Faetonte, na ânsia de conhecer o
pai, escalou longas e árduas
encostas e repentinamente viu-se
mergulhado na luz. Parou porque o
esplendor do palácio paterno o
cegava.
Sentado num trono de esmeraldas,
Hélio, que tudo vê, divisou na luz o
próprio filho e falou com ternura:
“Que vens fazer aqui, que buscas,
Faetonte, meu filho e minha glória?”
Faetonte perguntou a Hélio se ele
era realmente o seu pai. Hélio
garantiu que sim e cometeu o erro de
afirmar: “Para prová-lo, dar-te-ei o
que pedires.” Faetonte pediu para
dirigir a carruagem do Sol pelo
firmamento. Hélio arrependeu-se da
promessa feita: “Falei
temerariamente; confesso que esta é
a única coisa que eu gostaria de te
recusar, pois perigoso é o teu
desejo. Pedes algo imenso, muito
superior às tuas forças. Tu és
mortal e imortal é aquilo a que
aspiras.” Hélio tentou em vão
dissuadir Faetonte, com uma longa
advertência: “O próprio soberano do
Olimpo, que lança com a mão terrível
o raio, não conduz este carro.”
Ovídio, em suas Metamorfoses,
deixou-nos o relato deste diálogo de
Hélio com Faetonte:
Para que eu não te preste funesto, e
já que ainda é tempo, muda de idéia.
Na verdade, pedes uma prova para
teres certeza de que nasceste do meu
sangue? Meu temor é uma prova, o
medo demonstra que sou teu pai.
Encara-me bem. Oxalá pudesses com os
olhos devassar-me o coração e
descobrir em seu imo os cuidados de
um pai!
Todas as ponderações de Hélio de
nada valeram. Faetonte insistiu e a
contragosto de seu pai cedeu.
Faetonte subiu na carruagem do Sol,
mas com a tarefa estava além de sua
capacidade, e não podendo controlar
a gigantesca briga, despencou
através do céu, criando o
caos.Alastrou-se um vasto incêndio.
Inflamaram-se as nuvens e
fenderam-se as terras. A terra
resseca, rios evaporam, os animais
fogem e Faetonte, que não sabe como
manejar as rédeas e que caminho
tomar, é coberto por uma grossa
camada de fumaça.
A terra, a grande deusa, pediu a
Zeus o fim dessa catástrofe. Zeus
ouviu-lhe a prece. Subiu ao Olimpo e
de lá desferiu seu raio certeiro
contra o impulsivo rapaz, lançando
morto no espaço; e o herói tombou em
chamas no caudaloso Erídano, que lhe
extinguiu as labaredas. As náiades
da Hespéria o sepultaram e no túmulo
colocaram a seguinte inscrição:
“Aqui repousa Faetonte, condutor
audaz do carro paterno, ao qual se
não o pôde guiar, ao menos pareceu
em gesta gloriosa.”
“Por um dia, mergulhado na dor,
Hélio teria deixado a terra
mergulhada em trevas, não fora o
clarão das labaredas que ainda
crepitavam. As irmãs de Faetonte, as
Helíades, choram-no tanto, que nesse
mesmo local,às margens do Erídano,
foram metamorfoseadas em choupos.”
Onde embora árvores, continuam a chorá-lo,
e cada lágrima, ao cair, enrijecida pelo Sol,
transforma-se em âmbar.
O mito inicia narrando a ausência do
pai: “Faetonte foi educado pela mãe
em total desconhecimento de quem era
seu pai…” Esta primeira colocação do
mito já mostra o problema mais
importante a ser tratado: a ausência
do pai. E, no decorrer da narração,
surgem às conseqüências e
decorrências desse problema. No
início do desenvolvimento, a criança
vive num mundo exclusivamente
materno e a sua dependência em
relação à mãe constrói uma imagem
materno absoluta e onipotente.
Somente mais tarde, com o
encerramento da fase matriarcal da
consciência, é que a criança adquire
o conhecimento sobre a realidade
existencial do pai.
