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OLHAR A
LINGUAGEM:
DAS VISÕES
ROMÂNTICAS AOS MODELOS
SOCIOCOGNITIVOS
MÁRCIO XAVIER
SIMÕES
Página ilustrada com obras da
artista Aline Daka (Brasil) |
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O mundo de operação do pensamento
poético é a imaginação e esta
consiste, essencialmente, na
faculdade de relacionar realidades
contrárias ou dessemelhantes. Todas
as formas poéticas e figuras de
linguagem têm um traço em comum:
procuram e, com freqüência,
descobrem semelhanças ocultas entre
objetos diferentes. Nos casos mais
extremos, unem os opostos.
Comparações, analogias, metáforas,
metonímias e os demais recursos da
poesia: todos tendem a produzir
imagens nas quais se juntam isto e
aquilo, o um e o outro, os muitos e
o um.
Octavio Paz
Todo pintor visionário é antes de
tudo um grande realista.
Murilo Mendes |
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I
Indagar sobre diferentes concepções
de linguagem equivale a indagar
sobre diferentes formas de organizar
a realidade e proceder no mundo,
tanto de forma individual quanto
coletiva. |
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À história material de uma cultura
corresponde, justamente, a história de suas
diferentes “versões públicas do mundo”, das
diversas e cambiantes maneiras de explicá-lo
e dar coerência aos fatos.
Limitando-se ao heterodoxo complexo de
culturas e países a que nomeamos de
Ocidente, podemos traçar como dominante e
determinante ao longo da nossa história uma
concepção de linguagem – seja pictórica ou
linguística – que entende esta como
representação do real, cujo exemplo mais
acabado seria o retrato renascentista ou a
literatura de cunho realista. Caberia à
linguagem uma função meramente descritiva,
referencial, correspondendo a cada objeto do
mundo uma determinada palavra ou imagem. Por
trás dessa concepção de raiz aristotélica,
está a ideia de que há um real pronto,
imutável e fixo, pré-existente à ação humana
e linguística sobre ele. Foi esse, com
efeito, o entendimento de linguagem que,
oriundo da magna Grécia, atravessou incólume
toda a Idade Média. Na modernidade, são
tributárias dessa visão de linguagem e
realidade as filosofias racionalistas tais
como o cartesianismo, o iluminismo francês,
e já no século XIX, o positivismo e a
filosofia analítica. Amparadas na Lógica,
buscavam o refinamento de uma linguagem
puramente referencial, matemática, dedutiva
e representativa. |
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Não obstante, a partir da segunda
metade do século XX, essa concepção
começa a cair por terra tanto dentro
da Filosofia da Linguagem como na
Linguística. A crítica vai recair
sobre um pressuposto básico da visão
representacionista: o da separação
entre mente e corpo. De fato, dois
fatores fundamentais da percepção
humana estavam ausentes das teorias
clássicas sobre a relação linguagem
e realidade: o corpo e a experiência
interativa com o mundo. Isso porque
uma linguagem lógica, abstrata,
matemática, não precisa de nenhuma
experiência corporal, mas apenas
formal. Ao se conceber uma linguagem
sem corpo e sem experiência, a
linguagem abstrata e formal da
Lógica foi naturalizada,
associando-se ao próprio
funcionalmente da mente e cognição
humanas. |
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Da mesma forma, implicava em outro forte
dualismo formal entre interioridade –
onde estariam os aspectos mentais e
cognitivos – e exterioridade, na qual
se localizavam, de forma isolada e estanque,
os aspectos sociais e culturais.
As mais recentes correntes de estudos
linguísticos, cognitivos e filosóficos, por
sua vez, têm adotado uma ideia de cognição e
linguagem como fenômenos fundamentalmente
corporificados, na qual mente e corpo
não estão separados. Para tais teorias, a
cognição e a linguagem se situam e se
constituem a partir da experiência corporal
e sociocultural, de onde emergem as
categorias conceituais e linguísticas.
Contrariam, assim, o pressuposto
aristotélico de que as categorias deveriam
ser buscadas na estrutura do próprio real.
