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Busco uma linguagem inocente.
A poesia de Rodrigo Petronio
Maiara Gouveia
[entrevista]
Página
ilustrada com obras da artista Aline
Daka (Brasil)
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O intelectual, de modo geral, é um
estudioso de ideias alheias. Um
homem capaz de compor um painel do
que foi dito sobre determinados
temas, capaz de oferecer uma
síntese, mais ou menos reflexiva,
daquilo que o Pensamento representa
em relação a esta ou aquela área do
conhecimento. |
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Ele
parte de algumas suposições, que chamaram
sua atenção dentro do amontoado de
documentos a que teve acesso, e relaciona
argumentos e análises de outros. Assim,
procura estabelecer que isso passa a ser
aquilo, noves fora zero. Mas há intelectuais
que são artistas, e essa é, no mínimo, uma
combinação explosiva. Aí está a estrutura da
moral e da ética, da política e do modo de
despir-se e segurar os talheres: a renovação
do Pensamento. O que distingue o bom do
excepcional. Exemplo: Rodrigo Petronio. Ele
busca, acima de tudo, uma linguagem
inocente.
Rodrigo Petronio nasceu em 1975, em São
Paulo. É editor, escritor e professor.
Formado em Letras Clássicas e Vernáculas
pela USP. Professor do curso de Criação
Literária da Academia Internacional de
Cinema (AIC), professor-coordenador do
Centro de Estudos Cavalo Azul, fundado pela
poeta Dora Ferreira da Silva, e coordenador
de grupos de leitura do Instituto Fernand
Braudel. Trabalha no mercado editorial há
mais de dez anos e colabora para diversos
veículos da imprensa. Recebeu prêmios
nacionais e internacionais nas categorias
poesia, prosa de ficção e ensaio. Tem
poemas, contos e ensaios publicados em
revistas nacionais e estrangeiras.
Participou de encontros de escritores em
instituições brasileiras e em Portugal. É
autor dos livros História Natural (poemas,
2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002)
e Assinatura do Sol (poemas, 2005), este
último publicado em Portugal, colaborou na
organização do livro Animal Olhar
(Escrituras, 2005), primeira antologia do
poeta português António Ramos Rosa publicada
no Brasil. É membro do conselho editorial da
revista de filosofia, cultura e literatura
Nova Águia (Lisboa). Lançou, pela editora A
Girafa, o livro de poemas Pedra de Luz,
finalista do Prêmio Jabuti 2006. Foi
congratulado com o Prêmio Nacional ALB/Braskem
de 2007, com a obra Venho de um País
Selvagem, publicada em abril de 2009 pela
Topbooks. [MG]
MG | Seu
primeiro livro, História Natural, apresenta
elementos que irão se desenvolver de maneira
muito intensa ao longo de sua trajetória. A
linguagem, atrelada ao interesse pelo mundo,
passa pelo tempo do corpo e da matéria e
desemboca numa poesia abrangente. Podemos
resumir essa poética em uma palavra:
“aderência”. Você concorda? Como essa ideia
se manifesta na sua criação literária? |
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RP | Com
certeza essa é uma questão central
para tudo o que escrevo e para tudo
o que tem me ocupado também
teoricamente nos últimos tempos.
Você foi direto ao ponto. Agradeço a
sua pergunta. Aproveito, então, para
deixar um pouco de lado meu trabalho
poético e trazer algumas reflexões
que tenho feito sobre a poesia em
sentido geral. Independentemente da
sua perspectiva histórica ou do
gênero no qual ela se manifeste, a
despeito mesmo de seus aspectos
formais e subjetivos, tenho a
sensação de que toda poesia é a
encenação de uma realidade primeira.
A definição desse estatuto da
realidade é cheia de matizes e um
tanto complexa. Vou dar a minha
análise. |
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Chamo essa
realidade primeira de perspectiva edênica ou
de inocência radical, no sentido
etimológico, de raiz. Esses termos, para
mim, não são uma teoria. Sequer são uma
formulação abstrata. São algo inerente à
estrutura empírica da vida humana e, pode-se
dizer, de toda a vida. Trata-se do
reconhecimento de uma zona anterior à cisão
ontológica promovida pela consciência,
anterior às representações. Nesse sentido, é
um pressuposto inquestionável, uma verdade,
caso queira definir assim, à medida que não
pode ser relativizada. Ela seria, a um só
tempo, a fonte e a soma de todas as
perspectivas, algo próximo ao que Ortega y
Gasset define como realidade radical, porém
com algumas diferenças essenciais.
Entretanto, nossa vida ordinária está o
tempo todo nos apartando dessa matriz. Não
seria possível ser diferente, e tampouco a
vida seria possível se vivêssemos em
constante estado edênico. Mas ele existe, se
oferece a nós e vem inscrito em todos os
nossos gestos, todos os nosso pensamentos,
todas as nossas crenças, todos os nossos
valores. Ao nascermos, somos todos marcados
pelo selo dessa existência, recebemos a sua
chancela. A perda, e o sentido da perda; a
impossibilidade de uma redenção, de uma
suspensão da queda, e, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de não falar sobre ela.
Justamente por isso, a vida humana possui
uma estrutura dinâmica. Ela é busca de
sentido, e ausência de sentido; experiência
da falta, e supressão da falta; vazio,
ausência e morte, e o próprio ato de abraçar
o vazio, a ausência e a morte como única
forma de sermos e sobrevivermos.
Todos nós lidamos com essa verdade objetiva,
incontornável. Ela não está subordinada à
relatividade cultural. Tampouco é um
patrimônio de poetas, intelectuais ou
artistas. Ocorre que a poesia, ao propor-se
como encenação do mundo na linguagem, ao
instaura-se como uma arquilinguagem, torna
esse dilema mais sensível para si mesma.