Faetonte, como filho, desconhece a
realidade do pai até a sua entrada
na adolescência. Esta afirmação no
mito mostra que Faetonte é um filho
que esteve preso à mãe por muito
tempo e que esta tem uma
característica possessiva que impede
o desenvolvimento do filho. Ele,
conseqüentemente, encontra
dificuldade para sair do abraço
forte do poder materno, que o mantém
encerrado no mundo matriarcal e
narcísico, e não pode, assim, fazer
a sua entrada no mundo patriarcal,
no mundo do pai.
Faetonte permanece ligado ao mundo
da natureza, do instinto, porque o
pai está ausente, não só física e
psicologicamente, mas também como
símbolo no discurso da mãe. O “Nome
do Pai”, como símbolo estruturante,
é inexistente no discurso da mãe.
Faetonte, portanto, desconhece outra
realidade que não seja a da mãe, da
natureza, da vivência matriarcal.
Vive num mundo sem acontecimentos,
a-histórico, cativo neste modo de
relação com a mãe que o mantém
alheio a qualquer outra realidade.
Faetonte está preso na negação
materna da função do pai; não pode
ser reconhecido como o filho do pai,
o filho de Hélio. Quando a mãe não
faz o reconhecimento do pai, mantém
a criança presa à identificação
primária, isto é, a identificação
com o primeiro objeto, a mãe, e
impede o desenvolvimento da
identificação secundária com o pai,
que a constitui como sujeito, como
individualidade.
A mãe de Faetonte não reconhece o
pai no seu discurso e, desta
maneira, impede a entrada do
terceiro, que rompa o vínculo
simbiótico. E o filho cativo desta
relação sofre da falta de filiação.
O pai como símbolo estruturante,
como o falo que faz a mediação da
saída da consciência matriarcal para
a consciência patriarcal, o
inexistente no início do mito. O
arquétipo é o símbolo que leva à
vivência da castração, isto é, à
saída da condição narcísica, para a
entrada no mundo da lei da ordem, da
consciência patriarcal, no período
fálico e edípico do desenvolvimento.
O símbolo do pai, como todo
arquétipo, necessita da existência
do pai real ou de um substituto para
a sua atualização. Apesar da função
paterna simbólica conservar a sua
virtude estruturante na própria
ausência do pai real, pois a
dimensão do símbolo transcende as
contingências reais, o símbolo
necessita se encarnar na existência
real.A intervenção do pai, no plano
psicológico, é determinante para a
estruturação do universo da criança,
porque é o pai que engendra o filho
como sujeito.
Quando o pai está ausente, ou é
completamente desconhecimento, falta
na experiência o vaso que possa
conter a projeção do arquétipo e
fazer a mediação entre o ego e a
imagem arquetípica. A presença do
pai ou de um substituto é, portanto,
necessária para dar sentido e
realidade à projeção do pai
arquétipo. É a existência do pai
herói que dá corporeidade à
experiência do arquétipo do pai,
como o detentor da função fálica e
fundador da função simbólica. O
símbolo do pai, como detentor da lei
que traz o interdito à vivência
regressiva e incestuosa, precisa
estar representado no pai histórico.
O pai simboliza na experiência
pessoal a proibição do incesto.
A ausência física do pai ou de seu
substituto provoca uma lacuna na
psique que precisa ser preenchida.
São os conteúdos do inconsciente
coletivo que irão preencher esta
falta e que, por sua vez, podem ser
projetados em alguém, ou num modelo
disponível para receber a projeção.
Esta situação explica muitas
idealizações de caráter grandioso
que parecem exceder o real. Ou pode
acontecer que a criança, carente de
pai e ainda presa à condição
narcísica, faça a identificação
direta com o arquétipo, por faltar à
mediação do pai real, que lhe
forneça contornos mais humanos e
previna contra a onipotência.
O mito diz que a mãe de Faetonte lhe
revela tardiamente a existência do
pai, do “Nome do Pai”. Esta passagem
mostra que faetonte fica preso por
muito tempo no estado narcísico,
pois está identificado com a mãe e a
consciência matriarcal. Quando a mãe
de Faetonte faz a revelação de sua
filiação, marca o momento em que o
“Nome do Pai” entra no seu discurso.