Nesta abordagem, cognição e linguagem,
cultura e realidade social são compreendidas
como aspectos imbricados, em permanente
relação de interatividade nos processos
humanos de construção de sentido e ordenação
da realidade. Também não se sustenta, desse
modo, o dualismo interioridade/exterioridade
das ciências cognitivas clássicas. A partir
desta perspectiva, a estrutura da linguagem
passa a ser encarada como reflexo de
processos gerais de pensamento que os
indivíduos elaboram ao criarem significados,
adaptando-os a diferentes situações de
interação com outros indivíduos. A linguagem
passa então a ser tratada como um conjunto
complexo de atividades comunicativas,
sociais e cognitivas integradas com o resto
da psicologia humana.
A partir daí, começa a cair por terra a
ideia de que lidamos com um real
preexistente à ação humana e linguística no
mundo. De fato, a linguagem não discorre
simplesmente sobre o mundo, mas dá trato ao
mundo e às coisas deste mundo. É exatamente
durante o ato de “falar sobre” que ela o
elabora e reescreve – ressalta as nuances
que escolhe, esconde propositadamente outros
aspectos. Sem retratar a realidade, agencia
realidades. Nesse sentido, observa Franchi,
em texto sugestivamente intitulado
Linguagem: Atividade Constitutiva, que
não há “nada imanente na linguagem, salvo
sua força criadora e constitutiva”, assim
como não há “nada de universal, salvo o
processo de tal atividade” (p.31-32). A
linguagem, não é, portanto, apenas um dado
ou resultado, mas elemento do processo
complexo que constitui esses dados e
resultados, processo que articula
habilidades discursivas, cognitivas e
gramaticais em plena interação nas
atividades de produção de sentido. |
As novas teorias sobre a linguagem,
portanto, afirmam que a função
primeira desta é constituir, dar
elaboração e sentido às coisas,
organizar as diferentes
experiências, tendo antes um valor
mais constitutivo/criativo do que
representativo. A partir daí, temos
uma concepção de realidade emergindo
da interação do organismo
humano com os dados e fatos físicos
do mundo. Ao invés de uma realidade
pronta, acabada, lá fora, nos
deparamos com uma imensidão de
percepções físicas de realidades que
se encontram continuamente em
interação e mutação, e que se
configuram a partir de nós,
na medida em que organizamos –
social e intersubjetivamente – a
nossa relação com aquilo com que nos
deparamos. |
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Dentre outras coisas, a linguagem é a nossa
maneira de deter a velocidade do mundo, de
estender o tempo de duração das coisas e
eventos para que possamos apreendê-los,
imputando-lhes sentido, coerência e
continuidade. Outra consequência importante
desta concepção dinâmica de real é a
noção de que não temos acesso às coisas
tal como elas são, mas acessamos apenas
a maneira como elas nos parecem
ser. Desse modo, podemos afirmar que não
apenas fatores biológicos, mas igualmente
culturais, são determinantes da maneira como
percebemos e agimos no mundo. E na cultural
a linguagem é o veículo por excelência.
Através dela apreendemos, acessamos e
transformamos nosso entorno. Se é verdade
que nenhum símbolo é “o” real em si mesmo,
acessamos diferentes níveis da realidade
através deles. E pela linguagem se vai ao
mundo.
Em entrevista concedida à Revista Virtual de
Estudos da Linguagem, em agosto de
2003, a
linguista Ingedore Villaça Koch afirma que
Os textos, como forma de cognição social,
permitem ao homem organizar cognitivamente o
mundo. E é em razão dessa capacidade que são
também excelentes meios de intercomunicação,
bem como de produção, preservação e
transmissão do saber. Determinados aspectos
de nossa realidade social só são criados por
meio da representação dessa realidade e só
assim adquirem validade e relevância social,
de tal modo que os textos não apenas tornam
o conhecimento visível, mas, na realidade,
sociocognitivamente existente. A revolução e
a evolução do conhecimento necessitam e
exigem, permanentemente, formas de
representação
notoriamente novas e eficientes.
A linguagem do dia a dia passa a ser então
compreendida como a maquinaria do próprio
pensamento e a única forma pela qual
acessamos o nosso entorno sociocultural.
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II
A linguagem não é somente um
processo de representação, de que se
podem servir os discursos
demonstrativos e conceituais, mas
ainda uma prática imaginativa que
não se dá em um universo fechado e
estrito, mas permite passar, no
pensamento e no tempo, a diferentes
universos mais amplos, atuais,
possíveis, imaginários.
