Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

Número 01

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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 Primeiras lições de José de Alencar

Ana Maria Roland

Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)

Não foram as canções de ninar, nem o repertório de rezas e ditos e pregões, que se constituíram nas primeiras fontes da obra literária de José de Alencar. O escritor brasileiro forjou-se em chão mais árduo. As primeiras e decisivas lições, as que seriam por ele reconhecidas, estiveram afetas a outras reminiscências de infância.

Reservou lugar primordial ao romanceiro popular nascido da luta dura contra o deserto cearense, das cantigas de boi e canções de pastoreio – os aboios.Foi da escuta das toadas dos vaqueiros, nos fins de tarde no sítio do Alagadiço Novo, em Messejana, que Alencar menino guarda a primeira impressão da beleza perene. Com estas reminiscências irá construir a cena tocante da corrida do Boi Dourado, sucedâneo do mítico Boi Espácio, em seu último romance, O sertanejo, de 1875. Haveria outras lições.
A segunda marca a comparecer no seu projeto literário reúne a literatura e a política. Por este tempo o menino seguia os estudos no Colégio da Instrução Elementar, do Rio de Janeiro. Alencar reconheceu a valia da disciplina, desde as primeiras letras, a dele austera e gravíssima, para o garoto de nove anos, de quem se exigia rigor monástico e desempenho escolar quase à perfeição. O menino passa a ter um lugar destacado nos repetidos saraus familiares do sítio em que vivia a família do Senador Alencar, seu pai. Nasceu daí o menino ledor da família, que lia romances para a mãe e as tias, nos saraus familiares. Estes livros eram alguns exemplares traduzidos, pertencentes à pequena biblioteca familiar. Lia, repetidas vezes, os mesmos romances.
O menino lia, enquanto as mulheres fiavam ao redor da mesa de jacarandá. No centro da mesa, um candeeiro, a lembrar que entre as luzes do século, a rebaterem tênues na Corte embelezada, havia esta penumbra, exigindo muito esforço do menino para cumprir o destino de tornar-se o futuro romancista e um político brasileiro.
Estavam às vésperas da “revolução parlamentar” que reconheceu a maioridade antecipada de Dom Pedro II. Aqueles saraus se faziam ao mesmo tempo em que, nos fundos da casa do Senador, “altos personagens filiados ao Clube Maiorista” conspiravam no movimento político que terminaria vitorioso. A leitura, em voz alta, de romances, por um menino tão franzino, feito aprendiz de aedo diante de auditório singular, era entrecortada por comentários das ouvintes sobre personagens e atos da intriga. Choros copiosos explodiam, enquanto os homens definiam os destinos do reino – conforme o saboroso relato do escritor, na sua autobiografia literária. A literatura e a política uniam-se naquela casa e foram no escritor duas forças que traçariam o seu destino.

O terceiro aprendizado do jovem Alencar se inicia durante o período preparatório para a faculdade de Direito, em São Paulo. Foi para lá com apenas 13 anos de idade.


Passou a conviver com parentes e amigos da família, todos mais velhos que ele, leitores dos românticos ingleses e franceses. O garoto tímido exercitou a escuta paciente – que já conhecia do mestre da Escola, o severo Januário Mateus. Teve acesso à vasta biblioteca do amigo Francisco Otaviano e pôs-se a ler Balzac, na língua original, debulhando palavra a palavra sobre um dicionário. Depois leu Dumas, Chateaubriand, Hugo, Vigny e outros romancistas. Mas não esqueceu a descoberta do primeiro romance brasileiro, de 1848, que o encantou, A moreninha – “gentil romance” - do médico Joaquim Manuel de Macedo. Os jovens estudantes fumavam charutos, discutiam e liam as sombras de Byron. Alencar, o mais garoto, passou sem nenhuma simpatia pela mancha negra da melancolia. Já a possuía de sobra – declarou – e a empregaria na vida e nos romances.

A literatura de Alencar não teve, não poderia ter o traço do descompromisso em face da história. Fez literatura como missão, tal como o fizeram quase todos os escritores e poetas românticos, desde Gonçalves Dias – estes que assentaram um chão com a língua portuguesa no Brasil, e criaram figuras e nomes próprios da terra. Alencar fala com orgulho cerimonioso do Dicionário da Língua Tupi, do seu predecessor, o “Senhor Gonçalves Dias” – reconhecendo-lhe presente no caminho de sua própria aventura.

