Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

NÚMERO 01

 

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Crítica, literatura e universidade

Claudio Willer

Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)

Dez anos atrás, minha primeira contribuição para Agulha foi um artigo sobre ensino de literatura, com fortes críticas ao formalismo e cientificismo: Um ensaio em forma de manifesto – Crítica e criação literária.

Também publiquei outro, tratando do ensino médio, e com as críticas, dessa vez, dirigidas aos relativistas socioculturais: Em defesa da Literatura, em agulha 25. O texto que se segue, publicado originariamente na revista Cult em 2001 – e agora republicado com alguma revisão e atualizações – os complementa. Juntos formam um tríptico, tratando da mesma questão, porém sob ângulos distintos. Todos já repercutiram, tiveram bons leitores; que continuem a suscitar debate, que tenham alguma conseqüência nos campos da crítica e ensino.

Nas 24 páginas de Crítica literária no Brasil, ontem e hoje (publicado em Rumos da Crítica, Maria Helena Martins, org., diversos autores, Editora SENAC São Paulo e Itaú Cultural, 2000), Benedito Nunes comentou autores e tendências de 1870 até 2000, sem cair na compilação, no inventário de nomes e obras. A única restrição a esse trabalho seria o autor não constar, não se haver incluído. Como tantos outros textos recentes sobre o assunto, termina com um diagnóstico de crise. O crescimento da produção, quantitativo e qualitativo, não o impede de registrar que a crítica, sem mais representar um pólo de tensão com a escrita dos escritores, está em crise profunda desde algum tempo nos seus princípios, na sua presença pública, na sua operatividade como leitura.

Reportando-se a Leyla Perrone Moisés e Walnice Galvão, vai mais longe: …talvez seja mesmo a crise da crítica o efeito exterior de uma crise da própria literatura, combalida, intoxicada, inconfortada, maquilada dentro do sistema vigente de valores mediáticos da cultura brasileira globalizada. (…) se a literatura cai, a crítica despenca.

Crise da crítica, ou da literatura? Na segunda hipótese, em qual das suas instâncias? Da leitura, ou seja, na ponta da recepção (que inclui a crítica, é claro), da produção editorial e de seu sistema de distribuição, ou da própria criação? Nessa última, de modo algum. Bons autores novos não faltam, pelo que eu tenho visto em concursos, oficinas literárias e lançamentos. Quanto à primeira hipótese, de uma crise da crítica, cabe também uma pergunta: de qual crítica? Há uma resposta sugerida pelo próprio Benedito Nunes, ao observar a mudança nesse campo entre os anos 50 e 70: Dera-se entrementes a ascensão da teoria da literatura – ambíguo nome, quase ciência e apenas teoria, encampando a poética, a retórica e a estética, que consolidou e enobreceu o ingresso da atividade crítica na universidade, convertida em parte considerável da competência do magistério superior habilitado em letras, prolífico em sua incessante produção de monografias, dissertações e teses universitárias, que, dificilmente computável, em breve saturaria a bibliografia especializada.

Há, aqui, um esclarecimento que deveria ser grifado: o ingresso da atividade crítica na universidade. Uma das manifestações mais fortes de ceticismo quanto ao alcance de uma crítica universitária fundada em paradigmas está em um artigo de Massaud Moisés: …na década de 70, o estruturalismo irrompeu como um furacão, destruindo tudo à sua passagem, iludindo com sua objetividade sem invenção e sem graça as mentes destituídas de espírito crítico (…) Depois veio o desconstrucionismo, em meio ao método psicanalítico, o sociológico, o sociopolítico etc., por vezes contagiados da chamada pós-modernidade.

Indaga se a adesão a uma delas não resultaria, ao fim de contas, tão precária quanto a crítica impressionista que tencionava substituir ou aniquilar de uma vez por todas (A difícil e esquecida arte da crítica, no Caderno de Leituras do Jornal da Tarde, São Paulo, 09/09/2000).

