Era
feriado, domingo de Páscoa, e New
York parecia deserta. Um ou outro
transeunte apressado, as lojas
fechadas. Todos pareciam ocupados e
com vontade de chegar em casa,
pensando no almoço e na tradicional
reunião familiar. Apenas ele, Pietro
Maria Bardi, estava alheio a tudo
isto e com o pensamento bem distante
de festejos e do cálido e consolador
encontro anual. Caminhava com passos
rápidos, como era o seu hábito, o
pesado casacão aberto, desprezando
os poucos táxis disponíveis. Ele
tinha que tomar uma decisão grave e
não havia com quem se aconselhar e
discutir o assunto. Muita coisa
estava em jogo e, ele sentia
fortemente, o seu próprio futuro
dependia disto. Mas nada disto o
atemorizava, era um homem que
preferia decisões solitárias. Na
verdade, as pessoas o exasperavam
visivelmente, não suportava a
tibieza, os longos discursos, as
opiniões evasivas. Assim, ele
aceitava o incomodo e a
responsabilidade de decidir
rapidamente e sem ouvir ninguém.
Desta vez ele se dirigia a uma
galeria de arte que abriria neste
domingo festivo apenas para ele e
seus dois ilustres companheiros.
Eles também já deveriam estar a
caminho. Pietro Maria Bardi acordara
às 4 h, tomara uma simples xícara de
chá, lera os jornais e optara por
caminhar. Era o ano de 1954 e a
galeria tinha o nome de Knoedler.
Pietro Maria Bardi, Assis
Chateaubriand e Walther Moreira
Salles entraram juntos na Knoedler
Gallery. Era um trio impressionante.
Bardi, marchand, historiador,
crítico de arte, museólogo,
Chateaubriand, jornalista e dono da
maior cadeia de comunicação da
América do Sul e Moreira Salles,
poderoso banqueiro e embaixador do
Brasil nos Estados Unidos.
Entretanto, este trio não pareceu
impressionar e intimidar o dono da
Knoedler Gallery. “Senhores, ele
disse, a pintura é esta. Ela foi
feita por Raphael. Eu não tenho
documentos comprobatórios, atestados
de autenticidade e não posso contar
a história dela e porque está
comigo. Agora os senhores decidam. É
pegar ou largar”.
Bardi estava formando o mais
importante museu de arte ocidental
do pós-guerra, o Museu de Arte de
São Paulo. As suas intensas ligações
com o circuito internacional de arte
e com o mercado de arte, o seu
profundo conhecimento de arte
ocidental e os postos que ocupara na
Itália, faziam dele o homem adequado
para esta tarefa. Certamente estas
condições não seriam, por si só,
suficientes, não fosse a
personalidade decidida e
independente do personagem. A
formação deste museu era comandada
por Assis Chateaubriand, o mais
poderoso homem de comunicação do
país. E, naquele momento, juntamente
com Moreira Salles, o homem certo
para providenciar o financiamento da
possível aquisição, eles decidiam
sobre uma nova obra para o MASP.
O acervo de arte ocidental montado
por Pietro Maria Bardi (1900-1999),
é sem igual e é motivo de espanto,
até hoje, que isto tenha sido
possível de fazer num país como o
Brasil, sem importante tradição
museológica, com poucos recursos
financeiros públicos destinados a
cultura e onde a cultura ainda não
se tornou fundamental para a elite
econômica. Por diversas razões, esta
ação, o museu e a coleção, foi muito
combatida. O principal instrumento
deste combate era a acusação de que
o acervo era constituído por obras
falsas. Havia a disputa entre grupos
empresariais de imprensa, e a
disputa pelo domínio ideológico da
crítica de arte. Outra arma era o
sentimento nacionalista, sempre
importante num país em dúvida sobre
a sua identidade. Muitos se sentiam
injuriados pelo fato de um
estrangeiro, o italiano Pietro Maria
Bardi, liderar esta revolução
cultural no país. E ainda existiam
os que achavam que o Brasil era tão
subdesenvolvido que não poderia ter
um acervo desta qualidade. Os
ataques foram tão constantes que, em
1954, irritado com o que chamava de
“ignorância e provincianismo”, Bardi
providenciou exposições européias do
seu acervo em espaços artísticos
consagrados, entre eles a Tate
Gallery, em Londres, e o Musée do
Louvre, em Paris. Nestas duas
exposições estava presente a pequena
pintura de Raphael, “A Ressurreição
de Cristo”.