C. Franchi
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Se é a partir do início do século XX, com os
trabalhos do segundo Wittgenstein, a Teorias
dos Atos de Fala de Austin, a pragmática, e,
posteriormente, com a Linguística
Sociocognitiva da década de 70 em diante,
especialmente, que o modelo referencial da
linguagem vai ser definitivamente abandonado
e reelaborado, podemos, no entanto,
localizar a origem dessa critica à visão
representacionista nos pensadores e poetas
da tradição romântica. Já no século XVIII,
artistas e filósofos como Novalis e seu
círculo de Jena, William Blake, entre
outros, davam provas em seu trabalho de que
a natureza da linguagem e da mente humanas
não era nem lógica nem referencial, mas
analógica, simultânea e metafórica. De fato,
O modus operandi da metáfora parece
sugerir um tipo diferente de pensamento, que
podemos denominar analógico, por
oposição ao lógico.
O pensamento analógico caracteriza-se
pelo questionamento da proposição
aristotélica de que uma coisa não pode ser
ao mesmo tempo ela mesma e ainda outra. A
analogia descobre semelhanças onde elas
aparentemente não existem. Enquanto o
silogismo, a dedução e a subtração são
as maneiras próprias de proceder do
pensamento lógico; a imagem, a
conjunção e a união parecem ser o principal
meio de realização do pensamento analógico.
Tomemos duas palavras quaisquer, como “luz”
e “leite”, por exemplo. Podemos postular sem
maiores questionamentos, segundo uma visão
representacionista e aristotélica, que são
dois “objetos do mundo”. Sabemos sem
dificuldades o que é um e o que é o outro, e
podemos distingui-los em nossa experiência
com o real: vemos a luz, bebemos o leite.
Não há nenhuma razão ou motivo para
relacioná-los. No entanto, podemos supor que
um poema traga o objeto verbal “luz de
leite”. Podemos simplesmente postular que
isso não existe, mas, se pensarmos
analogicamente, veremos que a luz é clara e
o leite é branco, cor também associada à
clareza, e esse traço pode unir essas duas
coisas, até então distintas. Através desse
traço de analogia, “luz de leite” pode então
ser uma imagem para um tipo de luz
demasiado clara, ou mais branca ou alva do
que a que estamos acostumados a perceber,
exigindo então um novo objeto verbal para se
referir a ela. É verdade, nenhuma luz é de
leite, não vamos encontrar isto no mundo.
Mas enquanto a verdade da lógica referencial
(e seu silogismo) se mede pela
correspondência com as coisas do mundo, a
verdade do pensamento analógico (a
funcionalidade de sua imagem) parece
medir-se pelo seu valor mitopoético, pela
capacidade que tem de nomear coisas que não
existem exatamente da mesma forma no mundo,
mas que existem linguisticamente. E na
medida em que a linguagem é mundo e
constitui o mundo, revela nuances e
percepções até então desconhecidas. Enquanto
o pensamento lógico discrimina e separa, o
analógico aproxima e confunde, dá mostras de
que os objetos verbais que usamos para nos
referir às coisas da experiência delimitam e
propõem a nossa maneira de olharmos e
pensarmos sobre eles – e sobre a própria
experiência. Sendo assim, seria mais
coerente falarmos não em objetos do mundo
– prontos e acabados – mas em
objetos de discurso, negociáveis e
convencionados – uma vez que estamos sempre
elaborando discursos sobre eles.
Assim, para o poeta romântico não importa
“representar” o real, uma vez que esse não é
algo anterior à ação e ao olhar do
observador. Mais interessante, portanto, que
re-apresentar algo estabelecido, é
desarticular velhos modelos e esquemas
cognitivo-experienciais, inaugurar outros,
propor novos olhares para antigos objetos,
elaborar novas formas de sentir e perceber.
É justamente neste ponto que podemos
aproximar a visão de linguagem dos
românticos com a oriunda das correntes
atuais da Linguística e da Fisolofia da
Linguagem. Parece nascer com eles, no início
de nossa Idade Moderna, o questionamento
contemporâneo da natureza do real, das
categorias aristotélicas, do absolutismo da
Lógica. Também há aproximação entre a visão
contemporânea de linguagem e aquela de
poesia como processo dinâmico e em perpétua
negociação, permanentemente em fluxo e
sempre parcial, situado e circunscrito,
justificando sempre a criação verbal segundo
cada tempo e espaço.
