O poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810),
autor de Marília de Dirceu, a coleção de
poemas líricos mais popular da literatura de
língua portuguesa, nasceu em Miragaia, no
Porto, mas viveu parte da infância e da
juventude no Recife, Bahia e Rio de Janeiro,
antes de voltar para a Portugal estudar em
Coimbra. Bacharel em Direito, montou banca
em Lisboa e ainda candidatou-se, sem êxito,
à cadeira de Direito Pátrio em Coimbra,
antes de ingressar na magistratura em 1778.
Foi juiz de fora em Beja, até que em
fevereiro de 1782 saiu sua nomeação para
ouvidor-geral de Vila Rica, em Minas Gerais.
Como ouvidor, não se pode dizer que Gonzaga
tenha sido um magistrado reto, que não se
tenha deixado levar pelas paixões e a cobiça
de um tempo em que a atividade mineradora
fizera a América portuguesa passar por
muitas transformações. Se não existem provas
cabais de que o ouvidor tenha favorecido a
família de sua noiva, evidências não faltam.
Em 1788, por exemplo, o ouvidor se limitou a
confirmar a reforma compulsória do capitão
Baltasar João Mairinque, pai de sua noiva,
Maria Dorotéia Joaquina de Seixas. Não lhe
aplicou nenhuma sanção, embora o militar
tivesse sido afastado do comando do
destacamento da Serra Diamantina de Santo
Antônio do Itacambiruçu por crime de
tolerância ao contrabando.
Afastado Mairinque por imposição da Junta
Diamantina, o governador e capitão-general
Luís da Cunha Meneses, aquele que passaria
para a História como o Fanfarrão Minésio das
Cartas Chilenas, aproveitou para favorecer
apaniguados: promoveu o tenente José de
Sousa Lobo e Melo a capitão e sargento-mor
“em breves meses” e o tenente Tomás Joaquim
de Almeida Trant a capitão, entregando-lhe o
comando da repartição de Paracatu. Quem
ardeu de raiva foi o alferes Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes, que, com a vaga
aberta, pretendia ascender a tenente. Era
julho de 1788. A ira do ouvidor talvez
nascesse da constatação de que, afastado
Mairinque, seu substituto, sob o manto
protetor do governador, agia de modo ainda
pior, sem que nada lhe pudesse ocorrer. O
ouvidor deu o troco como pôde, ao absolver,
mais tarde, o cadete Joaquim José Vieira
Couto, irmão do doutor José Vieira Couto,
conhecido maçom. Joaquim José fora acusado
de injuriar o comandante do Tijuco, José de
Vasconcelos Parada e Sousa, homem do esquema
do governador.
Talvez por isso o irmão de Parada, o tenente
Fernando, tenha resolvido desrespeitar o
ouvidor. Gonzaga, então, recorreu ao
tenente-coronel Francisco de Paula Freire de
Andrade, comandante do regimento de
cavalaria regular, que advertiu o
subordinado. Todas essas questiúnculas o
ouvidor contou disfarçadamente nas Cartas
Chilenas, mas podem ser também comprovadas
na documentação do Arquivo Público Mineiro e
em vários depoimentos que constam dos Autos
da Devassa da Inconfidência Mineira.
Depois que Cunha Meneses deixou Vila Rica em
julho de 1788, Gonzaga teve menos de dois
meses para trabalhar com o novo governador,
o visconde de Barbacena. No dia 7 de
setembro, passou o cargo para o novo
ouvidor, Pedro José de Araújo Saldanha, que
subira do Rio de Janeiro com o alferes
Tiradentes à frente do comboio. A posse foi
tumultuada porque, no dia anterior, 31
presos haviam fugido da cadeia pública.