O “Nome do Pai” torna-se o terceiro
elemento, o elemento simbólico que
vem quebrar a díade e introduz o
fator de separação entre Faetonte e
sua mãe. A nomeação do pai no
discurso da mãe provoca a
diferenciação e o fim da simbiose da
criança com a mãe.
O pai encarna o outro e inaugura o
princípio da realidade. O “nome do
Pai” rompe a identificação entre o
desejo e o objeto do desejo, e assim
se cria o mundo psicológico.
A revelação de uma realidade
desconhecida é ameaçadora para a
psique que teme a saída do estado de
fusão. No entanto, esta revelação
impulsiona o psiquismo para buscar
segurança nos atributos do pai.
Faetonte, com a saída da
identificação com a mãe, se vê
fraco, impotente e desprotegido. Ele
deseja conhecer o pai, mas como este
está ausente, a necessidade psíquica
ativa os conteúdos do inconsciente
coletivo e produz uma fantasia
compensatória para a sua carência.
Faetonte se vê como filho do Sol,
filho de Hélio.
Neste momento, o personagem do mito
encontra-se dividido entre o impulso
para a diferenciação, conhecer o pai
como terceiro, e o impulso que tem
uma expectativa grandiosa para com o
filho. É por este motivo
que o filho põe em dúvida a sua
revelação, pois deseja fazer a
diferenciação entre o seu desejo e
desejo da mãe.
Os amigos de Faetonte tentam em vão
dar-lhe a medida de realidade, mas
ele sente-se incompreendido. E, para
preencher a falta do pai real,
constrói a fantasia de um pai
arquetípico. A carência do símbolo
do pai, encarnado num pai real que
possa lhe oferecer o princípio de
realidade e os limites para a sua
personalidade, o leva a preencher
esta necessidade. Através da
vivência direta do arquétipo, sem a
intermediação humana. Faetonte
constrói a fantasia onipotente na
qual se vê como o filho do Sol: o
pai arquétipo que distribui a luz, a
fertilidade e rege o ciclo da
natureza.
O desejo de liberta-se da mãe leva a
criança, de ambos os sexos, a
projetar o poder sobre o pai e o seu
símbolo, o falo, e a retirar a
libido da mãe e de seus símbolos.
Existem em Faetonte o desejo
autêntico de conhecer o pai, como um
impulso natural de sua psique que
almeja a discriminação, a quebra da
onipotência e a vivência da
castração. Embora ele não possa,
ainda, abdicar da onipotência, ele
busca o pai como um segredo objeto
para a sua identificação. Mas
Faetonte deseja se identificar com
um pai grandioso e onipotente. O seu
pai é Hélio, o Sol.
A criança necessita sentir o pai, de
certa forma, engrandecido, para que
possa renunciar à identificação com
o poder materno.O poder do pai,
nesta etapa do desenvolvimento,
precisa superar o poder da mãe, para
que a criança deseje fazer a troca e
se sinta suficientemente gratificada
na mudança de objeto. O objeto que
substitui o objeto primal precisa
ter uma qualidade atraente. Neste
sentido, as idealizações grandiosas
em relação ao pai cumprem este
papel.
Num determinado momento do
desenvolvimento, a etapa fálica, o
menino sente, também, o impulso para
definir a sua identidade masculina.
Esta necessidade aflora com muita
força a partir das profundezas do
inconsciente coletivo, do interior
do Self, como o centro impulsionador
do desenvolvimento. O menino se
identifica com os heróis e os heróis
de Hera, a rainha do Olimpo, de
acordo com a raiz etimológica do
nome herói. Nesta identificação, a
psique mostra a necessidade de que
um objeto de poder libidinal mais
forte atraia para si o investimento
objetal que deve ser retirado da
mãe. Faetonte, como todo herói,
busca a sua diferenciação.
Faetonte procura um pai grandioso
com o qual possa se identificar e
assim abandonar a casa da mãe. Ele
busca um pai que o ajude a definir a
sua identidade masculina, que lhe
forneça um modelo adequado onde
possa, também se espelhar e se
reconhecer, o que fará o corte
definitivo da sua identidade com a
mãe, da relação simbiótica com o
poder materno.
