Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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NICOLAU SAIÃO

ESCRITA E O SEU CONTRÁRIO

 

 

INDEX

 

Alguns dos poemas deste livro foram publicados em revistas e jornais tais como: TriploV, Decires (Argentina), Jornal de Poesia (Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso (Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França), Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila (Brasil), Abril em Maio, La Otra (México), António Miranda (Brasil).

(Casa da Muralha, Arronches, Dezembro de 2009)

VIAGENS

VIAGEM

ÁFRICA

SETE QUADROS

ARS MAGNA

PÁSCOA

UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE

ANUNCIAÇÃO

FORMULÁRIO

MENSAGEM

GUINÉ, FEVEREIRO DE 70

VIAGEM

Naquele ano, na sala de entrada
do Museu do Homem (Otawa), em certos dias da semana
e durante alguns minutos os visitantes
mais observadores repararam numa aparição
que se materializava perto das esculturas
feitas de pedra macia pelos habitantes dos bosques
da província do Ontário. Um ou outro supuseram
que se tratava da figura de um homem-medicina
que buscava a sua antiga morada. Outros,
no entanto, disseram que não era mais
que um ectoplasma pertencente

a um cidadão da longínqua Europa.

ÁFRICA

1. Não, ela não fica ali à esquina. Ou talvez fique. Em todo o caso, poderemos dizer: os altiplanos de Kundelunga. Ou: os primeiros passos no deserto de Niyery, perto de Namanga e dos grandes planaltos como enclaves de plantas perpétuas que, tirada uma linha recta para a direita, léguas e léguas andadas, nos consente que encontremos à beira do mar a cidade de Kapini, nesse Índico onde outros nomes míticos ressoam: Mombaça, Dar-es-Salam, a ilha totalmente feita de dunas da Grande Baía mais a sul.

Os animais e seus silêncios, a grande solidão que os faz deter seja no Okavango seja na serra de Chela ou na fronteiras do rio perto de Bongassou.

E os homens e o seu rosto corroído pelo tempo. Como uma welswitchya mirabilis nos plainos requeimados, inabordáveis, de Moçâmedes.


2. "Here is a typical village”, referiu o guia olhando os outros dois viandantes.

Sobriamente, nenhum deles proferiu palavra. Entraram na primeira casa, espaçosa, com persianas de bambu e olharam em volta.

Sobre as mesas, cobertas de pó, copos de pé alto guardavam um líquido ambarino que luzia estranhamente. No chão, desirmanadas e dispersas, pequenas figuras talhadas em marfim repousavam ao calor . Sobre um sofá de couro de alto preço via-se um exemplar do "Público" e outro do "Saturday Evening Post" com o discurso de Henry Stanley dirigindo-se aos kukuyos aquando do primeiro combate.

"Henry Stanley, I presume", disse o juíz entrando com a mão estendida. E nessa mão brilhava, como se estivesse enfeitiçada, uma factura do super-mercado onde o Dr. Levingstone usava ir abastecer-se.

Ao longe, por sobre as cubatas, o sol declinava. E foi então que o segundo viandante puxou da automática de nove tiros.

SETE QUADROS

Como o sete que vai do norte ao sul. Como os mares, as luas e as florestas. Como os ventos que se acrescentam nas moradias e nos lugares. Como o de dentro e o de fora das recordações, o antes do oito e o depois do seis: as três partes de baixo e as três de cima pelas quais o Homem se completa.

O que sai do oriente e se encontra no ocidente, as ruas e o interior daquilo que se construiu e que é vidro e cinza, firmamento e areia, pedra sobre as lembranças e sinal de escrita, de matéria ausente. A frescura do orvalho e o pólen ao redor de flores cuja imagem se multiplica perto da sombra numa parede. O sete da mágoa e do contentamento, das figuras que se reconhecem num relance em praças intermináveis. Sete espigas, sete peixes, sete animais desconhecidos. Sete frutos repousando sobre uma toalha de linho. Sete segredos entre o riso e a dor. Sete sinais ao longo duma viagem entre a noite e o dia.