Opiniões desse teor haverem passado em branco, sem respostas, é sinal de abulia, pois quem as emitiu não é um diletante, mas alguém que continua valendo como fonte sobre história da literatura brasileira e outros temas relevantes. O cerne de sua argumentação é uma disjuntiva, pela qual de duas uma: ou se decodifica aplicando um método, forçosamente redutor, sempre tomando a parte pelo todo, ou então se opera no eixo da qualidade, julgando (e correndo o risco de errar) com base na sensibilidade e cultura literária.

Assim, nos últimos 40 anos não mudou só a crítica: mudaram os críticos. Teorias literárias têm, é claro, uma história própria, ligada à ascensão dessas ramificações do positivismo, as ciências humanas, e daquilo que Octavio Paz chamava, já em 1970, de imperialismo da lingüística. Mas não se instalaram em um vazio. Justificadas por uma produção que, presumivelmente, resulta em avanços no conhecimento, ganharam importância dentro de um mercado de trabalho constituído por universidades, faculdades e colégios. A razão é demográfica: se há mais pessoas a alfabetizar, instruir, integrar na sociedade letrada, aumenta (ainda assim menos que o necessário) a demanda de mão de obra para essa função.

Ao mesmo tempo, o mercado de onde vieram os críticos, aquele do jornalismo, sofreu uma contração: basta lembrar a quantidade de jornais diários que havia em São Paulo nos anos 40 a 60, e observar o que existe agora. A crítica, com os lundis de Sainte-Beuve e, logo depois, com os relatos de Baudelaire sobre suas leituras e visitas a salões de artes plásticas, nasceu dentro de jornais. Conforme já observei (no artigo citado de Agulha # 1), há pouco mais de um século, periodismo e literatura não eram dissociados, e Zola ou Machado de Assis ganhavam a vida colaborando com jornais que, por sua vez, publicavam capítulos de suas obras. O trânsito entre ambos ainda era tranqüilo no tempo de Sérgio Milliet, que lecionou em uma instituição de ensino superior, mas ganhava a vida como administrador cultural e jornalista; e, nessa condição, como autor de rodapés de crítica. Na biografia de autores da geração seguinte, como Antonio Candido, observa-se a passagem de uma área para outra, da crítica jornalística, no tempo dos rodapés reeditados em livros como Brigada Ligeira, para o magistério e a produção acadêmica.

Portanto, antes da crise houve um refluxo, com a mudança de lugar da crítica. E um contrafluxo, a bem dizer um revertério, representado por aquilo que sai na imprensa, objeto deste diagnóstico de José Paulo Paes (em um artigo de 1998 sobre o centenário de Sérgio Milliet, publicado no Jornal da Tarde): Nas poucas resenhas de livros que a grande imprensa brasileira condescende ainda em publicar, a auto-suficiência do magister dixit costuma alternar com a anodinia do press release disfarçado. E das observações de Massaud Moisés: Os suplementos literários ficaram reservados para as notícias, publicidade editorial, resenhas, entrevistas, reportagens; (…) foram desaparecendo ou mudando de figurino, talvez cônscios de que deixavam um espaço que nada preencheria.

Constatações da mudança de perfil dos críticos estão, quando muito, implícitas no ensaio de Benedito Nunes, pois seu objetivo é comentar obras, e não traçar biografias. A defesa do biográfico, a personalização, digamos, de questões literárias, é feita em outros lugares. De modo que chega a ser paroxístico, por Waly Salomão na revista literária Babel. Por exemplo, nesta passagem: Kavafis nunca recebeu um Prêmio Nobel! Toda a vida dele ele escreveu foi poemas de pegação, de pegação de rapazes que ele encontrava nas ruas, em bares horrendos! Os poemas de Kavafis são pequenos lances de pegação, pegação em quartos escuros de hotéis onde se entra para trepar – TREPAR! (Depoimento, Waly Salomão, Babel, Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ano I – número 3, setembro a dezembro de 2000, Santos, SP) E por aí afora.