Acaba transformando-se, dessa maneira, em um
modo privilegiado de manifestação de nossa
estrutura ontológica. A essência da poesia
seria, dessa maneira, uma impossibilidade.
Mais que isso: a consciência de que essa
impossibilidade nos habita e é
consubstancial à nossa própria vida, é o que
a dignifica, que lhe sopra a sua
transformação vital.
A princípio, antes mesmo de nascermos, o
paraíso já nos fora confiscado; sequer ele
existe de fato; não há uma origem pura
preservada fora do tempo. Porém, há o seu
fantasma, a sua impossibilidade que,
justamente por causa de sua condição,
instiga o homem a se lançar como projeto, a
ultrapassar todo dado, todo acabado, toda
matéria inerte, tudo o que se apresenta como
experiência imediata. Essa remissão a algo
que nos transcende, que existe miticamente e
se oferece a nós, mas é, paradoxalmente,
inacessível, é a base sobre a qual a poesia
se sustenta. Base frágil, complexa, volátil,
que assume mil rostos na história e outros
tantos corpos em cada realização individual.
Entretanto, há uma região de autenticidade.
Há uma zona de claridade mais intensa. É ela
que proporciona a emoção poética,
independente das idiossincrasias
individuais, estéticas, ideológicas e das
contingências temporais e linguísticas. |
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Nesses termos, acredito que há
poetas e poéticas que apresentam uma
maior proximidade dessa perspectiva
edênica, outros, uma menor
proximidade. Isso não é uma questão
de valor, mas de estrutura. Aqueles
buscam programaticamente uma maior
aproximação desse esse eixo virtual
inacessível; estes, partem de um
progressivo distanciamento do mesmo.
Por meio de uma maior aproximação,
mesmo sendo este eixo inacessível, o
que se quer é demonstrar a sua
existência, que se manifestaria em
uma fusão absoluta do eu e do mundo;
irrealizável, esta fusão,
entretanto, é tangível; a poesia é a
própria tangência. Tento aderir ao
mundo, suspender a cisão ontológica
entre a linguagem e as coisas, entre
o real e o imaginário. Contudo, a
fusão absoluta só existe em Deus –
ou na morte.
Essa visão demarca um mergulho na
poesia como aderência, como
atualização de uma realidade edênica
eternamente virtual, porque
inexequível. |
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MG | Você
poderia falar mais a respeito do que seria a
manifestação literária da perspectiva
edênica (ou inocência radical)?
RP | Sim. Esses conceitos até servem de
suporte a uma teoria geral da literatura que
tenho desenvolvido. Bom, a princípio, se
constatamos que essa dimensão fundamental é
o horizonte a partir do qual eu modelo minha
visão, quer eu esteja mais ou menos próximo
de seu centro gravitacional, podemos também
depreender disso uma organização ampla dos
modos de representação. Além disso,
constatada essa realidade e a sua
precedência em relação à nossa vida
prosaica, uma eventual recusa dessa base
primeira seria, portanto, subsidiária,
adventícia, subordinada à pressuposição da
existência dessa mesma base. Ela é a origem
para onde todos os seres acenam, seja em
seus gestos mais ordinários, seja na
indagação de seu próprio ser e de sua
própria existência. Habita-nos como um
pequeno deus que nos acompanhasse ao longo
da vida. E temos duas maneiras afirmativas
de lidar com ela, posto que ela não seja
suscetível de negação: uma afirmação
positiva e uma afirmação negativa.
A primeira sustenta a possibilidade de
acessar a inocência; produz, assim, o
paradoxo de sua inacessibilidade, mas nos dá
a convicção de que tal inocência existe. É o
caso, grosso modo, de quase toda grade
poesia lírica; a fonte da emoção lírica
baseia-se sempre na hipótese de uma
dissolução amorosa do sujeito, seja no
outro, nos outros, no mundo ou no Outro.
Assim, temos o resgate (fictício) de uma
inocência (real). Da lírica grega arcaica à
poesia mística amorosa, de Dante à poesia
renascentista, de Hölderlin a Walt Whitman,
a gama de matizes é grande, bem como os
modos de resgate dessa inocência. Já a
segunda maneira pretende enfatizar a
inacessibilidade da origem; promove, assim,
um questionamento parcial, pode-se dizer
negativo, de sua existência. O produto desse
questionamento, ao fim e ao cabo, se oferece
a nós como fantasma, pois consiste na
negação de um dado positivo impassível de
ser negado. Em outras palavras, a negação de
uma verdade transcendente acaba sendo
assimilada àquilo que nega.
A poesia que oferece maior distanciamento
dessa verdade edênica não é de maneira
alguma uma poesia menor. Mais uma vez, a
distinção não é valorativa, mas ontológica.
A única questão é que, aqui, o
distanciamento funciona em termos formais.
Recorre àquilo que lhe dá substância e
sentido. Ou seja, em uma palavra, ele deve
ser trágico. Toda a tragédia se baseia em
uma inacessibilidade da verdade; entretanto,
essa alienação humana da fonte de sua
existência não é pacífica, mas conflituosa,
agônica. Caso contrário, o que se produz é
uma negação fraca de uma verdade
transcendente forte, ou seja, uma negação da
matriz de toda a vida que, como negação, é
pálida em relação ao valor dessa mesma vida
e, portanto, em relação à sua consequente
perda. Não vou citar a quantidade de autores
magníficos que encarnam essa visão. O
trágico, nesse sentido, vem desde os gregos,
desde Antígone, passa por Shakespeare, se
metamorfoseia e se torna complexo no Dom
Quixote e desemboca em Dostoiévski, que o
restaura em todo o seu frescor, e em Kafka,
que o leva a regiões ainda não sondadas. Em
todos esses autores e obras, uma
impossibilidade trágica de acessar a
verdade.
