca de identidade nacional que transparece e pede espaço dentro dessas obras - tanto para bem quanto para mal. Me explico.

No que diz respeito às literaturas africanas de língua portuguesa, o interlocutor central é sempre Portugal – sua cultura ou literatura. Todavia, parece-me digno de nota que, se para os portugueses Inês Pedrosa e Miguel Sousa Tavares, o amálgama entre a cultura brasileira e a portuguesa se expressa como desejável, para o moçambicano Mia Couto, entretanto, a fusão cultural entre Moçambique e Portugal se traduz como quase impraticável. Já para o angolano Pepetela, a aliança entre Angola e Portugal se dá, todavia, pelo lado mais nocivo: através do aprendizado das mumunhas e das mutretas herdadas do colonialismo.

Quanto a aproximação cultural e literária entre Cabo Verde e Portugal (em José Luiz Tavares) e entre Moçambique e Portugal (em Patraquim), ela é sempre fundamento principal e contributo benfazejo para a prática poética. A poesia parece preferir, ao contrário do que ocorre com os exemplos romanescos africanos, uma íntima miscigenação com os representantes da antiga metrópole, bem como com seus colegas brasileiros. Poetas como Camões, Pessoa e Cesário Verde são referências sem as quais tais poéticas africanas não sobreviveriam ou se perfariam de maneira absolutamente diversa.

Para além destes, cito alguns outros dados curiosos. Por exemplo, o colonialismo e a sombra funesta do salazarismo estão pulsantes, de uma ou outra maneira, em todos os romances em pauta. Também a parábola, forma narrativa adaptável, serve de estrutura ficcional pelo menos para dois dos romances aqui elencados: A viagem do elefante, de Saramago, e Aprender a rezar na era da técnica, de Gonçalo Tavares. Do mesmo modo, esta obra de GonçaloTavares e a Predadores, de Pepetela, narram ambos um mesmo percurso humano e social por meio de estilos absolutamente diversos e até conflitantes.

Também a metaficção é o expediente recursivo no caso de quase todos os títulos, com exceção talvez do romance de Miguel Sousa Tavares e daquele de Mia Couto. De um lado porque o primeiro se auto-intitula “romance histórico” e, de outro, porque, no segundo, o próprio viés mágico tende a escamotear, ocupando, tal recurso literário que, aliás, se acha um tanto mais ousadamente praticado em Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto, e em Ontem não te vi em Babilônia, de António Lobo Antunes.    

Bizarra é também a incidência de uma temática que percorre pelo menos 4 dos 6 romances aqui apresentados, o que pode ser visto quase como uma tendência deste tipo de publicação no Brasil do ano 2008. Refiro-me à preocupação em narrar uma saga familiar, observada tanto no citado romance de José Luís Peixoto quanto no de Lobo Antunes, para além dos de Pepetela e de Miguel Sousa Tavares.

Dito isto, vou procurar comentar com vocês cada uma dessas obras, começando pelos títulos portugueses, os mais numerosos, a ver se vamos vislumbrando as razões editoriais brasileiras levadas a efeito para a eleição deste elenco. E enceto aleatoriamente por Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto, publicado pela Record.

Aqui, a metáfora do cemitério de pianos, chão de onde se recolhe uma e outra peça para recompor outros tantos instrumentos que dêem continuidade à composição iniciada, à melodia que não pode cessar - dá o tom a este romance. Temos, então, uma narrativa de diferentes vozes de diversas naturezas: a de um defunto-narrador (semelhante ao nosso Brás Cubas) que conta a sua história para acolher o filho que há de nascer e morrer; uma outra narrativa que é a do filho que conta a sua própria maratona na medida em que a disputa, percorrendo-a em busca da vitória que, entretanto, desemboca na morte; e a derradeira, que é a do filho deste corredor que, retomando o facho narrativo do pai e do avô, prossegue a dinastia de tais narradores em situação-limite, dando, pois, continuidade a esta geração - a esta música.

Simultâneos espaços, tempos dessincronizados e embaralhados vão compondo fragmentariamente esta gesta familiar onde o Tempo parece se assentar como a personagem principal, tratado tanto como mero fluir, como abstração individual quanto como dimensão de todo relativa. Os limites romanescos de Cemitério de pianos incluem o leitor como interlocutor do narrador no desenvolvimento da história, passagens de nível ficcional de personagem, que entra em estado de diálogo com o narrador-defunto, a ponto de corrigi-lo, bem como outros sinais que definem variedades de uso da metaficção.