Com este relato, já podemos perceber
que a obra foi adquirida. Mas, não
só o dono da galeria demonstrava
pressa, como o próprio Chateaubriand
apressava Bardi: “Vamos, professor,
decida-se. Eu estou com fome”. E o
professor resmungou a resposta:
“Bem, não se compra um Raphael
assim, eu preciso olhar”. E sem
qualquer instrumento ótico, sem
radiografia, teste químico de
pigmento, cotejo estilístico com
outras obras, pesquisa histórica,
baseado apenas no seu próprio olho e
numa intuição fulminante que se
tornaria célebre, Pietro Maria Bardi
adquiriu o Raphael, até hoje a única
obra do artista no Brasil. A
autenticidade desta obra foi
imediatamente contestada, entre nós,
e seguiu o seu calvário até os
nossos dias, sempre sob a
qualificação de “atribuído a
Raphael”, até a consagração no ano
de 2004/2005 em uma magnífica
exposição na National Gallery, em
Londres: “Raphael: From Urbino to
Rome” (de 20 de outubro de 2004 até
16 de janeiro de 2005).
Carol Plazzotta, curadora desta
exposição, juntamente com Hugo
Chapman e Tom Henry, dedicou os
últimos cinco anos ao estudo e
identificação de obras de Raphael e
foi a responsável pela escolha da
“Ressurreição de Cristo”. A pintura
pertencente ao MASP sempre despertou
interesse internacional, mas
existiam opiniões divergentes. Bardi
descobriu dois desenhos
preparatórios de Raphael, no
Ashmolean Museum of Oxford, como uma
comprovação de sua autenticidade.
Mesmo assim, o famoso historiador
Bernard Berenson, especialista em
Renascença e responsável por
autenticar as obras do artista para
a National Gallery, afirmava que a
obra fora realizada por um aluno de
Perugino. Assertiva tão detalhada
que se tornava espantosa, pelo grau
de precisão. Uma dúvida sempre pesou
sobre esta opinião de Berenson
devido às suas ligações com o
mercado de arte de obras
renascentistas e, também, à sua
denodada luta por ser o expert
número um. O crítico de arte
italiano Roberto Longhi foi o
primeiro historiador importante a
aceitar a obra como autêntica.
Recentemente, outros dois desenhos
preparatórios foram descobertos na
Biblioteca Oliveriana, em Pesaro, o
que eliminou quaisquer dúvidas sobre
a autenticidade da “Ressurreição de
Cristo”. Estes quatro esboços de
Raphael estão reproduzidos no
catálogo nas páginas 112, 113, e
115, devidamente identificados e
relatados.
Carol Plazzotta começou a tratar com
o MASP perguntando sobre a pintura
atribuída a Raphael e desejando que
ela fosse remetida para Londres. Ela
estava assoberbada, o tempo era
escasso, a exposição se aproximava.
Mas, a pintura sobre madeira é
frágil e sofre com viagens e, ainda
mais, “atribuída” a Raphael… A
altiva resposta da equipe técnica do
MASP, os quatro esboços comprovados
de Raphael em apoio à autenticidade,
motivaram a vinda de Plazzotta ao
Brasil. Durante dois dias ela ficou
literalmente debruçada sobre a
pequena pintura, com apoio
tecnológico de alguns aparelhos, até
se convencer da autenticidade da
peça. O que a motivou a escrever
como abertura do texto sobre a obra,
na página 108, do catálogo, este
conceito definitivo: “Esta linda
pintura aqui aceita como obra
autógrafa de Raphael, ainda não
aceita universalmente na literatura
acadêmica, principalmente porque tem
sido vista raramente, tendo
permanecido em remotos locais na
maior parte de sua história.
Realmente…” E termina o parágrafo
apontando as recentes descobertas
dos esboços e coloca esta pintura em
lugar destacado na obra do mestre.
