Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

PÁGINA INDEX | HOME Número 01|Homenagem à Agulha. Decalque do nº 70 e último. Setembro de 2009

 

NÚMERO 01

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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BETTY MILAN: LITERATURA, PSICANÁLISE E VIDA

 

CLAUDIO WILLER

[entrevista]

Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil)

Betty Milan lançou recentemente – em agosto de 2009 – sua mais recente narrativa, Consolação (editora Record).

É um dos temas na entrevista a seguir, que também examina outras de suas obras, compondo um painel caracterizado pela diversidade, inclusive de gêneros literários, e ao mesmo tempo pela coerência.

A voz que se expressa em Conolação, tratando da morte, da miséria na grande metrópole, é a mesma que dialoga com leitores de sua coluna “Consultório Sentimental” na revista Veja, e que trata de viagens, erotismo, carnaval, futebol, amizade, Brasil, psicanálise, e, principalmente, de modo direto ou indireto, da literatura. Dela, agulha também publicou, na edição anterior, entrevistas com os escritores Hélène Cixoux, Édouard Glissant e Alain Didier-Weill. Nascida em 1944, Betty Milan colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da Veja.com. Estreou no ensaio em 1979 com Manhas do poder e no romance em 1981 com O sexophuro. Neste gênero, produziu em 1991, O Papagaio e o Doutor, traduzido na França e na Argentina. Depois de haver colaborado durante 25 anos na Folha de S. Paulo, tendo como resultado os livros de entrevistas A força da palavra (1996) e O século (1999), tornou-se colunista do jornal em 2005, respondendo a questões sobre o amor, o sexo e a morte. Em 2007, com edição da Record, os textos da coluna foram reunidos no livro Fale com ela. A revista semanal Veja a convidou para escrever em sua edição on line, e passou a produzir semanalmente a coluna “Consultório Sentimental”. A partir de 2009, escreve também para a edição impressa da revista. Em 2008, lança Quando Paris cintila, com 33 crônicas escritas em Paris, mas com idéias surgidas em diferentes lugares onde esteve: Oslo, Istambul, Tessalônica, Pequim, Dunhuang, Madras, Ouro Preto, Nova York. Simultaneamente, relança Paris não acaba nunca, sua estréia na crônica, com várias reimpressões desde 1996 (foi publicado em mandarim na China em 2005). Tem cinco peças de teatro, sendo as duas últimas Brasileira de Paris (2006), escrita diretamente para o palco, e Adeus, Doutor (2007), adaptação de O Papagaio e o Doutor. Outras de suas obras são examinadas e comentadas ao longo da entrevista a seguir. [CW]

CW | Você começou como analista; publicou ensaios; uma primeira narrativa em prosa, O sexophuro; em seguida, crônicas, artigos e reportagens; firma-se como autora de literatura de ficção; tem dramaturgia, peças teatrais encenadas. Isso já foi perguntado antes, mas vale a pena retomar: fale sobre esse seu trânsito da prática analítica e da ensaística para a literatura e a narrativa.

BM | Antes de responder a essa primeira pergunta, li as vinte e tantas que você me enviou. Fiquei com a impressão de que todas encerram uma mesma pergunta: “Quem é você?”. Na verdade, é a pergunta que eu me faço em todo lugar e desde sempre. Me faço e faço aos outros. Para responder a ela, eu tanto me sirvo da psicanálise quanto da literatura. A palavra escrita me leva a descobertas que a palavra falada não propicia. Vou dar um exemplo. Fui fazer a minha análise com Lacan e me formei com ele, mas precisei escrever O Papagaio e o Doutor, romance inspirado na análise, para entender as conseqüências da imigração. Agora, o verdadeiro tema de O Papagaio e o Doutor é o inconsciente, que tanto surpreende a heroína quanto o leitor. Isso posto, eu volto à sua pergunta para dizer que, bem antes de ser analista, eu era “dramaturga”. Na infância, escrevia e montava as minhas peças na casa dos avós, em Capivari [SP], onde passava as férias. Me lembro até hoje da preparação do cenário e da roupa com os tecidos que eu comprava a preço de banana e com as folhas do jardim. Ou seja, passei a vida indo e voltando. Da peça de teatro para a sessão de análise, para o romance e assim por diante. Basicamente, eu sou uma errante. No trabalho e na vida real.

CW | E o retorno a uma prática ao mesmo tempo jornalística e terapêutica, com base analítica, que era a seção “Fale com Ela”, na Folha de S. Paulo, e é hoje o “Consultório Sentimental” no portal da revista Veja?