Aprender a rezar na era da técnica, de Gonçalo M. Tavares, publicado pela Cia. das Letras, se vale de uma narrativa pseudo-infantilizada, erguida por meio de especulações que roçam puros sofismas, e de uma estrutura linear semelhante à da ficção científica - para contar a ascensão e o fulminante declínio de um político de perfil totalitário: em verdade um monstro de perversão e imoralidade. Como antes observei, topamos com idêntico personagem em Pepetela, todavia, completamente diferenciado.

O sentido da parábola permeia este romance de índole kafkiana, onde impera uma poética da crueldade, o cinismo e seus derivados, uma perversão de valores à maneira de Sade, o humor negro e a chamada “violência inteligente” – tudo narrado por meio de um distanciamento e de uma atitude imperturbável, extra-humana e neutral. Não há, pois, nem a presença ou nem vestígios da presença, em nenhum momento, de uma mente que sirva de interlocução ou de um esboço de valores que possam se sugerir como referência outra ou dialética para a aferição da história narrada, de maneira que o leitor se encontra à mercê de si mesmo e dos seus próprios juízos éticos, sociais, ideológicos – o que, a meu ver, em vez de favorecer uma perspectiva crítica, antes a neutraliza. Posso mesmo sugerir que as ruminações que, de modo surdamente aparatoso, digamos assim, pontilham este romance, acabam premiando o leitor com a sensação (verdadeira, falsa?) de... inteligência própria.

Em Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, também publicado pela Cia. das Letras, temos uma obra que traça, com minúcia, a saga de uma família alentejana, do começo do século XX ao final da Segunda Grande Guerra, e que palmilha simultaneamente a história de Portugal e do Brasil do período, bem como os laços de união e discórdia entre ambos.

         Escrito à maneira realista, sem empecilhos de linguagem ou de enredo, muito fluentemente redigido, dentro, portanto, do universo de uma narrativa tradicional à Eça de Queiroz, por exemplo - Rio das Flores se apresenta, como já adiantei, como “romance histórico”. A relação entre os irmãos Diogo e Pedro parece se basear (apenas para dele divergir) no padrão mítico de Esaú e Jacó, o que por vezes também se espraia para as aproximações de igualdade e dessemelhança entre Portugal e Brasil, a ponto de permeá-las.

José Saramago, em A viagem do elefante (também publicado pela Cia. das Letras), apresenta, numa estratégia ficcional comum a seus romances anteriores, um narrador onisciente, onipotente, palrador e intromissor, agora acondicionado a um tipo de cronista do século XVI. É em meados de 1550 que se passa a história do elefante Salomão e das vicissitudes que o rodeiam enquanto prenda do rei português ao arquiduque Maximiliano II, genro de Carlos V, o imperador. O deslocamento do paquiderme, de Portugal à Áustria, roteiro que não pode evitar os Alpes e ainda menos a emulação de Salomão com seus ancestrais (aqueles do lendário Aníbal), vai acompanhando, antes, as aventuras das transformações sociais e (digamos assim) políticas do seu cornaca que, indiano da Goa portuguesa, atravessa variados relevos, aculturações e batismos de fogo – tudo isso tratado com nomeado humor crítico.

 A eternidade e o desejo, de Inês Pedrosa (publicado pela Alfaguara) tem, por sua vez, como interlocutor constante os Sermões de Vieira, relidos, entretanto, num diapasão pós-moderno. Assim, no entrecho da cega portuguesa que vem ao nosso país e que constrói para si mesma, no rastilho de Vieira e do amante assassinado, uma identidade mestiça - o Padre comparece como a mais fértil mixórdia entre ambas as culturas.

A obra, um punhado de vozes colhidas em intimidade, se vale dos fragmentos descontextualizados dos Sermões para interseccionar e contrapontuar o curso dos eventos contemporâneos, sugerindo-lhes dissonantes e surpreendentes saídas. E a narrativa, lugar de tais confluências, acaba encontrando na escrita de Vieira o centro da sua esfera, do seu périplo, de maneira que não só a eternidade e o desejo passam a ser, como o quer Vieira, “duas coisas parecidas e retratadas na mesma figura” do Ó, mas também e especularmente o próprio romance que, pouco a pouco, vai desenhando semanticamente seus próprios OOs. E é então que a ingênua viagem turística se revela o percurso para dentro do igual e do dessemelhante, em busca de uma errática síntese para estas duas culturas de língua portuguesa.

Já em Ontem não te vi em Babilônia, de António Lobo Antunes (também publicado pela Alfaguara), a Babilônia que o título refere é, deveras, uma Babel narrativa, composta por monólogos que cruzam diferentes tempos, espaços, personagens, devaneios, projeções, acontecimentos - tudo em estado fragmentário, simultâneo e de repetição traumática, o que, aliás, confere a esta escrita uma feição quase esquizofrênica. Complica propositadamente a decodificação desta obra um código romanesco móvel, confirmando a narrativa como um processo psicanalítico de personagens no limiar de suas forças, o que torna o enredo um jogo de adivinhas, um quebra-cabeça.