Segundo o vocabulário da psicanálise
de Laplanche e Pontalis, a
identificação é: “O processo
psicológico pelo qual uma pessoa
assimila um aspecto, um propriedade,
um atributo de outra e transforma-se
total ou parcialmente a partir deste
modelo”. Faetonte busca um elemento
comum entre ele e o pai que os torne
iguais e que estabeleça a diferença
entre ele e a mãe.
Embora sua mãe tenha-lhe impedido o
acesso ao pai e ao "Nome do Pai", a
sua psique reage ao desejo
possessivo materno e o impulsiona
para a busca do pai, a busca do
outro. O seu desejo torna-se
diferente do desejo da mãe. E assim
ele começa a marcar a sua
individualidade.
Faetonte é impelido para o futuro.
Ele abandona a casa materna e parte
para uma longa jornada iniciática,
para conhecer o pai, para torna-se
homem. A busca da diferenciação
corresponde, simbolicamente, a um
processo iniciático. Mas esta tarefa
não é fácil, pois a transferência e
passagem de uma identificação para
outra tem os seus riscos e perigos.
É por isto que em muitas culturas
antigas esta passagem era feita
através de ritos iniciáticos que lhe
forneciam a continência simbólica
necessária a este momento delicado.
O rito iniciático tinha a função de
orientar o abandono oficial do mundo
da sua mãe, do mundo familiar, para
a entrada no mundo do pai, no mundo
social, no mundo exterior.
Como não existe na sociedade moderna
o auxílio destes instrumentos
facilitadores da passagem, o papel
do pai real, como agente facilitador
e continente desta passagem, assume
a máxima importância. Neste momento,
a presença do pai ou de alguém que o
substitua em sua função e papel é
imprescindível para que o arquétipo
do pai, como portador da
civilização, possa ser encarnado e
para que o filho possa cair na
identificação com a mãe. Quando a
criança não se desidentifica da mãe,
ela permanece fundida ao próprio
inconsciente.
Faetonte abandona a casa da mãe, o
mudo matriarcal. Ele se
desidentifica do poder materno e
entra no mundo do pai, no mundo
patriarcal, que possui outro brilho,
a luminosidade da consciência. O
palácio de Hélio brilhava como o
ouro. O ouro representa o Sol e a
consciência, assim como a prata a
lua e o inconsciente. Faetonte
realiza a difícil passagem sem um
condutor que o acompanhe nesse
percurso. A necessidade do pai neste
momento é fundamental, porque na sua
ausência o arquétipo não encontrado
respaldo na realidade para a sua
vivência, pode assumir
características grandiosas e
onipotentes. A necessidade do pai
nesta etapa do desenvolvimento,
quando o filho não encontra no
exterior o objeto no qual recairá a
expectativa inconsciente, permanece
arcaica e será alimentada pelos
conteúdos do inconsciente coletivo.
Quanto mais carente for o filho de
um pai que seja continente para as
suas necessidades e expectativas,
mas este filho tenderá a construir
uma imagem grandiosa e primitiva do
pai.
Faetonte faz a sua longa jornada,
movido por este desejo de encontro
com um pai. Na ânsia de conhecer o
pai, o herói escalas longas e árduas
encostas e repentinamente vê-se
mergulhado na luz… A psique do
personagem está mobilizada com essa
expectativa: o desejo de encontro
com o pai que o ajude a fazer a
passagem necessária, a saída do
mundo da mãe.
O pai, como representante da lei,
impede a busca da satisfação
narcísica pela criança e faz a
mediatização entre o desejo e a lei,
entre o princípio do prazer e o
princípio de realidade. Mas, como
Faetonte não possui uma imagem
encarnada do pai, ele está preso à
imagem arquetípica que é grandiosa e
numinosa. A casa do pai é percebida
pelo herói com um brilho imutável e
que quase o cega. Ele percebe a
numinosidade do arquétipo sem a
mediatização de um meio que dilua o
seu poder, isto é, a sua
numinosidade, é desestruturante para
o ego. O excesso de luz pode cegar,
porque a consciência humana é
limitada para perceber tanta luz. A
numinosidade do arquétipo é uma
experiência avassaladora para o ego
e corresponde ao Mysterium
Fascinans.