BM | O “Consultório Sentimental” tem tudo a ver com o teatro e a psicanálise. Se origina em três acontecimentos. Primeiro, um convite do jornal O Globo, que me submeteu a um teste e depois não me contratou, por considerar que eu não era politicamente correta. Segundo, um bate-papo na UOL, em que eu respondia diretamente a questões de leitores. Terceiro, um romance: O amante brasileiro. Neste livro, cujo tema é o amor, Clara, a heroína, é jornalista e responde a questões sobre o amor, a vida e a morte. Há vários casos no romance. Todos imaginários. Foi depois de ter escrito O amante brasileiro que eu sugeri à Folha de S. Paulo a coluna. Trata-se de um exemplo de passagem da literatura para uma prática jornalística, cuja meta é a difusão da ética da psicanálise. O trabalho é que me leva de um lugar para o outro. Sempre na tentativa de responder a questões existenciais. Às minhas e às dos outros. O saber não tem fronteiras quando a gente se deixa guiar pelo não saber e pela curiosidade inerente a ele, quando o desejo é de se surpreender. E, seja como for, psicanálise e literatura têm tudo a ver uma com a outra. Lacan dizia que não era suficientemente poeta para ser um grande analista. Joyce dizia que precisava revelar o sintoma de Dublin, “a alma da paralisia que muitos chamam de cidade”.

CW | Houve leituras literárias que contribuíram especialmente para despertar sua vocação, motivá-la para a criação literária?

BM | Na infância, Monteiro Lobato. Na adolescência, Drummond, Bandeira e Fernando Pessoa. Também li muito o Guimarães Rosa. Fundamentalmente, na minha relação com a língua, eu sou poeta. O ritmo é decisivo para mim. Por outro lado, como a língua de que eu mais gosto é a língua oral estilizada, li muito Mario e Oswald de Andrade. Dos escritores franceses, o meu preferido é Céline, que trabalha com a língua oral. Talvez por causa das minhas origens libanesas, eu gosto do que passa pela escuta. Também fui criada pelo meu avô, que era um grande contador de histórias. Contava em árabe e português, ensinando o gosto do bilingüismo e do biculturalismo.

CW | Betty Milan, a interlocutora de escritores; por conseqüência, a entrevistadora: Qual a gênese da sua contribuição ao jornalismo literário, da idéia de entrevistar autores?

BM | Primeiro, eu morei em Paris para me formar com Lacan. Depois, voltei para escrever O Papagaio e o Doutor e não quis mais freqüentar o meio analítico. Precisava ficar sozinha para escrever o romance. Durante a elaboração do texto, participei de uma oficina literária no Creative Center de Iowa, nos Estados Unidos. Onde o João Ubaldo, aliás, também esteve. Lá, os participantes expunham os seus textos e os colegas criticavam. Gostei de me debruçar sobre o texto alheio para me aprofundar no meu e tive a idéia de entrevistar escritores na França. A Folha de S. Paulo topou e eu comecei a fazer as entrevistas. O trabalho durou anos. As entrevistas eram publicadas no caderno “Mais!” e depois foram reunidas no livro A força da palavra. Aprendi muita coisa com isso. Sobretudo que a melhor entrevista é aquela em que o entrevistado descobre algo novo sobre si mesmo. Aquela em que ele se surpreende com o que diz.

CW | Você tem planos de prosseguir com entrevistas como aquelas reunidas em A força da palavra e O século?

BM | Nem tudo se pode, não é? Atualmente, eu escrevo  uma coluna semanal para a Veja.com e uma coluna mensal para a edição impressa da Veja. A rubrica “Consultório Sentimental” se inscreve numa tradição que, até onde sei, começou com Sêneca, o grande intelectual da corte de Nero. Uma tradição na qual Nelson Rodrigues também se exercitou. As crônicas que ele escrevia no papel de Myrna, uma cartomante, foram reunidas em livro e são excelentes. Leio e releio. Gosto de fazer esse trabalho, em que eu também me debruço sobre o texto alheio para refletir sobre o amor, a vida e a morte. Na verdade, trata-se de leitura de texto. Quem me disse isso foi Silviano Santiago.

CW | Dentre as entrevistas de A força da palavra e O século, quais lhe deram mais nitidamente a sensação de haver ganho algo, de um contato enriquecedor ou uma informação relevante?