Através dos índices recursivos, pode-se tatear tais conjuntos estilhaçados como um idioleto a identificar um triângulo amoroso trágico e perverso, que acaba por introduzir metaficcionalmente o próprio Lobo Antunes como aquele personagem enigmático, sempre referido mas nunca comparecido em cena. Este que, afinal, esteve permanentemente na coxia, protegido pela penumbra duma noite interminável, a escrever um romance sobre personagens insones, desavindos nessa madrugada, não deixando sequer de narrar um elenco de crimes e assassinatos políticos do salazarismo que, espera-se, não despertem nunca mais com o dia que está por nascer.

A literatura moçambicana apresenta aqui, como já sugeri, um romance e um livro de poemas. Venenos de Deus, remédios do Diabo, de Mia Couto (publicado pela Cia. das Letras) obtém, já no próprio título, um efeito poético que, aliás, persiste em toda a narrativa. Refiro-me aos dois oxímoros (venenos divinos e remédios diabólicos) situados em oposição na figura de um quiasmo, de um quiasmo certamente periclitante, pois que tanto os venenos podem ser lidos como os remédios – de maneira que Deus pode ser o Diabo -, quanto os termos antagonistas podem ser lidos, de fato, enquanto conflitantes.

Apoiando-se, portanto, num código poético muito sensível, mas de delicada manutenção, este romance percorre a linha tênue de uma dimensão mágica dotada de uma estrutura fabular que abarca, entretanto, modelos convencionados e de clichês: o português e o africano, a autoridade e o subalterno, antagonismos ainda persistentes em embate tácito, malgrado a atualidade do entrecho romanesco. Isso porque as raízes da cultura moçambicana, na sua ancestral especificidade, emergem contrapostas às européias, tanto no passado do velho Bartolomeu Sozinho (personagem catalisadora da história), quanto na vida social da vila africana em que a narrativa transcorre.

A situação que dá partida ao romance serve, de maneira exemplar, para esclarecer tais pontos de atrito que, afinal, o alimentam e justificam seu curso. O Velho, antigo mecânico naval do tempo colonialista, é hoje o paciente rebelde do português secretamente apaixonado por sua filha ausente. Todavia, a acenada mestiçagem, desenhada como horizonte possível deste romance, murcha por inteiro, visto que pouco a pouco o enredo vai revelando basear-se em suposições que, afinal, não passam de pura miragem. Nem o português é médico, nem o Velho é paciente, nem a moça, alvo da paixão do português, é filha do Velho, para além de que, sequer, ainda está viva. Enganos, interpostas pessoas, dissimulações: impossível o amálgama entre essas duas culturas. Sozinho, de seu sobrenome, não diz respeito apenas ao Velho africano, mas a cada um dos personagens deste mundo em patética contradição.

O osso côncavo e outros poemas, de Luís Carlos Patraquim (publicado pela Escrituras Editora), a outra obra moçambicana a que me referi, se apresenta como um trabalho poético denso ao extremo, diria, hermético, no qual ressoam camadas e camadas de outras tantas obras moçambicanas e africanas, como numa rede de ecos de uma família literária autóctone - mas não só. Para além destas, uma verdadeira comunidade poética internacional, a começar pela brasileira, insuflam a leitura de Patraquim. Drummond, Pessoa, Cesário Verde, Rimbaud, Herberto Helder, Eliot, Silvia Plath e tantos outros povoam os interstícios destes versos de maneira a esta obra se permitir ser lida, digamos assim, através das outras. Reinscrição, leitura especular e outrada, vozes sobrepostas - talvez sejam estas as referências que lhe digam respeito mais de perto.

Grávida de outras tantas, a linguagem de Patraquim comporta, sobretudo, perversões, distorções e uma sintaxe muitas vezes de penumbra ou de delírio, como é plausível de acontecer a um feiticeiro que incorpora espíritos ou... então a um poeta. Neste caso, porém, a palavra é quem está dentro das coisas, como a gruta na terra.

Da literatura angolana, que aqui comparece, encontramos apenas um romance: o Predadores, de Pepetela, publicado pela Língua Geral. Caposso é um bem sucedido engodo total patrocinado pela confusão e instabilidade política da Angola dos últimos 30 anos. O romance acompanha sua ascensão e queda no interior de um capitalismo selvagem possibilitado pelas lutas nem sempre socialistas posteriores à independência de Angola.