É partindo desse ponto que algumas das mais
fundas consequências das crenças românticas
serão a valorização do jogo com o
imaginário, do inconsciente coletivo e da
imaginação criadora. Empenhado em
caracterizar William Blake como poeta “ultra-romântico”,
o crítico Claudio Willer, em sua tese Um
Obscuro Encanto, utiliza como argumento
justamente a “defesa da liberdade de criação
e da originalidade; e, principalmente, da
imaginação como faculdade criadora, de modo
semelhante a Coleridge ou Baudelaire” (p.
166), por parte do poeta inglês. E mais à
frente, acrescenta, com o mesmo intuito, que
Blake foi “defensor do primado romântico da
imaginação e, por isso, da experiência
visionária como fonte de um conhecimento
superior àquele transmitido através dos
sentidos e demonstrado pela razão” (p. 169).
É também na esteira de concepções como essa
que ocorre o desmantelamento do
figurativismo na pintura, efetuado, por
exemplo, por Van Gogh e Gauguin, abdicando
da perspectiva e técnica clássicas para
pesquisar uma arte que lhes permitisse
expressar não o mundo como estávamos
socialmente condicionados a vê-lo, mas como
este reverberava na interior de cada um
deles, explorando novas possibilidades de
apreensão e expressão.
Desse modo, enquanto racionalistas,
tributários da concepção representacionista,
concebiam a arte como mero artesanato
humano, destinado a representar a realidade
e iludir o espectador, os românticos viram
na arte e na linguagem uma possibilidade de
conhecimento e transformação da realidade e
de si próprio – e na vida criativa, uma
razão de ser. Perdia sentido, assim, tanto
uma arte como uma vida meramente imitativa.
Suas ideias ganham ilustração e
representação na hoje célebre afirmação de
Novalis de que “A Poesia é o Autêntico Real
Absoluto”. De modo sumário, para esses
poetas-filósofos e artistas, a poesia não
poderia ser definida como uma mera atividade
artesanal humana porque era algo da
estrutura do próprio real, quando não o
próprio real em si mesmo, anterior e
posterior à própria linguagem. Não importa
discutir aqui a natureza deste real, para o
poeta romântico, importa revelá-lo.
Cobrir-lhe com um véu que o ilumine e
esclareça. A esses véus chamaram-se poemas,
e com eles cobriram os poetas as suas
percepções, ideias e aspirações mais caras,
e assim as tornaram visíveis. O invisível
necessita das vestes do visível, e essas
vestes denominam-se linguagem. Neste
sentido, poemas são esqueletos, máscaras,
meros sinais que só se realizam e adquirem
valor quando cumprem o papel de “apontar”
para esse outro real, enfaixado com
nomes de mistério e poesia. Estranho
empreendimento: usar a linguagem para
revelar o que está antes ou depois da
linguagem. Mas só assim se atinge o objetivo
de cobri-lo, concedendo-lhe forma e
aparência para assim torná-lo palpável e
existente dentro de nossos esquemas de
percepção e apreensão. Carrega-se assim a
atividade poética de um sentido que se
pretendeu sempre maior do que as
contingências e determinações que se
acercavam do próprio sujeito histórico
encarregado de produzi-la.
Importa destacar aqui que, desde o seu
surgimento, a visão dos românticos foi
dissidente e marginal com relação às
concepções racionais, centrais no Ocidente.
Embora ambas as correntes fossem muito mais
próximas e difíceis de separar em seu
início, as racionais sempre foram
privilegiadas em nossa sociedade. Sempre
estranhas à noção de língua como
representação e espelhamento de um real fixo
e imutável, do qual apenas recolheríamos os
recortes sonoros e conceituais certos para
representá-lo, as concepções românticas
aproximam-se muito mais de visões de mundo
xamanísticas, mágicas e mítico-religiosas,
em paralelos que podem ser estendidos a
filosofias e culturas do Oriente. Com sua
ênfase na imaginação e na capacidade
criadora da linguagem, estiveram desde o
princípio em hostilidade com relação às
concepções do racionalismo cartesiano, da
lógica referencial e seus sucedâneos. Como
vimos, as coordenadas de seu mundo são
aquelas do sistema mitopoético. Sua
universalidade: o pensamento analógico. |
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III
Queremos, a partir daqui, encerrar
este texto com uma breve discussão
do que queremos dizer mais
exatamente com as palavras
românticos e romantismo.