Em outras palavras, a recusa dessa inocência
radical, da qual proviemos e cujo germe
permanece nostalgicamente em nós, sempre a
traz e sempre a trará pressuposta, inscrita
em si. Na condição de recusa, porém, ela
sempre será parcial, e só pode retirar sua
força da constatação de sua fraqueza, ou
seja, da aceitação de sua vinculação
necessária, essencial, à sua matriz
geradora, a inocência. A lira pode atingir
distâncias relativamente maiores ou menores,
mas todas elas têm o arco como horizonte e
fonte gravitacional. Atados entre duas
impossibilidades, uma positiva e uma
negativa, a poesia se desdobra como um arco
tencionado entre dois absolutos
inacessíveis: a inocência radical,
inacessível porque aquém das delimitações
estruturantes da linguagem, e a completa
perda de qualquer sentido de procedência, o
que também é inacessível, pois implicaria a
destruição da base psíquica e da própria
vida. Absolutos, porém tangíveis;
imagináveis, porém inacessíveis;
perceptíveis, porém vedados a nosso coração.
Eis o estatuto dramático da linguagem e da
consciência, e, por conseguinte, da própria
existência.
Não há vida fora de um horizonte de sentido.
Por mais primários ou por mais questionáveis
que sejam os valores nos quais a consciência
se aninha, ainda assim eles são preferíveis
ao não-valor, pois fora deles o que há é
matéria inerte, anomia, indiferença. O
não-sentido tende a ser sempre assimilado
pelo sentido, o não-ser só se consuma em seu
último suspiro, quando vem a ser. O
afastamento da origem só é possível de forma
trágica, nunca afirmativa, porque só assim o
vazio é redimido e somos resgatados do
absurdo ao qual necessariamente resistimos.
A tragédia confere espessura ao não-ser, faz
dele não um menos em relação à origem, mas
um mais em relação à totalidade dos seres.
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Enfim, tenho refletido sobre essas
questões. Estou formulando algo que
chamo de teoria quadrangular da
poesia e da literatura. É uma
tentativa de dividir os gêneros,
formas, modos e matérias literárias
a partir dessa questão mais
abrangente, da proximidade e do
distanciamento dessa origem virtual.
Em certo sentido, o trágico, o
épico, o cômico, mesmo a mistura de
gêneros ou a dissolução do conceito
de gênero, bem como as afinidades
poéticas entre autores de uma mesma
linhagem, podem ser entendidas a
partir desses critérios. É algo
ainda em andamento, mas que acredito
ser válido teoricamente, e também
para se compreender melhor alguns
autores e obras. O ponto central
dessa teoria seria a ideia da
aderência, que também está presente
de maneira difusa em tudo o que
escrevo, e consiste em um movimento
decisivo da poesia em sua eterna
necessidade de dar voz a essa
perspectiva radical. |
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MG | Pressupor
uma verdade última tem, como uma de suas
consequências, o desejo por aquele estado
capaz de recuperá-la. Em outras palavras, o
sentimento religioso. Você poderia falar um
pouco de sua reflexão sobre a perspectiva
religiosa? Não seria a forma mais radical de
aderência?
RP | A sua pergunta é ótima, mas para
respondê-la precisaria praticamente escrever
um livro. Concentro-me aqui em alguns pontos
que considero centrais. Com certeza
escaparão outros, também importantes. Mas
vamos lá. Em primeiro lugar, a religião é
uma das formas mais autênticas de
conhecimento. Isso não sou eu quem diz.
Basta você analisar a história da
humanidade, desde os hominídeos até William
de Ockham ou, mais precisamente, até
Descartes. Nessa análise, por mais
heterogêneas, diversificadas e até
conflitantes que sejam as culturas e modos
de organização do real operados pelo
espírito, temos um denominador comum
bastante claro: é impossível encontrar, nas
manifestações da vida humana, qualquer
vestígio totalmente profano.
Haja vista o fato de que o primeiro corte
que nos destacou dos animais, no
Paleolítico, processado a partir de dois
milhões de anos atrás, não foi de ordem
biológica (o córtex) ou antropológica (o
domínio do fogo), mas decorreu de algo
aparentemente simples: quando os hominídeos
começaram a enterrar os seus mortos. Os
primeiros rituais funerários demonstram a
ruptura ontológica entre o mundo dos
processos e o das representações. Temos
resquícios de ossos encaixotados, o que
demonstra algum tipo de cuidado com o
cadáver. A própria representação dos
animais, que é bem posterior a essa época,
ou seja, a primeira “arte” humana, pode ser
entendida como uma formalização da
experiência da morte. O contato com a morte,
como você realçou bem, e mais que isso, a
própria percepção que se tem dela como um
dado que “exorbita” a esfera “natural” é a
primeira “reflexão” exercida pelo homem.
Nesse sentido, a experiência do sagrado, ou
seja, essa primeira “reflexão” humana, foi
avassaladoramente mais importante para o
processo civilizatório do que a criação da
filosofia, que, a meu ver, é uma espécie de
exceção, diria até uma excrescência dentro
do conjunto comum das práticas rituais,
míticas, simbólicas, técnicas, bem como das
demais simbolizações e atividades que, estas
sim, definem o homem em seu ser. É óbvio,
tomo aqui essas instâncias em sua maior
abrangência, sob o aspecto antropológico,
pensando nas matrizes que estruturam a vida
da totalidade dos seres humanos. Esta deve
ser recortada sob pano de fundo de um
horizonte amplo de significação e de
importância, não apenas pautada no paradigma
ou no legado de alguns gênios e de suas
criações excepcionais. Por isso e por outros
motivos, dizer que somos homo religiosus é
incorrer em uma redundância, pois é
impossível pensar em uma vida humana
profana.
Entretanto, voltemos à nossa questão e ao
presente. A despeito desses fatos,
curiosamente, nos últimos séculos tornou-se
quase impossível falar de religião ou de
manifestações do sagrado. Como já me
acostumei a navegar na contracorrente, tenho
estudado os motivos dessa guinada histórica.
