Revista TriploV DE Artes, Religiões e Ciências

Direção|Maria Estela Guedes & Floriano Martins

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obras em processo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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NICOLAU SAIÃO

 

ESCRITA E O SEU CONTRÁRIO

 

INDEX

 

Alguns dos poemas deste livro foram publicados em revistas e jornais tais como: TriploV, Decires (Argentina), Jornal de Poesia (Brasil) Velocipédica Fundação, Botella del Náufrago (Chile), El Establo de Pégaso (Espanha), DiVersos, Carré Rouge (França), Saudade, De Puta Madre (Espanha), Sibila (Brasil), Abril em Maio, La Otra (México), António Miranda (Brasil).

(Casa da Muralha, Arronches, Dezembro de 2009)

SEIS POEMAS EUROPEUS

ENCONTRO EM PARIS 

QUERIDO PRIMO JACOB

NA COZINHA

O DIA DE PHILICARI

NAZARÉ (VILA E PRAIA)

RELÍQUIA

ANUNCIAÇÃO

ENCONTRO EM PARIS 

Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas

onde patrões e criados vão vivendo o seu dia

E Paris é para mim a face de Manolo Fuertes Refólio

o barbeiro que sabia aparar-me o cabelo

e que depois se exilou nestes lugares de salvação

 

Até Saint Michel verei pelo menos 60 conhecidos

mas o seu rosto já não é o que me lembro de lhes ver.

Notre Dame fica perto e repousa tranquilamente.

Todos os anos a imaginava, como que levitando na manhã

esperando os seus fiéis franceses que a sonham amorosamente.

A ela voltam uma e outra vez e olham em redor admirados

pensando se um de nós acaso não será um príncipe ou um mago

vindo de terras estranhas debaixo de um impulso fremente

 

Depois baixam os olhos com tocante delicadeza

pois a nossa expressão entrou-lhes bem no centro do coração

 

e o ar em volta ficou como se lhe tivesse fugido o sol.

 

                                                                                 (1999)

QUERIDO PRIMO JACOB

Chamas-te assim, mas eu apetecia-me chamar-te Tiago

ou Jaime, para dar fantasia aos meus versos

Vou caminhando e pensando nas presenças que às vezes

me visitam nos cinco dias de semana

em que vale a pena trabalhar

os tais em que se ganha ou se perde o universo.

 

Mas eu digo-te: lembro-me do pai e da mãe todos os dias

e estão como dantes estavam: risonhos e um pouco perdidos.

Mas a sua semana entrava pelo mundo adentro.

 

Quanto a mim, sou apenas o NS

o seu menino tão cansado   e sempre repleto de memórias.

 

(Arronches, em 99)

NA COZINHA

Deuses que entram e saem

com o pão

a fruta

uma bilha de água

um gesto de mãos

um de barriga ao léu

dois três anos

que saberá do seu futuro tempo

interroguemo-nos

 

A mamã põe os olhos no ar

assim são os sonhos

passeios por lugares insondáveis

áfrica   américa

o choro do filósofo encobre o Sol

com as suas mãos emagrecidas acaricia um ombro

 

O mais pequeno olha a um canto

o rasto de algum familiar

avós sobrinhos comadres

um burrinho branco junto ao maciço de dálias

 

Se amais as lindas canções

ide até ao princípio da noite

 

                                                (Vale do Jerte, 2000)

O DIA DE PHILICARI

Georg Friedrich Haendel

em Meerbusch

no Hotel

com mendigos à porta

um de perna quebrada

outro zarolho

outro recordando os seus dias felizes

uma tarde junto ao rio

com uma pequena que o adorava

"Zozi!" dizia ela "Zoziiiii!"

De boca aberta pensa

Coça uma perna chagada

Olha o outro do lado   é uma outra

De saias até aos pés   olhando o homem

 

que agora chega de roxo e ouro, as meias verdes

um comerciante célebre que dias antes enviuvou

"Zoziiii!" chama uma voz fresca morta esfomeada

Ele sorri   a boca enegrecida   os olhos mais fundos

 

Junto ao rio os mesmos barcos, a mesma água.

