obras em processo
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Alguns dos
poemas deste livro foram publicados em
revistas e jornais tais como: TriploV,
Decires (Argentina), Jornal de Poesia
(Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del
Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso
(Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França),
Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila
(Brasil), Abril em Maio, La Otra (México),
António Miranda (Brasil).
(Casa da
Muralha, Arronches, Dezembro de 2009) |
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VIAGENS
VIAGEM
ÁFRICA
SETE QUADROS
ARS MAGNA
PÁSCOA
UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE
ANUNCIAÇÃO
FORMULÁRIO
MENSAGEM
GUINÉ, FEVEREIRO DE 70 |
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VIAGEM |
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Naquele ano, na sala de entrada
do Museu do Homem (Otawa), em certos dias da
semana
e durante alguns minutos os visitantes
mais observadores repararam numa aparição
que se materializava perto das esculturas
feitas de pedra macia pelos habitantes dos
bosques
da província do Ontário. Um ou outro
supuseram
que se tratava da figura de um
homem-medicina
que buscava a sua antiga morada. Outros,
no entanto, disseram que não era mais
que um ectoplasma pertencente
a um cidadão da longínqua Europa. |
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ÁFRICA |
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1. Não, ela não fica ali à esquina. Ou
talvez fique. Em todo o caso, poderemos
dizer: os altiplanos de Kundelunga. Ou: os
primeiros passos no deserto de Niyery, perto
de Namanga e dos grandes planaltos como
enclaves de plantas perpétuas que, tirada
uma linha recta para a direita, léguas e
léguas andadas, nos consente que encontremos
à beira do mar a cidade de Kapini, nesse
Índico onde outros nomes míticos ressoam:
Mombaça, Dar-es-Salam, a ilha totalmente
feita de dunas da Grande Baía mais a sul.
Os animais e seus silêncios, a grande
solidão que os faz deter seja no Okavango
seja na serra de Chela ou na fronteiras do
rio perto de Bongassou.
E os homens e o seu rosto corroído pelo
tempo. Como uma welswitchya mirabilis nos
plainos requeimados, inabordáveis, de
Moçâmedes.
2. "Here is a typical village”, referiu o
guia olhando os outros dois viandantes.
Sobriamente, nenhum deles proferiu palavra.
Entraram na primeira casa, espaçosa, com
persianas de bambu e olharam em volta.
Sobre as mesas, cobertas de pó, copos de pé
alto guardavam um líquido ambarino que luzia
estranhamente. No chão, desirmanadas e
dispersas, pequenas figuras talhadas em
marfim repousavam ao calor . Sobre um sofá
de couro de alto preço via-se um exemplar do
"Público" e outro do "Saturday Evening Post"
com o discurso de Henry Stanley dirigindo-se
aos kukuyos aquando do primeiro combate.
"Henry Stanley, I presume", disse o juíz
entrando com a mão estendida. E nessa mão
brilhava, como se estivesse enfeitiçada, uma
factura do super-mercado onde o Dr.
Levingstone usava ir abastecer-se.
Ao longe, por sobre as cubatas, o sol
declinava. E foi então que o segundo
viandante puxou da automática de nove tiros. |
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SETE QUADROS |
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Como o sete que vai do norte ao sul. Como os
mares, as luas e as florestas. Como os
ventos que se acrescentam nas moradias e nos
lugares. Como o de dentro e o de fora das
recordações, o antes do oito e o depois do
seis: as três partes de baixo e as três de
cima pelas quais o Homem se completa.
O que sai do oriente e se encontra no
ocidente, as ruas e o interior daquilo que
se construiu e que é vidro e cinza,
firmamento e areia, pedra sobre as
lembranças e sinal de escrita, de matéria
ausente. A frescura do orvalho e o pólen ao
redor de flores cuja imagem se multiplica
perto da sombra numa parede. O sete da mágoa
e do contentamento, das figuras que se
reconhecem num relance em praças
intermináveis. Sete espigas, sete peixes,
sete animais desconhecidos. Sete frutos
repousando sobre uma toalha de linho. Sete
segredos entre o riso e a dor. Sete sinais
ao longo duma viagem entre a noite e o dia.
Sete contemplações, sete olhares, sete
palavras e, de repente, algo que ficou sendo
apenas o um – o um que nos envolveu sem que
o esperássemos e uma luz se quedasse sobre
um caminho onde a penumbra havia pousado
levemente o seu inconcreto horizonte. |
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ARS MAGNA |
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A arte
contemporânea – ou seja, a que com
independência
de espírito se estabelece como tal - tem
o selo de quem ama de facto os traços, as
cores e as
inflexões matéricas que nela se contêm
e, por isso, os cria fogosa ou serenamente.
(Aqui um esboço
de Beckman ou
de Lyle Carbajal ou mesmo
uma aguarela incompleta de Cézanne
ou até uma folha semi-queimada
semi-rasgada de Wolfli, o que no seu
quarto do manicómio onde residiu uma vintena
de anos, acendia velas de estearina a Santa
Realidade
que para ele
era a enfermeira que o amparava no seu
desgosto).