Eles oscilam, em geral, entre motivações de
natureza vária, desde algumas legítimas ou
justificáveis até outras tantas verdadeiras
aberrações mentais. Trata-se de um processo
longo, complexo, difuso, multidirecional,
cujas implicações estão entre as mais graves
da história. Isso não impede que tal
revolução se baseie em princípios, sejam
axiológicos ou meramente práticos. O
primeiro ponto que podemos ressaltar nesse
processo de esvaziamento religioso é que,
diferente dos milênios de história que eu
mencionei acima, a experiência intelectual
se divorciou da experiência do homem comum.
Esse fato, que parece inofensivo, é algo de
consequências desastrosas. É a partir dele
que vem sendo produzida em proporções
industriais uma classe intelectual
divorciada das questões candentes das demais
esferas, e, mais que isso, alheia ao núcleo
duro das questões humanas mais profundas.
Isso oblitera tanto produtores quanto
produtos do conhecimento e, em última
análise, os valores e a própria vida, que
passam a não ser mais compartilhados porque
simplesmente não são mais compartilháveis. A
ruína de um ideal de cultura não é nada mais
do que isso.
Hoje em dia, por exemplo, quando o interesse
por assuntos religiosos só cresce, seja no
melhor ou no pior sentido do termo,
percebemos um proporcional desprezo dos
intelectuais por esse tema e um verdadeiro
“culto” ao isolacionismo “crítico” que essa
postura lhes proporciona, uma “mística” da
razão cínica. Ora, esse fenômeno não
encontra paralelos em outras épocas ou
culturas. Embora todas as sociedades tenham
sido desde sempre organizadas de acordo com
núcleos esotéricos e exotéricos, esses
saberes visavam à sua aplicação na economia,
na política, na moral, na produção material,
nas técnicas, na organização militar, entre
outros. Porém, diferente do Médio e do
Extremo Oriente, e mesmo das sociedades
cristãs orientais, onde a dimensão esotérica
e exotérica sempre estiveram atreladas a
fundamentos de ordem revelada, o Ocidente
entrou na história de modo anfíbio. Essa
ambiguidade se tornou expressa na eterna
tentativa de convergência entre o
cristianismo e o corpo de um Estado pagão,
herdado da Antiguidade, em outras palavras,
trouxe em seus fundamentos uma disjunção
entre os níveis da crença e da política.
Todos os pensadores e artistas lúcidos
perceberam que a partir do século XVIII esse
divórcio tomou dimensões assustadoras; que a
assunção de modelos de vida baseados em
ideais totalmente materialistas tenderiam a
arruinar qualquer ordem e qualquer
liberdade. Afinal, não é preciso ser um
gênio para compreender que uma sociedade
absolutamente secularizada será forçosamente
uma sociedade totalmente tirânica,
independente da liberalização evidente de
suas instâncias repressoras ou da correção
política de seus soldados. O discurso do
Grande Inquisidor de Dostoiévski, aliás,
toda a obra de Dostoiévski aponta para esse
impasse estrutural entre política e
religião, impasse que funda o que chamamos
imprecisamente de Ocidente, e que se
acelerou espantosamente nos últimos três
séculos.
Graças aos filósofos medievais,
especialmente aos escolásticos, essa
infindável aporia entre fé e razão,
conhecimento demonstrável e conhecimento
revelado, natureza e graça, que se engendrou
na passagem do mundo antigo para a mundo
cristão, tinha sido superada a duras penas.
Embora na ciência e na filosofia, herdadas
dos gregos, sempre tenha havido parcelas de
uma saber meramente especulativo da
natureza, a oscilação entre natureza e graça
é a tônica que pode ser depreendida de todos
os episódios importantes da história da
filosofia. Pode-se dizer que os modos de
vida que exercemos não são o resultado de um
tipo de conhecimento que poucos podem
acessar, pela natureza mesma do conhecimento
e de seus meios de iniciação, mas tão
somente a situação paradoxal de uma ilha de
ateísmo totalmente alienada das demais
dimensões do espírito. A falta de crença, ao
produzir a ruptura com a experiência comum
coletiva, produz também a contradição
interna de sua própria natureza. É por esse
motivo que chega a ser chocante o
descompasso, o despreparo e as tolices sem
fim que observamos nos meios intelectuais
quando o assunto é religião. Isso demonstra
que os últimos séculos transformaram as
pessoas ilustradas em analfabetos
religiosos. “Seus órgãos da fé estão
atrofiados”, diz o personagem de Tarkóvski
no filme Stalker.
Em certo sentido, essa atrofia dos órgãos da
fé é fruto da sistemática destruição
intelectual do sagrado operada por teorias
diversas a partir do século XVII, e que se
intensificou nos séculos subsequentes.
Racionalismo, marxismo, positivismo,
criticismo, teoria crítica, idealismo,
projecionismo, nietzschismo, psicanálise,
evolucionismo, pragmatismo, empirismo,
algumas correntes existencialistas, e por aí
a fora. A lista é grande, não pára por aqui.
E veja bem: não estou, de maneira nenhuma,
desqualificando esses conhecimentos. Apenas
estou nomeando as camadas de discurso que se
interpuseram entre as pessoas razoavelmente
cultas e a experiência do sagrado. Ou seja,
o paradoxo de nosso tempo é que, hoje,
precisamos nos desintoxicar de muita coisa
ou as assimilarmos com distanciamento para
voltarmos a compreender melhor algo que era
uma obviedade para qualquer indivíduo,
intelectualizado ou não, desde a origem do
homem até o Renascimento. Como diria o
Nelson Rodrigues, “só os profetas enxergam o
óbvio”. Para começarmos a perceber o véu
blasé de lugares-comuns e frases-feitas
intelectuais com que a modernidade camuflou
a nossa experiência cotidiana, é preciso
voltarmos a ser profetas. Metamorfose nada
simples.