Acontecia também que o projeto que se desenhava, no Brasil independente, foi, diga-se, sui generis em toda a América.

Uma nação ainda por se instaurar e uma transição feita com os mesmos personagens que até ontem figuravam da existência colonial, que se vão transformando e mudando as funções. E a terra, de simples colônia de exploração passa à colônia de plantação rentabilíssima, difundindo-se monoculturas diversas sob o regime de trabalho escravo, ao mesmo tempo em que se formava um patriciado local, poderoso e altivo. Passa, no ordenamento político, de vice-reinado colonial à sede da monarquia portuguesa, a Reino Independente, a Império brasileiro. A formulação política e jurídica da nação brasileira seria projeto de largo prazo.

Tanto a literatura brasileira, quanto os lances decisivos do Primeiro e Segundo Reinado passariam por esta família Alencar, de tradição insurgente, forjada na política em lances dramáticos das lutas libertárias, como os da Confederação do Equador.

Registre-se ainda a vocação eclesiástica desse clã cearense de origem pernambucana, que resultaria em muitos padres católicos. O espírito missionário estava na alma exaltada de seus descendentes.

O último homem nele, a aparecer, tardio, foi o político – o parlamentar e o polêmico. Mas como imaginar um destino diverso para um menino que teve o pai e a avó, Bárbara de Alencar, presos na Confederação; a velha matriarca, exilada, reaparecendo depois em paradeiro misterioso, numa fazenda em Fronteiras, pelos confins do Piauí, lugar em que veio a falecer… É muito enredo para um só romancista – que necessitou do fôlego de algumas mil páginas para ocupar-se com as incríveis aventuras das minas de prata. Este foi o espanto de Afrânio Coutinho, ao coordenar a edição das obras completas do romancista. Alencar viveu 48 anos, alternando-se quando jovem bacharel em Direito, entre o jornalismo, a literatura de folhetim, o teatro. Depois, sem deixar a literatura e o jornalismo, dedicou-se ao parlamento, duas vezes Deputado pela Província do Ceará, e à gestão ministerial, na pasta da Justiça. Ainda que sob o peso desta divisão, escreveu mais de cinco mil páginas conhecidas, e pesando-lhe ainda a sombra ameaçadora a lhe espiar, “a mão descarnada” da moléstia.

Haveria a destacar por último, na escritura alencariana, outra presença importante, preciosa por muito arcaica, que aparece não tanto nos temas, e sim no espírito e na construção narrativa, que subverte sistematicamente as leis da verossimilhança interna de seus romances. Refiro-me à transmissão que recebeu dos contos de fadas e histórias de aventuras, que migraram para seus romances e estão presentes em diversos deles, na aura, no gênero, além do repertório temático e de motivos. Já no seu primeiro breve exercício novelesco, Cinco minutos, aparece um mote, um topo dessa herança imemorial, que é o da transformação de personagens femininas pelo “beijo milagroso”. Exemplos de motivos oriundos dos contos de fadas são pródigos em Alencar. Também daí desse manancial é aquele da busca da menina-mulher amada, pelo objeto perdido que lhe pertence - a mesma metonímia fetichista do conto de Cinderela. Um minúsculo sapato-bibelô a revelaria ao enamorado, no caso um debochado dândi carioca, um “leão da moda” da Corte do Rio de Janeiro, em A pata da Gazela. Neste filão vêm histórias de aventura, das mais antigas tradições orais, que as modernas literaturas escritas aproveitaram e aproveitam, estas antiqüíssimas narrativas que têm quase sempre origem no antigo Oriente, desde Sherazaade. E tem ainda as impossíveis façanhas de Peri a Arnaldo, a deixar o “auditório” em suspense, jogando com o medo que faz na infância a aventura se travestir em pedagogia.

