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A poética-cyborg de Wellington de
Melo
Johnny Martins
Página ilustrada com obras da
artista Aline Daka (Brasil) |
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Uma conversa entre um homem e um
computador figura entre os momentos
mais tocantes do cinema: a cena em
que o personagem-astronauta Dave
Bowman desliga o supercomputador HAL
9000 no filme 2001 – Uma odisséia no
espaço (1968), de Stanley Kubrick.
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A respiração
tranqüila do astronauta enquanto “mata” o
computador, que “suplica” para que ele
desista do ato, imprime no espectador uma
estranha identificação e empatia pela
máquina, parecendo esta mais humana do que
seu interlocutor de carne e osso. Quatro
décadas após o lançamento daquele filme,
tendo o computador se tornado parte da vida
cotidiana, as reflexões contemporâneas
acerca da interação e semelhanças entre o
ser humano e a máquina podem ser encontradas
sob diversas perspectivas, desde a biológica
até a filosófica, chegando à ruptura com
essa separação através do “mito do cyborg”,
[1] descrito por Donna Haraway como um
“híbrido de máquina e organismo, uma
criatura tanto da realidade social quanto da
ficção”. Embora essa nossa realidade
pós-moderna torne essas discussões muito
passíveis de inspiração literária, encontrar
nessa aproximação entre o humano e o inumano
algo de poético torna-se uma empreitada
tanto difícil quanto ousada, sobretudo pelo
perigo de se cair no clichê.
Um livro de poemas articulado em cinco
partes ― A proto-M@quina, A M@quina, A
anti-M@quina, A hiper-M@quina e O pó ―
conduz o leitor por uma viagem poética, cujo
veículo poderia mais ser a espaçonave de
Kubrick do que o navio modernista de Álvaro
de Campos (Fernando Pessoa). O livro se
chama [desvirtual provisório], recentemente
lançado pelo poeta Wellington de Melo. Na
obra, a concepção de máquina se confunde com
algo que está antes, dentro e depois do
homem, com o caos ordenado do cosmos, [2]
com a máquina-natureza, enfim, (con)funde-se
com aquilo que muitas vezes desafia a
racionalização, mas, ainda assim, move-se e
nos move: a poesia. |
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O título é
revelador quanto à noção de que a poesia é
sempre algo prestes a se fazer presente,
sempre algo virtual na existência das
coisas, sempre à espreita para se tornar
real mesmo que seja nas poucas dezenas de
minutos em que lemos um livro. E ela, a
poesia, se “desvirtualiza” nessa leitura,
mesmo que provisoriamente. Em [desvirtual
provisório], as palavras resgatam imagens
salvas na memória das coisas, da História e
do poeta; ora enfatizam, ora rebelam-se
contra o nada, resistentes a se tornarem pó,
como se fora um cyborg, que “não foi feito
do barro e não pode sonhar em retornar ao
pó”. [3]
O que é a poesia senão também a memória
ressignificada? O pós-modernismo ― que
Fredric Jameson prefere identificar “não
como um estilo, mas como uma dominante
cultural” [4] ― ressalta isso por toda parte
em sua produção artística e nas diversas
linguagens, com suas reinterpretações da
memória cultural, principalmente no que
tange a História, a Estética e a Ética. A
pós-modernidade tem operado uma “limpeza de
disco” sobre as concepções oriundas da
modernidade, mas sem “deletá-las”, apenas
reestruturando e atualizando os fragmentos
de informações e experiências. [desvirtual
provisório] alinha, a seu modo, as letras
pernambucanas com o discurso paradoxal
pós-moderno de uma negação acolhedora, ao
mesmo tempo distanciada e cúmplice. E temos
uma revelação disso em seu texto inicial,
intitulado [Preâmbulo à M@quina], no qual a
síntese de opostos se concretiza na própria
linguagem através do neologismo do verbo
“odeiamar” (odiar + amar):
[...]
finalmente descubro que pesa sobre
mim a herança de meu tempo, a única verdade
que o Homem de
meu tempo entende:
a M@quina.
É ela que canto. É ela que odeiamo. É ela
que mato & é ela
quem me renasce. É ela que me anula & porque
me anula me faz
mais homem.