Ele percorre em detalhe as sutis manobras imorais de que o aproveitador se vale no sentido de galgar postos estratégicos e oportunistas, sempre garantidos pelas frestas do poder instituído. Criminoso de colarinho branco, chantagista, aproveitador inveterado, oportunista, ladrão, assassino, falsificador e perjuro – eis alguns dos dotes desta personagem central que, aliás, se espraiam promissivamente por entre seus familiares e descendentes.

Este romance também se ocupa de uma saga familiar, com a diferença de que esta se encontra ainda em construção, muito embora não seja difícil supor o seu desdobramento nefasto. As interferências do narrador-autor se incumbem de ir tingindo o relato com uma tonalidade crítica e irônica, tecendo, muitas vezes, comentários sobre o seu próprio procedimento ficcional - também este posto em questão.

Por último, o representante da literatura caboverdiana, o livro de poemas Lisbon Blues, de José Luiz Tavares, também publicado pela Escrituras, compõe o elenco de que me ocupo. E, neste caso, temos, declaradamente, a obra de um “pretoguês” ou seja: de alguém cuja condição é ser de cor e imigrante num país estrangeiro, o português. Sabemos, de antemão, que é com olhos caboverdianos de migrado que este poeta flana por Lisboa e por outras cidades de Portugal.

Livro de um verdadeiro “corsário das ilhas”, estatuto por meio do qual José Luiz Tavares se dá a conhecer a seu leitor, ele já aponta para o índice de insurreição em si impresso, registrando uma dicção acidentada, com tropeços propositais e inversões sintáticas, o que confere a esta obra, por vezes, uma feição um tanto barroca. Todavia, os poemas amorosos mudam tal cenário, deixando menos carregado o universo das imagens e das palavras que nos parecem insólitas. O que não os impede de conviver tanto com poemas fesceninos e de baixos temas, quanto com poemas preciosistas já no limiar de uma certa erudição de dicionário, cavando repetidas sabotagens lingüísticas, e alongando, por exemplo, versos e versos através de relações subordinadas quase intermináveis.

Camões, Drummond, Bandeira, João Cabral, Pessoa, artes plásticas e, sobretudo Cesário - enquanto descoberta citadina de latências rurais de Cabo Verde no deambular por Lisboa - são interlocuções constantes de Tavares. Mas é na direção dos sonetos para o seu pé esquerdo, quebrado, manco, aleijado, engessado, que a poética deste caboverdiano pode desembocar nos odores e ruídos de Orpheu. E assim nomeio a teoria poética de Tavares: segundo nos segreda ele, foi soltando... um traque que se fez poeta!

Afinal, a crer em Tavares, “toda a arte é como um pum - / fica apenas este flato, este zumzum”.

E para encerrar tentando responder à pergunta frontal, congemino, a partir desta última evidência, que as obras africanas aqui presentes ainda tratam de levantar laivos de insurreição diante da anterior metrópole, revertendo sua condição de periferia em bens inestimáveis. A poética de bricolage de Patraquim, por exemplo, encena a produção literária africana em livre comércio com as européias e brasileiras, tirando partido delas todas para insinuar os atropelos políticos de Moçambique e redesenhar uma outra constelação nacional a partir da revisão de poetas, romancistas e contistas, que, deste modo, iluminam um novo fazer histórico.

A consciência da sobra, do lixo, do descartável e do mal cheiroso, enquanto antiga pecha colonialista é revertida, por José Luiz Tavares, em inigualáveis atributos poéticos que reduzem o estatuto da propalada “nobreza” poética, de índole européia, a “pó-de-traque”, extraindo disso a originalidade de uma dicção literária extremamente criativa e crítica.

A tópica da saga, presente na maioria dos romances, remete a questões acerca do ato de narrar, num tempo de pós-modernidade e de estilhaços de narrativas. Porque a saga familiar aponta para a importância de uma revisão histórica dos anos do colonialismo e do salazarismo, do problema da construção dos nacionalismos, dos enganos e da solidão – portanto, para o conceito de um narrar enquanto experiência humana na acepação benjaminiana - ainda que filtrada por meio de aparatos pós-modernos, como é o caso do discurso entrecortado e fragmentário, e dos recursos da metaficção aqui acionados. As interlocuções entre Portugal e o Brasil e entre África e Portugal estão por toda a parte, questionando e revisitando um nó expressivo: a miscigenação, a mestiçagem – outra das tópicas constantes deste elenco de obras. O que me leva a outra evidência: à importância fundamental do verbo outrar para esta nova geração de escritores, verbo tão inesgotavelmente flexionado por Pessoa. Obrigada.

Texto apresentado no Congresso Internacional da Associação de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa. Salvador, Bahia, setembro de 2009. Contato com Maria Lúcia dal Farra: mldalfarra@sergipenet.com.br.

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