É bastante fútil dizer-se de um escritor, que navegou em diversas tradições lingüísticas, que limitou-se a seguir este ou aquele romancista moderno que o precedeu. O Guarani, atravessado pela lenda de Tamandaré, abarcando um trecho épico da colonização portuguesa, no plano histórico, é principalmente um espetacular romance de aventuras, no plano narrativo e no plano discursivo da história. Permanece lenda e aventura ainda quando traz à luz o fundamento histórico, as lutas entre conquistadores portugueses e toda sorte de aventureiros, e os índios que habitavam a região da Serra dos Órgãos, ao interior do litoral fluminense.
Não espanta que romance tão bem urdido se fosse transmitir e impregnar a cultura brasileira, ao longo de mais de 150 anos. Publicado em folhetim no Diário de Noticias do Rio de Janeiro, os exemplares do jornal eram a cada capítulo disputados, lidos em grupo “até em pontos de bonde”, na fria garoa paulista – dão conta relatos da época. Não surpreende que a verve popular deste folhetim assentado em projeto literário consistente - um horizonte ao reconhecimento para a língua e a nação ainda informe - tenha sido recebida com tanto entusiasmo e se feito ademais decisivo na constituição do público leitor no Brasil – como já foi analisado pela crítica.

Mas o recuo alencariano à lenda e à fábula, para desenvolver argumentos históricos, feito em O guarani, daria por fim o fruto mais original – e para este seria necessário espaço mais largo para falar. Trata-se de Iracema, a heroína indígena que cumpre ainda sua vocação popular, em todo o Brasil. Nascida no ano de 1865 mereceu o subtítulo de Lenda do Ceará. Era sua obra mais acalentada, criada na plenitude de sua experiência estética e política. Não se disse o suficiente da beleza do seu estilo e da função histórica que coube a este livro na cultura brasileira, nele convergindo individualidade do estilo com a desejada nacionalidade da língua literária; da sua presença na reorientação do campo estético e político nacional.

O toque de gênio do Alencar poeta, qual foi? Realiza o milagre da poesia e da comunhão do corpo e da alma: em Iracema, repõe com poesia o vazio de palavras da cena originária de um povo, seja a colonização brasileira, fazendo-se pintor desta cena e cantor de seus heróis. Recria com a língua o território brasileiro, os objetos e utensílios da cultura com as palavras indígenas ágrafas, que já nomeavam lugares e objetos sem que muitos dos contemporâneos, como os de hoje, se dessem conta destes nomes e sons. E o faz como que revestindo o chão, iluminando-o de palavras eufônicas e formas verbais delicadas, ensinando travessias a partir da lenda, pela via da epopéia moderna - que é a forma romanesca, como a reconheceu Lúkacs.

Como um rei ou patriarca, ainda prepara o primeiro elo da sucessão genealógica, de sua obra, com o nascimento do nomeado Moacir, o filho do sofrimento, que ganha ainda outro epíteto, o primeiro cearense – no plano histórico, o primeiro mestiço brasileiro. Nesta cena condensada podemos, nós todos, até hoje nos reconhecer. A criação do romance e a formação do povo brasileiro podem incluir o sacrifício de escrever no deserto a epopéia moderna de uma língua antiga, trazendo à luz o sacrifício dos primeiros donos da terra. Feita pela via fabular, a lenda, esta forma da sabedoria que ensina a dor com um acalanto. Unindo na lenda o que a história apartou – conforme escreveu comovido Machado de Assis.

Alencar vai além, no estabelecimento da “pátria da liberdade”, como designava o continente Americano. Que alegria suplementar tem ainda, entre os brasis, um cearense de lei, em descobrir no cenário da lenda os significantes e a beleza da toponímia que faz parte de seus próprios roteiros diários? Mecejana (com c), Mocoripe, Maranguape, Parangaba, Meruoca, Baturité, Aracati, Aratanha, Camocim… Nunca mais nos perderíamos de forma irremediável.

 

Ana Maria Roland (Brasil, 1949). Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília/Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Publicou Fronteiras da palavra, fronteiras da história (1997), vencedor do Prêmio Tribuna Americana-Aula Simon Bolívar, da Casa de América, Madri, 1996. Pesquisadora no Observatório das Nacionalidades (Universidade Federal do Ceará), membro da comissão editorial da Revista Tensões Mundiais. Contato: anamariaroland@uol.com.br.

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