BM | Tive grandes encontros. Octavio Paz, quando ele editou, aos 80 anos, um livro sobre o amor, A dupla chama. Não queria me dar a entrevista e acabou falando um tempão. Depois, me convidou para tomar um café no Lutétia, o hotel onde ele ficava em Paris, e me falou dos poetas brasileiros. No papo, ele se referiu com certo descaso aos psicanalistas, dizendo que os poetas exprimiam numa única frase o que os psicanalistas só conseguem exprimir com páginas e mais páginas. Discordei, lembrando de um conceito de Lacan, hainamoration, que eu não preciso explicar e deixo você traduzir. Nathalie Sarraute foi outro grande encontro. Entrevistei-a quando ela tinha mais de 90 anos. Me recebeu deitada e se levantava para responder às minhas questões. Me lembro do rosto dela, que se iluminava como um farol enquanto ela respondia. Nathalie fazia tanta questão de ser bem difundida que me obrigou a escrever a entrevista em francês para que ela pudesse ler. Só depois de ter lido, ela me autorizou a ir em frente. Jacques Derrida foi outro de quem gostei. Depois da entrevista, ele me introduziu no Parlamento Internacional dos Escritores, para o qual trabalhei durante anos e onde aprendi muito. A propósito de A força da palavra e O século, eu poderia escrever outro livro. Talvez eu faça isso um dia, nas minhas memórias. Se eu chegar lá.

CW | Na coluna e no livro Fale com ela e na seção na Veja online, chama a atenção o modo como obras literárias são invocadas como ensinamento, lição de vida. Literatura como matriz ou paradigma, e não só como tema de interpretação. Isso é algo que marca a passagem de Freud para Lacan (a exemplo do que ele escreveu sobre A carta roubada, de Poe). Você teria comentários adicionais a respeito?

BM | Que boa sacada a sua! Nunca tinha pensado nessa marca da passagem de Freud para Lacan, que você aponta. Não é por acaso que você e eu conversamos desde o início dos tempos, cultivamos a vizinhança e a amizade literária. O fato é que, para entender a obra de Lacan, precisei ler vários autores que eu desconhecia, os vários que ele citava. Um deles é Joyce. Já tinha lido no Brasil, na tradução do Houaiss. Mas foi na tradução francesa, feita pelo próprio Joyce com o Valéry Larbaud, que eu descobri as maravilhas. Entre elas, a referência ao falo como “o pai das paternidades”. Com as leituras, eu mudei a minha maneira de trabalhar e, para fazer o “Consultório Sentimental”, procuro na literatura o exemplo que pode mostrar a universalidade do caso que está sendo analisado. Não tinha me dado conta de que sou lacaniana também nisso.

CW | Sua criação literária mais ficcional (claro que entendemos reportagem e ensaio como modalidades literárias também) é à clef, que pode ser ligada a personagens e acontecimentos reais? Ou algumas das obras são mais à clef que outras? Talvez O clarão, sobre a amizade e a perda…

BM | Todas as obras são à clef, como você diz. Sempre parti de pessoas e acontecimentos reais. Porque o que me interessa é desvelar a realidade, que a gente olha e não vê, ouve e não escuta. Basta algo estar a um palmo do nariz para a gente não enxergar. Por causa do nosso apego à fantasia, da prevalência do imaginário. A fim de desvelar a realidade, eu reinvento as pessoas e os acontecimentos, crio personagens e cenas que mostram o que nós não vemos e não escutamos. Me valho do trabalho da escrita, da transfiguração literária, para descortinar o que o olhar encobre. O Papagaio e o Doutor, por exemplo, é inspirado no meu encontro com Lacan, que foi inteiramente recriado e serviu para revelar a soberania do inconsciente. O clarão é inspirado no meu encontro com Carlito Maia, de que o romance se vale para mostrar a importância da palavra. Os temas dos romances são temas existenciais.

CW | Matrizes literárias de seu mais recente lançamento, Consolação, você as identificaria, ou apontaria algumas?

BM | Dante Alighieri. Comparo São Paulo ao inferno de Dante. Cheguei a estabelecer um paralelismo entre os diferentes tipos de crime a que ele se refere na Divina Comédia e os que a gente encontra em São Paulo, que é a minha cidade natal, mas também uma Hidra Malvada. Aliás, uma boa parte do romance se passa em São Paulo, porque a heroína atravessa o inferno antes de encontrar a consolação que ela procura e está na palavra. Outra referência é Joyce, que mistura alegremente os gêneros literários e não tem medo da divagação, porque o seu grande personagem é a língua. Por outro lado, Laura, a heroína, estabelece no cemitério um diálogo com Oswald e Mario de Andrade, os escritores com quem eu me formei, aprendendo a amar e a estilizar a língua falada. Entre os vivos, há duas referências literárias: Claudio Willer e José Celso Martinez Corrêa, que inspiraram dois personagens do livro.