Fora das funções, Gonzaga permaneceu em Vila
Rica à espera de autorização real para o seu
casamento com Maria Dorotéia. Por esse tempo
intensificou suas relações com os poderosos
do lugar: no começo de outubro, esteve por
vários dias como hóspede do fazendeiro
Alvarenga Peixoto em São João del-Rei. E
batizou um filho do amigo. Um outro filho de
Alvarenga recebeu batismo no mesmo dia, mas
o padrinho foi o arrematante de contratos de
entradas João Rodrigues de Macedo, dono do
prédio em Vila Rica que, mais tarde
confiscado pela Coroa, passaria a ser
conhecido como Casa dos Contos.
A festa serviu para muitas manifestações de
repúdio ao domínio português. O que
preocupava o coração daqueles homens era a
decisão da Corte, trazida pelo novo
governador, de impor a derrama para se
completar o pagamento das cem arrobas de
ouro exigidas por lei.
Por aquela época, o jovem José Álvares
Maciel, filho do capitão-mor das ordenanças,
que estudara em Birmingham, estava de volta
e fora nomeado assessor do governador.
Maciel já havia conquistado para o levante a
adesão de seu cunhado, o tenente-coronel
Freire de Andrada, a maior autoridade
militar da região depois do governador.
Freire de Andrada estava tão empenhado na
conjura que cedeu sua residência na Rua
Direita de Ouro Preto, em Vila Rica, para
uma série de reuniões. A principal ocorreu a
26 de dezembro com a participação do
ex-ouvidor Gonzaga.
A hesitação do visconde de Barbacena em
decretar a derrama, porém, aparentemente,
atrapalhou os planos e dispersou alguns
conspiradores. A outra possibilidade é que
tenha havido uma ruptura entre os
revolucionários quanto ao sistema político
que a nova república adotaria.
Em meados de janeiro, talvez por ter
desistido da idéia da sublevação, Freire de
Andrada decidiu pedir licença do comando por
dois meses. Alvarenga resolveu deixar a casa
de Gonzaga e voltar para a sua fazenda em
Paraopeba. Quando o coronel dos auxiliares
Joaquim Silvério dos Reis, ex-arrematante
dos contratos de entradas e grosso devedor
do Erário Régio, decidiu delatar seus
companheiros de conjura, os planos de
sublevação já haviam sido praticamente
deixados de lado.
As autoridades, porém, nunca se deixaram
enganar por Silvério e sempre o tiveram como
o “motor” da sublevação, aquele que tivera a
idéia inicial do levante. O outro seria
Macedo, igualmente ex-arrematante e grosso
devedor. Ambos haviam construído fortunas
com os recursos que haviam arrecadado em
nome da Coroa. E queriam se ver livres das
dívidas.
Mesmo com a delação de Silvério, os
inconfidentes só não derrubaram o visconde
de Barbacena por causa da hesitação de
Freire de Andrada, que se recusou a colocar
a tropa na rua. Um gesto do militar e o
poder régio teria ruído na capitania:
Barbacena estava acuado no Palácio de
Cachoeira do Campo, valendo-se apenas do
“fraco socorro de seus ajudantes-de-ordens”,
sem um barril de pólvora.
Denunciada a conjuração, Gonzaga tratou de
tomar algumas providências que o colocassem
acima de qualquer suspeita. No dia 20 de
abril, procurou o governador a pretexto de
obter uma autorização para casar a 30 de
maio, um sábado. Alegou que precisava viajar
para assumir o lugar para o qual estava
nomeado na Relação da Bahia.
Detido, foi encaminhado ao Rio de Janeiro e
recolhido à fortaleza da ilha das Cobras no
dia 6 de junho. Escreveu liras, rompeu o
noivado com Maria Dorotéia e compareceu a
vários interrogatórios, sempre mantendo-se
“numa tenaz negativa”. Da prisão, pediu a um
amigo que levasse para Lisboa os originais
de Marília de Dirceu, que sairia à luz pela
Tipografia Nunesiana, quando ele já estava
em seu exílio na ilha de Moçambique havia
três meses.
Pouco tempo depois de desembarcar da nau
Nossa Senhora da Conceição e Princesa de
Portugal, a 31 de julho de 1792, para
cumprir pena de degredo por dez anos na
ilha, Gonzaga foi nomeado promotor de
defuntos e ausentes pelo ouvidor Francisco
Antônio Tavares de Siqueira.