Outro ponto importante da religião seria sua
dimensão “filosófica”. A princípio, para
esse domínio, ela nos coloca poucas
questões. Porém, todas fundamentais: a morte
e a imoralidade, a alma, a existência, os
valores, o ser, a origem, a fatalidade, o
bem e o mal, entre outras. Propõe-nas, é
verdade, em termos práticos, segundo a
doutrina ou os dogmas de cada religião.
Entretanto, e vale ressaltar um aspecto que
foi praticamente soterrado pela modernidade,
seja sob a forma de ascese individual seja
como uma perspectiva do mundo, ela nos lança
no domínio do imponderável, que é o começo e
o fim de toda a discussão filosófica digna
desse nome. Nesse sentido, repito, há uma
prioridade lógica, não cronológica, da
religião em relação à atividade reflexiva.
Uma serve de suporte à outra.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que aquela
determina os limites desta, também arruína
suas falsas questões e obriga-a a
transcender todos os seus postulados, por
mais válidos que sejam em suas zonas
específicas.
Indo mais longe, eu diria que a religião
está intimamente implicada em todos os ramos
do conhecimento. Porque não é possível
definir a consciência, fundamento de
qualquer conhecimento verdadeiro, sem
perspectivá-la a partir do mundo, ou seja,
sem lhe dar a excentricidade necessária à
sua própria constituição, posto que esta é
sempre virtual, à medida que o pensamento
não está nem no objeto nem em mim, mas num
campo de desvelamento que abrange essa
dicotomia superficial e a supera.
Haveria então três termos. Primeiro: o
pensamento é maior do que o eu, maior do que
o círculo fosco de minha meditação racional,
que o capta, mas não o gera. Segundo: o
mundo é maior do que o pensamento, pois há
uma objetividade irredutível que fornece a
base, a matéria (hylé), para que as formas
nela se depositem e sejam, assim,
reconhecidas como potências pela atividade
pensante. Terceiro: há e é necessário haver
algo maior que estes três termos e que os
abrange, pois é preciso que haja essa
espécie de terceira dimensão para que se
cumpra a excentricidade necessária à
atividade noética, ou seja, algo que solapa
a hipotética autossuficiência ontológica do
pensamento, sem a qual o mesmo nem
existiria. A conclusão que podemos tirar
desses silogismos simples, ao contrário do
que dizem todas as vertentes materialistas e
do que reza a vulgaridade de nosso tempo, é
que essa substância é positiva, mas exerce
função crítica, pois estabelece uma crise no
próprio processo noético. Nesse sentido, não
é meramente intelectiva, imanente ou
reflexiva, mas sim substância divina.
Note que estou falando apenas sob o ponto de
vista da filosofia do espírito, ou seja, de
uma fenomenologia da consciência e da
relação que esta estabelece com o sagrado e
com a religião. Se no núcleo duro do próprio
processo cognitivo consciente já temos
praticamente o atestado de uma
transcendência que o anima, o que se dirá se
entrarmos na dimensão mítica, arquetípica,
inconsciente, simbólica, volitiva,
imaginativa do homem? |
Na medida em que a perspectiva
religiosa visa transcender todo o
dado, toda a matéria e todo o limite
do conhecível, ela acaba por nos
revelar justamente esta substância
última do pensamento. O alvo dessa
atividade é reconduzir este mesmo
pensamento ao coração do mistério,
do imponderável, onde o conceito e a
ciência silenciam. Da mesma maneira,
sob um ponto de vista individual, é
impossível haver conhecimento de si
sem um abismar-se no outro, nos
outros e no absolutamente Outro, na
alteridade radical, em um Tu que me
é distinto e ao mesmo tempo
imanente. É esse movimento que me
revela o substratum, para usar o
termo escolástico, de minha
consciência, ou seja, a sua condição
prévia e, nesse caso, não mais
misteriosa ou miraculosa, mas
processual. Mais ou menos o que
Viktor Frankl define como
“inconsciente noético
transcendente”, que seria o “Deus
ignorado em nós” ou a “fé
inconsciente”, para ser mais
preciso. |
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MG |
Agora, voltemos à literatura. O
tempo surge em sua escrita de
maneira peculiar. Parece haver um
encontro entre o devir e conteúdos
muito arcaicos, a história aparece
como fluxo, e as marcas do tempo são
registros literários, mitos e ritmos
da natureza. Você poderia falar um
pouco a respeito disso?
RP | Outra pergunta aguda. Seria
preciso desenvolvê-la muito e mesmo
assim ficariam faltando coisas
essenciais. Em linhas gerais, sinto
que esse tema do tempo é fundamental
para o que escrevo. Vejo uma linha
que vem de História Natural, passa
pelo livro de ensaios Transversal do
Tempo e chega a Pedra de Luz. Tanto
nos ensaios quanto na poesia, o que
sempre tento reter é a duração
qualitativa do tempo. Ao contrário
do que se imagina, ela nos abre para
uma compreensão composta, não uma,
do mesmo. Do mesmo modo, o tempo nos
implica em uma das questões mais
complexas e fascinantes da filosofia
e mesmo da teologia: a matéria.
Bom, não falarei sobre a linha de
divisão entre tempo e matéria.
Ultimamente, muitos filósofos e
físicos têm defendido a inexistência
do tempo, entendido como um devir da
matéria, questão espinhosa,
irresolúvel. Isso é um universo todo
de discussão. Em relação a esse
tema, no entanto, e do ponto de
vista da criação poética, muitas
vezes tenho a sensação de que os
mortos nunca se foram; que há modos
de preservação da matéria e da vida;
embora a dimensão natural, imanente
e mundana seja insuficiente para
explicar tudo o que existe, intuo
que essa continuidade indestrutível
não pertence apenas a outro plano,
mas se dá na transcendência, na
excentricidade desse próprio mundo
em que estamos. Tudo o que já houve
está inscrito em mim. Quando nos
abrimos para uma sensação que
envolve a emoção poética, seja para
de fato escrever um poema, seja para
nos deixarmos envolver por ela,
sempre há uma intervenção da
experiência do tempo, em seus
aspectos múltiplos.