CW | Consolação não tem um quê de platônico? O mundo degradado, a valorização da anamnese...

BM | Não sei se tem um quê de platônico. Sei que este romance faz a apologia da rememoração. Me permitiu descobrir que só há um modo de superar o luto, que é através da memória. Por isso, é fundamental para todos os humanos separar a vida da existência. Nós um dia deixamos de viver, mas podemos continuar a existir se formos rememorados. Por isso, os povos primitivos têm o culto dos ancestrais. A relação com os mortos é fundamental para os vivos e nós, ocidentais, erguemos um muro entre eles e nós. Consolação derruba o muro e por isso é um livro polêmico.

CW | Esse seu mais recente relato, Consolação, não se situaria em um polo oposto a, por exemplo, A paixão de Lia, que é a celebração de Eros em suas múltiplas manifestações? Ou será que ambos se complementam?

BM | A paixão de Lia é uma celebração do imaginário, além de uma celebração de Eros. Em Consolação, a heroína, Laura, está confrontada com Thanatos, mas ela volta à tona, porque é tomada pelo discurso amoroso – o discurso do marido morto, que ela ouve na rua – e pela tradição da alegria, que ela redescobre assistindo à peça de Oswald no Teatro Uzina. A paixão de Lia e A paixão de Laura são complementares.

Nos dois casos, é da paixão que se trata. No primeiro, é a paixão do amor e, no segundo, é a paixão no sentido de sofrimento simplesmente. Consolação, como escreveu Michèle Sarde no seu lindo posfácio ao livro, é uma lamentação em dois mundos, na França e no Brasil. Laura sofre até enfim ouvir o discurso que a consola.

CW | Aliás, a propósito de mundo degradado: Consolação é uma observação sobre um dado momento (hoje) de uma dada cidade (São Paulo), ou é expressão de uma cosmovisão? (observando que a parte inicial, passada em Paris, também é sombria)

BM | São Paulo é uma metáfora da megalópole contemporânea e o Hospital Bichat, onde o marido da heroína agoniza e morre, é uma metáfora do hospital ocidental, onde as pessoas vão para dar à luz, vão para se tratar e morrer, mas, neste caso, são vítimas do arcaísmo da medicina. 

CW | Há observações e entrelinhas em Consolação sobre a relação de nossa cultura com a morte. Você abriria mais essas entrelinhas? Repressão atinge tanto Eros como Tânatos, como sustenta Norman O. Brown em Life against Death?

BM | Já em O clarão eu tratava da nossa relação com a morte. Escrevi inclusive que ela é uma estrela invisível, porque quem não se esquece da morte não perde tempo e não desperdiça a vida. Em Consolação, eu trato do tema de outra maneira, insistindo na importância do direito de dispor do próprio corpo. Ninguém é obrigado a aceitar o prolongamento inútil da vida, a degradação contínua. Nós seremos mais civilizados quando o médico puder ajudar o paciente a morrer. Sobretudo se o paciente diz explicitamente que quer isso – como Jacques, personagem de Consolação – e se o prolongamento inútil da vida causa sofrimento para os familiares e amigos. Umberto Eco escreveu um artigo afirmando que a sua vida não deve ser prolongada se ele tiver uma doença terminal. Invocou como razão o “amor ao próximo”. Morrer é natural e, em certas circunstâncias, desejável. Nós precisamos nos ajudar a viver e a morrer. A consolação é esta.

CW | Ao mesmo tempo, em Consolação, reaparece o tema da amizade, central em O clarão. Amizade é clarão e consolação? Você teria algo a dizer sobre seu trabalho com Zé Celso Martinez Corrêa e o Teatro Oficina, que ocupam uma das cenas de Consolação?