Esses que a fazem
por um imperativo da força que lhes sai do
corpo
e da sua organização em ossos e pele,
músculos, cartilagens e sentimentos – e que
depois
cristaliza em quadros, peças escultóricas
e elementos mistos - sabem que isso em
seguida
se repercute em nós e faz nascer
outras cores e traços e substâncias
vitais rodeados de palavras e de realidades
por vezes raras e acrescentadas. Coisas
que umas vezes em cima outra vezes em baixo
do mundo que as fundamenta
são como um rosto convulso
ou inteiramente apaziguado
entre as mãos de quem rememora
o tempo vivo e desfeito. |
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PÁSCOA |
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1.Vem dos tempos antigos a voz desse tempo -
antigos para mim, do meu tempo e não da
História: era eu que levava ao forno da
padaria do sr. Júlio que fumava de boquilha
e tinha um dente de ouro (padeiro fino, não
sei se me entendem) as latas com os
bolos-fintos e as "enxovalhadas" ou boleimas
que a Mãe e a Mana artilhavam com saberes de
magas.
Eu não sabia que era feliz. Só sabia que
naqueles dias, naquele tempo de férias da
escola, me davam amêndoas, me davam bolinhos
doces, me davam alegrias, e o Pai até umas
suaves moedinhas...
Eu não sabia que era feliz - e na
sexta-feira às 3 da tarde soava o apito da
fábrica e isso assinalava que alguém, há
muito tempo, morrera de morte triste numa
terra do Oriente. E sentia-se um estranho
silêncio enquanto o apito soava. E eu sentia
um frémito porque eu gostava desse alguém
que há muito tempo morrera - sem me
preocupar se ele era isto ou aquilo.
Era um estremecimento, digamos um abraço
solidário que ia de mim para ele, porque eu
era criança. Ou seja: tinha tantos séculos!
E não sabia, nessa altura, muitas coisas -
só um poucochinho, um poucochinho mais do
que sei hoje.
2. Ao longe a serra, ao longe como os tempos
que passaram. Tempos de páscoa, serras de
páscoa, recordações de momentos que depois
preencheriam dias e lembranças.
Amêndoas, bolos desta terra e daquela,
festarolas tradicionais? Sim, isso tudo. E o
mais que a emoção dá, que é ir-se vivendo
com um resto de inocência e de fraternidade
vital. Dentro de nós, fora de nós: para nós
e para os outros - que também tiveram/terão
o seu tempo de maravilhamento e nostalgia. |
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UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE |
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É de tarde e você comeu frugalmente.
Sardinhas assadas
Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma
caneca
De “Castillo de Salobreña”, sem álcool,
“base de mosto de uvas
De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não
lavou. Não tem
Problema – a higiene é como as manhãs de
Junho (fica bem quando
Está e bem quando não
Está – uma frase
Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é preciso juntar, pois é disso
Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e
outro
De aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes. Abra o peixe, frite a carne,
urine
Entrementes um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta que também é médico: aproveite
para
Se vingar dando um ou outro
Violentíssimo traque como vírgulas, no
interior da panela
Da escrita. Considere, sorrindo, que a
alimentação
Tende para o sujo, para o torpe, para o
inefável
Se a sua voz é cheia como o Verão
Que findou há doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe sairá da memória.
Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com
pimenta
Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite
mais. Ria desabaladamente.
Cague nas suas desilusões. Jure que vai
desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um rio
Que esteve em cidades quotidianas mas que o
assustaram mortalmente.
Assim eu cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo, vi convictamente
Papoilas na noitinha nascente ao pé de um
muro derrubado –
E assim eu comia, tal como dobava linho
Aquela mulher velha da fotografia
Ou o outro entre móveis simples de pinho
Ou de castanho
Olhados, perdidos, olhados.
Hoje devoro torradas
Não muito a fundo. Debicando um pouco
Pois tremem as chamas das velas e quando se
adormece
Respira-se como se não mais houvesse
presságios nem minutos. |
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ANUNCIAÇÃO |
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As mulheres do vento parado como um planeta
extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam
com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como
uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores
distintas
entre mim e o céu
Entram pela minha boca e censuram-me
docemente
Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho
instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os
devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a
direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios
palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro
em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de
gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga
medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina
imprecisa
Job de rosto erguido amargo senhor das
angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na
noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as
vestes
Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa
fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde
medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais
Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando
como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante
da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava
muito devagar
A vossa figura palpitante, mulheres, irisada
obscura
à luz frouxa da manhã e o frio subindo até
às portas como um animal a morrer. |
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FORMULÁRIO |
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(a C.Ronald)
Amigo
Os livros chegaram mesmo agora.
O carteiro das encomendas entregou-me o
pacote
não há cinco minutos. Passou-me para as mãos
a Caixa Tipo 2 (amarela e azul) e disse ao
pedir-me
que assinasse o formulário acusando
recepção: "É do Brasil...". Assinei e
saudei. Fechei a porta.