O que estava tentando desenvolver na
poesia até então é o que chamo de
lirismo épico, que está intimamente
ligado a dimensão temporal. Em
resumo, ele consiste numa percepção
do próprio presente e dos dados
imediatos à luz de uma perspectiva,
paradoxalmente, arqueológica e
eterna. Isso confere aos fatos
cotidianos, à minha e à sua vida, à
vida de todos nós, uma espessura
épica. Não é a forma literária, mas
a base sobre a qual a experiência
poética vem inscrita; não são os
gêneros em seu sentido convencional,
mas o recorte que se empreende no
real por meio da linguagem. Para
mim, a emoção e a beleza, em
qualquer arte, é uma síntese entre a
captação de uma substância eterna
que se infiltra e participa do mundo
e a consciência, diria mesmo a
convicção, de que cada instante,
cada ser, cada rosto, cada gesto é
irrepetível. Isso não está ligado à
grandiosidade da obra ou do artista,
nem à perenidade de ambos, mas sim a
uma maneira de captar o real e de se
abrir a determinadas fontes da
poesia.
MG | Em Pedra de Luz há inúmeras
referências, algumas sutis e outras
bem marcadas, a diversos autores. No
entanto, Venho de um País Selvagem,
seu livro que acaba de ser
publicado, é mais direto, mesmo os
aspectos filosóficos estão diluídos
em imagem e musicalidade. Fale um
pouco dessa transformação.
RP | Você percebeu muito bem a
mudança que ocorreu de um livro a
outro. Ela é substancial. Em Pedra
de Luz tentei colocar a poesia em
uma chave de diálogo com a história
e, por conseguinte, com outros
poetas e com a própria prosa do
mundo. A premissa é a de uma
dimensão mítica, na qual não haveria
distinção entre real e imaginário,
entre o histórico e o poético. Com
isso, a escrita desse livro é muito
ligada à ideia dos palimpsestos:
camadas de textos que se sobrepõem a
outras, um relato que remete a
outro, um fato que se desdobra em
imagens e conceitos, fundindo-se em
uma totalidade maior, que seria o
grau mais sutil e o mais denso da
matéria: luz e pedra. No arco dos
extremos, o mysterium coniunctionis,
matéria-prima da poesia.
Em Venho de um País Selvagem, a
mudança é sensível. Comecei a
perseguir uma espécie de
despojamento da linguagem, uma
retidão, que em nenhum momento é
concisão, minimalismo ou mutismo. O
silêncio é fundamental na poesia
quando entendido como intervalo
expressivo. Com exceção da poesia
mística, nenhuma poesia de interesse
se faz tomando o silêncio como ponto
de partida ou chegada. Se tomado
como paradigma, ele se transforma em
recalque ou afasia. Pelo contrário,
o que passou a me interessar nessa
fase é uma espécie de nudez. O canto
que se ergue de sua própria
precariedade, sem remissões
externas, sem nada além dele mesmo
como substância e finalidade. Queria
retirar a poesia da literatura, dos
diálogos textuais, da escrita em
papiro, da biblioteca, chegar a uma
inocência da linguagem.
Certa vez escrevi que a poesia é o
grau mais terrível da inocência.
Continuo acreditando nisso. A poesia
é a voz do Estrangeiro, por isso sua
semelhança com a loucura. Seu reino
não é deste mundo, e é isso que faz
dela o elemento ígneo para a erupção
da Verdade. A emoção poética nasce
de estarmos, no poema, a um só tempo
dentro e fora do mundo. Essa
condição ilustra o que mencionei em
uma pergunta anterior. Em Venho de
um país selvagem, quis tocar o ponto
onde ela se pronuncia a partir de si
mesma e onde o poeta usa como
recurso unicamente a sua voz, a sua
existência aberta para as coisas que
o cercam em forma de linguagem.
Obviamente que as leituras
continuam, não há como escapar;
moramos em nossas construções e
somos habitados por elas. Usamos a
linguagem, e ela nos atravessa. Tal
como o tempo, ela é simultaneamente
o que nos consome e o que nos
possibilita ser. Nesse livro eu quis
fugir o máximo possível das
referências, sejam elas quais forem.
O selvagem não é o oposto da ordem e
das formalizações. É sim aquilo que
as transborda e não consegue ser
instituído.
MG | O lugar da poesia sempre foi
marginal. Existe, no entanto, uma
grande busca por espaço: os poetas
protestam e desejam ocupar seus
devidos lugares nas grandes
livrarias e feiras literárias
nacionais e internacionais. O que
você pensa a esse respeito?
RP | Penso que há um mercado
literário, e que é muito saudável
que isso exista em todos os
sentidos. Essa crítica a livros que
vendem porque vendem e o elogio
daqueles que não vendem, porque não
vendem por serem bons, é uma coisa
de países intelectualmente frouxos e
de capitalismo fraco, como o Brasil.
Em todos os lugares, o mercado
literário é visto positivamente,
pois ele faz circular a matéria
bruta da literatura, o livro, e
isso, mais cedo ou mais tarde, em
maior ou menor grau, acaba sempre
revertendo em ganhos qualitativos em
termos de publicações.
A poesia tem um caráter um tanto
periférico mesmo dentro dessa
economia. Penso que seria positivo
se isso mudasse, mas, para tanto, é
preciso não apenas disposição
editorial e sim uma mudança da
própria postura dos poetas diante
desses temas. Não adianta querer
ocupar os espaços, se o que tivermos
a oferecer é vacuidade intelectual.