Na ausência do pai, o herói busca na
imagem arquetípica a realização do
seu desejo; o encontro com a lei do
pai, que o leve a fazer a
discriminação, a separação
definitiva da natureza. Mas a
numinosidade do arquétipo quase o
cega e este pai onipotente com o
qual ele entra em contato é Hélio, o
deus-Sol, sentado em seu trono de
esmeraldas.
Faetonte, diante do poder do
arquétipo, põe em dúvida a própria
onipotência e, pela primeira vez,
tem a medida da sua onipotência. O
arquétipo do pai traz a
possibilidade de marcar a separação
do mundo da mãe e a quebra da
onipotência. A renuncia à
onipotência liga-se ao doloroso
reconhecimento que a criança faz de
sua pequenez, de sua onipotência,
diante do poder do pai.
A vivência do símbolo do pai opera
uma mudança na psique, que necessita
ser atualizada na vida consciente.
Parece já existir a mobilização
interna no herói para a vivência da
castração através da constelação do
arquétipo do pai como detentor da
lei que não sofreu a castração,
aquele que tem a posse absoluta do
falo, o “ao menos um” de que fala
Lacan. Este “ao menos um”
é Helio para Faetonte. O símbolo do
pai como poder discriminador
substitui o símbolo da mãe.
Faetonte faz a sua entrada na casa
do Sol, no mundo patriarcal. O
nascimento da consciência solar
patriarcal já pressupõe o corte com
o mundo lunar matriarcal e demarca a
saída do estado narcísico. Faetonte,
com a sua entrada no mundo solar, se
abre para um universo de novas
possibilidades que é o mundo do pai.
O mito diz que Hélio é aquele que
tudo vê. O ato de ver se refere ao
conhecer, ao discriminar; portanto,
o ver está relacionado à consciência
e ao conhecimento. É através do
olhar que se faz a discriminação.
Que se ordena o conhecimento do
mundo. A visão que ordena o mundo
como espaço ordena também o tempo e
coloca o homem dentro desta dimensão
espaço-temporal, que é a medida
humana, que o tira da onipotência.
O conhecimento do pai retira a
criança da vivência da eternidade e
a coloca dentro da dimensão
espaço-temporal, histórica, na qual
a realidade se ordena em presente,
passado e futuro. Faetonte tem a
oportunidade de adquirir a
consciência de seus limites e
limitações, o que significa conhecer
a sua medida, o seu métron.
O pai ajuda o filho a adquirir o
conhecimento da noção de identidade
e de individualidade, da percepção
dos contornos psíquicos e das
fronteiras que distinguem o eu do
não-eu. Com o aumento da consciência
da individualidade há,
paralelamente, um aumento da
consciência do outro. E a percepção
da individualidade do outro aumenta,
por sua vez, a percepção do eu.
O pai tem um importante papel de
auxiliar o filho a conhecer os
conteúdos psíquicos que precisam ser
postos a serviço do desenvolvimento
do ego como, por exemplo, a
agressividade usada como autodefesa
e auto-afirmação. No processo de
desenvolvimento do ego e da noção de
individualidade é fundamental a
presença do pai ou de um substituto,
que permitirá a criança a exploração
e descoberta do mundo externo e
social, assim como o desenvolvimento
da objetividade e de outras aptidões
que devem ser experimentadas e
exercitadas no mundo. É por isso que
Hélio permite a Faetonte dirigir o
seu carro, embora o deus sabia que
isto constitui uma hybris.
Mas hélio também sabe que ele deve
dar ao filho a oportunidade de se
exercitar no mundo, para encontrar a
sua própria medida.
O contato com o pai dá a Faetonte a
possibilidade de encontrar a sua
medida, mas ele deseja a
identificação onipotente com o poder
do pai, com o falo, e pede a Hélio
para dirigir a sua carruagem. Para
mostrar a sua onipotência o
arquétipo sempre se expressa em sua
plenitude: Hélio promete a Faetonte
satisfazer todos os seus desejos. O
deus sabe que a onipotência e a
desmedida trazem, também, a
oportunidade de confronto com a
medida de cada um e, desta maneira,
deseja levar o filho à vivência da
castração.