Tais afirmações, tomadas ao pé da letra, são redutoras, e Waly sabia disso. Seu propósito foi questionar, valendo-se do exagero, a dissociação acadêmica entre poesia e vida, o desconhecimento do biográfico a pretexto de examinar a literatura em sua autonomia. Algo semelhante ao que, para tomar um exemplo de maior envergadura, o surrealista português Mário Cesariny fez em O Virgem Negra - Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras por M. C. V. (Assírio & Alvim, 1996) tripudiando sobre sua memória para mostrar que poesia é feita por gente de carne e osso, e não uma escritura em abstrato, um fenômeno exclusivamente da linguagem. O próprio Waly, no depoimento aqui citado, comentava um poema seu, Novelha cozinha poética, questionado por exibir anti-semitismo e mau-gosto (Por Manuel da Costa Pinto no jornal Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 02/07/2000, e por Suzana Scramin na edição aqui citada de Babel, ambas as vezes no contexto, esclareça-se, de observações favoráveis ao livro do qual faz parte, Tarifa de Embarque). Esclarece que o fez pegando um tipo de poeta que é totalmente biônico, fabricado nos departamentos de letras das universidades, absolutamente despido de qualquer experiência e se vangloriando disso. Meras estações repetidoras de esquemas, de professores, de departamentos de Letras. A referência à fatia de Teodor Adorno, à posta de Paul Celan e à limpeza dos laivos de forno crematório seria uma sátira aos que reproduzem idéias e estilo desses e de outros autores, sem terem passado, nem de longe, pelas mesmas experiências. Algo correlato ao que Roberto Piva diz neste poema: Dante/ conhecia a gíria/ da Malavita/ senão/ como poderia escrever/ sobre Vanni Fucci?/ Quando nossos/ poetas/ vão cair na vida?/ Deixar de ser broxas/ pra serem bruxos? (o poema está em Ciclones, republicado em Estranhos sinais de Saturno, Globo, 2008)

A edição aqui citada de Babel apresentou um choque de códigos, notadamente nas respostas a uma enquête sobre o cânone, na qual se alternam manifestações no limiar do impropério, e outras que exibem as mesmas preocupações e repertório das revistas dos departamentos de Letras. Permite enxergar uma divisão em dois campos, um deles universitário, outro, extra e antiacadêmico. A mesma cisão foi encenada ao vivo em algumas sessões de um ciclo de debates, Poesia em Revista, que coordenei em outubro de 2000 na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, com a finalidade de mostrar que o crescimento numérico de periódicos literários (inclusive Babel e Cult) era um indício de vitalidade no plano da criação. Por isso, convidei seus editores e lhes pedi que indicassem poetas, formando mesas com os representantes dos jornais ou revistas literárias e seus convidados. Acabou-se mostrando algumas linhas mestras da poesia contemporânea e, em certa medida, da crítica. A mais evidente, a ponto de suscitar discussões ásperas e certo desconforto, confrontou revistas e jornais encabeçados por quadros vinculados à Universidade, estudantes ou professores de Letras, e outros que externaram críticas à instituição. A julgar por algumas farpas dirigidas por Waly à revista Inimigo Rumor no depoimento aqui citado, o debate nessas sessões na Biblioteca Mário de Andrade não foi um episódio isolado, porém um dos capítulos de uma polêmica que já eclodiu em outros encontros dessa natureza.