Ao contrário do que afirmou o professor M.
Rodrigues Lapa, em seu prefácio para as
Obras Completas de Tomás Antônio Gonzaga
(São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1942), o poeta não casou com “a herdeira da
casa mais opulenta de Moçambique em negócio
de escravatura” nem consagrou “as horas
vagas ao rendoso comércio de escravos”.
Muito menos ajudou o sogro a aumentar sua
fortuna. Até porque nem teve tempo para
isso. O escrivão Alexandre Roberto
Mascarenhas, seu subordinado, morreu aos 42
anos, em 1793, no mesmo ano de seu casamento
com Juliana de Sousa Mascarenhas, uma jovem
analfabeta de 19 anos
Mascarenhas nunca se envolveu no comércio
negreiro. Era proprietário de uma casa na
Rua do Largo da Saúde, na ilha de
Moçambique, onde Gonzaga passou a morar com
a mulher, e de uma machamba (plantação de
mandioca) no continente fronteiro à ilha,
que obtivera pelo casamento com Ana Maria de
Sousa.
O casamento representou um desafogo nas
finanças do degredado, mas não foi
suficiente para torná-lo um potentado. Ana
Maria, a sogra, com a morte do marido,
transferiu para o casal a morada da Rua do
Largo da Saúde e passou a morar sozinha na
machamba, nas Terras Firmes. Com a
concordância de sua mãe, Juliana França de
Sousa, doou ao casal um palmar com suas
casas contíguo a sua propriedade.
A vida nunca esteve mal para Gonzaga. Tanto
que, com menos de 25 dias de chegado à
terra, pôde comprar um escravo ladino por 20
mil-réis. Uma das raras pessoas cultas
naquele fim de mundo, o ex-ouvidor não
encontraria dificuldades.
No AHU, há um atestado que Gonzaga escreveu
para João da Silva Guedes, a tempo ainda de
o ouvidor que estava de saída assiná-lo e
levá-lo para o Reino na mesma nau que
deixara os inconfidentes. Guedes nunca mais
esqueceria o favor e seria fiel a Gonzaga
até o fim. Em troca, o ex-ouvidor faria
outros favores a Guedes e fecharia os olhos
para muitos negócios escusos do amigo.
Gonzaga nunca deixou de ser maçom, como
mostra o seu bom relacionamento com Guedes,
pai de Vicente Guedes da Silva e Sousa, que,
de retorno do Reino onde fora estudar, seria
preso no Rio de Janeiro em julho em 1799,
acusado de ter embarcado ilegalmente livros
“ímpios e blafesmos” e catecismos maçônicos.
Como advogado, Gonzaga trabalhou para outros
traficantes negreiros e, mais tarde, ao
final da vida, como juiz interino da
alfândega, seria acusado pelo governo de
Lisboa de ter favorecido os interesses da
elite negreira da ilha, em detrimento da
Coroa.
Na África, comporia alguns versos e pelo
menos A Conceição, poema épico inspirado no
naufrágio da nau Marialva, em 1802, às
costas de Moçambique, que hoje (incompleto)
faz parte do acervo da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Como advogado, escreveu
cartas e petições às autoridades no Reino.
Com Juliana, teve dois filhos: Ana e
Alexandre Mascarenhas Gonzaga. Alexandre,
que nasceu em 1809, morreu solteiro e não
deixou descendentes. Ana casou, em segundas
núpcias, com Adolfo João Pinto de Magalhães,
que viveu até 1860 e foi um dos maiores
traficantes negreiros de Moçambique.
Gonzaga morreu entre 25 de janeiro e 1º de
fevereiro de 1810 e foi sepultado na igreja
do convento de São Domingos dedicada à Nossa
Senhora do Rosário, na ilha de Moçambique.
Em 1852, esse templo foi demolido por
estarem suas paredes comprometidas e os
ossos do poeta teriam se perdido. Não há
indícios de que tenham sido trasladados para
outra igreja. |