Neste momento, o arquétipo do pai
age como a lei que retira da
onipotência mostrando os limites,
embora a sua conduta possa dar a
entender o contrário. Muitas vezes,
é excedendo as próprias medidas que
se pode chegar à consciência real
dos próprios limites. E Hélio, como
um deus, como o conhecimento do
Self, sabe disto e impõe a Faetonte
o seu pathos,o sofrimento
para a sua transformação. Mas o seu
castigo é também um prêmio.
Faetonte sobe na carruagem do Sol
mas, como a tarefa estava além de
suas possibilidades, acaba em
chamas. Faetonte desejava
experimentar a sua força,
objetividade, determinação, mas além
dos seus limites, num desejo de
afirmação narcísica. A realidade
oferece a oportunidade de
conhecimento da própria medida.
Faetonte é obrigado a aceitar a lei
do pai, que pune com a
autodestruição aquele que comete a
desmedida. Toda onipotência é, em si
mesma, autodestrutiva. Dirigir o
carro do Sol foi um descomedimento
de Faetonte.
O carro do Sol é a representação do
poder fálico do pai, que só pode ser
adquirido quando se deixar de ser o
falo, quando se houver sofrido a
castração. O carro do Sol representa
o percurso do Sol no céu, de um
extremo ao outro, do Oriente ao
Ocidente, e simboliza a onipotência
solar que tudo abrange, tudo vê e
tudo ilumina. O carro do Sol não
conhece limites nem obstáculos, anda
depressa, livremente, por toda
parte. É a representação adequada do
poder fálico do pai e da sua
condição de incastrado.
Faetonte, desejando dirigir o carro
solar, aspira à condição de detentor
do poder fálico e à condição de
incastrado e, por isso, é punido. “A
felicidade, como a infelicidade,
desce sempre do céu.” Esta é uma
idéia que está presente em muitos
contos de fadas e traduz a noção de
que o destino é também determinado
pelo pai do céu.
O carro é muitas vezes associado ao
Sol, ao poder do pai, mas o carro é
também a representação do ego. O
fato de Faetonte desejar dirigir o
carro do pai mostra um impulso da
psique para a construção do ego, que
toma como modelo o pai arquétipo. O
carro é o veículo do guerreiro e do
herói e Faetonte é a representação
do jovem ego, do herói em busca da
construção de sua individualidade.
Saber conduzir um carro é saber
lidar com a noção de tempo e espaço,
que são os parâmetros básicos que
definem a condição humana. Conduzir
um carro é a representação simbólica
da capacidade do ego de usar suas
potencialidades e habilidades e ter
sob controle os seus impulsos,
desejos e vontade.
Aquele que conduz o carro representa
tanto a natureza espiritual do homem
quanto a sua natureza material. No
aspecto material, representa o
desejo do homem da posse e do
controle dos bens materiais, seu
instinto de conservação e de
destruição. No plano espiritual,
representa a busca do controle dos
instintos e das paixões
desenfreadas. O carro e seu condutor
representam o homem e a forma como
ele lida com a realidade, o seu
maior grau de consciência ou de
inconsciência.
O carro e seu condutor representam
tanto o processo do desenvolvimento
egóico quanto o processo de
transformação espiritual da
individualização. Segundo o
Dicionário de Símbolos de Chevalier
e Gheerbrant, o carro aparece, de
acordo com uma tradição védica
amplamente difundida, como o veículo
de uma alma em experiência; ele
transporta esta alma pelo tempo que
dura uma encarnação. O carro de
fogo, ainda segundo estes autores, é
um símbolo universal do carro alado
da alma. O carro é,
portanto, a representação do ego, o
veículo que possibilita a expressão
do Self individual, que transporta a
psique em sua experiência humana.
Faetonte, como todo herói, comete a
hybris que leva à sua
transformação: dirige o carro do Sol
e é punido por isto. Hélio aparece,
neste momento, constelado como a
representação da lei do pai que
instaura a castração simbólica,
punindo aquele que comete a
onipotência.