Philicari prende o violino, a mão hábil o queixo recolhido

O arco a direito sobre as cordas   um sussurro rouco

 

Haendel sai, a carruagem vai partir   os mendigos

olham-no a pouco e pouco   mais longe   na rua depois

escurecendo   mais e mais 

 

deserta.

 

                                                                      (Toulouse, 2001)

NAZARÉ (VILA E PRAIA)

Não a outra, mas essa: a que do Sítio nos aponta o ocidente

E depois outras rotas para todos os quadrantes:

a praia de dentro

o jardim de fora e do fundo da nossa pequena

silhueta

- morte que se negou.

 

A solidão da praia do Norte

o assombro da luz

que alimenta a penumbra

Tudo o que por alegria calamos num passo estugado e

um pouco temeroso

Não importa, dizias tu,   além é o mundo e ouve-nos

- pequeno veraneante de roupas coloridas que a alguém entregou

sua voz seu segredo

seu nítido momento.

 

E agora

não a outra mas tu

a que não entra nessa história sagrada em que Ester

colocou seu cântaro perto do muro caiado

e que em Azarias achou seu derradeiro refrigério

A mão   a asa perfeitamente modelada

e depois seu abalar para sempre, seu

trespassado e imperfeito corpo até à claridade

-  bóias barcos refluir de vagas    as máquinas

fotográficas ao ritmo do que de longe a serra da Pederneira

conserva e permite.

 

Não a outra mas tu

a que outrora vi entre céus e uma sombra fugaz

Meu íntimo refúgio igual a mil   a cem   a um apenas.

As flores  os fogareiros  para o trabalho do peixe   a jorna entregue

a quem na memória retém surpresa e saudade

 

ou simplesmente no cimo da falésia avistou

horizontes   ruas incólumes   a escuridão das dunas. 

                                                                                       (2001)

RELÍQUIA

Onde está o silêncio onde jaz o silêncio?

Não neste braço   sujo   cortado

Não neste tapete espesso   neste bloco de apontamentos

onde se cruzam insultos   rimas

Não no pequeno perímetro das veias

 

- afinal tudo tudo entre nuvens de carbono

semelhantes a um bafo de camponês sobre a neve

onde se esmagavam insectos e excrementos de lobo

O primo velho outrora mo ensinara num mês adolescente.

 

Onde  em que ilha de desolação

sufocado  incerto  esse silêncio soberano

onde jaz    cerzido por traços de faca de pedra

Não   não o barulho de um passo que caminha para a beleza dum rosto

saindo de um vazadouro para a lama musgosa da margem

Brilhante como celofane

 

O silencio que respira

Sim o silêncio morno de quem procura o vazio

ou de quem busca uma cor imersa na carne recordada

da mão faminta    de muitos negrumes alheios

 

O silêncio que se recolhe

que se desdobra

que nos relembra de momentos e perdas

O silêncio que permutamos

O silêncio para além da luz   entre os olhos de uma fera morta.

                                                                                           

(Monforte, 2003)

ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento   parado como um planeta extinto

as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa

o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha

as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

 

entre mim e o céu

 

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

 

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante

ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios

Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos

junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando

estremecendo como uma pétala sobre a água

Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis

escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza

Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval

mulheres de pernas como lírios rosados

andando ao longo duma estrada francesa

as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

 

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias

a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos

a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

 

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou

na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra

Vós sois o sustento dos pontos cardeais

 

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste

e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda

o fumo espalhado no parque abandonado

os olhos tranquilos frios

A rua solitariamente sob a noite de Junho

e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

 

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura

à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.

 

                                                                                           (Bruxelas, 1999)

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, 5, Abril de 2010

   NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina, Cabo Verde...).
CONTATO: nicolau49@yahoo.com

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