Como se pode perceber, não
utilizamos a palavra Romantismo para
nos referir a um período histórico
ou literário, mas para fazer
referência a um conjunto de ideias e
crenças que emergiram em vários
pontos do Ocidente culto ao longo
pelo menos dos últimos três ou
quatro séculos, e que podemos
remontar ao romantismo alemão dos
século XVIII. São características
comuns dessa corrente de pensamento
o desacordo frente à visão de
sociedade, realidade e homem oriunda
da Idade Moderna e sua civilização
industrial; a valorização da
imaginação e do inconsciente na
literatura; |
uma
orientação mitopoética e um
pensamento que podemos chamar de
analógico para definir a forma de
suas operações e contrastá-lo com o
pensamento lógico. Chamamos
românticos aos pensadores, artistas
e escritores que, dentro de suas
próprias perspectivas e
interpretações, de maneira mais ou
menos acentuada, reivindicaram como
suas compreensões que
fundamentam essas características,
de maneira livre e heterodoxa.
O romantismo histórico pagou o preço
de sua disseminação e popularidade.
No século XIX, os jovens poetas, na
esteira de Byron, levaram a
valorização da individualidade
efetuada pelo romantismo aos
exageros e distorções do culto de si
mesmo e da fascinação mórbida pela
morte. A companheira beatífica e
inalcançável degenerou da
representação da busca arquetípica
da Sophia (sabedoria) grega e
da luta cristã pela alma em
repetição sem sentido de paixonites
e dores-de-cotovelo juvenis. O arco
que leva da consideração atenta dos
sentimentos e do mundo interior à
contaminação pelo sentimental e pelo
arrebatamento apaixonado e
irrefletido também foi percorrido
com ligeireza e fez seus estragos. A
constituição de uma visão de mundo
realmente singular é trabalho
oneroso que poucos pareciam
realmente dispostos a trilhar. E
embora o romantismo histórico tenha
naufragado, um espírito de rebelião,
revolta e questionamento contra os
pilares da sociedade industrial e
sua fundamentação na física e na
mecânica newtoniana – assim como no
paradigma cartesiano – continua
operando, seja de maneira
subterrânea ou aparente. Por mais
que esteja, mais que nunca à margem
a concepção romântica de poeta e
poesia, sua existência e
continuidade dão testemunho do
alcance de suas ideias e concepções.
E a este espírito vivo podemos, como
fizeram Octavio Paz, Harold Bloom,
Michael Lowy, dentre outros,
continuar chamando romântico.
Além disso, por mais carregada que
soe a palavra hoje, parece difícil –
senão impossível – cunhar outra que
dê conta de agrupar um número tão
diversificado e historicamente
elástico de autores. Em plena época
da hegemonia da técnica e do
capitalismo e mercado globais, vimos
que através das rebeliões estudantis
e culturais dos anos 60 e 70, uma
espécie de “romantismo” continua
sendo a expressão de crítica e
oposição mais contundente à
orientação mecanicista da sociedade
contemporânea.
Escrevendo nos anos 80, o teórico do
anarquismo ontológico e terrorismo
poético, Hakin Bey, defendia no seu
livro Caos que os poetas
deveriam “começar a contemplar uma
arte que recrie o objetivo do
feiticeiro: mudar a estrutura da
realidade pela manipulação dos
símbolos vivos” (p. LV). Mas não
seria continuar? Não foi
justamente esta a mais cara ambição
de românticos, simbolistas,
surrealistas e demais escritores que
os sucederam, discutiram ou lhe
deram, a seu modo, seguimento em
trabalhos e produções individuais?
Num momento em que as atuais
concepções de linguagem defendem que
o emprego primeiro desta é o de
organizar, constituir e estruturar a
realidade – propondo uma promissora
síntese entre mente e corpo,
racionalismo e empirismo, ciências
naturais e cognição situada – tal
ideal romântico não parece de todo
absurdo, mas aparece, sobremodo, uma
vez mais sugestivo e instigante.
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Márcio
Xavier Simões (Brasil, 1979). Poeta
e tradutor. Publicou
O
Pastoreio do Boi
(2008). Contato:
mxsimoes@hotmail.com |
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