Sete contemplações, sete olhares, sete palavras e, de repente, algo que ficou sendo apenas o um – o um que nos envolveu sem que o esperássemos e uma luz se quedasse sobre um caminho onde a penumbra havia pousado levemente o seu inconcreto horizonte.

ARS MAGNA

A arte
contemporânea – ou seja, a que com independência
de espírito se estabelece como tal - tem
o selo de quem ama de facto os traços, as cores e as
inflexões matéricas que nela se contêm
e, por isso, os cria fogosa ou serenamente.

(Aqui um esboço
de Beckman ou
de Lyle Carbajal ou mesmo
uma aguarela incompleta de Cézanne
ou até uma folha semi-queimada
semi-rasgada de Wolfli, o que no seu
quarto do manicómio onde residiu uma vintena
de anos, acendia velas de estearina a Santa Realidade
que para ele
era a enfermeira que o amparava no seu desgosto).
Esses que a fazem
por um imperativo da força que lhes sai do corpo
e da sua organização em ossos e pele,
músculos, cartilagens e sentimentos – e que depois
cristaliza em quadros, peças escultóricas
e elementos mistos - sabem que isso em seguida
se repercute em nós e faz nascer
outras cores e traços e substâncias
vitais rodeados de palavras e de realidades
por vezes raras e acrescentadas. Coisas

que umas vezes em cima outra vezes em baixo
do mundo que as fundamenta
são como um rosto convulso
ou inteiramente apaziguado

entre as mãos de quem rememora
o tempo vivo e desfeito.

PÁSCOA

1.Vem dos tempos antigos a voz desse tempo - antigos para mim, do meu tempo e não da História: era eu que levava ao forno da padaria do sr. Júlio que fumava de boquilha e tinha um dente de ouro (padeiro fino, não sei se me entendem) as latas com os bolos-fintos e as "enxovalhadas" ou boleimas que a Mãe e a Mana artilhavam com saberes de magas.
Eu não sabia que era feliz. Só sabia que naqueles dias, naquele tempo de férias da escola, me davam amêndoas, me davam bolinhos doces, me davam alegrias, e o Pai até umas suaves moedinhas...
Eu não sabia que era feliz - e na sexta-feira às 3 da tarde soava o apito da fábrica e isso assinalava que alguém, há muito tempo, morrera de morte triste numa terra do Oriente. E sentia-se um estranho silêncio enquanto o apito soava. E eu sentia um frémito porque eu gostava desse alguém que há muito tempo morrera - sem me preocupar se ele era isto ou aquilo.
Era um estremecimento, digamos um abraço solidário que ia de mim para ele, porque eu era criança. Ou seja: tinha tantos séculos!
E não sabia, nessa altura, muitas coisas - só um poucochinho, um poucochinho mais do que sei hoje.

2. Ao longe a serra, ao longe como os tempos que passaram. Tempos de páscoa, serras de páscoa, recordações de momentos que depois preencheriam dias e lembranças.
Amêndoas, bolos desta terra e daquela, festarolas tradicionais? Sim, isso tudo. E o mais que a emoção dá, que é ir-se vivendo com um resto de inocência e de fraternidade vital. Dentro de nós, fora de nós: para nós e para os outros - que também tiveram/terão o seu tempo de maravilhamento e nostalgia.

UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE

É de tarde e você comeu frugalmente. Sardinhas assadas
Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma caneca
De “Castillo de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas
De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem
Problema – a higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando
Está e bem quando não
Está – uma frase
Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é preciso juntar, pois é disso
Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e outro
De aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes. Abra o peixe, frite a carne, urine
Entrementes um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta que também é médico: aproveite para
Se vingar dando um ou outro
Violentíssimo traque como vírgulas, no interior da panela
Da escrita. Considere, sorrindo, que a alimentação
Tende para o sujo, para o torpe, para o inefável
Se a sua voz é cheia como o Verão
Que findou há doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe sairá da memória.
Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com pimenta
Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.
Cague nas suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um rio
Que esteve em cidades quotidianas mas que o assustaram mortalmente.

Assim eu cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo, vi convictamente
Papoilas na noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –
E assim eu comia, tal como dobava linho
Aquela mulher velha da fotografia
Ou o outro entre móveis simples de pinho
Ou de castanho
Olhados, perdidos, olhados.