Essa ideia de que o que vende é
necessariamente ruim e o que não
vende, não vende porque tem um
conteúdo crítico e, por isso, não
agrada às massas, é uma crença tola
que precisa ser superada. Crença,
aliás, bastante arrogante. Sinto que
nunca se publicaram tantas obras
pseudointelectuais quanto agora, com
áurea e verniz de obras do espírito.
A essas, é bem preferível outras,
que cumpram o seu destino de mercado
e agradem aos leitores.
MG | Você participa ativamente da
vida literária, sobretudo por meio
do diálogo com outros autores. Qual
é a importância dessa atividade para
a sua escrita?
RP | Gosto muito do diálogo com
escritores e fico feliz de encontrar
escritores com preocupações
semelhantes e de discordar de
escritores com visões diferentes.
Dialogar, aprofundar o debate e até
mesmo polemizar. Tudo isso é bom. Às
vezes me ressinto de não conseguir
fazer isso com mais frequência, por
causa de trabalho e compromissos
cotidianos. Mas também gosto muito
de dialogar com autores do passado.
Isso pra mim é vital. Não me imagino
lendo apenas literatura
contemporânea. É a minha forma de
isolamento, mas também de tentar
tocar algo que se assemelhe a uma
plenitude da linguagem. É quase
impossível escrever sem conhecer a
literatura de algumas línguas que
não a nossa e de alguns séculos que
não o que vivemos. Não me lembro
agora quem disse que a forma de se
livrar da tirania da literatura de
um país é conhecer a literatura de
todos. Isso não se aplica só à
geografia, mas também à história. A
única forma de superar as
superstições do nosso tempo é
habitar todos os tempos.
MG | Entre os inúmeros filósofos que
fazem parte de suas leituras, quais
foram aqueles que influenciaram mais
fortemente sua poesia? Por quê?
RP | É um pouco difícil responder a
essa pergunta. Sempre que entramos
na seara dos nomes, sinto que
esquecemos mais do que lembramos,
sempre algo de essencial escapa.
Prefiro falar então de temas que têm
me perseguido. Gosto muito da
filosofia na sua dimensão
metafísica, pois esta tem conexões
com outras áreas que me atraem, como
a antropologia, religiões, mito,
sagrado e mesmo a história. Leio
mais ensaios filosóficos e
históricos do que ficção. Esse tipo
de leitura é mais importante para o
que pretendo em literatura do que
muitas obras literárias. É um
trabalho enorme, pois são temas
monumentais, com uma produção grande
e muitas abordagens possíveis. Mas
vou me arriscando neles, com prazer.
Eles têm a ver com interesses vitais
e com coisas que amo, e que venho
estudando nos últimos quinze anos.
Neste momento, ando concentrado na
philosophia perennis, sobretudo nos
estudos de arte de Titus Burckhardt.
É um autor polêmico, discordo de
alguns pontos, como de René Guénon.
Mas é de um brilhantismo ímpar.
Poucos ensaístas compreenderam a
arte sagrada como ele. O que mais
tem me interessado nessa vertente é
a busca das matrizes eidéticas do
real, de estruturas elementares do
mundo, selos da inteligência divina.
Nisso essa filosofia se une aos
escolásticos e aos medievais de modo
geral, e com o pensamento arcaico,
que têm sido também a minha paixão
intelectual de anos pra cá. Em
linhas gerais, tenho me interessado
por todos os pensadores e estudiosos
que perseguem uma ciência arcana,
uma tentativa de formular a
estrutura de um real absoluto,
decalque do céu na terra e no
coração.
Para mim, esse real se confunde com
a essência da poesia. O filósofo diz
a verdade, o poeta desvela o ser,
diria Heidegger. Esse desvelamento
não é necessariamente sobrenatural
ou natural, mas ocorre sim quando
tocamos a substância última do
mundo. Estou fascinado com essa
possibilidade de um real absoluto,
objetivo, simultaneamente espiritual
e material, antissubjetivo,
manifestado pela poesia, pelos
símbolos, pelas estruturas sagradas.
Tudo o que existe e nos precede.
Realidade penúltima, vestíbulo antes
de Deus.
MG | Além de poeta, você procura ser
uma voz relevante na área ensaística
e teórica. Nessa busca, há autores
com os quais você manifesta grande
afinidade, entre eles Vilém Flusser
e Vicente Ferreira da Silva. Você
poderia falar um pouco sobre essa
afinidade?
RP | Como disse anteriormente,
minhas maiores leituras são na área
de filosofia, poesia e história
(religiões, mito, sagrado). Gosto
muito de ficção, tenho alguns
prosadores que me acompanham desde a
adolescência. Mas é preciso fazer
algumas escolhas, é impossível reter
tudo o que queremos. Tenho
desenvolvido um trabalho ensaístico,
não sei ainda qual o seu valor. Sei
apenas que ele tem tomado um lugar
central na minha produção nos
últimos tempos. São muitos os
filósofos que admiro. Você mencionou
dois importantíssimos. No caso, um
pensador brasileiro e um tcheco
naturalizado. Vejo-os como
partícipes da verdadeira tradição
filosófica luso-brasileira: Matias
Aires, Farias Brito, Cunha Seixas,
Sampaio Bruno, Eudoro de Sousa,
Agostinho da Silva, Miguel Reale,
Mário Ferreira dos Santos, entre
outros.
Flusser é um pensador
originalíssimo. Suas reflexões sobre
fotografia tiveram repercussão
internacional. A tese de Língua e
Realidade é válida e de grande
abrangência para se entender as
relações entre linguagem e mundo,
embora ele chegue a um tipo de
concepção cética da qual discordo. O
mesmo se dá em A Dúvida, cuja
premissa me agrada, mas o
desenvolvimento deixa a desejar.