É mais um sinal de passividade do nosso jornalismo nada disso haver transparecido em seus cadernos culturais. Se fosse umas décadas atrás, um Folhetim da Folha de S. Paulo iria examinar, sob diversos ângulos, esse contraste entre uma vida literária universitária pautada pelo cerebralismo, hiperteoricismo, dissociação entre vida e uma produção identificada à “invenção”, resultado da “pesquisa” e “experimentação” praticadas com “rigor” e “disciplina”, e outra correndo por fora, extra-institucional, valorizando a informalidade, a tradução da experiência vivida pelo autor e de suas paixões em uma criação espontânea, fruto da intuição e até da revelação.
Termos binários como razão vs emoção ou classicismo vs romantismo são excessivamente amplos. Contudo, mesmo assim, será que tais polaridades, e outras de maior substância, como apolíneo e dionisíaco, não reapareceram na segunda metade do século XX, na forma de intra e extra-universitário? Difícil não dar resposta afirmativa. Basta examinar duas situações distintas. Uma delas, marcada pelo predomínio de uma cultura universitária, pode ser aquela apresentada pelos Estados Unidos, do final da Segunda Guerra Mundial até os anos 60. Notoriamente, universidades são, naquele país, fonte de produção cultural. Contudo, oferecer cultura é, também, orientá-la, justificando esta crítica de Allen Ginsberg à ortodoxia na comunidade acadêmica, a começar por Columbia, regida pelo New Criticism: Não liam William Blake, nem qualquer outro dos autores visionários da tradição romântica; seguiam o formalismo de Pope e Driden. Não se falava em Whitman; menos ainda em Hart Crane. Sabiam que Pound era importante, mas sem conseguir explicar os motivos. William Carlos Williams morava a vinte quilômetros de Columbia, e nunca havia sido chamado para dar uma conferência lá. Poetas hoje configurados como menores, como Allen Tate e John Crowe Ramson, eram modelo, e a leitura impessoal do texto servia como paradigma para uma criação igualmente asséptica. Isso, em um contexto examinado pelo surrealista-beat Philip Lamantia, entre outros, ao denunciar a consciência literária americana fixada no realismo e no positivismo, tolerando uma vanguarda apenas à margem: Uma escrita de natureza analógica, metafórica, não-realista, foi praticamente interditada nesses cinqüenta últimos anos, mesmo sendo uma prática corrente, quase um hábito na França (esses comentários estão, entre outros lugares, em meu recente Geração Beat, L&PM Pocket, 2009).

Esse ambiente fechado contribuiu para o caráter tardio de um vanguardismo norte-americano, representado não só pela Beat, mas por movimentos e tendências dos anos 40 a 60 afins aos que, na Europa, eclodiram nas primeiras décadas do século XX. E para a migração rumo a Paris, como se houvesse um sistema de vasos comunicantes, transportando fugitivos do racismo como Richard Wright e James Baldwin, do macarthismo e do puritanismo anglo-saxão, inclusive pela oportunidade editorial oferecida aos Henry Miller e William Burroughs ainda proibidos lá. Beber na fonte vanguardista, como o fizeram Ginsberg, Ferlinghetti e Carl Solomon, era trafegar no mundo antípoda do austero academicismo norte-americano. Muito já se publicou sobre boemia literária francesa no período em que idéias e projetos corriam soltos pelos bares de Saint Germain, redações de revistas como Merlin ou Paris Review, sedes de pequenas editoras como a Pauvert ou Olympia. Eram as trincheiras do novo, do ataque a formas e fórmulas literárias ou às próprias instituições, naquele tempo de franco-atiradores, em que a cultura não estava confinada a departamentos e salas de aula. Nem Camus, nem Boris Vian, nem Simone de Beauvoir, muito menos Alex Trocchi ou Maurice Girodias, entre outros defensores da idéia da autodeterminação do indivíduo, foram professores universitários. Sartre foi professor, mas sua atuação era mais editorial, projetando-se através de iniciativas como Les Temps Modernes e as publicações e encenações de sua própria obra. O público, esse sim, era predominantemente universitário: daí os pontos consagrados, bares e livrarias, serem nas imediações da Sorbonne.