A imagem de faetonte em chamas
também corresponde à vivencia da
castração simbólica que o
transforma, pois o fogo tem o
caráter simbólico de agente
transformador e transmutador da
libido. Faetonte consumido em chamas
tanto corresponde à saída da
onipotência e á entrada na
castração, no mundo simbólico,
quanto é a continuidade do processo
de desenvolvimento do homem na busca
de sua transcendência e
espiritualização. Segundo Chevalier
e Gheerbrant: “Toda representação de
um personagem a arremessar-se
impetuosamente num carro de fogo em
direção ao domínio da imortalidade é
o símbolo do homem espiritual, a
destruir pelo caminho seu corpo
físico em benefício de uma ascensão
excepcionalmente rápida.”
Faetonte
vivencia o processo metafórico que
lhe possibilita o acesso ao mundo
simbólico através da experiência da
castração. A castração, que
corresponde à perda da onipotência
narcísica, pode ser sentida como um
dano narcísico ao eu
corporal.Faetonte em chamas pode
representar ainda a imagem da
vivencia do sentimento de dano
narcísico ao corpo.
Este fogo no qual faetonte é
consumido não tem somente o
significado de autodestruição, mas
pode significar a transmutação de um
estado para o outro e corresponde ao
batismo pelo fogo que capacita o
iniciado a fazer parte de uma
comunidade. O batismo pelo fogo é
similar ao batismo pela água.
Faetonte sofre o batismo de fogo que
o capacita a ingressar na ordem do
humano.
Os fogos solar e celeste são fogos
uranianos que representam a
sabedoria divina, pois são a
extensão ígnea da luz.O fogo que
queima Faetonte é o fogo do pai, o
fogo masculino, que marca o
afastamento do herói de sua natureza
animal e possibilita o acesso à
ordem simbólica e espiritual. Este
fogo solar simboliza a ação
fecundante, iluminadora e
civilizadora do masculino. E, nessa
ação purificadora, o fogo de Hélio
se distingue da purificação pela
água, porque ele traz a luz, a
consciência, à compreensão simbólica
e espiritual.
A castração, representada neste mito
como queima pelo fogo, traz a
compreensão da lei, da ordem e da
lógica fálica, o que possibilita
transformar o desejo onipotente de
ser o falo na compreensão de poder
vir a ter o falo simbolicamente.
Este episódio é a representação
simbólica do desenvolvimento do
herói Faetonte, da sua perda da
onipotência, da sua queda, que o
leva a se transformar; a libido
narcísica é transmutada.
A morte de Faetonte não é a morte do
eu corporal, é a morte do estado de
fusão com o Self primal, da
onipotência. O nascimento da
consciência do eu, da existência do
outro, deferente de mim mesmo, do
tempo e do espaço, corresponde à
morte do estado paradisíaco de
eternidade. O ego-herói se torna
consciente de sua identidade e, ao
enfrentar as provas necessárias,
morre e se transforma.
A morte do herói que constitui o
encerramento de suas provas é,
geralmente, trágica, violenta e
solitária. A morte de Faetonte como
herói tem o significado de sua
redenção. Segundo Junito de Souza
Brandão, a morte do herói é “o
clímax de sua dokimasia, do
conjunto de provas por que teve que
passar e que o transforma em
daimon, um intermediário entre
os homens e os deuses e cuja tarefa
é chegar à unidade”.
A morte do herói é o final de seu
pathos,é a anagnórisis: o
conhecer-se por inteiro, isto é, o
processo de individualização. A
morte representa simbolicamente a
realização da totalização, a
conjunção das polaridades de forma
diferenciada. E o céu e a terra se
unem para finalizar o sofrimento do
herói. A pedido da terra, a grande
deusa, Zeus dispara o seu raio
certeiro, lançando Faetonte morto no
espaço.
O herói completa o processo da
vivencia de castração e assim pode
unir as polaridades no processo de
individualização: o céu com aterra,
a água com o fogo, o mundo inferior
com o mundo superior. A Grande-Mãe
renuncia a posse do filho e o pai
pode deixar a sua lei. |