Porém, trata-se de um intelectual
altíssimo, um dos maiores pensadores
brasileiros. Com Vicente, tenho uma
ligação quase de identificação, e
mesmo indiretamente pessoal, por ter
sido muito próximo de sua viúva Dora
Ferreira da Silva, amiga querida e
eterna. Admiro quase irrestritamente
a forma que Vicente encontrou de
superar as aporias e falácias do
idealismo e do empirismo, conferindo
ao mito valor epistemológico. Mais
que isso, arqueológico, à medida que
este passa a ocupar o centro de uma
teoria das formas, espécie de causa
primeira. Ao fazer isso, ele
subordina a inteligibilidade mesma
do mundo ao mito. A própria doação
de ser, sentido e existência só
ocorre porque há uma abertura, uma
instauração projetante, que é de
ordem mítica. Além de tudo, é um
grande ensaísta e escritor. O
silêncio que se criou em torno da
obra de Vicente é algo de tal modo
desprezível que me eximo de comentar
aqui.
MG | A poesia hispânica e portuguesa
também são influências marcantes em
sua obra poética. Comente.
RP | Tenho uma relação não só com as
tradições lusófona e hispânica, mas
com o iberismo de modo geral.
Sinto-me vinculado a essas culturas.
Além disso, suas literaturas são
muito boas, principalmente a poesia
portuguesa do século XX e o século
XVII espanhol. Recorro a outras
fontes e admiro outras tradições,
mas essas são decisivas para muito
do que escrevo. Também na filosofia,
a matriz espanhola produziu autores
interessantíssimos, propositivos, de
grande envergadura conceitual.
MG | Os critérios para definir o que
é bom e ruim na literatura estão
cada vez mais confusos. Quais são,
segundo Rodrigo Petronio, os
elementos fundamentais de uma obra
relevante?
RP | Os critérios estão cada vez
mais confusos. Assino em baixo a sua
afirmação. Os motivos são
diversificados, complexos.
Impossível enumerá-los aqui. É
difícil definir em algumas palavras
o que apenas em uma reflexão crítica
exaustiva poderia ser sinalizado. Em
linhas gerais, acredito que as obras
do espírito compartilham sempre uma
espécie de presente virtual e
eterno. Para o espírito, todos os
tempos são presentes, diria Hugo von
Hofmannsthal. Elas estão sempre
tangenciando nossas vidas,
independente de terem sido escritas
há seis mil anos ou hoje. É um
mistério o que mantém a integridade
de determinadas obras, aquilo que as
leva a compartilhar a maior
pluralidade de tempos e estar vivas
para a maior variedade de leitores.
Traduzindo essa qualidade sutil de
maneira precária, eu diria que a
obra relevante é aquela que consegue
conciliar o máximo de historicidade
com o máximo de transcendência. Pode
parecer um paradoxo, mas não é. E
talvez essa constatação possa ser
usada como critério de aferição de
valor para a arte e a literatura,
quiçá para as próprias obras do
pensamento. Nossa diferença em
relação a Gilgamesh, ao Mahabharata
ou a Homero, é que nós estamos mais
saturados de história do que eles.
Portanto, a linha mais imatura de um
escritor iniciante de hoje carrega
consigo, em sua concretude, mais
efetivações históricas do que a de
um poeta medieval ou antigo. Isso
torna a nossa condição delicada,
porque, também paradoxalmente, a
obra nasce de uma profunda
consciência histórica e de sua
simultânea neutralização, para que o
passado vire leveza e a leveza,
poesia. Só assim damos um salto
substantivo sobre a fatalidade do
tempo, apropriamo-nos dele a nosso
favor e a favor da arte. Caso
contrário, a ingenuidade de hoje
estará em muito maior defasagem do
que a ingenuidade de Homero, o que
produzirá uma obra na maioria das
vezes fraca, não em relação a Homero,
mas em relação às linhas de força
gerais da poesia do tempo de Homero.
Aqui também entra o conceito de
inocência radical que tenho
desenvolvido, no que diz respeito às
espirais e às quadraturas, ou seja,
aos ciclos históricos da literatura.
As obras do passado também tinham o
seu passado, que é difícil conhecer
com exatidão sem uma árdua tarefa
arqueológica. Porém, mesmo essa
tarefa é dispensável. Pois embora
tenha surgido de uma tradição, toda
obra, ao ser escrita, é lançada como
projeto. Destinada a uma dimensão de
incerteza, nasce à margem do
pensamento e é colocada entre
parêntesis, em estado de suspensão,
arremessada às franjas e periferias
do real, para depois ser resgatada
sucessivas vezes, sabe Deus por
quem, como e por quê. O componente
de sua perenidade decorre tanto de
sua apropriação do que existia até
aquele momento quanto da sua
capacidade de transcender todo
instituído, de apreender a latência
do futuro, de atender às
expectativas de algo que ainda não
existe e, mais que isso, de tudo o
que é, à altura de sua escrita,
indevassável. Esse parece ser o
mistério da criação, da crítica e da
própria história. Se refletirmos com
seriedade sobre ele, não chegaremos
a desvendá-lo, mas provavelmente
poderemos compreendê-lo um pouco
melhor. Consequentemente, talvez
vejamos com outros olhos o
relativismo que tem determinado o
trabalho intelectual nas últimas
décadas, nos últimos séculos ou até
mesmo no último milênio. Afinal, o
relativismo não é nada mais do que a
superstição por excelência da
modernidade. |
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Maiara Gouveia (Brasil, 1983). Poeta
e estudiosa de literatura, publicou
ensaios, poemas e artigos em
revistas virtuais e impressas do
Brasil e de outros países, como
Portugal e México. Na Universidade
de São Paulo, desenvolveu um
trabalho de pesquisa acerca da obra
de Cesário Verde. Publicou Pleno
Deserto (2009). Contato:
maiaragouveia@gmail.com |
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