A semelhança da história desta
pintura, a vida de Pietro Maria
Bardi tem um aspecto igualmente
curioso. Com o apoio maiúsculo de
Assis Chateaubriand ele construiu um
extraordinário acervo de arte
ocidental, sem igual na América do
Sul, e um dos mais importantes
criados no pós-guerra. Estimam
especialistas que se este acervo
fosse colocado à venda no mercado
internacional de arte poderia valer
alguma coisa em torno de um bilhão
de dólares. E a sua compra total não
ultrapassou 10 milhões de dólares.
Fato raríssimo no Brasil, lugar onde
a absoluta maioria das ações
culturais e negócios públicos
termina em grande prejuízo para o
país. Este acervo só poderia ser
feito por um homem como Bardi, com a
sua biografia, os conhecimentos no
mercado de arte e o seu apurado
senso comercial. Durante a
construção deste acervo Bardi foi
acusado de criar um museu de falsos
e conhecidos críticos nacionais
apontaram o Cézanne como falso e
coisas semelhantes. Depois, durante
algumas décadas, Bardi foi acusado
de várias desonestidades.
Descobrem-se, mais uma vez, que ele
estava certo, as obras são
verdadeiras e participam,
seguidamente, de grandes mostras
internacionais. E, pasmem, depois do
próprio Chateaubriand, Pietro Maria
Bardi é o maior doador individual
que o MASP já teve.
Conhecido como Professor Bardi, ele
foi fundamental na criação da Escola
Superior de Propaganda e Marketing,
na divulgação da moda, do desenho
industrial, do desenho de humor, da
comunicação em massa, edições de
livros de arte, orquestras juvenis,
do curso de museologia, entre tantas
outras atividades culturais. Mas,
apesar de tantos títulos recebidos,
Bardi era um autodidata, pois
estudara apenas até o quarto ano
primário. Através da leitura e da
observação, ele formou a si mesmo
nos assuntos que lhe interessavam.
Aos 17 anos publicou o seu primeiro
livro, sobre a possessão colonial da
Itália. Esta vitória de Bardi, mais
do que uma comprovação é, na
verdade, uma valorização do acervo
cultural brasileiro. Talvez possamos
tomar emprestada a Jung a idéia de
coincidência significativa (fatos
concomitantes, aparentemente
desconexos, mas que possuem um eixo
significativo), pois a pintura de
Raphael chama-se justamente “A
Ressurreição de Cristo”.
Ah, sempre me perguntam o valor
monetário das obras. Esta obra
comprada, segundo me disse Bardi,
por U$ 100.000,00 (cem mil dólares),
numa época em que o dólar valia bem
mais, hoje poderia ser vendida, como
me informam alguns marchands, a
partir de U$ 19.000.000,00 (dezenove
milhões de dólares). Mas existe aí
certa dúvida, elementos
imponderáveis, e estes valores
poderiam ser ainda mais expressivos.
Raffaello di Giovanni Santi
(1483-1520), mais popular como
Raphael Sanzio, ou como foi
utilizado na capa do belíssimo
catálogo de sua exposição, Raphael,
artista da mítica Renascença
Italiana, símbolo de uma definitiva
mudança cultural e psicológica da
humanidade, é um dos gênios que este
período nos legou. Certamente
Leonardo da Vinci, o gênio absoluto,
e Michelangelo Buonarroti, a voz da
Renascença, são mais conhecidos. Mas
a constelação renascentista é única
na história da humanidade e nela
pode brilhar, também, com lucidez
extraordinária este artista de vida
tão curta, apenas 37 anos, conhecido
como Raphael. É inacreditável a
criação tão elevada em prazo tão
curto. Esta mostra de 100 obras, que
valorizou o período inicial do
artista, entre 1.500 e 1.513, foi
suficiente para demonstrar esta
grandeza. Certamente, uma exposição
desta qualidade serviu para tornar
mais evidente a obra do artista.
Talvez, ele não seja o eleito
principal do público (por muitas
razões, tediosas de explicar), mas,
neste caso, o ditado “a voz do povo
é a voz de Deus”, não vale. Não sei
se vale para algum outro lugar, mas
nas questões artísticas a voz do
povo tem pouca importância, com as
desculpas devidas aos neo-adeptos da
democracia direta. A Ágora grega,
praça onde os cidadãos discutiam os
assuntos, não pode ser recuperada
para gerir as questões do século XXI
ou para formar juízos estéticos. |