Desde então, acentuou-se o deslocamento, acarretado pela institucionalização de órgãos públicos e da própria universidade como agência cultural, levando Michel Foucault a observar, já em 1975, que o grande corte que fazia com que Baudelaire não tivesse nenhuma relação com os professores da Sorbonne já não existe mais. Os Baudelaires de hoje são professores da Sorbonne. Constatava ainda que a universidade se tornara determinante do gosto literário: Pegando o exemplo francês: não se pode conceber Robe-Grillet, Butor, Solers, sem o auditório universitário que os excitou, acolheu e analisou. O seu público foi o universitário. (em entrevista no número 1 do jornal Versus) Para Foucault, isso não era necessariamente negativo, porém um componente da mudança do intelectual, de “universal”, a exemplo de Baudelaire, para “específico”, como o seria um professor, mais um entre aqueles que exercem trabalho intelectual. Contudo, de intelectual “específico” a burocrata vai um passo, e bem pequeno. Se retirarmos da expressão “burocrata” a conotação pejorativa, ambos serão, forçosamente, a mesma coisa. Um professor ou pesquisador universitário pode até ser um aventureiro, mas fora do expediente, no qual terá que se ater à grade curricular e às exigências da carreira.

Diagnósticos de crise da crítica ou da própria literatura aqui citados, e outros que me parecem apocalípticos, a contextualizam como fenômeno típico de uma sociedade regida pela lógica do mercado. Acontece que o mercado são eles! No Brasil, onde mais circulam livros é nas instituições de ensino! Ser recomendado ou adotado determina o futuro comercial de uma edição. Isso foi bem observado por Massaud Moisés, no artigo aqui citado, ao comentar o crescimento de editoras universitárias na Bienal do Livro de São Paulo. Isso, reconhecendo que desde então, depois de se chegar a um ponto-limite de academicização da crítica, observa-se abertura em suplementos, com mais resenhistas e comentaristas escrevendo como leitores e não apenas como professores, dirigindo-se a um público mais amplo, e não só a colegas, alunos e orientador.
A influência da universidade sobre um mercado de obras literárias possibilita analogias com o que ocorreu nas artes visuais, denunciado, um quarto de século atrás, por Tom Wolfe em A Palavra Pintada. Para o jornalista norte-americano, com o crescimento de importância e de sofisticação da crítica, inverteram-se suas relações com a criação. A cada vez que um crítico ou grupo de críticos indicava algo como sendo o mais moderno, dotado de valor, artistas aderiam a essa tendência. Nada de novo, é evidente, em autores produzirem com um olho no público e outro na mediação mais importante para chegar lá. Contudo, quanto mais a crítica se sistematiza, se apresenta como conjunto impessoal de conceitos, tanto mais irá oferecer referências igualmente precisas do que se espera do aspirante à carreira literária. Outrora, a questão, para o iniciante nessa trilha, seria perceber o que agradaria a Brito Broca ou Agripino Grieco.
Hoje, tarefa a exigir menos da intuição e telepatia, ou da sociabilidade, é o poeta biônico, indigitado por Waly e outros, estudar a lição de casa e ajustar-se a esse ou aquele paradigma.

O uso de termos bipolares não deve servir a que se projete a sombra do maniqueísmo sobre esta discussão. Em primeiro lugar, não obstante Waly haver assumido o posto de avatar do anti-academicismo, algo de seu prestígio se deve ao endosso por docentes como Antonio Medina Rodrigues. Além disso, epígonos, formados ou não em Letras, não provocam danos permanentes. Passarão, como já foi observado antes. E a Universidade consolidar-se como lugar, não só de transmissão, mas de produção do conhecimento, corresponde a uma tendência secular. Mesmo com todos os problemas que qualquer pré-vestibulando conhece – departamentos que são perfeitas paróquias, promoções injustas, boicote a talentos e contribuições relevantes, produção em série de repetidores de fórmulas, esforços e recursos investidos em trabalhos tipicamente circulares, para justificar esse ou aquele método e não para avançar no conhecimento –, querer revertê-la pode ser um chamado ao obscurantismo, à supressão do que têm de produtivo. Seu papel, hoje, é aquele que lhes cabe em sociedades leigas, abertas. Deixaram de ser lugares de formação do clero para contribuírem, não só ao desenvolvimento científico e tecnológico, mas, a partir dos anos 60, à formação de movimentos sociais.