O mito do cyborg, como já assinalado, também
alude à fusão do virtual com o real através
da síntese, num mesmo corpo, de um ser
oriundo da ficção científica (uma
inteligência artificial autônoma) e da
realidade social (o ser humano). Poderíamos
encontrar essa noção trabalhada de forma
poeticamente crítica nestes versos finais do
poema [osso-silício], em que o homem surge
como parte de uma ficção opressora criada
pelas burocracias cotidianas: |
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só sou se
impresso registrado autenticado
: enquanto isso
sou possibilidade
mentira esquartejada em carne &
OSSO |
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A máquina
cantada por Wellington de Melo não é mais
aquela das locomotivas, navios e demais
engrenagens dos modernistas. O símbolo
convencionalmente chamado de “arroba” (@)
marca sempre a palavra máquina, substituindo
também em outras palavras a letra “a” tônica,
fazendo alusão aos símbolos gráficos
freqüentes na rede mundial de computadores,
e talvez esta possa ser considerada um “proto-cyborg”,
onde a máquina se torna, de maneira cada vez
mais irrevogável, uma espécie de
continuidade do pensamento humano. Um
“uróboro apocalíptico” é mencionado no poema
[Preâmbulo à M@quina], o que imprime à
arroba também uma lembrança daquele dragão
mitológico que devora a própria cauda e é
símbolo de infinitude em várias culturas
antigas. Aliás, a dimensão transcendental da
memória cultural humana é buscada na obra em
vários momentos, inclusive através da
presença de termos cuja origem cultural
diverge bastante, em aproximações
paradoxais, tais como: “uróboro
apocalíptico” e “Ogum Hightech” (paganismo,
cristianismo, candomblé). A memória, então,
trazida para a viagem que [desvirtual
provisório] propõe, é uma memória cambiante
entre as particularidades culturais do poeta
e a vastidão da História (enquanto arquivo
das experiências da humanidade).
A inserção de alguns dos códigos semióticos
próprios da linguagem da Internet também
funda na obra um tipo de nova escrita,
ampliando os significados ― e,
conseqüentemente, as leituras ― sugerindo
também o desejo de fundar uma língua que
supere a sensação de solidão e o medo diante
da máquina, do inumano:
neste tempo de c@al & treva
de concreto & silício
foi que finalmente a M@quina
roubou de mim a palavra
que me fazia humano,
que me imprimia a dor:
o horror
o horror
o horror
[desvirtual provisório III] |
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[desvirtual provisório], portanto,
traz uma ostensiva percepção de
aspectos visuais como geradores ou
amplificadores de significado.
Evidentemente, a associação entre o
visual e o poético não é raro nem
novo na literatura. A originalidade
que o livro apresenta quanto a isso
está justamente no fato de que essa
retomada não tem a ênfase dos poetas
concretistas, mas está intimamente
associada ao discurso poético da
obra e a coloca em diálogo com um
cotidiano em que as informações nos
chegam, sobretudo, através dos
olhos, e freqüentemente desprovidas
de qualquer poesia. |
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Haraway (1991)
reflete, em seu texto sobre o mito do cyborg,
que “nossas máquinas estão perturbadoramente
vívidas, e nós mesmos assustadoramente
inertes”. Na poética-cyborg de Wellington de
Melo, “o livro não é um canto contra a
máquina”, nos revela o poeta. [5] De fato, a
máquina ― chamada no poema [Leviatã] de
“amada opressora” ― por vezes se torna
metáfora de uma vida ausente de sentido,
conduzida de forma mecânica. Temos um
exemplo disso no poema [O Pisassonhos], um
dos mais belos do livro, que abre com uma
epígrafe de um dos mais notáveis poetas do
modernismo britânico, W. B. Yeats: “But I,
being poor, have only my dreams; / I have
spread my dreams under your feet, / Tread
softly because you tread on my dreams”. [6]
Aqui há um significativo diálogo com o
modernismo, pela ironia ― numa atmosfera
pós-moderna: “entre a identificação e a
distância” [7] ― que se instaura através do
poema que segue essa epígrafe. A advertência
do poema de Yeats (“pisa manso, pois estás a
pisar em meus sonhos”) torna-se inútil, uma
vez que tal apelo não surtiria efeito sobre
uma máquina:
meu sonho
sob os pés
da M@quina
escorre
entre
Seus dedos
& renasce
na morte do dia-a-dia:
o que me esmaga
é da esperança
a falta
A metáfora da máquina, portanto, vai além do
olhar de dependência e, ao mesmo tempo, de
ironia quanto à voz modernista. A máquina
metaforiza-se aqui na falta de esperança que
avança implacável, uma máquina e que está,
não fora, mas dentro do ser humano.