BM | Amizade é clarão e consolação. Os meus amigos são fundamentais para mim, ainda que eu não me dedique o suficiente a eles. Em geral, por causa de uma dedicação excessiva ao trabalho. O Zé é um grande amigo, incomensurável. Nós dois sempre coincidimos, embora não concordemos sempre. Foram Nathalia Timberg e ele que me abriram a porta do teatro. Nathalia descobriu o meu texto e me encomendou uma peça, que ela encenou no Brasil inteiro. Zé me disse: “– Vai em frente”. E eu fiz do Oficina a minha segunda casa. Acompanhei a montagem inteira de Os sertões e depois montei O amante brasileiro no Oficina. A peça não ficou muito tempo em cartaz, mas foi muito bem-recebida pela crítica. Zé Celso e eu estivemos muito presentes na vida um do outro. Escrevi uma peça dedicada a ele, que agora vai ser encenada em Paris: Adeus, Doutor.

CW | Registros de falas em Consolação: você entrevistou pessoas para fazer este livro? Ou apenas foi ouvindo o que diziam? Ou ambos?

BM | Tanto fui ouvindo quanto entrevistando, sobretudo na rua. Na verdade, passei um bom tempo andando pela [avenida] Paulista gravando entrevistas, as falas dos moradores e trabalhadores de rua que são meus vizinhos – nossos, aliás. Tinha uma dívida de escuta com eles, que eu paguei. O discurso desses paulistanos nunca é ouvido. Quando a imprensa faz matérias sobre os miseráveis, eles não têm direito à palavra. Se eu pudesse, entrevistaria essas pessoas na televisão, porque a escuta humaniza e pode sensibilizar.

CW | Há um trânsito do monólogo interior (O sexophuro) e da reprodução da língua falada na escrita (O Papagaio e o Doutor) para o registro e a reprodução de vozes dos outros nas obras mais recentes?

BM | Até certo ponto. Em Consolação, existem os pequenos monólogos de Laura na rua e o longo monólogo do marido.

CW | Da narrativa de ficção à dramaturgia: você concordaria que Consolação, todo feito de vozes, de falas, inclusive substituindo as descrições (por exemplo, na cena no Parque do Trianon, em vez de contar como é o parque, você dá voz a um guia de visitantes do parque) já é ficção que sugere dramaturgia?

BM | Sim, e isso é intencional. Me vali de recursos teatrais, porque estou mais interessada na fala e na escuta. O romance tende a privilegiar o olho, e a convenção literária requer a descrição. Acho que isso limita o campo das possibilidades. Ademais, a invenção no romance sempre passou pela apropriação dos outros gêneros. A invenção na arte em geral. O artista tem que ser original, e, para tanto, ele recusa o “cada macaco no seu galho”, um imperativo que estrutura o discurso universitário.

CW | Ouvir entrevistados, em A força da palavra e O século; “ouvir” o que leitores lhe enviam, para fazer Fale com Ela; ouvir todas essas vozes, ausentes, imaginadas, ou presentes, em Consolação: não há uma continuidade? Mudanças de registro, de sintonia da escuta?

BM | Exatamente isso, e é um privilégio receber uma pergunta como esta. Trata-se de uma pergunta de quem de fato me acompanhou na travessia. São mudanças de registro de uma autora para quem a palavra é música. Ao escrever, eu me surpreendo ouvindo sem escutar algo que se materializa de letra em letra até as palavras surgirem na tela ou no papel. Algo que só eu ouço e milagrosamente se transforma no texto. Nessa hora, a realidade importa pouco, porque eu fico em estado de graça.

CW | Houve algum interesse especial por autores bilíngues ou que escrevem na segunda língua, os itinerantes ou desterrados, os estrangeiros em algum lugar, a dirigir escolhas e perguntas em A força da palavra?

BM | Verdade que eu entrevistei vários autores cujo tema é o da viagem sem fim e o do exílio. Como Jean d’Ormesson, que é filho de diplomata; Alvaro Mutis, que foi um errante e diz: “ Contar é uma maneira de errar”; Hector Bianciotti, que na Argentina era “um europeu no exílio” e depois se tornou “um estrangeiro na França”. Até entrar na Academia Francesa de Letras, claro. Interesse especial eu tive pelo Bianciotti, que, além de ter mudado de país, mudou de língua. Quis saber como isso aconteceu e o que significava. Quem ler a entrevista, que está no site, encontra a resposta.

CW | Você não mimetiza ou reproduz essas condições – de estrangeira, bilíngue, itinerante – em sua vida pessoal? Inclusive, pensando em Quando Paris cintila, de itinerante que viaja pelo mundo todo? Isso alimenta sua criação literária?