Contudo, admitindo que exista uma crítica universitária sob forma de doxa, de corpus estruturado agora em crise, terá ela sido canônica? Sim e não. Certamente não, se tomarmos como referência aquela particular ortodoxia que marcou o panorama norte-americano comentado acima, onde todo mundo, ou quase, rezava pela cartilha do New Criticism. Pode-se, como exercício de indagação, sem desconsiderar a contribuição substanciosa de autores ligados à poesia concreta, querer saber se a adoção do estágio seguinte do formalismo em cursos de letras não ampliou seu prestígio, enquanto realização mais acabada de idéias construtivistas. Mas hoje há pluralismo nessa área, ao menos no sentido de serem muitas as orientações teóricas. O panorama oferecido por algumas das universidades, ao menos, não é um deserto criativo. A propósito, tendo sido convidado, repetidas vezes, para julgar poesia no concurso Nascentes, da USP, sempre me dei por satisfeito com o que li. Nesse e em outros lugares, existe gente escrevendo sem se limitar à subliteratura ou aos chavões indigitados por Waly. E a valorização do modo cerebral, a frio, de criação poética, tomando João Cabral e sua defesa da supressão da emoção como modelo único e excludente, não é um viés apenas universitário, porém um componente de um positivismo que impregna toda a elite cultural brasileira. Daí autores excêntricos, delirantes, que fogem ao paradigma realista, terem sido sistematicamente postos à margem, conforme, para ficarmos só na produção em prosa, o que tem saído ultimamente sobre o reconhecimento tardio de Rosário Fusco, Murilo Rubião, Campos de Carvalho, José Alcides Pinto, Uílcon Pereira etc.

A propósito, ainda, de abertura, tempos atrás Ivan Teixeira publicou uma série de artigos em Cult, resumindo e cotejando teorias literárias e respectivos métodos. Implícita na série, uma defesa do pluralismo. No entanto, a utilização de mais de um quadro de referências não basta, pela seguinte razão: estruturalismos, abordagens sócio-culturais, o que for, são partes que não se somam, sistemas fechados, antagônicos em seus fundamentos epistemológicos. Querer simplesmente juntá-los seria igual a um psicólogo acender velas ao mesmo tempo a Freud e ao behaviorismo: não dá, não há como fazer isso respeitando minimamente sua integridade. Mais importante é reintroduzir noções exteriores a esses paradigmas, arejando-os, a começar por aquelas da Filosofia (o que remete, novamente, a trabalhos como os de Benedito Nunes). Também é urgente, mais ainda aqui, onde primeiro se estuda Bakthine, para depois, como exemplificação de seus conceitos, ler Rabelais e Dostoiewski, examinar o conhecimento de literatura contido na criação original, e o testemunho dos próprios criadores. Nesse sentido, é ótimo disseminar-se a prática de oficinas e rodas de leitura em instituições de ensino, desde o primeiro grau até a pós-graduação. Mas professores e alunos envolvidos nesses programas devem esquecer o que já aprenderam, em uma espécie de zen-budismo aplicado à leitura, desburocratizando-a para recuperar uma informalidade inseparável da sua vivência.

Felizmente, nenhum dessas propostas e procedimentos é de um ineditismo chocante. Assim como, remontando ao início desse texto, não devem surpreender a ninguém os termos utilizados por Benedito Nunes para finalizar seu balanço da crítica: No entanto, crise não é catástrofe. Crise é incerteza do que fazer agora e do que virá depois.

Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Um dos editores da Agulha – Revista de Cultura. Contato: cjwiller@uol.com.br

 
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