Na cozinha, com a velha tesoura que já fôra
das costuras da Mãe, dos bordados da Flora
eu abri com cuidado, para não danificar
o meu nome e endereço, em letra
muito bem desenhada - um cursivo
de excelente recorte. "Para si. Para já. EMS
Correio Urgente",
assim se lia oficialmente
na caixa. Que agitei, para também
sentir primeiro o som dos livros, para
também
fruí-los pelo som: o som primeiro
de chegada a uma terra longínqua.
E cheirei-os, tão-logo
os tirei. Porque os livros
com seu cheiro de passado
de presente e futuro
possuem o odor
que lhes é próprio - em seu corpo
mortal aí reside
o cheiro do mundo, o cheiro do tempo
com seus horizontes
das diversas estações: ora de inverno
ou de outono
ora de dia claro
ora de noite e madrugada
de tardes que a primavera entrega
ao verão nascente. Sete livros.
Sete livros: capa, figuras, títulos
ilustrando
as palavras de dentro, mas também
seus secretos nomes de naturezas
vivas.
Sete livros: número de tradicional
recorte natural
por sua magia
quotidiana, recreando
o íntimo júbilo.
E depois será lê-los. E por isso
agora calo minha fala. Pois que um'outra
se irá depois erguer
- e pelas letras agora de meu tempo
e palavras escritas num tempo alheio
saberei então outros descobertos
buscados, encontrados
partilhados mistérios. |
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MENSAGEM |
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Ao domingo chega mais tarde o sol do dia
À segunda a noite fica dentro do quarto
À terça os pombos comem connosco à mesa
À quarta não é assado mas peixe frito
À quinta entre o pijama e a camisola
À sexta sente-se o gosto de tempos idos
Ao sábado o sabonete faz mais espuma
Ao domingo entre o cabelo e a paz dos tempos
À segunda lembra-se a neta e a ida à escola
À terça que já não há como o que havia
À quarta sabe-se que ontem não era sábado
À quinta nos outros dias que eram depois
À sexta escreve-se ao outro do outro lado
Ao sábado tem-se na mão um “como está?”
Ao domingo vai-se ao mercado sem se lá ir
À segunda sabe-se bem o que não há
À terça fica-se erguido como sentado
À quarta tem-se no olho um arabesco
À quinta as florestas nem dão por que ontem
À sexta era mais vento nos outros dias
Ao sábado fica-se pronto para pensar
Ao domingo cala-se a tarde se inda é manhã
À segunda tudo se espera se se esqueceu
À terça quando se abriam os sons da noite
À sexta há um retrato que se procura
À quarta não se tem medo do canto escuro
À segunda come-se o fruto bebe-se o vinho
Ao sábado um livro entrega o seu segredo
À quinta já se tem anos para o que foi
À terça a voz antiga que nos chamava
À quarta come-se o pão olha-se o campo
Ao domingo vamos embora que já chegámos. |
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GUINÉ, FEVEREIRO DE 70 |
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Entre mim e as janelas há o rio e as árvores
e milhões de anos feitos para a gazela e a
marabunta.
Dionísio teria percorrido a savana e a
montanha
quando ainda não havia rastos de camião
nem o mar sepultava pensamentos e memórias
entre um olhar e um silencio.
Serena era a madrugada, subitamente
despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem
velava
- pastor e aguadeiro -
homem que na terra colocava a semente do
tempo
ou do milho fremente para os sonhos e os
minutos.
Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristalizara a inocencia e a
perfídia
as abelhas eram a equivalencia perfeita
do universo gerando a carne negra e branca
que dos livros guardara a misericórdia e o
temor
de anos e anos a vir.
Há um grande e perpétuo rumor que faz pensar
em Orion e no Cruzeiro do Sul
mesmo quando o sol ainda risca a figura
incontusa dos sete pontos cardeais.
Qual o fulgor
que viaja entre oriente e ocidente
- os campos do mamute e da zebra primaveril
-
mesmo quando a época das gramíneas
refloresce
entre lua e penumbra?
Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós
mas o contorno das palavras que escrevo e
que despertam
as sombras do passado e do futuro
hei-de lembrá-las sempre
impolutas sobre o rio, sobre as casas, sobre
os homens
que vi e que inventei. |
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Revista TriploV de Artes, Religiões e
Ciências, 5, Abril de 2010 |
NICOLAU
SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
[Monforte do
Alentejo,1949, Portugal]
Poeta,
publicista, actor-declamador e
artista plástico. Efectuou palestras
e participou em mostras de Mail Art
e exposições em diversos países.
Livros: “Os objectos inquietantes”,
“Flauta de Pan”, “Os olhares
perdidos”, “Passagem de nível”, “O
armário de Midas”, “Escrita e o seu
contrário” (a publicar). Tem
colaboração dispersa por jornais e
revistas nacionais e estrangeiros
(Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com |
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