BM | Estrangeira eu sou em todo lugar, pela distância que eu sempre tenho em relação ao que estou vivendo. Uma distância crítica. O filósofo Gérard Lebrun, um grande amigo meu, me disse um dia que eu parecia uma antropóloga em São Paulo. Estranhei, mas hoje eu acho que ele tinha razão. Para ouvir as pessoas da rua como eu ouvi, a fim de escrever Consolação, é preciso ter a disposição do antropólogo. Nasci assim, e talvez seja por isso que os meus personagens se desdobram. Seriema e Laura são simultaneamente narradoras e personagens. Ao bilinguismo, eu estava fadada pelo passado da imigração, e a minha única frustração verdadeira é nunca ter conseguido escrever em duas línguas. Acreditei que era possível, mas não foi. Itinerante, eu sou, por causa da minha curiosidade inesgotável – e é claro que isso me alimenta.

CW | Sua relação com Lacan: ele teria recomendado inicialmente alguém que falasse português, não foi? Em sua análise com ele, você de algum modo reproduziu esse confronto de nacionalidades e diferenças culturais? (que reapareceriam em O Papagaio e o Doutor)

BM | Lacan sugeriu que eu fosse ver uma portuguesa, mas eu não quis nem saber. Teria sido impossível, e isso eu digo em O Papagaio e o Doutor. Num certo sentido, o português de Portugal era mais estranho aos meus ouvidos do que o francês, língua na qual eu também fui criada. O confronto de nacionalidades é um tema do romance. Por sorte, se tornou um tema, porque na vida real isso nunca foi fácil. Até hoje, eu vivo na França em falta da língua portuguesa do Brasil. Não vou dizer que vivo no Brasil em falta do francês, que me deu muito pela exigência de clareza – mas sinto saudade de Paris e de uma cultura que valorize a memória.

CW | Passemos da escuta à visão, do escutar ao enxergar: houve reconhecimento, ou alguém se deu conta, do pioneirismo de suas matérias jornalísticas na Folha de S. Paulo, na década de 1980, sobre Joãozinho Trinta e Carmen Miranda? Hoje, ambos são pautas correntes, rendendo páginas e páginas de matérias. Na época, eram assuntos pouco apropriados, recusados pela intelectualidade.

BM | Reconhecimento não houve, porque não faz parte da nossa tradição cultural. Mas o que importa é que a Folha abriu o espaço, me deixou dar a palavra aos carnavalescos, publicando fragmentos das minhas entrevistas. Quando o texto é publicado, mais dia ou menos dia ele acontece se tiver que acontecer. Se nós, que fazemos um trabalho experimental, fôssemos esperar reconhecimento, não teríamos feito nada – e o que vale é fazer. O prazer está nisso.

CW | Carnaval e futebol eram literariamente recalcados quando você escreveu a respeito. Continuam sendo?

BM | Quando eu escrevi Os bastidores do Carnaval e O país da bola, o carnaval e o futebol eram temas tabus. Tanto é que me deram um espaço enorme na imprensa. Como é hoje, eu não sei. Mas acho que pior do que o recalque literário é o recalque televisivo. O desfile das escolas de samba é uma mina de ouro. Se os comentadores se debruçassem verdadeiramente sobre o enredo, a alegoria, a fantasia, nós veríamos desfilar todas as representações do Ocidente e do Oriente, e o Carnaval brasileiro poderia se configurar como um grande gênero cultural. O Carnaval é uma ópera de rua. Já faz tempo que Joãozinho Trinta introduziu esse conceito, mas ele ainda não foi ouvido.

CW | Sua contribuição ao debate sobre cultura brasileira, sobre temas como identidade e diversidade, prossegue? Haverá novo livro a respeito? Ou reedição do já escrito?

BM | Espero que Isso é o país seja reeditado um dia. Mesmo porque a primeira edição era incompleta. Antes disso, vou disponibilizar o livro completado, aumentado e corrigido no meu site, cuja edição está sendo feita pela Mirian Paglia Costa, que prepara todos os meus textos com uma dedicação impressionante. A que só um amigo tem. Trabalhamos juntas há vinte anos, e, no site, há cinco. Vamos fazer uma festa quando terminar. Brevemente, eu espero. São quase 3 mil páginas à disposição dos lusófonos do Brasil e dos outros países. Foi uma sorte ter podido errar e escrever a vida inteira e ter amigos como os que eu tenho.

 

 Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Um dos editores da Agulha – Revista de Cultura. Entrevista realizada em julho de 2009. Crédito da foto de Betty Milan: Lailson Santos. Contato: cjwiller@uol.com.br.

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