Nessa poética-cyborg de Wellington de Melo,
a poesia opera uma fusão que associa o
inumano (a casa) ao humano (a família) e,
assim, as coisas se tornam extensão dos
organismos ― e vice-versa ―, humanizam-se
através de memórias emotivas, tornam-se uma
continuidade do indivíduo, como vemos neste
trecho do poema [Casa], dedicado aos pais do
poeta:
essa casa que me habita
& que me faz paredes abertas ―
me acompanha
& se verte
sombra em meu presente ―
exerce
sobre mim a influência
que a M@quina
em vão aplaca.
Dissemos que, no livro, a arroba faz lembrar
também o Uróboro, entidade mitológica
presente em diversas culturas antigas.
Digamos melhor: a obra inteira se estrutura
como na circularidade auto-devoradora do
uróboro, trazendo o “antes de todo o caos”
no primeiro poema e o “pós-pó” no último. A
imagem do dragão que abocanha a própria
cauda ― algo vivo que, no entanto, se devora
― nos leva a descobrir na obra uma noção de
poesia como eterna auto-devoração.
Acrescentemos a essa observação o fato de
que o étimo da palavra “poesia” ― poiese
(ποίηση) em grego ― quer dizer, entre outras
coisas, “criar, trazer à existência”, [8] e
atentemos para este poema, intitulado [Hipertexto]:
desconstrói-me:
minha ilusão de
imortal
se esvai com tua leitura
quebra-me
alado
o verso
leva-me de novo
ao berço
da palavra encantada
faz-me de novo
sílaba
d@-me um sopro
de teu nada.
recria-me
infinito
eis teu novo mundo:
insone.
apropria-te da linha
que nova
é tua Fome.
E enquanto a máquina e o homem têm lugares
intercambiantes na poética-cyborg (ou
melhor: “Ogum Hightech”) de Desvirtual
Provisório, devorando-se e recriando-se, a
poesia pernambucana se aproxima das grandes
questões estético-discursivas conduzidas
pela pós-modernidade, “e o longe está sempre
onde esteve - / Em parte nenhuma, graças a
Deus!”. |
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NOTAS
1. Haraway, Donna. “A Cyborg
Manifesto: Science, Technology, and
Socialist-Feminism in the Late
Twentieth Century”. In: Simians,
Cyborgs and Women: The Reinvention
of Nature (New York; Routledge,
1991), pp.149-181. Disponível em:
www.stanford.edu/dept/HPS/Haraway/CyborgManifesto.html.
2. Uma epígrafe de Nietzsche
antecipa os poemas com estas
palavras: “É necessário possuir um
caos dentro de si para dar à luz uma
estrela brilhante.”
3. Haraway, 1991 (Op. Cit.).
4. Pós-Modernismo: a lógica cultural
do capitalismo tardio. São Paulo:
Ática, 2000, p.29.
5. Em entrevista para o telejornal
Bom Dia Pernambuco, da Rede Globo,
em 02/01/2009.
6. Tradução livre: “Mas eu, que sou
pobre, tenho apenas meus sonhos; /
Espalhei meus sonhos aos teus pés, /
Pisa manso, pois estás a pisar em
meus sonhos”.
7. HUTCHEON, Linda. Poética do
Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991,
p.58.
8. LIDDELL, Henry George e SCOTT,
Robert. Greek-English Lexicon (Web
Version). Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/resolveform.
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João B. Martins de Morais (Johnny
Martins) (Brasil, 1972). Ensaísta.
Inédito em livro. Contato:
johnny.martins@gmail.com |
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