Hoje devoro torradas
Não muito a fundo. Debicando um pouco
Pois tremem as chamas das velas e quando se adormece

Respira-se como se não mais houvesse presságios nem minutos.

ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à luz frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.

FORMULÁRIO

(a C.Ronald)

Amigo
Os livros chegaram mesmo agora.
O carteiro das encomendas entregou-me o pacote
não há cinco minutos. Passou-me para as mãos
a Caixa Tipo 2 (amarela e azul) e disse ao pedir-me
que assinasse o formulário acusando
recepção: "É do Brasil...". Assinei e saudei. Fechei a porta.

Na cozinha, com a velha tesoura que já fôra
das costuras da Mãe, dos bordados da Flora
eu abri com cuidado, para não danificar
o meu nome e endereço, em letra
muito bem desenhada - um cursivo
de excelente recorte. "Para si. Para já. EMS Correio Urgente",
assim se lia oficialmente
na caixa. Que agitei, para também
sentir primeiro o som dos livros, para também
fruí-los pelo som: o som primeiro
de chegada a uma terra longínqua.

E cheirei-os, tão-logo
os tirei. Porque os livros
com seu cheiro de passado
de presente e futuro
possuem o odor
que lhes é próprio - em seu corpo
mortal aí reside
o cheiro do mundo, o cheiro do tempo
com seus horizontes
das diversas estações: ora de inverno
ou de outono
ora de dia claro
ora de noite e madrugada
de tardes que a primavera entrega
ao verão nascente. Sete livros.
Sete livros: capa, figuras, títulos ilustrando
as palavras de dentro, mas também
seus secretos nomes de naturezas
vivas.
Sete livros: número de tradicional
recorte natural
por sua magia
quotidiana, recreando
o íntimo júbilo.

E depois será lê-los. E por isso
agora calo minha fala. Pois que um'outra
se irá depois erguer
- e pelas letras agora de meu tempo
e palavras escritas num tempo alheio
saberei então outros descobertos
buscados, encontrados

partilhados mistérios.

MENSAGEM

Ao domingo chega mais tarde o sol do dia
À segunda a noite fica dentro do quarto
À terça os pombos comem connosco à mesa
À quarta não é assado mas peixe frito

À quinta entre o pijama e a camisola
À sexta sente-se o gosto de tempos idos
Ao sábado o sabonete faz mais espuma
Ao domingo entre o cabelo e a paz dos tempos

À segunda lembra-se a neta e a ida à escola
À terça que já não há como o que havia
À quarta sabe-se que ontem não era sábado
À quinta nos outros dias que eram depois

À sexta escreve-se ao outro do outro lado
Ao sábado tem-se na mão um “como está?”
Ao domingo vai-se ao mercado sem se lá ir
À segunda sabe-se bem o que não há

À terça fica-se erguido como sentado
À quarta tem-se no olho um arabesco
À quinta as florestas nem dão por que ontem
À sexta era mais vento nos outros dias

Ao sábado fica-se pronto para pensar
Ao domingo cala-se a tarde se inda é manhã
À segunda tudo se espera se se esqueceu
À terça quando se abriam os sons da noite

À sexta há um retrato que se procura
À quarta não se tem medo do canto escuro
À segunda come-se o fruto bebe-se o vinho
Ao sábado um livro entrega o seu segredo

À quinta já se tem anos para o que foi
À terça a voz antiga que nos chamava
À quarta come-se o pão olha-se o campo
Ao domingo vamos embora que já chegámos.

GUINÉ, FEVEREIRO DE 70


Entre mim e as janelas há o rio e as árvores
e milhões de anos feitos para a gazela e a marabunta.

Dionísio teria percorrido a savana e a montanha
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silencio.
Serena era a madrugada, subitamente despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem velava
- pastor e aguadeiro -
homem que na terra colocava a semente do tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocencia e a perfídia
as abelhas eram a equivalencia perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o temor
de anos e anos a vir.

Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.

Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
- os campos do mamute e da zebra primaveril -
mesmo quando a época das gramíneas refloresce
entre lua e penumbra?

Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre os homens

que vi e que inventei.

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, 5, Abril de 2010

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

 

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